Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BARATEIRO MARTINS | ||
Descritores: | CONTRATO DE ARRENDAMENTO CLÁUSULA VERBAL CONSTITUIÇÃO SOCIEDADE FALTA FORMA INÍCIO CONTRATO SÓCIOS RESPONSABILIDADE | ||
Data do Acordão: | 04/14/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE COIMBRA – INSTÂNCIA CENTRAL | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 36.º A 40.º DO CSC | ||
Sumário: | 1 - Tendo, no âmbito dum contrato de arrendamento comercial, sido pedida (apenas por um dos senhorios) e prestada uma caução não inserida no documento que formalizou o contrato, estamos perante uma cláusula negocial (verbal) nula; uma vez que a mesma não se limita a completar o conteúdo do documento (donde constava uma caução por fiança de terceiro) e não corresponde à vontade de todas os contraentes. 2 - No iter constitutivo duma sociedade (que se analisa num processo, numa série de actos e formalidades - acto complexo de formação sucessiva – necessariamente moroso) há fases anteriores à própria celebração do contrato que a lei reputa como situações normais (e não como situações irregulares) e a que, por isso, confere relevo jurídico (como resulta em especial nos art. 36.º a 40.º do CSC). 3 - Fechado entre os “sócios/subscritores” um contrato de sociedade comercial, é valido (e passa a vincular a sociedade no momento em que a mesma adquire personalidade jurídica), antes de lhe ser dada forma legal (antes da escritura pública ser lavrada), o contrato de arrendamento realizado pelos seus designados sócios em nome dela. 4 - O direito societário afastou-se do regime jurídico-civil da nulidade (a falta de formalização do contrato de sociedade constitui um vício de forma sancionado com a nulidade – cfr. art. 7.º, 41.º/1, 42.º/1/e) do CSC e 220.º do C. Civil), dizendo no art. 36.º/2 do CSC que “se for acordada a constituição duma sociedade comercial, mas, antes da celebração do contrato de sociedade, os sócios iniciarem a sua actividade, são aplicáveis às relações estabelecidas entre eles e com terceiros as disposições sobre sociedades civis”, o que significa que, nas “relações externas”, respondem a sociedade e, pessoal e solidariamente mas a título subsidiário, os sócios. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório A..., Lda., com sede na Av.ª (...) , Coimbra, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário (hoje, comum), contra B... e C..., ambos residentes na Alameda (...) , Coimbra, pedindo que estes sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 39.901,92 e juros à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento Alegou para tal, em resumo, que tomou de arrendamento (para fins comerciais), com início a 01/01/2004, uma fracção/loja pertencente em compropriedade aos RR. e a G... e esposa; tendo todas as negociações decorrido com o aqui R. marido. Nesse âmbito, a determinada altura (em Julho de 2003), estando o contrato já redigido, o R. marido exigiu que a A. prestasse uma caução de € 40.000,00 – que seria restituída no momento da cessação do contrato de arrendamento e se destinaria, segundo o mesmo, a acautelar o não pagamento de rendas e a danificação da fracção/loja locada, incluindo fachada – exigência a que a A. cedeu, acabando (com a ajuda de terceiros[1], uma vez que estava a iniciar a sua actividade e não tinha meios para satisfazer tal pretensão) por, a tal título, entregar, no dia 6/08/2013, o valor de € 39.901,92; data em que o contrato de arrendamento também foi assinado. Assim, tendo o arrendamento cessado em 28/02/2011, data para a qual, em Outubro de 2010, exerceu a denúncia do mesmo, vem a A. pedir a restituição dos € 39.901,92; apenas dos aqui RR. por, entretanto, ao entrar em contacto com os outros comproprietários, se haver apercebido que estes não sabiam da sua existência e que o R. B... agiu à revelia deles ao exigi-la, fazendo a referida quantia sua e da R. C... , sua esposa. Os RR. contestaram. Por excepção, dizem que a R. mulher é estranha à actividade profissional do R. marido, cujos proventos foram sempre em benefício do próprio, razão porque a R. mulher é parte ilegítima. Por impugnação, negam a exigência/existência da caução dos € 40.000,00/€ 39.901,92 e que “os cheques para que a A. remete são um artifício usado para não pagar as rendas vencidas e que se encontram em dívida”; tanto mais que a A. iniciou a sua actividade apenas em Janeiro de 2004 e à data de 6 de Agosto ainda não estava constituída.
A A. replicou. Sustentando, quanto à ilegitimidade, a existência de proveito comum do casal, uma vez que é com os rendimentos de ambos que os RR. satisfazem as necessidades comuns; quanto à falta de personalidade jurídica da A., que desde Julho de 2003 a mesma possuía Certificado de Admissibilidade de Firma, tendo desde tal data até à conclusão do seu processo de constituição sido dados todos os passos – designadamente, a obtenção dum espaço para funcionar – para a colocar a laborar, razão porque, através dos seus legais representantes, tinha perfeita capacidade para fazer o que fez. Reafirmando o referido na PI sobre a caução exigida pelo R. marido; negando o alegado no pedido reconvencional (explicando que nos meses em que foram pagas quantias/rendas inferiores isso resultou de acordo estabelecido com o R. e o outro comproprietário G... ); e concluindo pela improcedência das excepções e do pedido reconvencional.
Os RR. treplicaram, em que, de útil, reduzem o pedido reconvencional para € 15.068,00 [sendo de € 6.784,00 a título de rendas vencidas e € 6.784,00 de indemnização moratória].
Admitido o pedido reconvencional, foi proferido despacho saneador – em que se julgou a instância totalmente regular (ou seja, julgou-se improcedente a excepção de ilegitimidade da R. mulher), estado em que se mantém – organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa e instruído o processo. Procedeu-se à realização da audiência de julgamento – já à luz do NCPC – após o que a Exma. Juíza de Círculo proferiu sentença em que concluiu do seguinte modo: “ (…) julgo parcialmente procedentes a presente acção e bem assim o pedido reconvencional e, em consequência: 1. Absolvo a ré mulher do pedido contra si deduzido; 2. Condeno o co-réu marido no pagamento à autora da quantia de € 39.901,92, e bem assim no valor dos juros de mora vencidos, à taxa legal de juros civis, sobre o capital, desde a citação e até efectivo e integral pagamento; 3. Condeno a autora reconvinda a pagar aos réus a quantia global de € 5.906,16 e bem assim o valor dos juros de mora vencidos, à taxa legal de juros civis, sobre o capital, desde a notificação do pedido reconvencional e até efectivo e integral pagamento. 4. Condeno autora e co-réu marido nas custas do pedido principal e reconvencional, na proporção do decaimento. 5. Não se vislumbram sinais de litigância de má fé. (…)”
Inconformado com tal decisão, interpôs o R. marido recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a acção totalmente improcedente e que incremente a condenação reconvencional para € 8.034,00, acrescida de 50% de indemnização. Terminou a sua alegação com uma segunda e quase idêntica alegação a que chamou “conclusões”[2] e que aqui, em face da sua redundância e extensão, não transcrevemos. A A. respondeu, sustentando, em síntese, que não violou, a decisão de facto e a sentença recorrida, quaisquer normas adjectivas ou substantivas, pelo que deve ser mantida a sentença nos seus precisos termos. Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir. * * *
II – Fundamentação de Facto Os factos dados como provados na decisão recorrida – logica e cronologicamente ordenados – são os seguintes: A) Por escrito particular denominado “Contrato de Arrendamento – Área Comercial”, datado de 1 de Janeiro de 2004, os RR. ( B... e C... ) e os G... e esposa H... , deram de arrendamento à A. a Fracção Autónoma Designada pelas letras “AM”, correspondente a uma loja, localizada no Rés do Chão, N.º 3, sendo a Terceira a contar do Poente para Nascente, com entrada pela Rua (...) , do Edifício Dois a Nascente, inscrito na respectiva matriz sob o art.º 6263, do prédio Urbano composto pelos Edifícios Número dois a Nascente e Número 1 a Poente, sito na (...) , gaveto para a Rua (...) , Concelho de Coimbra, Freguesia de (...) ; T) No ano de 2007, a A. só procedeu ao pagamento parcial do mês de Julho - no valor de € 1.892,00 (facto do artigo 17º). X) Relativamente às rendas de Agosto a Outubro de 2010, com a concordância do R. B... e do comproprietário da fracção Sr. G... , decidiram nesses meses baixar a renda da A. em € 250,00 / mês (resposta restritiva ao facto vertido no artigo 23º). Y) A A. não efectuou o pagamento de 50% do valor das rendas (parte do réu) no referente aos meses de Novembro e Dezembro de 2010 (facto do artigo 20º da base instrutória) e Janeiro e Fevereiro de 2011 (facto do artigo 21º). Z) O G... e mulher, H... , aceitaram a denúncia/cessação do contrato de arrendamento; tendo recebido a entrega das chaves da fracção, onde a A. já não labora desde 28/02/2011; AA) Em 28 de Julho de 2003 foi concedido certificado de admissibilidade da firma ou denominação social à autora, estando em curso o processo de constituição. BB) A escritura de constituição da A. foi outorgada a 7-10-2003, e nesse mesmo dia a sociedade foi matriculada na Conservatória respectiva. *
III – Fundamentação de Direito A – Quanto ao recurso da decisão de facto: Procedemos, via de regra, à apreciação da impugnação da decisão de facto antes de elencar os factos provados. Sucede – daí não seguirmos a referida regra – que a impugnação/modificação da decisão de facto não foi, na presente apelação, completa e devidamente colocada. Vejamos: Foram, no caso vertente, os diversos depoimentos prestados em audiência, nos quais a 1ª instância se baseou para decidir a matéria de facto, gravados, constando, assim, do processo todos os elementos probatórios com que aquela instância se confrontou, quando decidiu a matéria de facto. Pelo que, para modificar a decisão da 1.ª instância, por enfermar de erro de julgamento, necessário se torna, sob pena de rejeição, que se especifiquem os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa – cfr. art. 685.º-B do CPC = art. 640.º do NCPC, preceitos em que de modo idêntico se dispõe expressamente que, quando se queira impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Acrescentando-se no n.º 2 que, no caso previsto na alínea b) do número 1, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição. Significa isto, como é evidente, que para impugnar a decisão da matéria de facto – proferida (ou também proferida) com base em depoimentos prestados – não é suficiente indicar quais os quesitos/pontos que, segundo o recorrente, foram incorrectamente julgados. Além de tal indicação, é absolutamente indispensável, sob pena de rejeição do recurso, dizer também qual é a correcta decisão que deve ser proferida e enumerar identificar os concretos meios probatórios – por referência às passagens da gravação em que se funda, nos termos do disposto no art. 522.º/2 do CPC = 640.º/2 do NCPC – que impõem decisão diversa sobre os quesitos/pontos em causa. Foi justamente isto que o R/recorrente não fez. Como o corpo da sua peça recursiva e as respectivas conclusões – que demarcam o objecto do recurso – o espelham, o R/recorrente limitou-se a aludir genericamente à hora e minuto em que iniciou e terminou o seu depoimento pessoal (conclusão 6.ª) e a identificar as testemunhas ouvidas (conclusão 2.ª), as quais, segundo ele, terão prestado depoimentos que impõem decisão diversa sobre as alíneas da matéria de facto em causa (alíneas L), M), N), O). Não procedemos à fastidiosa transcrição das conclusões da alegação recursiva do R./apelante, mas as mesmas, embora extensas, omitem aquilo que a lei processual impõe que seja feito e dito. Detalhando um pouco: Diz, a dado momento, o R/apelante: “Constam no processo documentos e existe na gravação factos provados que só por si implicam decisão diversa da proferida Art. 616 n.º2 –a)” “Tomando em consideração, sem mais, o depoimento de parte do réu e a prova documental e testemunhal produzida, e nos precisos termos em que o foi, manifesta-se dissonância quanto à resposta parcial ou integral que foi dada aos factos da Base Instrutória, artigos 2º, 3.º, 4.º e 5.º.,os quais se impugnam com o presente recurso, devendo ser alterada parcial ou integralmente, nos termos atrás expostos e nos que V.as Excelências suprirão, com as devidas consequências legais na decisão final, revogando-se a douta sentença na parte que julgou parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente acção contra o ora apelante.” O que se acaba de transcrever[4] é elucidativo do padrão de actuação processual do R/apelante. Manifeste a sua divergência com as “respostas” dadas, mas nunca diz quais são as exactas “respostas” que devem ser dadas[5]. E quanto à enumeração e identificação dos concretos meios probatórios e, principalmente, quanto à referência às passagens da gravação em que funda a alteração da decisão sobre os pontos em causa, em substância e verdadeiramente, nada diz. Limita-se a dizer coisas genéricas e a fazer observações à análise crítica constante da motivação de facto da decisão a quo. Ora, insiste-se, uma impugnação da decisão de facto que cumpra o ónus imposto pelos referidos art. 685.º-B do CPC = art. 640.º do NCPC, deve, para além de dizer quais as “respostas” que, no seu entender, devem ser dadas, proceder à referência/indicação exacta das passagens da gravação que impõem a pretendida alteração da decisão de facto. Remeter o tribunal ad quem para a globalidade da gravação digital do sistema informático e/ou limitar-se a aludir ao início e a fim de cada um dos depoimentos e ao seu tempo de duração, é bastante insuficiente; é o mesmo que nada. Sobre o que exactamente a parte ou as testemunhas disseram, que imponha a pretendida alteração da decisão de facto, nem sequer uma única palavra (uma breve transcrição) consta da alegação recursiva[6]. Em síntese, o R/recorrente acaba por se limitar a dizer, nas conclusões, que, tendo em conta os documentos, o seu depoimento e os testemunhos gravados, existe erro na apreciação de prova produzida, devendo as “respostas” ser alteradas/corrigidas, nunca dizendo, exacta e concretamente, o que, em seu entender, se provou; comportamento este – repete-se, para que não se pense que se trata apenas e só duma omissão de conclusões – que não se circunscreve às conclusões da alegação, uma vez que, percorrendo toda a alegação, não encontramos em momento algum, quer as “respostas” que, no seu entender, devem ser dadas, quer a indicação dos trechos do depoimento e testemunhos que impõem decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto em causa; e muito menos, como é evidente, a sua indicação por referência a passagens da gravação. Enfim, o R/recorrente parece laborar no erro de pensar que bastará uma pedido global e genérico para meter a Relação a reapreciar a prova – porventura até toda a prova – produzida em 1.ª Instância. Não é, porém, assim. Os referidos art. 712.º e 685.º-B do CPC = 662.º e 640.º do NCPC impõem ao recorrente que pretenda a reapreciação da prova por parte da Relação que fundamente a sua discordância em relação ao decidido na 1.ª Instância, que identifique os concretos erros de julgamento da 1.ª Instância, que indique com exactidão (as passagens da gravação) os concretos meios probatórios que devem conduzir a decisão diversa da proferida na 1.ª Instância, que enuncie “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” Foi justamente tal ónus de alegação/fundamentação que o R./recorrente não curou de cumprir, razão pelo qual o recurso, quanto à impugnação matéria de facto, é aqui e agora formalmente rejeitado, não havendo assim a qualquer alteração à matéria de facto fixada pela 1.ª Instância. Matéria/decisão de facto que, acrescenta-se, está suficiente e congruentemente fundamentada; efectivamente, como se vê de fls. 248 a 254 dos autos, a Exma. Juíza a quo fez a análise crítica que as provas produzidas lhe mereciam, disse porque é que valorizou umas e desprezou as outras – e, em função disto, disse qual era a sua convicção sobre o que hoje se designa como “temas da prova” – e respondeu (decidiu de facto) em conformidade, sem qualquer deficiência, obscuridade ou contradição, como se pode ver do cotejo da globalidade dos factos. * B – Quanto à parte do recurso respeitante à acção: A A., como se referiu no relatório inicial, pretende a restituição do montante de € 39.901,92 entregue ao R./recorrente como caução, exigida e prestada no âmbito dum contrato de arrendamento, tendo em vista acautelar o não pagamento de rendas e a danificação da fracção/loja locada, incluindo fachada; acrescentando que tal caução não consta do documento que formalizou o contrato e que, não sendo o R/recorrente o único senhorio, os outros senhorios não tiveram conhecimento de ter sido exigida à A. e haver sido prestada tal caução; concluindo que, tendo o contrato de arrendamento cessado, extinguiu-se a caução, devendo o montante prestado ser-lhe restituído (o que só pede do R./recorrente[7], justamente por, repete-se, ter entretanto sabido que a caução foi exigida e recebida à revelia dos outros senhorios). Foi isto, em síntese, que foi alegado e que se provou. Facticidade esta em que a A. vê uma válida cláusula negocial (dum arrendamento) que a obrigava a prestar uma caução, que prestou, sucedendo que, tendo-se a obrigação principal (e garantida) extinguido, tal determina a extinção do que prestou como caução, que assim lhe deve ser restituído. Facticidade – alegada e provada – em que nós vemos uma cláusula negocial nula (dum arrendamento), pelo que o que foi prestado pode/deve ser restituído, mas por efeito da nulidade (289.º do C. Civil)[8]. Ao que não vemos qualquer obstáculo processual. Sendo assim, passando à cláusula negocial, porque é que a consideramos nula? Em termos substantivos e de conteúdo, logo nos suscita uma tal cláusula – em que um inquilino entrega € 39.901,92 ao senhorio para acautelar o não pagamento de rendas e a danificação da fracção/loja locada, incluindo fachada – as maiores dúvidas e reticências; efectivamente, sem prejuízo da caução poder ter fonte negocial sempre que as partes a estipulem ao abrigo da sua autonomia privada e do que se dispõe no art. 1076.º/2 do C. Civil (em que se admite explicitamente a existência da caução no contrato de arrendamento), importa não esquecer que a antecipação das rendas não pode ser superior a 3 meses (cfr. art. 1076.º/1 do C. Civil), pelo que tal cláusula transmite uma indisfarçável sensação de “fraude” a tal preceito (tanto mais que também se diz/prova que o montante visa acautelar o não pagamento de rendas). Em termos formais, porém, afigura-se-nos indiscutível a sua nulidade[10]. Efectivamente, do documento que formalizou o contrato de arrendamento não consta, como já se referiu, uma cláusula a dizer que a A. tinha que caucionar o cumprimento das suas obrigações contratuais com € 39.901,92; sendo certo que, à época, o contrato tinha forma legal, tinha que ser celebrado por escrito (cfr. art. 7.º/1 do RAU, na redacção do DL 64-A/2000, de 22-04). Ou seja, estamos perante uma cláusula que está fora do documento/escrito que formalizou o contrato, sucedendo que o que se alegou/provou não permite à sua válida inclusão no conteúdo negocial (do contrato de arrendamento) Expliquemo-nos: O conteúdo dos negócios formais não tem, sempre e inevitavelmente, que ficar circunscrito ao exacto e preciso conteúdo do documento que os solenizou; em certos e apertados termos, podem valer e fazer parte do conteúdo de tais negócios estipulação verbais (não escritas no documento solenizador) anteriores e contemporâneas. É o que resulta do art. 221.º/1 do C. Civil, em que se dispõe que “as estipulações verbais acessórias anteriores ao documento legalmente exigido para a declaração negocial, ou contemporâneas dele, são nulas, salvo quando a razão determinante da forma lhes não seja aplicável e se prove que correspondem à vontade do autor da declaração”. Segundo tal preceito, quanto ao âmbito da forma legal, a exigência da forma (enquanto modo de exteriorizar declarações de vontade) abrange, além das cláusulas essenciais do negócio jurídico, as estipulações acessórias, típicas ou atípicas, sejam contemporâneas da conclusão de negócio sejam anteriores a tal conclusão. Sendo esta a regra, admite, porém, restrições, uma vez que se reconhece a validade de estipulações verbais anteriores ao documento exigido para a declaração negocial ou contemporâneas dele, desde que se verifiquem, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) que se trate de cláusulas acessórias – isto é, não pode, como é evidente, estar-se perante estipulações essenciais, assim como, não sendo essenciais, não podem as cláusulas que não constem do documento contradizer o próprio conteúdo do documento, mas apenas completá-lo (estando para além do conteúdo); b) que não sejam abrangidas pela razão de ser da exigência da forma/documento; c) que se prove que correspondem à vontade das partes. E o que acaba de se dizer significa que uma cláusula negocial verbal, com os contornos que rodearam a presente, a obrigar o inquilino a caucionar as suas obrigações contratuais em € 39.901,92 não pode entrar validamente no conteúdo negocial. É certo que estamos perante uma cláusula adicional, anterior ou contemporânea do escrito que formalizou o contrato, porém, dela não podemos dizer que se limita a completar o conteúdo do documento, que não fica fora da razão de ser da exigência da forma/documento ou sequer que corresponde à vontade das partes. Não completa o conteúdo do documento, na medida em que do mesmo expressamente consta uma fiança (cfr facto constante da alínea DD)), isto é, o “caucionamento” por terceiros do cumprimento das obrigações contratuais, pelo que um outro e 2.º “caucionamento” é algo que vai até contra o espírito da fiança prestada. E tanto é assim que nem sequer se provou (cfr. alínea M) dos factos) que tal cláusula negocial verbal corresponda à vontade de todos os senhorios, que todos a hajam solicitado e recebido. Neste contexto, tratando-se duma cláusula negocial que nem sequer é conhecida/querida por todos os contraentes, não poderia a mesma passar a integrar validamente o conteúdo dum negócio que a todos vincula. Mas, evidentemente, uma coisa é ser nula e não ser permitida a sua válida inclusão no conteúdo negocial, outra, diferente, a sua prova; que, tendo em vista os efeitos da sua nulidade, até pode ser feita/provada por qualquer meio de prova[11]. Assim, tendo sido feita tal prova – estando provado (alínea I) dos factos) que os € 39.901,92 foram entregues ao R/recorrente no âmbito de tal cláusula negocial verbal adicional e formalmente nula – tem o R. que restituir, ex vi art. 289.º/1 do C. Civil, tais € 39.901,92. Restituição – é a 2.º questão respeitante à acção – que, naturalmente, deve ser feita à A.; ou seja, não obsta a tal restituição à A. o facto de, quando (em Agosto de 2003) os € 39.901,92 foram entregues ao R/recorrente, a A. ainda não estar perfeita e completamente constituída. A tal propósito, os factos relevantes são os seguintes: Em 28 de Julho de 2003, foi concedido certificado de admissibilidade da firma ou denominação social à A.; A escritura de constituição da A. foi outorgada a 7-10-2003 e nesse mesmo dia a sociedade foi matriculada na Conservatória respectiva; Ou seja, quando os € 39.901,92 foram entregues ao R/recorrente a A. ainda não tinha personalidade jurídica, porém, a real data do negócio não afecta/ou a sua validade e a entrega de tal montante pode/deve ser reputada como tendo sido feita pela A. Expliquemo-nos: O primeiro momento que a lei autonomiza no iter constitutivo duma sociedade é o da celebração por escritura pública do contrato de sociedade (art. 7.º do CSC), estando, porém, a personalidade jurídica ligada ao registo definitivo do contrato (art. 5.º do CSC). Há, todavia, fases anteriores à própria celebração do contrato que a lei reputa como situações normais (e não como situações irregulares) e a que, por isso, confere relevo jurídico (como resulta em especial nos art. 36.º a 40.º do CSC). A constituição ou formação das sociedades comerciais analisa-se num processo, numa série de actos e formalidades (acto complexo de formação sucessiva), necessariamente moroso; em que há todo um período preparatório, em que se produzem já actos referentes à sociedade, mas em que esta ainda não atingiu o momento jurídico da sua perfeição. Dito doutra forma, fechado entre os “sócios/subscritores” um contrato de sociedade comercial – e antes de lhe ser dada forma legal (antes da escritura pública ser lavrada) – acontece não raras vezes os sócios realizarem negócios em nome dela (v. g., como é o caso dos autos, o arrendamento do imóvel onde possa funcionar a sua sede ou onde possa funcionar o estabelecimento necessário à prossecução do seu fim). É tal situação – designada como “pré-vida” da sociedade – que a lei disciplina e a que dá resposta no art. 36.º/2 do CSC Preceito que regula a hipótese em que, tendo sido acordada a constituição duma sociedade comercial, os sócios iniciaram a actividade social (a actividade em nome da sociedade comercial acordada) antes de ter havido formalização do contrato. Efectivamente, insiste-se, a realidade da vida demonstra que há razões atendíveis para os sócios iniciarem a actividade social antes de estar concluído o processo de constituição da sociedade ou, mesmo, antes de ter havido formalização do contrato; e, ciente disto, a lei não se opõe ao início duma tal actividade social (antes de ter sido formalizada/concluída a constituição da sociedade), submetendo, todavia, as relações anteriores à formalização/conclusão a um regime específico. Com base num contrato de sociedade nulo (a falta de formalização do contrato de sociedade constitui um vício de forma sancionado com a nulidade – cfr. art. 7.º, 41.º/1, 42.º/1/e) do CSC e 220.º do C. Civil), iniciou-se uma actividade social em que cumpre acautelar os interesses dos sócios que contribuíram para a sociedade e dos terceiros que entraram em relação com ela. Daí que o direito societário se tenha afastado do regime jurídico-civil da nulidade (consagrado no art. 285.º e ss. do C. Civil), dizendo no referido art. 36.º/2 do CSC[12] que “se for acordada a constituição duma sociedade comercial, mas, antes da celebração do contrato de sociedade, os sócios iniciarem a sua actividade, são aplicáveis às relações estabelecidas entre eles e com terceiros as disposições sobre sociedades civis”. “A conciliação entre, por um lado, a nulidade do contrato de sociedade provocada pelo vício de forma e, por outro, a necessidade de, ainda assim, serem reconhecidos certos efeitos jurídicos, foi conseguida pela convocação do regime da sociedade civil. (…) Considerando o preceito do art. 36.º/2 do CSC, pode afirmar-se que o vício de forma de que enferma o contrato de sociedade não afecta a validade dos negócios celebrados no período anterior à celebração do contrato de sociedade, como também não impede que os terceiros reclamem dos sócios a responsabilidade pelas dívidas sociais (art. 997.º/1 do C. Civil)”[13]. Remissão para as disposições sobre as sociedades civis que não significa – uma vez que, verificando-se todas as notas do contrato de sociedade comercial, a sociedade é comercial – que se qualifiquem como sociedades civis as sociedades com objecto comercial mas sem o contrato celebrado pela forma legal; significando apenas que, nas “relações externas”, são principalmente aplicáveis os art. 996.º e ss do C. Civil (sobre a representação e responsabilidade pelas obrigações sociais, respondendo, em regra, a sociedade e, pessoal e solidariamente mas a título subsidiário, os sócios). Tendo isto presente e revertendo ao caso dos autos/recurso, temos que toda actividade – aqui incluindo a negociação do contrato de arrendamento e a entrega dos € 39.901,92 – desenvolvida até ao dia 07/10/2013 (data em que a A. adquiriu personalidade jurídica com o registo definitivo do seu acto constituinte) em nome da sociedade/A acordada foi desenvolvida pelos seus sócios e gerentes designados, pelo que o vício de forma então existente não afectou a validade e eficácia da negociação e entrega efectuadas[14]. Em face disto, assim como os terceiros (o aqui R/recorrente) podiam reclamar da A./sociedade e dos sócios (art. 997.º/1 do C. Civil) a responsabilidade pelas dívidas sociais emergentes de tais negociações e entrega (desenvolvidas até 07/10/2003), também a A./sociedade (entretanto, definitiva e perfeitamente constituída) pode reclamar do terceiro/R/recorrente a restituição dos € 39.901,92. Não estamos a dizer – é a observação final – que a A/sociedade passou a encabeçar em exclusivo os direitos e obrigações emergentes de tais negociações e entrega, isto é, não estamos na situação prevista no art. 19.º do CSC[15] (em que a “assunção” libera as pessoas indicadas no art. 40.º do CSC da responsabilidade aí prevista), o que para o caso não releva, uma vez que não se trata de responsabilizar a A/sociedade e muito menos de saber se os sócios/gerentes continuam responsáveis (na exacta medida do que se mostrar necessário para salvaguardar a correspondência do património em relação ao capital nominal). * C – Quanto à parte do recurso respeitante à reconvenção: Não há neste momento qualquer divergência entre as partes quanto à circunstância do arrendamento haver cessado no dia 28/02/2011; momento em que a denúncia declarada pela A. se destinava a produzir efeitos. Toda a questão se circunscreve ao montante de rendas não pagas pela A. e à indemnização moratória de 50% prevista no art. 1041.º/1 do C. Civil. Em face do que consta dos factos, detectamos, encurtando razões, dois lapsos na decisão recorrida; e um ponto de divergência com o decidido. Quanto aos lapsos: * IV - Decisão Custas pela A. e pelo R. marido na proporção de 1/4 e 3/4, na 1.ª Instância; e na proporção de 1/20 e 19/20, nesta instância. Coimbra, 14/04/2015
(Barateiro Martins - Relator)
(Arlindo Oliveira)
(Emídio Santos) [1] Foram entregues os cheques visados no valor de € 19.950,00, € 9.975,96 e € 9.975,96 sacados todos sob o (...) e sob contas de que eram respectivamente titulares F... , mãe dos legais representantes da A., e E... , à data sócio da A. [2] Ao arrepio do disposto no art. 639.º/1 do NCPC em que se diz que o recorrente “ (…) concluirá, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”. Deficiência que, é verdade, dá lugar a convite a aperfeiçoamento (cfr. art. 639.º/3 do NCPC), mas que não conduzindo, em boa verdade, a uma imediata e efectiva sanção processual – razão pela qual já “desistimos” do convite ao aperfeiçoamento – leva a que, hoje em dia, rara seja a alegação cujas conclusões não se apresentem como um exercício de desprezo pela referida “forma sintética” imposta pela lei. [4] Incluindo a incompreensível alusão ao art. 616.º/2/a); efectivamente, não se percebe em que é que tal preceito, que diz respeito à “reforma de sentença”, tem a ver com o caso. [5] É, mutatis mutandis, o que já havia feito na contestação; em que negou a exigência/existência da caução dos € 40.000,00/€ 39.901,92 e disse que “os cheques para que a A. remete são um artifício usado para não pagar as rendas vencidas e que se encontram em dívida”, mas em que nunca disse a que diziam respeito tais cheques; mais, não disse frontalmente não ter recebido o montante dos cheques, mas também evitou confessar explicitamente o seu recebimento. [6] E, chama-se a atenção, foi assim também – nem uma palavra – no corpo da alegação; aliás, como já se referiu, as conclusões são uma quase reprodução do que se havia dito no corpo da alegação. [8] Facticidade em que, salvo o devido respeito, não há lugar a ponderações jurídicas sobre tal quantia poder representar uma reserva (um pré-sinal) para uma futura aquisição; e sobre a sua possível devolução à A., gorada a aquisição, com fundamento em enriquecimento sem causa. Efectivamente, numa sentença só fazem sentido ponderações jurídicas assentes em factos na mesma dados como provados; ou, quando muito, fora dos factos dados como provados, assentes em versões factuais explicitamente alegadas (nos articulados) por alguma das partes. Daí que, em face do provado e do antes alegado, reputemos como inatinentes e desnecessárias as ponderações iniciais da fundamentação jurídica da sentença à volta da responsabilidade pré-contratual e do enriquecimento sem causa (aliás, a dado momento até se observou: “o respaldo fáctico afasta esta subsunção – a constituição duma reserva para aquisição”); e, natural e consequentemente, reputemos como fora do objecto processual, tudo o que na alegação recursiva se diz sobre o enriquecimento sem causa dum montante que se provou haver sido entregue como caução, sendo que o mínimo que se pode dizer é que a natureza subsidiária do enriquecimento sem causa (art. 474.º do C. Civil) impede a sua convocação. [10] Razão porque entendemos desnecessário aprofundar as dúvidas referidas sobre o seu conteúdo. [11] As limitações de prova dos art. 393.º e 394.º do C. Civil têm apenas em vista a validade; e, no caso, se a cláusula fosse válida – pese embora o art. 394.º do C. Civil declare inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objecto estipulações adicionais não formalizadas, anteriores ou contemporâneas do documento – até seria invocável a excepção do “princípio de prova por escrito” para admitir a prova testemunhal. [14] Sem prejuízo, naturalmente, é outra questão (e fundamento) da nulidade, antes analisada, decorrente da cláusula verbal. [15] Não estamos perante aquela importante consequência do registo, consistente na assunção ipso iure pela sociedade de direitos e obrigações decorrentes de actos em nome dela realizados antes do registo e na possibilidade de assunção por ela de outros direitos e obrigações decorrentes de negócios jurídicos igualmente em nome dela realizados antes do registo. |