Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4651/07.4TBVIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
SUSPENSÃO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
INSOLVÊNCIA
ACÇÃO PREJUDICIAL
Data do Acordão: 11/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 47º LULL E 88º, Nº 1, DO CIRE.
Sumário: I – A percepção adequada da obrigação e responsabilidade do aceitante e do regime da insolvência conduz à conclusão de que o processo de insolvência – independentemente de aí terem sido reclamados os créditos do (e pelo) portador do título cambiário – não é prejudicial à execução do (que corre contra) co-obrigado.

II – O artº 88º, nº 1, do CIRE esclarece que a declaração de insolvência (artº 36º) determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores (artº 47º) que atinjam bens integrantes da massa insolvente (artº 46º) e também impede a instauração ou prosseguimento de qualquer execução intentada pelos credores da insolvência, mas se houver outros executados, a execução prossegue contra estes.

III – O artº 88º do CIRE diferencia clara e expressamente as acções executivas em que apenas é executado o insolvente daquelas em que há outros executados, optando pela solução inequívoca que, neste caso, ela (a acção executiva) prossegue contra os outros (co-obrigados cambiários).

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. Relatório

Por apenso aos autos que correm termos com o n.º 4651/07, e onde são executados, entre outros, a sociedade A..., Lda. (agora B....) e o recorrido C..., veio este último deduzir oposição à execução, aí invocando, além do mais, a falta de interpelação, o preenchimento do título após assinatura em branco, falta de causa subjacente à emissão, prescrição da acção cambiária e a circunstância de “a sacadora já ter sido declarada insolvente”, no âmbito do processo n.º 248/07, que corre termos no Trib. do Comércio de Lisboa.

Foi admitida a oposição e o exequente D..., S.A. contestou. Negou a generalidade dos fundamentos da oposição, reconheceu o recebimento, da parte do recorrido, de uma comunicação onde declarava já ter pago à empresa sacadora o valor titulado, mas acrescentou que, “como doutrinal e jurisprudencialmente é consabido, o direito de crédito do portador mediato (no caso descontante / endossado) de titulo de crédito não se extingue se o valor não lhe for pago”.

Em réplica, essencialmente, o recorrido veio explicar o seu proceder e negar a má fé que lhe fora imputada pelo exequente.

Conclusos os autos foram as partes convidadas a juntas documentos e, mais à frente, proferido despacho deste teor: tendo em conta o princípio da economia processual, notifique a exequente para nos esclarecer se no processo de insolvência da co-executada já reclamou estes créditos…”

O exequente respondeu a este despacho e disse que, em razão da alteração da denominação social da co-executada não lhe foi possível reclamar tempestivamente o crédito, mas “tendo tomado conhecimento das alterações (…), interpôs, por apenso ao processo de insolvência, Acção de Verificação Ulterior de Créditos” e que nessa acção “está enunciado o crédito que se pretende cobrar nos presentes autos”. Ainda assim, esclareceu que no seu entendimento (e citamos) “Ainda que já houvesse sentença e fossem reconhecidos, verificados e graduados os créditos do D.... S.A. na acção de insolvência da empresa B.... (anterior A....), tal não obstaria a que o exequente destes autos continuasse a exigir, como exige, do opoente o pagamento do montante em dívida”.

Os autos voltaram a ser conclusos e foi proferido despacho a solicitar ao processo de insolvência se tinha sido proferida sentença de graduação de créditos, com envio de cópia, no caso afirmativo. Depois de várias insistências, o Tribunal do Comércio de Lisboa (1.º Juízo) informou que ainda não foi proferida sentença de graduação de créditos e mais informou que não existia apenso de apreensão de bens.

Notificados da informação acabada de referir, apenas o exequente se pronunciou: manteve que não se encontra ressarcido do seu crédito e que tem direito de acção contra o sacado que se vinculou mediante aceite.

O processo prosseguiu com a decisão (fls. 117 e 118) que determinou a suspensão desta instância, por pendência de causa principal prejudicial. Nela se fundamentou que no caso em apreço, se nos autos de insolvência o exequente/oponido obtiver o pagamento do crédito que ali reclamou, esta situação determina a inutilidade dos autos de execução e destes autos, pois o crédito exequendo fica pago e foi determinado (citamos) Nos termos supra expostos, por pendência de causa prejudicial suspende-se esta instância até ao pagamento aos credores a efectuar nos referidos autos de insolvência ou até ao momento que no dito processo seja possível determinar com certeza (por ex por rateio ali efectuado) que o valor dos bens ali apreendidos não permitirá o pagamento do crédito ali reclamado pelo exequente D.....

Pedida, sem êxito, a aclaração do despacho acabado de referir, igualmente o exequente agravou.

1.2 Do recurso

Inconformado com a decisão que determinou a suspensão da instância, o recorrente pretende a sua revogação e vem formular as seguintes conclusões:

[…]

Não houve contra-alegações e foi proferido despacho a sustentar a decisão, tendo-se escrito o seguinte: Não vamos alterar a decisão objecto de recurso pois assim tem sido decidido também noutros processos, por se entender ser a decisão correcta atendendo à factualidade em apreço.

Nesta relação, os autos de recurso foram a “Vistos” e cumpre decidir.

1.3 Objecto do recurso:

Fixado pelas conclusões do recorrente, o objecto deste agravo é, clara e sucintamente, o de saber se deve suspensa a oposição à execução contra o aceitante, em razão da pendência de processo de insolvência contra o sacador, co-obrigado[1].

2. Fundamentação.

2.1 Fundamentação de facto

Todos os factos relevantes ao conhecimento e decisão do agravo resultam do relatório, onde se mostra descrita a posição relevante das partes, nomeadamente do recorrente, e a decisão judicial sob censura. Em conformidade, e por isso, para eles expressamente remetemos.

2.2 Fundamentação de Direito

Como se afirmou no ponto 1.3, a única e relevante questão a apreciar prende-se com a bondade da suspensão da oposição à execução por prejudicialidade decorrente da pendência de um processo de insolvência do co-obrigado cambiário. A pergunta pode fazer-se de outro modo, seguindo os termos da decisão agravada: podendo o exequente obter pagamento, total ou parcial, no processo de insolvência (onde reclamou o seu – e mesmo – crédito), devem os termos do processo de execução (e/ou oposição, dependente) aguardar pelo que venha a suceder naquele processo de insolvência?

Adiantando a conclusão, embora contrária ao decidido, pensamos que a resposta deve ser negativa. Vejamos:

O despacho sob censura, se bem vemos, apenas equacionou o problema na perspectiva do artigo 279.º do Código de Processo Civil[2]; fazendo-o, e dizemo-lo com todo o respeito, terá descurado a aplicação ao caso concreto dos princípios e particularidades relevantes do direito cartular, bem como das que decorrem do regime da insolvência e do reflexo deste regime nas acções executivas pendentes. Com efeito, depois de citar doutrina e os sumários de várias decisões dos tribunais superiores (nenhuma deles versando, ainda assim, o objecto específico da questão em análise)[3] deduz uma prejudicialidade que, com todo o respeito, ignora a natureza solidária da obrigação (do aceitante, co-executado) e o princípio consagrado no artigo 88.º, n.º 1 e n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

Segundo o nosso entendimento, a percepção adequada da obrigação e responsabilidade do aceitante e do regime da insolvência deve levar a conclusão diversa da que se censura, ou seja, que o processo de insolvência – independentemente de aí terem sido reclamados os créditos do (e pelo) portador do título cambiário -  não é prejudicial à execução do (que corre contra) aquele co-obrigado.

Por um lado, decorre do artigo 47.º da LULL que os sacados, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador e que este tem “o direito de accionar todas estas pessoas, individualmente ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram”[4], sendo certo que o aceitante, nos termos do artigo 28.º da mesma Lei, “aceita a ordem de pagamento que lhe foi dirigida pelo sacador e se obriga a pagar a letra no vencimento ao tomador ou à ordem deste.”[5]

Por outro lado, o artigo 88.º n.º 1 do CIRE esclarece que a declaração de insolvência (artigo 36.º) determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores (artigo 47.º) que atinjam bens integrantes da massa insolvente (artigo 46.º) e igualmente impede a instauração ou prosseguimento de qualquer execução intentada pelos credores da insolvência; “porém se houver outros executados, a execução prossegue contra estes.” E se se tratar de execuções que prossigam contra outros, disciplina então o n.º 2 do mesmo artigo 88.º: se não tiverem de ser apensadas ao processo de insolvência (artigo 85.º, n.º2), apenas é “extraído, e remetido para apensação, translado do processado relativo ao insolvente”(sublinhados nossos).

Em suma, o artigo 88.º do CIRE diferencia clara e expressamente as acções executivas em que apenas é executado o insolvente daquelas em que há outros executados, optando pela solução inequívoca que, neste caso, ela (a acção executiva) prossegue contra os outros[6].

Ora, se a execução prossegue contra os demais executados (leia-se, no caso, obrigados cambiários) não se entenderia que o curso da insolvência determinasse a suspensão desse prosseguimento. Mas esta conclusão (de não prejudicialidade) continua válida se o exequente reclamou o seu crédito na insolvência: por um lado, reclamar não é obter pagamento; por outro, reclamar (accionar) pode fazê-lo o exequente, como se viu, contra qualquer um dos co-obrigados. Se bem lemos, o mesmo entendimento decorre do Acórdão desta Relação de 6.03.07 (in dgsi.pt / …/ade6826547507412802572a…) onde se confirma uma despacho agravado que decidiu de maneira diversa da que aqui se censura. Desse acórdão retiramos o seguinte texto, a propósito do artigo 88.º do CIRE: “Salta à evidência que a venda na presente acção executiva não atinge os bens integrantes da massa insolvente (…) Apesar da execução também ter sido movida contra a sociedade que foi declarada insolvente, e penhorados 3 imóveis àquela pertencentes, foi cumprido o disposto no citado art. 88.º e suspensa a instância executiva contra a sociedade insolvente, prosseguindo contra os Agravantes, como impõe o n.º2” (sublinhado nosso). 

Por tudo quanto ficou dito e com especial atenção ao disposto nos artigos 28.º e 47.º da LULL e no artigo 88.º do CIRE, entendemos que o agravo procede e a decisão que determinou a suspensão da instância deve substituir-se por outra que, revogando-a, determine o normal prosseguimento dos autos.

3. Decisão:

Nos termos e pelos motivos expostos, neste agravo em que é recorrente D.... SA e recorrido C..., acorda-se em, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão que determinou a suspensão da instância e ordenar o regular prosseguimento dos respectivos autos.

Custas pelo vencido a final.


JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA (RELATOR)
GREGÓRIO JESUS
MARTINS DE SOUSA


[1] Por estarmos perante uma oposição à execução, poderia pensar-se que a suspensão da oposição levaria ao fim da suspensão da execução, o que, a ser assim, questionaria a própria legitimidade do agravante e tornava ainda mais perplexa a conformação do recorrido. Torna-se manifesto, no entanto, e decorre da simples leitura do despacho sob censura, que a decisão abrange a execução, precisamente no sentido de abranger na prejudicialidade o apenso e o processo (executivo) principal. Por isso, quando nos referimos à oposição estamos necessariamente a referirmo-nos (também) à execução.

[2] Citado expressamente no despacho.

[3] Citamos o despacho: Relativamente à suspensão da instância por pendência de causa prejudicial cumpre referir que se tem entendido que “Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda”, cfr Prof Alberto dos Reis em Com 3, 206. “O critério porque o juiz deve orientar-se no uso da faculdade que o artº 279º nº1 1ª parte do CPC lhe confere, é evitar, mediante a suspensão da instância, a possibilidade de a mesma questão vir a ser objecto de decisões desencontradas ou incoerentes”, BMJ 227-221.“A suspensão da instância por causa prejudicial depende de nesta se discutir questão cuja decisão pode destruir o fundamento ou razão de ser daquela”, BMJ 244-239.“A relação de dependência entre uma acção e outra já proposta, como causa de suspensão da instância, assenta no facto de, na segunda acção se discutir em via principal uma questão que é essencial para a decisão da primeira”, cfr BMJ 387-703.“Haverá uma relação de prejudicialidade de uma causa em relação a outra, quando o despacho daquela possa ser susceptível de inutilizar os efeitos pretendidos nesta”, cfr BMJ 407-455. Enquanto causa de suspensão da instância a relação de dependência entre uma acção e outra já proposta, assenta no facto de nesta se discutir, em via principal, uma questão essencial para a decisão da primeira, de tal modo que a decisão dessa acção possa ser afectada pelo julgamento proferido na outra, cfr CJ 92.5.242 Uma acção depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial se esteja a apreciar uma questão cuja relação por si só possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito, cfr CJ 94.2 .116.
[4] Sobre o regime da solidariedade passiva de todos os obrigados cambiários, José A. Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito, Uma Introdução, Coimbra Editora, 2009, págs. 97
[5] José A. Engrácia Antunes, Os Títulos…, cit., pág. 72 e Paula Quintas/Hélder Quintas, Regime Jurídico dos Títulos de Crédito, Almedina, 2000, págs. 30 e ss.
[6] Sobre a interpretação do preceito, A. Raposo Subtil e outros, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição, Vida Económica, 2006, págs. 178 e 179 e, agora com vasta citação de jurisprudência, Luís M. Martins, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Almedina, 2010, págs. 141 a 147. Ver também, ainda que não procedendo a qualquer comentário específico ao artigo 88.º, que, certa e compreensivelmente, não lhe suscitará dúvidas, Maria do Rosário Epifânio na recente (Outubro de 2010) 2.ª edição do Manual de Direito da Insolvência, a pág. 144.