Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
245/19.0PTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
BAIXA MÉDICA
REDISTRIBUIÇÃO
COMPETÊNCIA PARA DETERMINAR A REDISTRIBUIÇÃO
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
PRESIDENTE DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PROCESSO SUMÁRIO
INTERROGATÓRIO DE ARGUIDO
Data do Acordão: 03/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: RECLAMAÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 32.º, N.º 9, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 3.º, 4.º E 9.º DO REGULAMENTO DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA N.º 269/2021, DR, 2ª SÉRIE, Nº 56, DE 22 DE MARÇO DE 2021
ARTIGO 158.º, N.º 2, DO ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS,
ARTIGO 44.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
ARTIGO 3.º, N.º 1, DO REGULAMENTO DAS SITUAÇÕES DE ALTERAÇÃO, REDUÇÃO E SUSPENSÃO DE PROCESSOS, APROVADO POR DELIBERAÇÃO DE PLENÁRIO DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA DE 12-1-2021
ARTIGOS 64.º, N.º 1, ALÍNEA D), 272.º, N.º 1, 379.º, N.º 1, E 382.º, N.º 2 E 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – As normas orgânicas e processuais devem permitir a determinação do tribunal que há-de decidir o processo, segundo critérios objectivos, para garantia dos cidadãos prevenindo as interferências e arbitrariedades do poder do Estado.

II – O princípio do juiz natural comporta as dimensões da determinabilidade, ou seja, que o juiz chamado a decidir no caso concreto é previamente determinado através de leis gerais, o princípio da fixação de competência, que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz, e a observância das determinações de procedimentos relativos à distribuição de processos, referentes à divisão funcional interna.

III – O princípio do juiz natural não tem natureza absoluta, podendo haver lugar à sua derrogação em circunstâncias extraordinárias, designadamente quando o juiz natural não ofereça, no caso concreto, as imprescindíveis garantias de isenção e imparcialidade, ou quando, devido a doença prolongada daquele, o processo fique sem movimentação por período de tempo não razoável.

IV – No caso de baixa médica por mais de noventa dias do juiz natural, sem estar assegurada a sua substituição, há lugar à redistribuição de todos os processos que lhe estavam distribuídos.

V – O Conselho Superior da Magistratura é o órgão competente para determinar a redistribuição de processos nos tribunais da relação e delegou esta competência nos presidentes destes tribunais.

VI – Por questão a decidir cuja omissão gera a nulidade da sentença entende-se o problema concreto, de facto ou de direito, a decidir, e não os motivos, argumentos, doutrinas e pontos de vista expostos pelos sujeitos processuais em abono da respectiva pretensão.

VII – A obrigatoriedade da presença do defensor, imposta pelo artigo 64.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, pressupõe que o assistido tenha já a qualidade processual de arguido.

VIII – Na forma de processo sumário só há lugar à audição do detido se o Ministério Público o julgar conveniente, ou para efeitos da validação da detenção e libertação.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I

Por sentença de 15 de Julho de 2020, foi o arguido AA condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez …

Inconformado com o decidido, o arguido recorreu para esta Relação que, por acórdão de 23 de Novembro de 2022 … confirmou a decisão recorrida.

*

Por requerimento de 9 de Dezembro de 2022 [fls. 303], em reclamação para a conferência, completado pelo requerimento de 14 de Dezembro de 2022 [fls. 307 e ss.] veio o arguido invocar, a título de questão prévia, a violação do princípio do juiz natural … mais invocando ainda, a nulidade do acórdão da Relação, por omissão de pronúncia …

*

II

O recorrente suscita, na reclamação apresentada, duas distintas questões:

- A violação do princípio do juiz natural; e

- A nulidade do acórdão reclamado, por omissão de pronúncia.

Decidindo.

*

Da violação do princípio do juiz natural

1. Alega o recorrente mostrar-se violado o princípio do juiz natural, com assento constitucional no nº 9 do art. 32º da Lei Fundamental, uma vez que, conferindo o art. 3º, nº 1, a) do Regulamento do Conselho Superior da Magistratura nº 269/2021, de 22 de Março, competência ao Plenário deste Conselho para, sem prejuízo das competências próprias ou delegadas dos respectivos presidentes dos tribunais, proceder a alteração da distribuição e à redistribuição de processos nos Tribunais superiores, em articulação com os presidentes dos tribunais, e tendo nestes autos, em 5 de Setembro de 2022, ocorrido um termo de cobrança e redistribuição elaborado pelo Sr. Escrivão de Direito, remetendo os autos à secção central para redistribuição, dada a baixa médica prolongada da Sra. Desembargadora Relatora,  donde que, a submissão dos autos a nova redistribuição, foi feita por quem não dispunha de competência para o efeito, nos termos da supra citada norma do Regulamento nº 269/2021, de 22 de Março …

Vejamos.

Dispõe o nº 9 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa que, nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior. É deste modo que o legislador constitucional define o princípio do juiz natural, enquanto corolário do princípio da legalidade em matéria penal.

O princípio do juiz natural não existe, como é bom de ver, como garantia dos juízes, mas como garantia dos cidadãos, prevenindo as interferências e arbitrariedades do poder do Estado.

Basicamente, o que está em causa é assegurar que a designação de um juiz ou de um tribunal para conhecer de determinada causa observou as prescrições da lei. Para tanto, as normas orgânicas e processuais reguladoras da matéria devem permitir a determinação do tribunal que há-de decidir o processo, fundada em critérios objectivos, não sendo, portanto, admissível que essa determinação resulte de critérios discricionários (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 525, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, Coimbra Editora, pág. 362, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão 2004, Coimbra Editora, págs. 321 e seguintes, e Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 1, 2017, Universidade Católica Editora, pág. 61). Assim, como ensina Figueiredo Dias (op. e loc. cit.), o princípio do juiz natural [ou do juiz legal] procura sancionar, de forma expressa, o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior, e não ad hoc criado ou tido como competente.

O princípio do juiz natural comporta três dimensões, a saber: a exigência de determinabilidade, que determina que o juiz chamado a decidir no caso concreto esteja previamente determinado através de leis gerais; o princípio da fixação de competência, que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz, e; a observância das determinações de procedimentos relativos à distribuição de processos, portanto, relativos à divisão funcional interna (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. e loc. cit.).

Como se disse já, o princípio em causa visa garantir ao arguido que o processo, o seu processo, é julgado pelo juiz competente para o efeito, em observância do disposto em lei anterior.

Não tem, no entanto, natureza absoluta, podendo haver lugar à sua derrogação em circunstâncias extraordinárias, designadamente, quando o juiz natural não ofereça, no caso concreto, as imprescindíveis garantias de isenção e imparcialidade, ou quando, devido a doença prolongada daquele, o processo fique sem movimentação por período de tempo não razoável.

2. In casu, questiona o recorrente a observância das determinações de procedimentos relativos à distribuição de processos, portanto, à divisão funcional interna.

Vejamos.

O Regulamento do Conselho Superior da Magistratura n.º 269/2021 (DR, 2ª série, nº 56, de 22 de Março de 2021, estabelece, no seu art. 3º, com a epígrafe «Competência», na parte em que agora releva, que:

1 – Compete ao Plenário do Conselho Superior da Magistratura, sem prejuízo das competências próprias ou delegadas dos respetivos presidentes dos tribunais:

a) A alteração da distribuição e a redistribuição de processos nos Tribunais Superiores, em articulação com os presidentes dos tribunais.

(…).

Dispõe, o art. 4º do mesmo Regulamento, com a epígrafe «Princípios gerais» que, a alteração, suspensão, redução da distribuição ou a consequente redistribuição de processos, pressupõe a impossibilidade de substituição por outro juiz, devendo garantir aleatoriedade no resultado e igualdade na distribuição do serviço, assegurando a salvaguarda dos princípios do juiz natural, da legalidade, da proibição do desaforamento, da independência e da imparcialidade dos tribunais.

Estabelece, por sua vez, o art. 9º do mesmo Regulamento, com a epígrafe «Redução ou suspensão da distribuição dos processos por situação de doença», na parte em que agora releva:

(…).

8 – Em situações de baixas médicas, em que não seja assegurada a substituição do juiz, a distribuição segue, em regra, o seguinte regime:

a) A imediata suspensão da distribuição da totalidade dos processos ao juiz que se encontre de baixa médica e a redistribuição dos processos urgentes que lhe tenham sido anteriormente distribuídos;

b) Mais de noventa dias de baixa médica: redistribuição de todos os processos anteriormente distribuídos ao juiz que se encontre de baixa;

(…).

Na Deliberação do Plenário Ordinário do Conselho Superior da Magistratura de 23 de Março de 2021, foi deliberado delegar, com efeitos imediatos, nos termos do art. 158º, nº 2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, do art. 44º, nº 3 do Código de Procedimento Administrativo e do art. 3º, nº 1 do Regulamento das Situações de Alteração, Redução e Suspensão de Processos, aprovado por deliberação de 12.01.2021, do Plenário do CSM, nos Presidentes dos Tribunais da Relação, os poderes para: (…); e) Determinar a redistribuição, de forma considerada mais adequada para o bom funcionamento do Tribunal da Relação, dos processos pendentes deixados pelos Juízes Desembargadores que cessem funções por jubilação, promoção, transferência ou qualquer outra razão, sem prejuízo da celeridade devida; (…); g) Proceder à redistribuição dos processos urgentes dos Juízes Desembargadores ausente por baixa médica; (…).

Resulta da conjugação do disposto nas disposições regulamentares transcritas, ser o Conselho Superior da Magistratura o órgão constitucional competente para determinar a redistribuição de processos nos tribunais da Relação. Mais resulta que, no caso de baixa médica por mais de noventa dias, não estando assegurada a substituição do juiz natural, há lugar à redistribuição de todos os processos que lhe estavam distribuídos. 

Por último, resulta igualmente, ter o Conselho Superior da Magistratura delegado esta competência nos Presidentes dos tribunais da Relação. Vale isto dizer, atento o conceito administrativo de delegação de competência, que o órgão normalmente competente para a prática do acto – o Conselho Superior da Magistratura – autorizou outro órgão ou agente – os Presidentes das Relações – a praticá-lo.   

No exercício desta competência delegada, completados que foram noventa dias sobre a baixa média apresentada pela Exma. Desembargadora Relatora, por despacho datado de 1 de Setembro de 2022, o Exmo. Sr. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra determinou a redistribuição dos processos pendentes.

Nesta decorrência, o Sr. Escrivão de Direito da secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em 5 de Setembro de 2022, lavrou nestes autos, termo de cobrança e redistribuição com o seguinte teor, «Em 05-09-2022, atendendo a que a Exma. Sra. Juiz Desembargadora Relatora se encontra de baixa médica prolongada, vamos dar cumprimento ao nº 8, al. b) do art. 9º do Regulamento nº 269/2021 de 22/3 do CSM, designadamente com a redistribuição dos presentes autos. Assim sendo, vamos remeter os autos à Secção central para redistribuição.».

Tivesse o Sr. Escrivão de Direito iniciado o dito termo de cobrança e redistribuição com a afirmação de que actuava em obediência ao despacho do Exmo. Sr. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra de 1 de Setembro de 2022 e, cremos, nenhumas dúvidas se teriam suscitado no recorrente sobre a legalidade da redistribuição dos autos.

Em todo o caso, essa omissão em nada afecta a sua legalidade administrativa e processual pelo que, indemonstrada fica a alegada inobservância do princípio do juiz natural.

3. Em suma, a redistribuição dos presentes autos, porque obedeceu às determinações de procedimentos relativos à distribuição de processos, previamente definidas, não viola o art. 32º, nº 9 da Constituição da República Portuguesa, por atropelo ao princípio do juiz natural, não corporiza a nulidade insanável de violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do tribunal, prevista na alínea a) do art. 119º do C. Processo Penal, não corporiza a nulidade insanável de violação das regras de competência do tribunal, prevista na alínea e) do mesmo artigo e, consequentemente, não desencadeia as consequências previstas no nº 1 do art. 32º do mesmo código.

*

Da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia

4. Comecemos por notar que, nos termos do disposto no art. 425º, nº 4 do C. Processo Penal, é aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, o regime da nulidade da sentença proferida pela 1ª instância.

O C. Processo Penal prevê no seu art. 379º o regime específico da nulidade da sentença, cominando como tal, a falta/insuficiência de fundamentação (alínea a) do nº 1 do artigo citado), a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia (alínea b) do mesmo nº 1) e a omissão e o excesso de pronúncia (alínea c) do mesmo nº 1).

Existe omissão de pronúncia – alínea c) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal – quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

Nas questões a apreciar incluem-se as de conhecimento oficioso e as que foram submetidas à apreciação do tribunal pelos intervenientes processuais, desde que sobre elas não esteja legalmente impedido de se pronunciar.

Por questão entende-se o problema concreto, de facto ou de direito, a decidir, e não já, os motivos, argumentos, doutrinas e pontos de vista expostos pelos sujeitos processuais, em abono da respectiva pretensão, o que significa que só em relação àquela, e não a estes, se coloca a possibilidade de o tribunal ter omitido pronúncia (cfr. Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1182 e Acs. do STJ de 24 de Outubro de 2012, processo nº 2965/06.0TBLLF.E1 e de 16 de Setembro de 2009, processo nº 08P2491, in www.dgsi.pt).

Dito isto.

a. Pretende o recorrente não ter sido conhecida no acórdão reclamado a alegada preterição do disposto na alínea d), do nº 1 do art. 64º do C. Processo Penal, por não fluir de nenhum dos elementos processuais escritos que, após a sua detenção e até ao momento da sua constituição como arguido, tenha sido tratado como menor de 21 anos, o que significava que nada podia assinar sem estar na presença de defensor, e que nenhum acto processual podia ser praticado na ausência deste, da mesma forma, continua o recorrente, que ficou por sanar a questão de beneficiar da protecção especial prevista no art. 61º, nºs 1, i), 3 e 5 do mesmo código, sendo certo que esteve detido desde as 3h59m, sem poder contactar com ninguém.

Com ressalva do respeito devido, não assiste razão ao recorrente quanto à apontada omissão de pronúncia.

Com efeito, em II., 1., 1.1., do acórdão reclamado foi conhecida a questão da inobservância do estatuto de arguido, aí se tendo ponderado que o recorrente, na data dos factos tinha vinte anos de idade, e referido que esta circunstância, nos termos do disposto no art. 64º, nº 1, d) do C. Processo Penal, determinava a obrigatoriedade de o mesmo estar assistido por defensor em qualquer acto processual, com a excepção da constituição de arguido. Aí se considerou também – e fundamentou – que a obrigatoriedade de nomeação de defensor a menor de 21 anos tem como pressuposto que o assistido tenha já a qualidade processual de arguido, que o recorrente – enquanto condutor de veículo automóvel – foi sujeito a uma operação de fiscalização pela autoridade competente, tendo sido submetido a um primeiro teste quantitativo de pesquisa de álcool no ar expirado pelas 3h52m do dia 13 de Dezembro de 2019, tendo sido submetido a um segundo teste quantitativo de pesquisa de álcool no ar expirado pelas 3h59m, e foi constituído arguido pelas 4h41m do mesmo dia, já assistido por Ilustre Defensora. Aí se considerou ainda que, o único acto que consta do processo, antes do auto de constituição de arguido do recorrente é o auto de notícia e detenção de fls. 3 a 4, apenas assinado, como se impunha, pelo agente autuante.

Resulta, pois, claro que no acórdão reclamado se explicou que o recorrente nada assinou até ter sido constituído arguido, já assistido por defensor, sem que tal fosse imposto, como se disse, pelo art. 64º, nº 1, d) do C. Processo Penal. E também se explicou que a obrigatoriedade da presença de defensor imposta por esta norma pressupõe que o assistido tenha já a qualidade processual de arguido, o que torna carecida de fundamento a afirmação de que nenhum acto processual podia ser praticado na ausência do defensor.

b. Relativamente à afirmada omissão de pronúncia no acórdão reclamado, sobre a existência da nulidade prevista no art. 119º, d) do C. Processo Penal, por não se ter o Ministério Público apercebido, em tempo, que o recorrente era menor de 21 anos, por deficiente instrução do processo pelo OPC, privando-o do 1º interrogatório, cumpre apenas dizer que a questão foi, a par de outras, conhecida em II., 1., 1.2., do acórdão reclamado, nos seguintes termos:

1.2. A inexistência de inquérito e a falta de promoção do processo pelo Ministério Público

Dispõe o art. 48º do C. Processo Penal que o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º, assim consagrando, dando exequibilidade ao prescrito no art. 219º, nº 1 da CRP, o princípio da oficialidade segundo o qual, a iniciativa de investigar a prática de uma infracção e a decisão de a submeter a julgamento cabe a uma entidade pública, estadual (Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2016, Almedina, pág. 60). As limitações a este princípio, previstas nos arts. 49º e 50º do C. Processo Penal prendem-se com a existência de crimes semipúblicos e particulares que, para o caso não relevam, dada a natureza de crime público do crime que integra o objecto destes autos.

Tendo o recorrente sido detido pelo OPC em flagrante delito, por crime punível com prisão até um ano, nada obstava ao seu julgamento em processo especial sumário (art. 381º, nº 1, a) do C. Processo Penal. E assim, o Ministério Público promoveu, nos termos do art. 48º do C. Processo penal, o que tinha a promover, verificados que estavam os pressupostos legais para sujeitar o recorrente a julgamento sob a forma do processo especial sumário, não se verificando, pois, a nulidade insanável de falta de promoção do processo, prevista na alínea b) do art. 119º do mesmo código.

… nesta forma de processo, a lei não impõe ao Ministério Público a audição do detido (cfr. art. 382º, nºs 2 e 3 do C. Processo Penal), só havendo lugar a esta diligência se o julgar conveniente, ou para efeitos da validação da detenção e libertação.

A invocação, pelo recorrente, da inobservância do disposto no art. 272º, nº 1 do C. Processo Penal carece, em nosso entender, e mais uma vez, ressalvado o respeito devido por diversa opinião, de fundamento. A norma em causa estabelece a obrigatoriedade do interrogatório como arguido, da pessoa determinada contra quem corra o inquérito e sobre a qual recaia suspeita fundada da prática de um crime. É, portanto, pressuposto do referido interrogatório, além do mais, a existência de inquérito, entendido como fase preliminar do processo comum, com a finalidade e âmbito definidos no art. 262º do C. Processo Penal, fase esta que, como já referimos, não existe na forma do processo especial sumário.

Assim, sendo exacta a afirmação do recorrente de que, na tramitação dada pelo Ministério Público aos autos, não existiu inquérito, dela já não podem extrair-se as conclusões que tirou pois, precisamente porque o Ministério Público o apresentou em tribunal para julgamento em processo especial sumário, não havia lugar ao seu interrogatório nos termos do art. 272º, nº 1 do C. Processo Penal, resultando, pois, infundado e até, incompreensível, o invocado vício de inexistência jurídica [ao que supomos, do próprio inquérito, que não existiu]. Diga-se, ainda, que a inaplicabilidade do art. 272º, nº 1 do C. Processo Penal não contende com as garantias de defesa, asseguradas pelo art. 32º, nº 1 da CRP.

Atentemos agora na, pelo recorrente, afirmada privação do benefício da suspensão provisória do processo. Este instituto, que constitui uma solução alternativa à acusação, significa, ao nível do processo, que, estando verificados os seus pressupostos, o Ministério Público não pode acusar e deve suspender.

In casu, o Ministério Público deduziu acusação pelo que, implicitamente, entendeu não estarem verificados tais pressupostos. Por outro lado, parece-nos excessiva a afirmação de que estavam reunidos todos os requisitos estatuídos no art. 281º do C. Processo Penal, fundada no simples facto de o recorrente não ter registo anterior na base de dados da suspensão provisória de processos, não ter a qualidade de arguido em qualquer outro processo do DIAP de ... e não ter registo de antecedentes criminais.Com efeito, se estava preenchida a previsão das alíneas b), c) e d) do nº 1 do art. 281º referido, e se era provável o preenchimento da previsão da alínea a) do mesmo número, já seria duvidoso o eventual preenchimento da previsão da alínea e) do mesmo nº 1, dada a concreta TAS de que o recorrente era portador [1,814 g/l, deduzido o EMA], a circunstância de ter sido interveniente em acidente de viação e a condução automóvel com dolo directo por si praticada, capazes de  significarem a existência de um grau de culpa médio/elevado.

Em todo o caso, podendo a suspensão provisória do processo, no processo especial sumário, ser requerida pelo arguido (art. 384º, nº 1 do C. Processo Penal), a verdade é que o recorrente não o fez, nem logo após o acto de constituição como arguido quando, como sabemos, já tinha a assistência da sua Ilustre Defensora, nem posteriormente, designadamente, nos requerimentos de fls. 17 e 19, ambos de 16 de Dezembro de 2019, relativos ao pedido de prazo para defesa e à indicação de datas para o julgamento, o que parece apontar para a existência de dúvida tida pelo recorrente, quanto à verificação dos pressupostos de aplicação do instituto.

Em conclusão, improcede a pretensão do recorrente, de ter sido praticada a nulidade insanável prevista na alínea b) do art. 119º do C. Processo Penal, na sequência de não ter o Ministério Público promovido o processo, improcedendo também, necessariamente, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, prevista no art. 379º, nº 1, c) do mesmo código, fundada na existência daquela nulidade insanável.

A circunstância de o recorrente não concordar com o entendimento da Relação que aí se deixou expresso não significa, como é óbvio, a existência de omissão de pronúncia, que, como se retira do segmento transcrito, não ocorreu.

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III

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente a reclamação.

Custas pelo recorrente, fixando-a a taxa de justiça em 2 UCS (art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 22 de Março de 20230

Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator –, Maria José Guerra – adjunta – e Helena Bolieiro – adjunta