Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
451/10.2GAACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECONHECIMENTO
IDONEIDADE
RENOVAÇÃO
LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA
AUDIÇÃO PRESENCIAL DO REQUERENTE
NULIDADE
Data do Acordão: 07/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 61.º DO CPP; ART. 14.º DA LEI Nº 5/2006 DE 23-02
Sumário: I - Resulta deste preceito [art.61.º, n.º 1, alíneas a) e b) do C.P.P.] que a concretização do princípio do contraditório não tem que assumir a mesma forma em todos o actos processuais, podendo passar da simples notificação do arguido (ou outro sujeito processual) para que se pronuncie querendo, por escrito, no prazo que lhe for concedido, até ao direito de presença, com assistência de defensor, nos actos processuais que directamente lhe disserem respeito.

II - Face ao estabelecido no art.14.º, n.º 5, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actualmente em vigor, aplicável à obtenção e renovação de licença de uso e porte de arma da classe D, é necessária a audição presencial do arguido antes de se decidir ou, ao menos, deve possibilitar-se essa audição presencial.

III - A imediação perante o Juiz e o contraditório inerente, apresenta-se para o legislador como factor relevante na apreciação da pretensão do arguido/requerente, por poder contribuir certamente para um melhor conhecimento da personalidade deste e dos reais fins para que pretende a licença.

IV - Uma vez que a lei exige a audição presencial do arguido/requerente ou pelo menos que tenham sido envidados todos os esforços necessários à sua audição presencial, e no caso tal não aconteceu, a omissão da referida audição prévia integra a nulidade insanável cominada na alínea c) do art. 119.º do C.P.P.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

     Relatório

            Por despacho de 5 de Dezembro de 2014, proferido na Comarca de Leiria, Inst. Local de Alcobaça - Secção Criminal - J1, a Ex.ma Juíza indeferiu o requerimento do arguido A... em que este solicitava o reconhecimento de idoneidade para renovação da licença de uso e porte de arma de caça da classe D.

           Inconformado com o douto despacho dele interpôs recurso o arguido A... , concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1- Nos termos do n.º 5 do artigo 14.°, conjugado com os n.°s 3 e 4 do mesmo artigo da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro no incidente de reconhecimento de idoneidade o requerente é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo, que nos presentes autos não o tendo sido viola claramente tal disposição legal e consequentemente a douta decisão deve ser considerada nula e de nenhum efeito.

2- Nos presentes autos não assiste fundamento para recusar ao recorrente a reabilitação judicial para efeitos de renovação da licença de uso e porte de arma - classe D:

     a) O Requerente praticou um crime doloso em Outubro de 2010, tendo confessado integralmente os factos e manifestou arrependimento em sede de audiência de julgamento, do crime de detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos.

     b) Tais factos ocorreram em situação de stress emocional e após ingestão de bebidas alcoólicas que depois de uma breve troca de palavras entregou voluntariamente a arma, sob essas circunstâncias.

     c) O requerente é detentor de licença de uso e porte de arma de caça há mais de quinze anos, e os factos respeitam a 2 de Outubro de 2010.

     d) Não constam quaisquer outras condenações no certificado de registo criminal do requerente.

     e) Apesar de não ter sido ouvido, nem ter sido elaborado relatório da DGRS, está integrado profissional, familiar e socialmente.

     f) Não foi determinada a aplicação de medida de segurança de cassação, uso e porte de arma na douta sentença condenatória.

     g) O requerente interiorizou o desvalor da sua conduta e está inserido na sociedade sendo considerado no meio social onde vive como um cidadão honesto, bom amigo e trabalhador.

     h) Argumentos que deverão ser considerados e ponderados na pretensão de reconhecimento de idoneidade do requerente.

3- A “idoneidade”, a que aludem os artigos 14.° a 17.° da Lei n.º 5/2006, traduzirá a capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais, que face às circunstâncias em que ocorreram os factos constantes da acusação devem ser tomados em consideração na sua globalidade para o presente processo, nomeadamente, a entrega voluntária da arma, o arrependimento e o facto de o requerente ser considerado no meio social onde vive um cidadão honesto, bom amigo e trabalhador.

4- Na redação atual do artigo 14.º, n.º 2 da Lei n.º 5/2006, a «uma condenação em pena de prisão superior a um ano, pela prática de crime doloso, com uso de violência é suscetível de, por si, só indiciar a falta a idoneidade. Exige-se que esta circunstância indiciante, que a lei autonomizou pelo seu peso e significância, englobe os três requisitos cumulativos enunciados, “o facto de ao requerente ter sido aplicada condenação judicial pela prática de crime”, “crime doloso” e cometido com “uso de violência”, quando o requerente foi condenado em pena de multa, sem recurso à violência.

5- Na decisão condenatória já transitada em julgada foi determinada a não aplicação desta medida de segurança, que permite ao Requerente a obtenção de licença de uso e porte de arma, ou nova licença, quer a renovação ou a obtenção de nova licença, que a ser aplicada teria sempre um período de duração entre de 2 a 10 anos, que com a presente decisão objeto de recurso está a ser vedado ao mesmo o acesso a licença de uso e porte de arma que a sentença condenatória não lhe restringiu o seu acesso.

6- O requerente reúne condições de idoneidade para que lhe seja concedida a licença de uso e porte de arma tipo D que lhe permite a prática de atividade lúdica.

Normas violadas: Artigo 14.°. n.ºs 2, 3, 4 e 5; artigo 15.°; artigo 16.°; artigo 17.° e artigo 93.° todos da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro.

Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida.

O Ministério Público na Comarca de Leiria, DIAP de Alcobaça, respondeu ao recurso, pugnando pelo seu não provimento.

            A Ex.ma Procuradora-geral adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá obter provimento, porquanto os factos não mostram falta de idoneidade para o requerente possuir licença para uso e porte de arma.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P..

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            O despacho recorrido tem o seguinte teor:

O arguido A... foi condenado, nos presentes autos, por decisão transitada em julgado, pela prática de um crime de detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos, p. e p. pelos artigos l.º, n.º1, 2.º. n.º 1, alínea s), 3.º, n.º 6 e 89.º da Lei 5/2006, de 23.02, republicada pela Lei 17/2009, de 06.05, na pena de 160 dias de multa, à razão diária de € 5,00.

Veio o arguido requerer o reconhecimento de idoneidade para renovação da licença de uso e porte de arma da classe D, em face do indeferimento do pedido de licenciamento da renovação da licença de uso e porte de arma.

Alega, para tanto, que, não obstante os factos constantes da sentença proferida, o arguido confessou os factos, demonstrou arrependimento pelos mesmos, entregou voluntariamente a arma e é considerado um cidadão honesto, bom amigo e trabalhador, no meio onde vive.

A referida arma não se encontrava pronta a 'dar fogo' e tratou-se de um acto isolado na vida do arguido, sendo este detentor de licença, há vários anos, sem qualquer incidente.

Do CRC de fls. 12 a 14 dos autos consta apenas a decisão proferida nos presentes autos.

O Ministério Público emitiu parecer negativo relativamente ao pedido formulado, nos termos e pelos fundamentos constantes de fls. 10 dos autos.

Pronunciou-se o arguido sobre tal parecer, alegando que:

• À data dos factos em apreço nos autos, não tinha antecedentes criminais;

• Foi determinado na própria sentença não ser de aplicar a medida de segurança de cassação de uso e porte de armas;

• Atentas as necessidades de prevenção e repressão deste tipo de comportamento e a emenda cívica do requerente, desde tal período, e o arrependimento demonstrados, requer-se o reconhecimento de idoneidade do mesmo para obtenção de licença de uso e porte de arma de caça (tipo D).

Em face do exercício do contraditório por banda do arguido e do pedido de urgência formulado pelo mesmo a fls. 20 dos autos, e porque os autos reúnem já todos os elementos necessários à decisão, não se vislumbra necessário proceder à audição presencial do arguido.

Cumpre, assim, apreciar e decidir o pedido de reconhecimento de idoneidade formulado pelo mesmo nos autos.

Nos termos do artigo 14.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (novo regime jurídico das armas e munições), No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.

À luz do regime jurídico anterior à aprovação desta nova lei, a renovação de licenças de uso e porte de arma pode ser concedida aos interessados que preencham cumulativamente as seguintes condições (artigo 2.º, n.ºl e n.º4 da Lei n.º 98/2001, de 25 de Agosto):

a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis e políticos;

b) Não tenham sido alvo de medidas de segurança ou condenados judicialmente pelos crimes previstos no n.º3 do artigo 1°;

c) Se submetam a exame médico e a testes psicotécnico e de perícia adequados e cumpram as suas exigências, nos termos a definir em regulamento.

Os crimes previstos no artigo 1.º, n.º 3, desta lei, que implicam a não concessão/renovação da licença são: homicídio; homicídio qualificado; homicídio privilegiado; homicídio a pedido da vítima; incitamento ou ajuda ao suicídio; infanticídio; homicídio por negligência com uso de arma; ofensa à integridade física grave; ofensa à integridade física qualificada; maus-tratos ou sobrecarga de menores, de incapazes ou do cônjuge; participação em rixa ou motim; ameaça com arma de fogo; sequestro; escravidão; rapto; tomada de reféns; coacção sexual; violação; abuso sexual de pessoa incapaz de resistência; abuso sexual de pessoa internada; tráfico de pessoas; lenocínio; abuso sexual de crianças; abuso sexual e adolescentes e dependentes; actos sexuais com menores; lenocínio de menor; roubo; violência depois da subtracção; genocídio; discriminação racial; crimes de guerra contra civis; incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas; tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos; substâncias explosivas ou análogas e armas; captura ou desvio de aeronave, navio ou comboio; atentado à segurança de transporte por ar, água ou caminho-de-ferro; associação criminosa; organizações terroristas e terrorismo.

Não obstante o facto de este regime haver sido revogado com a entrada em vigor do novo regime aprovado pela Lei n.º 5/2006, revela-se pertinente a sua análise com vista a permitir uma melhor interpretação histórica e teleológica da nova lei.

De facto, o crime pelo qual o arguido foi condenado não se encontra previsto no elenco supra transcrito, o que nos poderia sugerir que tal crime não poderia ser considerado como fundamento de indeferimento do reconhecimento de idoneidade pretendido.

Contudo, é sabido que o legislador pretendeu, com a aplicação deste novo regime jurídico de armas e munições, reforçar a segurança, o controlo e a fiscalização do uso e porte de arma e assegurar uma maior responsabilização da comunidade.

Nos termos do actual regime, a licença das armas da classe D pode ser concedida a maiores de 18 anos que, entre outras condições, sejam idóneos (artigo 15.º, n.º l, alínea c)), sendo a idoneidade apreciada nos termos do artigo 14.º, n.ºs 2 e 3 (para o qual remete o n.º 2 deste artigo 15.º).

Pretendeu-se, com esta nova figura, permitir a reabilitação jurisdicional a quem, não obstante apresentar antecedentes criminais, se mostre idóneo a ter licença de uso e porte de arma.

A susceptibilidade de se poder mostrar indiciada a falta de idoneidade do requerente pela condenação sofrida pela prática de um crime doloso terá, assim, de ser apreciada casuisticamente.

Idoneidade” significa aptidão, capacidade, competência; qualidade de quem é idóneo, que significa ser conveniente, adequado, próprio para alguma coisa; que tem condições para desempenhar certos cargos, certas funções ou realizar certas obras; que tem qualidades para desempenhar determinada actividade ou de quem se pode supor honestidade.

Assim, na situação que ora nos ocupa, a “idoneidade”, a que aludem os artigos 14.º a 17.º da Lei n.º 5/2006, traduzirá a capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais.

Nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 2 da referida Lei, é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.

Dúvidas se poderiam suscitar acerca da constitucionalidade deste novo regime pois que a condenação pela prática de um crime retira automaticamente ao arguido o direito de uso e porte de arma, sem que nisso haja sido condenado.

Embora, nos termos do disposto no n.ºl do artigo 65.º do Código Penal, nenhuma pena possa envolver, só por si e como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, tal perda poderá suceder desde que seja a própria lei a prevê-la, fazendo corresponder a certos crimes a proibição de exercício de determinados direitos ou profissões (n.º2).

E é isso mesmo que sucede no presente caso, pois que o próprio regime jurídico das armas o prevê, sendo certo que, para obviar a situações de flagrante injustiça, se criou esta nova figura de reconhecimento de idoneidade, que, nos casos em que seja indeferido (como o presente), a restrição do direito sempre se encontrará justificada pela necessidade de salvaguarda do interesse colectivo da segurança, que incumbe ao Estado assegurar, e que sempre se sobreporá ao direito do arguido obter ou renovar uma licença de uso e porte de arma (artigo 18.º, n.º2, da CRP).

No caso em apreço, apesar de o arguido não haver sido condenado por qualquer dos crimes previstos no anterior regime para o indeferimento da licença, nem haver sido condenado em pena superior a 1 ano de prisão, entendeu o Ministério Público que o crime praticado pelo arguido e as circunstâncias em que tal crime ocorreu denotam uma personalidade avessa ao cumprimento de regras mínimas de convivência social, o desrespeito pelo bem jurídico da segurança, em especial no que concerne à utilização de arma de fogo em situação de stress emocional e após ingestão de bebidas alcoólicas, concluindo que não lhe deverá ser reconhecida a requerida idoneidade.

No caso em apreço, o arguido foi condenado, pela prática de crime doloso, em pena de multa.

Consta dos factos provados da decisão condenatória transitada em julgado que:

• No dia 2 de Outubro de 2010, entre as 20h30m e as 21h30m, o arguido dirigiu-se à Associação Recreativa dos Casais de Santa Teresa, local onde, na altura, decorria um casamento;

• Naquele local, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas em quantidade e qualidade não concretamente apuradas;

• Por força da ingestão de álcool, o arguido envolveu-se em confrontos físicos com, pelo menos, 3 pessoas;

• No período compreendido entre as 20h30 e as 21h30 do referido dia, o arguido dirigiu-se à residência da sua sogra, após o que se muniu de uma das três espingardas de fogo que detinha e 3 cartuchos;

• Na posse da referida arma, o arguido dirigiu-se à referida Associação Recreativa, onde sabia não poder deter a referida arma;

• Após uma breve troca de palavras, o arguido entregou voluntariamente a referida arma.

Mais consta da fundamentação da decisão proferida nos autos que “a arma em causa não estava carregada com cartuchos, porque o arguido os tinha guardados no bolso, e que não estaria em condições de dar fogo (o que não é contrariado pelo exame de fls. 93)”.               Conforme bem salientado pelo Ministério Público no parecer emitido, a condenação do arguido, os factos constantes dessa condenação e as circunstâncias em que tais factos ocorreram revelam uma personalidade avessa ao cumprimento de regras mínimas de convivência social, o desrespeito pelo bem jurídico da segurança, em especial no que concerne à utilização de arma de fogo em situação de stress emocional e após ingestão de bebidas alcoólicas.

Note-se que o arguido transportou a arma em causa para o interior de uma associação Recreativa, onde decorria um casamento, fazendo-se acompanhar de cartuchos, não tendo resultado provado que a referida arma não se encontra apta a disparar, antes constando do exame directo da mesma que se encontra em “aparentemente bom” estado de funcionamento e em “razoável” estado de conservação.

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, não obstante a decisão de não cassação constante da sentença condenatória, e no seguimento do parecer negativo do Ministério Público, improcede, porque carecida de fundamento legal, a pretensão do requerente.».

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   O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente A... as questões a decidir são as seguintes:

- se a decisão recorrida é  nula e de nenhum efeito porquanto o Ex.mo Juiz do processo não ouviu o requerente antes de proferir a decisão, em violação do disposto no n.º 5 do artigo 14.° conjugado com os n.ºs 3 e 4, do mesmo artigo, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro; e

- se o recorrente reúne condições de idoneidade para que lhe seja concedida a licença de uso e porte de arma tipo D que lhe permite a prática de actividade lúdica, pelo que deve ser revogada a decisão recorrida e reconhecer-se que reúne as condições necessárias à concessão daquela licença.


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            Primeira questão: da nulidade do despacho.

            O recorrente A... defende que nos termos do n.° 5 do artigo 14.°, conjugado com os n.ºs 3 e 4, do mesmo artigo, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, no incidente de reconhecimento de idoneidade o requerente é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo.

Nos presentes autos o requerente no incidente não foi ouvido. Assim, a douta decisão deve ser considerada nula e de nenhum efeito.

Vejamos.

O novo regime das armas e munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção primitiva, estabelecia no art.14.º os seguintes requisitos e procedimentos para obtenção de licença de uso e porte de arma da classe B1:

« 1 - A licença B1 pode ser concedida a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:

     a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;

     b) Demonstrem carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade;

     c) Sejam idóneos;

     d) Sejam portadores de certificado médico;

     e) Sejam portadores do certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo.

  2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeitos da apreciação do requisito constante na alínea c) do número anterior, é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão da licença o facto de ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime.

3 - No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode ser-lhe reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação, mediante parecer fundamentado homologado pelo juiz, elaborado pelo magistrado do Ministério Público que para o efeito procede à audição do requerente, e determina, se necessário, a recolha de outros elementos tidos por pertinentes para a sua formulação.

4 - Os pedidos de concessão de licenças de uso e porte de arma da classe B1 são formulados através de requerimento do qual conste o nome completo do requerente, número do bilhete de identidade, data e local de emissão, data de nascimento, profissão, estado civil, naturalidade, nacionalidade e domicílio, bem como a justificação da pretensão.

5 - O requerimento referido no número anterior deve ser acompanhado do certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo da classe B1.».

Deste preceito resultava que a idoneidade, como requisito para obtenção da licença B1, é susceptível de ser colocada em causa sempre que ao requerente tivesse sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime.

Ainda assim, o n.º 3, desse preceito, permitia que a idoneidade para obtenção da licença poderia ser reconhecida pelo Tribunal da última condenação, no decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado.

A reabilitação judicial tinha lugar através de homologação, pelo Juiz, de parecer do Ministério Público, que antes de o elaborar devia proceder à audição do requerente.

Por força do n.º 2 do art. 15.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na mesma redacção, a apreciação da idoneidade do requerente para obtenção da licenças das armas C e D, era feita nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 14.º, do mesmo diploma.

A Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, sofreu entretanto várias alterações, designadamente, pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio.

Entre as alterações que foram introduzidas no diploma original, anotamos com interesse para a presente questão, a que foi introduzida nos n.ºs 3 e 4 do art.14.º, pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, onde se passou a estabelecer:

   « 3 - No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.

   4 - O incidente corre por apenso ao processo principal, sendo instruído com requerimento fundamentado do requerente, que é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo, que decide, produzida a necessária prova e após parecer do Ministério Público.».

Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2011, de 27 de Abril, ao regime das armas e munições, o n.º 4 do art.14.º deste regime passa a corresponder ao n.º 5.

No entanto o n.º 2 do art.15.º do regime das armas e munições continua a estabelecer que para a obtenção das licenças das armas C e D « A apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 14.º .».

Pese embora o n.º 2 do art.15.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actualmente em vigor, não remeta para o actual n.º 5 do art.14.º, do mesmo diploma, cremos que não pode deixar de continuar a entender-se que corre por apenso, ao processo principal de condenação criminal, o pedido de reconhecimento de idoneidade do condenado para renovação de licença de armas de fogo, nomeadamente da classe D.

Ou seja, o incidente corre apenso ao processo principal e é instruído com requerimento fundamentado do requerente e nele « é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo», que produzida a necessária prova e após parecer do Ministério Público, decide da idoneidade do requerente para a obtenção ou renovação da licença de arma de fogo.

Como emanação de “todas” as garantias de defesa asseguradas ao arguido no n.º1 do art.32.º da C.R.P., o n.º5 desta norma dá guarida ao princípio do contraditório, estabelecendo como sua extensão processual a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar.

O conteúdo essencial do princípio do contraditório é que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão ( mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar.

Ou seja, o princípio do contraditório conduz a que, sempre que uma decisão possa atingir directamente a esfera jurídica do arguido ele tenha que ser ouvido, ou se lhe dê a possibilidade efectiva de se fazer ouvir.

Emanação do princípio do contraditório é sem dúvida o art.61.º, nº 1, alíneas a) e b) do C.P.P., quando estatui:

     «1- O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de:

          a) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito.

          b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte; (…)».

Resulta deste preceito que a concretização do princípio do contraditório não tem que assumir a mesma forma em todos o actos processuais, podendo passar da simples notificação do arguido (ou outro sujeito processual) para que se pronuncie querendo, por escrito, no prazo que lhe for concedido, até ao direito de presença, com assistência de defensor, nos actos processuais que directamente lhe disserem respeito.

A presença pessoal do arguido, para além de ser um seu direito do arguido, é ainda um dever, porquanto, nos termos do art.61.º, n.º 3 do C.P.P. « Recaem em especial sobre o arguido os deveres de:

    a) Comparecer perante o juiz, o Ministério Público ou os órgãos de polícia criminal sempre que a lei o exigir e para tal tiver sido devidamente convocado».

O requerimento para reconhecimento da idoneidade, como requisito para obtenção da licença de armas das classes C e D, tem de ser formulado pelo arguido que pretende a reabilitação judicial, pelo que dúvidas não parece haver que quando a lei estabelece que o requerente é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo exige que este seja ouvido presencialmente, perante o Juiz.

A imediação perante o Juiz e o contraditório inerente, apresenta-se para o legislador como factor relevante na apreciação da pretensão do arguido/requerente, por poder contribuir certamente para um melhor conhecimento da personalidade deste e dos reais fins para que pretende a licença.           

Não basta pois, para cumprimento do disposto no art.14.º, n.º 5, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actualmente em vigor, notificar-se o mesmo para se pronunciar sobre o próprio requerimento.

No caso em apreciação, o arguido A... apresentou um requerimento em 27 de Maio de 2014, onde concluiu pedindo que “ lhe seja reconhecida idoneidade a que aludem os artigos 1.º a 18.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro para a obtenção de licença de uso e porte de arma de caça (tipo D).”.

Em 24 de Outubro de 2014, o Ministério Público promoveu que se designasse data para audição do requerente.

Por despacho de 30 de Outubro de 2014 a Ex.ma Juíza determinou, nomeadamente, que se notificasse o requerente para esclarecer a que se destina a licença de uso e porte de arma cuja renovação pretende.

O requerente respondeu a folhas 9 e após consulta dos autos volta a dizer a folhas 16 a que se destina a licença.

Por requerimento de folhas 20 o arguido A... veio solicitar ao Tribunal urgência na resolução do pedido de reconhecimento de idoneidade em virtude de no mês de Janeiro de 2015 terminar o prazo de 180 dias que tem para proceder à renovação de licença sob pena das armas serem declaradas perdidas a favor do Estado.

Por despacho de 28 de Novembro de 2014 a Ex.ma Juíza mandou ouvir o Ministério Público sobre o alegado.

O Ministério Público declarou manter o parecer que havia emitido a folhas 10 e em 5 de Dezembro de 2014, foi proferido o despacho recorrido.

Do exposto resulta evidente que não foi designada data para audição do requerente, nem se procedeu à audição presencial do mesmo, o que foi assumido pela Ex.ma Juíza no despacho recorrido ao consignar que « Em face do exercício do contraditório por banda do arguido e do pedido de urgência formulado pelo mesmo a fls. 20 dos autos, e porque os autos reúnem já todos os elementos necessários à decisão, não se vislumbra necessário proceder à audição presencial do arguido.».

Não tendo o arguido sido ouvido presencialmente, nem tendo sido envidados todos os esforços necessários à sua audição presencial, antes de ser proferida a decisão de indeferimento do pedido de reconhecimento de idoneidade para renovação da licença de uso e porte de arma de caça da classe D, foi violada uma norma processual fixada na  Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Impõe-se agora determinar as consequências dessa violação processual o que, nos termos do art.105.º, n .º1 da Lei n.º 5/2006,  nos remete para o regime das invalidades processuais penais.

O art.118.ºdo Código de Processo Penal estabelece que “ A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei” ( n.º1); quando assim não suceder, o acto ilegal é irregular ( n.º2).

A norma enuncia o princípio da tipicidade ou da legalidade, pelo qual só algumas das violações das normas processuais é que têm como consequência a nulidade do respectivo acto, sendo razões de economia processual as que baseiam tal diferenciação.

Dentro das nulidades, o Código de Processo Penal distingue as nulidades insanáveis, a que se refere o art.119.º, e as nulidades dependentes de arguição ( ou nulidades relativas) , a que se referem os artigos 120.º e 121.º.

As nulidades insanáveis são as que constam do art.119.º do C.P.P. e ainda as que forem, como tal, identificadas noutras disposições do Código.

Nos termos do art.119.º do C.P.P. « Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:

     a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;

      b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;

      c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;

      d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;

      e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º;

      f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.».

Face ao estabelecido no art.14.º, n.º 5, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actualmente em vigor, aplicável à obtenção e renovação de licença de uso e porte de arma da classe D, é necessária a audição presencial do arguido antes de se decidir ou, ao menos, deve possibilitar-se essa audição presencial.

Uma vez que a lei exige a audição presencial do arguido/requerente ou pelo menos que tenham sido envidados todos os esforços necessários à sua audição presencial, e no caso tal não aconteceu, a omissão da referida audição prévia integra a nulidade insanável cominada na alínea c) do art. 119º do C.P.P.

Nos termos do art. 122.º, n. 1 do mesmo Código, a ausência dessa audição torna inválida a decisão recorrida.

Com a declaração da nulidade da decisão recorrida fica prejudicado o conhecimento da segunda questão objecto do recurso, ou seja, saber se o recorrente reúne ou não as condições de idoneidade para que lhe seja concedida a licença de uso e porte de arma tipo D que lhe permite a prática de actividade lúdica.

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar nulo o despacho recorrido, que deve ser substituído por um outro que dê cumprimento ao disposto no art.14.º, n.º 5, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com designação de data para audição do requerente, procedendo nestes termos o recurso interposto pelo arguido A... .

Fica prejudicada a segunda questão objecto do recurso.

Sem tributação.

                                                                        *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                                             

 

Coimbra, 08 de julho de 2015

                                                                                 

(Orlando Gonçalves – relator)

(Inácio Monteiro - adjunto)                                                                                                                                     

    
[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.