Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
212/10.9 TAFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 07/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL DO FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283º Nº 3 E 287º CPP
Sumário: 1 - O requerimento de abertura de instrução é uma verdadeira acusação em sentido material, e por essa razão deve conter, para além do mais, os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o assistente considere terem sido preenchidos pela conduta do arguido.

II – A omissão desses factos constitui nulidade, de conhecimento oficioso.

Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. Notificada do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público relativamente a dois denunciados e pretensos crimes de que teria sido vítima – um de ameaça e um outro de coacção, previstos e punidos, respectivamente, pelos art.ºs 153.º, n.º 1 e 154.º, n.º 1, ambos do Código Penal –, a ofendida/assistente C…, já mais devidamente identificada, requereu a abertura da fase judicial facultativa de instrução.

E, fê-lo nos moldes seguintes (fls. 59 e segs. dos autos que, por se mostrar relevante para a decisão, transcrevemos):

III – Requerimento de abertura de instrução

C..., assistente nos autos à margem referenciados e neles melhor identificada, tendo sido notificada do despacho de arquivamento do Ministério Público, e com ele não se conformando, vem requerer, nos termos legais, a abertura de instrução contra S..., arguida nos autos à margem referendados e neles melhor identificada, o que faz, nos termos e com os seguintes fundamentos:

Motivo da abertura de instrução

Sendo certo que, relativamente ao crime de dano, concorda inteiramente que não dispõe de legitimidade para apresentar queixa criminal, até porque o bem objecto do referido crime não lhe pertence, tendo apenas, quanto a este crime, efectuado o seu dever cívico de o participar a quem de direito, já quanto ao crime de ameaça e coação não pode, de forma alguma, concordar com os motivos alegados pelo Ilustríssimo Procurador.

Vejamos:

De entre os factos participados pela assistente, integrantes do tipo em análise e consubstanciados em expressões da arguida S... , ressaltam os seguintes:

- “Eu vou acabar contigo”;

- “Vou dar cabo do teu negócio”;

- “Vou-te pôr a pedir”

- Exigência de que a assistente desse à arguida o dinheiro que supostamente lhe devia.

Ora, entende o Meritíssimo Procurador, num juízo de prognose com o qual manifestamente discorda a assistente, que os factos acima enunciados se traduzem num “mal futuro” para a Sociedade XX..., empregadora da ora assistente, e não contra a própria, pelo que a esta nenhuma legitimidade criminal assistiria.

Em primeiro lugar, sempre se diria que, sendo a assistente casada com o gerente da empresa XX... e sendo também funcionária dessa mesma empresa, qualquer mal futuro apontado à referida sociedade seria, de certa forma, um mal futuro apontado à sua própria subsistência. Isto porque, todos sabemos que as sociedades comerciais, por definição, têm por objectivo o lucro. Ora, é desse lucro que vive, em parte, o agregado familiar da assistente, quer seja pelo ordenado auferido pela mesma, quer seja pelos lucros, ainda que abstractos, da referida sociedade.

No entanto, e por nos parecer que esta consideração quanto à ilegitimidade criminal da assistente é desprovida de qualquer bom senso, passamos a indicar porque considera a assistente ter legitimidade para o referido crime de ameaça e coacção.

Colocando-nos na pele de quem é alvo de expressões tais como as acima referenciadas, e tentando expurgar-nos do nosso papel de agentes burocráticos sentados a uma secretária envolta de papéis que em nada podem traduzir a realidade dos factos, fazendo portanto um exercício abstracto de transporte para o momento e lugar dos acontecimentos participados, temos que:

Houve uma pessoa que, acercando-se de outra, lhe disse que iria acabar com ela, que a iria pôr a pedir, que lhe iria dar cabo do negócio, que lhe tentou, por todas as formas, extorquir dinheiro e que a deixou de tal forma abalada, que mais não pôde, nesse dia, que não chorar.

Partir do pressuposto que, acontecendo factos deste género, nenhuma relevância criminal os mesmos possam ter, e nenhuma tutela aos mesmos possa corresponder, é, salvo o devido respeito, desconsiderar profundamente o nosso sistema judicial e desconsiderar os pressupostos éticos que ao mesmo presidem.

E atenção que não falamos de qualquer tipo de mesquinha ética retributiva.

Falamos de ética, tão só; daquilo que é necessário à preservação da vida em sociedade e da sua ordenação segundo a justiça; daquilo que possibilita que nenhum de nós se sinta atropelado pelo outro na ordenação que a força e a natureza das coisas facilmente imporia ao mais fraco perante o mais forte; em suma, na razão de ser do direito!

Acompanhando Américo Taipa de Carvalho no seu artigo sobre o crime de ameaça, publicado no Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, Tomo I, Coimbra editora, primeira edição, pág. 342 e segs., concluímos que o “Bem jurídico protegido pelo artigo 153.º é a liberdade de decisão e de acção.” Ora, caberá perguntar se à assistente, com as expressões proferidas pela arguida, não foi coarctada tal liberdade?

Mas continuamos a acompanhar o referido autor:

“Há, na verdade, uma conexão íntima entre a paz individual e a liberdade de decisão e de acção. Por isto, as expressões «provocar-lhe medo ou inquietação» e «prejudicar a sua liberdade de determinação» não se referem a bens jurídicos autónomos entre si (paz individual e liberdade de determinação), mas ao bem jurídico liberdade pessoal, que vê na paz individual uma condição da sua realização.”

Mais, reparamos que no crime de ameaça, propriamente no tipo objectivo do ilícito, são três as características essenciais:

- Existência de um mal;

- Que esse mal seja futuro;

- Que a ocorrência desse mal dependa da vontade do agente.

Ora, entende o Digníssimo Procurador que este mal futuro não é apontado à assistente, mas sim à sociedade que a emprega.

De qualquer modo, continuando a acompanhar o autor que atrás citámos, diz-nos o mesmo que o mal tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial. E exemplifica: lesão da saúde ou da reputação social, destruição de um automóvel ou danificação de um imóvel.

Ora, perante os factos denunciados, será de crer que à assistente não foi ameaçada a lesão da sua reputação social, bem como do seu modo de subsistência e, em última análise da sua própria subsistência em si?

Continuando a analisar as palavras do citado autor, diz-nos o mesmo que: “Sujeito passivo ou vítima do crime de ameaça é o destinatário da ameaça: «Quem ameaçar outra pessoa». Há que distinguir deste a pessoa objecto do crime ameaçado, isto é, o sujeito passivo ou vítima da prática (futura) do crime que dá corpo à ameaça: «Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida (…)». É que a pessoa objecto da ameaça e a pessoa objecto do crime ameaçado poderão não coincidir: A pode ameaçar B de que o há-de espancar; mas também pode ameaçar B de que há-de espancar o filho deste. Como Figueiredo Dias referiu na Comissão Revisora (actas 1993 232), «O que vale aqui é a ameaça com a prática de um crime, seja ou não na pessoa do ameaçado. Sempre se entendeu assim». Ao que poderemos acrescentar: não só na doutrina e jurisprudência portuguesas como também nas doutrinas e jurisprudências estrangeiras.”

E mais à frente, continua o citado autor: “Com efeito, quer tendo em atenção a natureza dos bens jurídicos objecto do crime ameaçado (vida, liberdade sexual, etc.) quer olhando para o bem jurídico protegido com a criminalização da ameaça (a paz individual e a liberdade interior de decisão), vê-se que a pessoa objecto do crime ameaçado tem de estar, para com o ameaçado, numa relação de proximidade existencial.”

Ora, entende a assistente que o crime ameaçado, ou parte dos crimes ameaçados, foram ameaçados contra a sua pessoa. De qualquer modo, ainda que o tivessem sido contra a Empresa XX..., sua empregadora e cujo gerente é o seu marido, perante as palavras anteriormente enunciadas, não vê a assistente como daqui possa resultar a sua ilegitimidade ou como possa a referida relação de proximidade existencial não ser óbvia.

No que toca a outro aspecto, já quanto à prova testemunhal das ameaças, desde já a assistente declara, salvo o devido respeito, que está em vincado desacordo com o Ilustre Procurador. Isto porque em sede de inquérito nunca foram as testemunhas ouvidas perante magistrado judicial, pelo que todas as razões apontadas à credibilização, ou não, das testemunhas resultaram da mera leitura de autos de declarações perante a GNR. Mais, havendo contradição entre as referidas declarações, nunca o Sr. Procurador se preocupou em, entre elas, proceder a uma acareação. O desconhecimento dos factos é tal, que chega ao ponto de o Exmo. Procurador referir a idade de 11 anos para a testemunha T... com vista à sua descridibilização. Sendo certo que a assistente, não sabendo ao certo qual a idade da referida testemunha, sabe pelo menos que a mesma é estudante universitário, o que não parece, pelo menos à primeira vista, ser compatível com a idade apontada pelo Ilustre Procurador.

Mais, quanto às testemunhas V... e B…, todas elas têm uma relação profissional, mais ou menos estável, com a sociedade XX..., a qual, há muito passa por problemas económicos. Todas elas são amigas. Todas elas têm interesses em comum, pelo que, averiguando estas circunstâncias, fácil seria demonstrar que o seu depoimento não é nem pode ser considerado desinteressado.

Aliás, repare-se pela leitura dos autos das suas declarações, que ambas tentaram, por tudo, escapar às questões. Preferindo dizer sempre que, a existir algum facto criminoso, por elas não foi apreendido, não o tendo contudo negado peremptoriamente.

Em suma, para a decisão de arquivamento dos presentes autos, o Ilustre Procurador do Ministério Público apenas se limitou a ler os autos de inquirição da GNR, nada mais tendo feito, pelo que, existindo contradição entre os depoimentos das testemunhas sem posterior acareação, entende a assistente que estamos perante o vício de insuficiência de inquérito, o que gera a sua nulidade que se argúi, para os devidos efeitos, nos termos conjugados do disposto nos artigos 120.º n.º 2, alínea d, n.º 3, alínea c e 122.º, todos do CPP, sem prejuízo de serem aproveitados todos os actos e provas que o Meritíssimo Juiz entender válidos.

Ora, por todos os motivos acima apontados, entende a assistente, não por mero capricho, mas por sentido de justiça, que tem direito à abertura de instrução e à reposição da verdade dos factos!

Actos instrutórios a terem lugar

Perante as razões supra enunciadas, não vemos como possa o presente processo ser arquivado sem que entre as testemunhas indicadas pela assistente se faça uma acareação. Entende por isso a assistente que devem ser tomadas declarações individuais às testemunhas perante o Meritíssimo Juiz de Instrução e, posteriormente, serem as mesmas acareadas relativamente às contradições que nos seus testemunhos existirem. Pelo que, desde já requer a assistente as referidas inquirições bem como a posterior acareação, requerendo também que, em sede de instrução, sejam tomadas declarações à assistente, bem como à arguida.

Pelo que antecede, sempre respeitando, embora putativamente não concordando, com opinião contrária, pode concluir-se que o Ministério Público não cuidou de investigar devidamente o sucedido, por distracção ou omissão, mostrando-se por isso adequado e necessário que se proceda à requerida abertura de instrução nos termos legais, a qual ora se requer a V. Exa., devendo, a final, a arguida S... ser pronunciada pela prática, em autoria material e sob o forma consumada, de um crime de ameaça pp. pelo art.º 153.º do CP e de um crime de coacção pp. pelo art.º 154.º do CP.”

1.2. Sobre tal pretensão recaiu seguidamente despacho com o teor que também reproduzimos:

“Uma vez declarado encerrado o inquérito, foi pelo Digno Magistrado do Ministério Público proferido despacho de arquivamento, por considerar inexistirem nos autos indícios suficientes da prática pela arguida dos crimes de ameaça, coacção e dano, p. e p., respectivamente, pelos art.ºs 153.º, 154.º e 212.º do Código Penal, que à mesma vinham imputados na queixa crime que deu origem aos presentes autos.

Notificada de tal despacho, veio a assistente requerer a abertura da instrução, aí começando por afirmar que existindo contradições entre os depoimentos prestados pelas testemunhas no decurso do inquérito e não tendo sido realizada uma acareação entre elas, está-se perante o vicio da insuficiência do inquérito, o que gera a sua nulidade, a qual vem arguir, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 120.º, n.º 2, al. d) e n.º 3, al. c) e 122.º do CPP, sem prejuízo de poderem ser aproveitados todos os actos e provas que o Tribunal entender serem válidos.

Acrescenta ainda assistir-lhe legitimidade, ao contrário do que parece ser o entendimento do Digno Magistrado do Ministério Público, no que respeita ao procedimento criminal relativamente aos denunciados crimes de ameaça e de coacção.

Conclui requerendo que seja ordenada a abertura da instrução, e que a final seja a arguida S..., pronunciada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça, p. e p. pelo art.º 153.º do Código Penal, e de um crime de coacção, p. e p. pelo art.º 154.º do mesmo código.

Requer as seguintes diligências de prova:

“Inquirição das testemunhas pela mesma indicadas perante o M.mo Juiz de Instrução, acareação entre estas, atentas as contradições reveladas pelos seus depoimentos, tomada de declarações à assistente, bem como à arguida.”

Conforme resulta do disposto na al. b) do n.º 1, do art.º 287.º do CPP, a abertura de instrução só pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

Tal requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art.º 283.º (n.º 2, do art.º 287.º do CPP).

Significa isto que quando o requerimento de abertura de instrução seja formulado pelo assistente, deverá este conter, além do mais,

A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

As disposições legais aplicáveis.”

Na verdade, o juiz de instrução está substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos pelo que tenha sido deduzida acusação formal ou que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objecto da acusação, por parte do Ministério Público. Nesta conformidade, o requerimento de abertura de instrução, quando formulado pelo assistente deverá consubstanciar uma “acusação alternativa”, que, atenta a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público, será necessariamente sujeita a comprovação judicial.

Aliás, a comprovar o que antes se referiu, surge o regime estatuído no art.º 309.º do Código de Processo Penal, que comina com o vício da nulidade a decisão instrutória na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituem alteração substancial daqueles outros descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento de abertura de instrução.

(cfr. Ac. RL de 22.02.2005, in www.dgsi.pt, e no mesmo sentido, entre vários outros, Ac. RC de 27.06.2007, in www.dgsi.pt)

Como escreve o Dr. Souto Moura, in “Jornadas de Direito Processual, O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL”, págs. 120-121, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, Coimbra, 1991 “Se o assistente requer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O Juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados. Aquilo que não está na acusação e no entendimento do assistente lá devia estar pode ser mesmo muito vasto. O juiz de instrução “não prossegue” uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do MP, a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão. Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática.

Teríamos um processo já na fase da instrução sem qualquer delimitação do seu objecto, por mais imperfeita que fosse, o que não se compaginará com uma fase que em primeira linha não é de investigação, antes dominada pelo contraditório.”

Assim a deficiência de conteúdo do requerimento de abertura da instrução, por não conter factos dos quais se possam retirar os elementos objectivos ou subjectivos de um crime, para além de inviabilizar a realização da mesma, por força do disposto no art.º 309.º do CPP, implica a nulidade desse mesmo requerimento (art.º 283.º, n.º 3, para o qual remete o art.º 287.º, n.º 2 do mesmo diploma).

Acrescente-se que as apontadas deficiências de tal requerimento não podem ser supridas por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse o assistente a supri-las.

No Acórdão da RC de 07.02.2007, in www.dgsi.pt, defendeu-se que tal despacho não deixaria de consubstanciar o exercício pelo juiz de instrução de uma faculdade inquisitória e de exercício da acção penal que no actual quadro legal processual penal não lhe assiste – contraria o princípio da estrutura acusatória do processo penal consagrada no art.º 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

(No mesmo sentido se pronunciou a RC, em acórdão proferido a 27.06.2007, in www.dgsi.pt, aí se escrevendo que tanto o STJ como o TC têm vindo a defender não ser compaginável e compatível com a função e fim do requerimento de instrução a prolação de despacho de convite ao requerente de aperfeiçoamento dos termos em que o requerimento se encontra formulado, por se traduzir numa insustentável intrusão do juiz na esfera de modelação e formulação de um requerimento de que pode depender a aplicação de uma sanção penal).

Quanto a este ponto é ainda pertinente chamar à colação o que expenderam os Prof.s Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Anotada”, 3.ª edição, pág.206:

“ (...) a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão da acusação. Daqui resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da abertura da instrução.”

Por sua vez, o TC no seu Acórdão n.º 358/2004, de 19 de Maio, publicado no DR, 2.ª série, n.º 150, de 28 de Junho de 2004, pronunciou-se a dado passo, nos seguintes termos:

 “A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.”

Refira-se que é também este o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, conforme acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, publicado no DR-I.ª série A, de 4 de Novembro de 2005, o qual fixou jurisprudência nos termos seguintes:

“Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.º 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”

É o que se verifica no caso dos autos, em que a assistente, no requerimento de abertura de instrução em vez de narrar factos, datá-los, imputá-los à arguida, subimo-los juridico-penalmente e mencionar, em suma, a conduta livre, voluntária e consciente violadora da lei, se limita a tecer considerações quase que puramente técnico-jurídicas, sobre os elementos constitutivos dos ilícitos denunciados, expondo os seus pontos de vista e, sustentando-os em amplas citações doutrinárias, e limitando-se quanto aos factos a apelar à versão dos mesmos apresentada pela assistente. Aproveita ainda para tecer duras críticas à actuação do MP, o qual, no seu entender, formou a sua convicção baseado exclusivamente na leitura dos depoimentos prestados pelas testemunhas perante a GNR, não as tendo ouvido presencialmente, nem tendo realizado qualquer acareação entre elas.

A dada altura do aludido requerimento, e já concluindo, afirma mesmo o seguinte:

“ (...) o Ministério Público não cuidou de investigar devidamente o sucedido, por distracção ou omissão, mostrando-se por isso adequado e necessário que se proceda à requerida abertura da instrução nos termos legais (...).”

Ora, chegados aqui cumpre acrescentar que, como se escreve no Acórdão da RC de 07.02.2007, in www.dgsi.pt, “ (...) a instrução, nos termos em que a lei vigente a regula, tem natureza judicial e não de actividade investigatória, destinando-se á comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação e não a constituir um complemento da investigação prévia à fase de julgamento.

(…)

Não pode, portanto, pretender-se através da instrução alcançar os objectivos próprios do inquérito, sendo outros os meios processuais adequados (veja-se, nomeadamente, as possibilidades permitidas pelos art.ºs 279.º, 277.º, n.º 2 e 278.º do Código de Processo Penal), não sendo legalmente admissível a realização da instrução com tal finalidade (art.º 287.º, n.º 3, última parte e art.º 286.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal).”

Não poderemos assim deixar de concluir que o requerimento de abertura de instrução apresentado nestes autos pela assistente é legalmente inadmissível, encontrando-se ferido de nulidade, pelo que se rejeita o mesmo.

(…).”

1.3. A assistente desavinda com o assim decidido, interpôs competente recurso, extraindo do requerimento com que minutou essa peça, as seguintes conclusões:

1.3.1. O Tribunal a quo entendeu, por via de despacho, que o RAI (requerimento para abertura da instrução) da assistente omitiu formalidades previstas na lei processual penal, nomeadamente a indicação dos factos e das normas jurídicas que alicerçam a pronúncia da arguida, considerando o RAI ferido de nulidade e, como tal, inadmissível.

1.3.2. A assistente não vê como tal possa ter acontecido, uma vez que indicou, no seu requerimento, os factos contra si praticados pela arguida (expressões como “Eu vou acabar contigo; vou dar cabo do teu negócio e a exigência que a assistente lhe desse o dinheiro que supostamente devia).

1.3.3. Mais, a assistente indicou, no seu requerimento, que a arguida, acercando-se dela e proferindo tais expressões, que mais não pôde nesse dia que não chorar.

1.3.4. Concluiu a assistente, no RAI, por indicar os crimes previstos nos art.ºs 153.º e 154.º, do Código Penal, como sendo aqueles que tipificavam a conduta préviamente descrita da arguida para com ela e pelos quais a mesma deve ser pronunciada.

1.3.5. Pelo que não padece a peça ofertada de qualquer nulidade ou mostrar-se inadmissível.

Terminou pedindo que na procedência do recurso seja determinada a revogação do despacho recorrido, substituindo-se por outro que declara aberta a fase de instrução.

1.4. Acatado o consignado pelo art.º 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respondeu o Ministério Público sustentando o improvimento do recurso.

Proferido despacho admitindo-o, foram os autos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, com vista, nos termos do art.º 416.º do aludido diploma adjectivo, pronunciou-se a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta, emitindo parecer conducente a igual improcedência. 

Cumpriu-se o prescrito pelo subsequente art.º 417.º, n.º 2.

No exame preliminar a que alude o n.º 6 do mesmo inciso, consignou-se nenhuma circunstância impôr a apreciação sumária do recurso, ou obstar ao seu conhecimento de meritis.

Donde que devesse prosseguir seus termos, com cobrança dos vistos legais, e sujeição à presente conferência.

Urge agora ponderar e decidir.


*

II – Fundamentação.

2.1. Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido [artigo 412.º, n.º 1, do mesmo diploma], que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

Não ocorrendo circunstância acarretando aquela intervenção oficiosa, questão a resolver será, então, a de averiguarmos se o RAI da Assistente contém, ou não, a narração sintética dos factos que fundamentariam a aplicação de uma pena à arguida e, em caso negativo, determinar as respectivas consequências.

2.2. O despacho recorrido, a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na 1.ª instância bem como o parecer expendido já neste tribunal ad quem pela Ex.ma PGA balizam por forma assaz pertinente a solução imposta ao caso sub judice.

Em todo o caso, e embora por forma algo sintética, impõe-se-nos também reafirmar os contornos que fundamentarão a decisão reclamada.

Assim:

2.2. A recorrente/assistente requereu a abertura da instrução, depois do arquivamento do procedimento criminal, pelo Ministério Público.

Nos termos do artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal[1], o assistente tem a possibilidade legal de requerer a instrução em crimes de natureza pública ou semi-pública, relativamente a factos pelos quais o MP não tiver deduzido acusação.

Um crime de ameaça, p.p.p. citado art.º 153.º, n.º 1, é um crime semi-público [seu n.º 2]; por outro lado, o crime de coacção participado pela assistente assume natureza pública [art.º 154.º, do Código Penal], pelo que nesses pressupostos podia a assistente vir requerer a abertura da instrução.

Dispõe o artigo 288.º, n.º 4, que “o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução – de modo a fundar a sua convicção para pronunciar ou não pronunciar o arguido – tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior.”

Também o artigo 289.º, n.º 1, dispõe que “a instrução é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e obrigatoriamente por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o MP, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado, mas não as partes civis.”

Destes dispositivos resulta que a instrução se destina a comprovar judicialmente a decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir acusação ou de arquivar o processo. Já que em sede de instrução o que está em discussão é, exclusivamente, a comprovação da decisão tomada pelo Ministério Público, nesta apenas se vai apurar se a decisão tomada pelo Ministério público corresponde ou se adequa aos indícios existentes no processo.

A instrução é tida por uma fase judicial através da qual, se opera o controlo judicial da posição assumida pelo Ministério Público no final do inquérito[2].

A propósito do requerimento de abertura da Instrução, dispõe o n.º 2 do artigo 287.º, que, “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (...) não acusação do MP, bem como se for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º (…).”

Por força destas alíneas, e por expressa remição de aplicação do artigo 287.º, n.º 2, in fine, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, contém, também:

“A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; [alínea b]

A indicação das disposições legais aplicáveis.” [alínea c]

Esta exigência em relação ao RAI deriva das garantias de defesa do arguido e da estrutura acusatória do processo penal, consagrada pelo artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, e segundo o entendimento maioritário da jurisprudência e do Tribunal Constitucional no acórdão n.º 358/2004, tal exigência não se basta com a remissão para elementos dos autos, por esta exigência estar directamente relacionada com a definição e delimitação do objecto do processo.

Assim, quando há acusação a actividade instrutória ocupar-se-á das provas produzidas e a produzir, tendo por objecto o conteúdo da acusação. E a decisão final manterá ou não a acusação, respectivamente pronunciando ou não o (s) arguido (s).

Quando o inquérito termine com um arquivamento, o RAI deduzido pelo assistente [artigo 287.º, n.º 1, al. b)] consubstancia-se numa autêntica acusação, obedecendo aos requisitos enunciados para a mesma, no n.º 3 [alíneas b) e c) do artigo 283.º].

É este o entendimento sufragado pela doutrina[3]. Também Frederico de Lacerda da Costa Pinto[4], escreve no mesmo sentido “… para todos os efeitos o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente é material e funcionalmente equiparado a uma acusação, quer quanto às exigências que tem de respeitar (art.º 287.º, n.º 2 do CPP), quer quanto ao regime de constituição de arguido (art.º 57.º, n.º 1 do CPP), quer ainda quando à vinculação temática do Tribunal de instrução criminal (art.ºs 303.º, n.º 1 e 309.º, n.º 1).”

Também na jurisprudência este entendimento é pacífico. Na verdade, no mencionado acórdão do TC n.º 358/2004, foi defendido que o objecto da instrução tem “de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e que tal definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, o que decorre de princípios fundamentais do processo penal, designadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória.”[5]

A descrição factual mencionada deve conter, os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o assistente considere terem sido preenchidos[6].

2.3. Ora, o requerimento formulado pela recorrente/assistente, com que pretendeu fazer declarar aberta a fase da instrução, não tem as características que a acusação devia ter, não se apresenta como uma acusação em sentido material, não respeita as exigências essenciais do conteúdo impostas pelo artigo 287.º, n.º 2, por nele faltarem quer a sequência lógica e cronológica dos factos imputados, da pessoa a quem alegada e concretamente foram as expressões dirigidas – se à própria, se à sociedade de que seu marido é gerente –, o que se não mostra despiciendo atenta a natureza semi-pública de um dos ilícitos vislumbrados, aliás, e, bem assim, a completa descrição do elemento subjectivo, no caso a descrição do dolo, na sua dimensão intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e na sua dimensão volitiva (vontade de realização dos tipos de ilícito).

Acresce que uma parte significativa do RAI se cinge a tecer críticas ao Ministério Público sobre a forma pela qual a prova (não) foi carreada aos autos, opondo a necessidade de uma sua sindicância agora judicial.

Ou seja, mais do que acatar os pertinentes normativos, limita-se apenas a fazer considerações, e delas a tirar as ilações que entende fase à versão dos factos por si apresentada. A sua argumentação é toda no sentido de demonstrar a sua discordância, face aos fundamentos que sustentam tal despacho, sem tão pouco, imputar à arguida/denunciada, em concreto, os factos que terá praticado e que no seu entender são censuráveis penalmente.

Tudo em linha com o que o M.mo Juiz a quo consignou no despacho recorrido, escrevendo, mormente, que:

“É o que se verifica no caso dos autos, em que a assistente, no requerimento de abertura de instrução em vez de narrar factos, datá-los, imputá-los à arguida, subimo-los juridico-penalmente e mencionar, em suma, a conduta livre, voluntária e consciente violadora da lei, se limita a tecer considerações quase que puramente técnico-jurídicas, sobre os elementos constitutivos dos ilícitos denunciados, expondo os seus pontos de vista e, sustentando-os em amplas citações doutrinárias, e limitando-se quanto aos factos a apelar à versão dos mesmos apresentada pela assistente. Aproveita ainda para tecer duras críticas à actuação do MP, o qual, no seu entender, formou a sua convicção baseado exclusivamente na leitura dos depoimentos prestados pelas testemunhas perante a GNR, não as tendo ouvido presencialmente, nem tendo realizado qualquer acareação entre elas.

A dada altura do aludido requerimento, e já concluindo, afirma mesmo o seguinte:

“ (...) o Ministério Público não cuidou de investigar devidamente o sucedido, por distracção ou omissão, mostrando-se por isso adequado e necessário que se proceda à requerida abertura da instrução nos termos legais (...).”

Ora, chegados aqui cumpre acrescentar que, como se escreve no Acórdão da RC de 07.02.2007, in www.dgsi.pt, “ (...) a instrução, nos termos em que a lei vigente a regula, tem natureza judicial e não de actividade investigatória, destinando-se á comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação e não a constituir um complemento da investigação prévia à fase de julgamento.

(…).”

Conclusão, pois, a de que com o RAI ofertado não pode haver pronúncia.

2.4. Nem poderia, pelas razões atrás expostas, serem considerados, em hipotético despacho de pronúncia, outros factos que eventualmente resultassem da instrução e que não tivessem sido alegados no RAI apresentado. Se os factos relatados no RAI apresentado pela assistente não integram qualquer tipo criminal, a inclusão na pronúncia de outros factos que, só por si ou conjugados com aqueles, integrassem um crime equivaleria à pronúncia da arguida por factos que constituiriam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento.

Pois, se de acordo com a definição do artigo 1.º alínea f), há alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente quando a nova factualidade tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso, por maioria de razão existirá alteração substancial dos factos sempre que os descritos naquele requerimento não integrem qualquer crime e os novos, por si só ou conjugados com aqueles, passem a integrá-lo[7].

Tal hipotética decisão instrutória (que considerasse factos não alegados no RAI) seria nula[8], podendo mesmo considerar-se juridicamente inexistente, por ser inexistente a instrução em consequência da falta de objecto do processo[9].

2.5. Mas, quais então as ilações a extrair, ou, noutros termos, quais as consequências de apresentação de um RAI, nas condições do apresentado pela recorrente?
Dispõe o artigo 287.º, n.º 3, que “o requerimento para abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”

Só é legalmente admissível a instrução mediante a apresentação de requerimento que obedeça aos requisitos previstos no n.º 2 do artigo 287.º.

Ora, o requerimento apresentado enferma de nulidade, prevista no artigo 283.º, n.º 3, para que remete o artigo 287.º, n.º 2, pois não contém a narração de factos que fundamentem a aplicação a qualquer arguido de uma pena ou medida de segurança – artigo 283.º, n.º 3, al. b).

Não se trata de nulidade que possa considerar-se meramente formal, pois dessa nulidade resulta que a instrução a que eventualmente se procedesse com base no requerimento apresentado careceria de objecto e seria por isso inexequível[10].

Atento o que supra se expôs acerca do princípio da estrutura acusatória do processo penal e da vinculação temática do Tribunal, importa concluir que a nulidade de que enferma o requerimento apresentado, importando a inadmissibilidade legal da instrução, é de conhecimento oficioso.

Outro fundamento existe, contudo, a justificar a inadmissibilidade legal da instrução. A instrução termina ordinariamente com a pronúncia ou a não pronúncia.

No entanto, pelas razões supra expostas, relativamente ao requerimento apresentado pela recorrente, a primeira nunca poderia ter lugar, o que implica que, estando em causa com a instrução requerida, a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito, proceder a instrução seria, além do mais, acto inútil, legalmente inadmissível[11]: sem acusação formal o juiz está impedido de pronunciar a arguida, por falta de uma condição de prossecução do processo, ligada à falta do seu objecto e, mercê da estrutura acusatória inerente ao processo penal, substituindo-se o juiz à assistente no colmatar da falta de narração dos factos, chamaria a si uma função indagatória, própria de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado, que traria como consequência uma diminuição das garantias de defesa da arguida, importando violação dos artigos 18.º e 32.º/1 e 5 da CRP, colocando ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusador do arguido, atribuindo-se-lhe instrumentos do exercício da acção penal de que não é titular.
De resto, a solução de ser o Juiz a colmatar a insuficiência de narração dos factos, está, desde logo, vedada porque os poderes de cognição do Juiz estão limitados ao que consta do RAI – assim se assegurando as garantias de defesa da arguida.

Doutra forma, atentar-se-ia contra o princípio da igualdade de armas e colocava-se em causa a própria imparcialidade e independência do julgador, visto, designadamente na fase da Instrução como o juiz das garantias.

De resto, através do Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005, o STJ decidiu que “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º/2 C. P. Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”

Lendo o RAI, verifica-se, com efeito, faltar o relato sequencial e lógico dos factos que se pretende ver imputados á arguida e seus elementos subjectivos, não constituindo tal requerimento algo que possa ser considerado como uma “acusação alternativa”.
Competia à assistente a narração de factos consubstanciadores dos elementos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito e pelos quais pretendia obter a respectiva pronúncia, mais do que se limitar a considerações genéricas e doutrinais sobre os elementos dos tipos alegadamente em causa e sobre a apreciação da prova recolhida no decurso do inquérito.

Em suma: o requerimento de abertura da instrução não preenche os requisitos para ser tomado como uma acusação. A acusação que a assistente pretendia que o Ministério Público tivesse deduzido em vez de arquivar o inquérito.

Pelas razões supra indicadas, o requerimento de abertura de instrução não é susceptível de qualquer aperfeiçoamento, não enfermando o despacho recorrido de qualquer vício e não se mostrando violada pelo mesmo qualquer norma legal.

Conclui-se, pois, sem dúvida ou dificuldade, que o recurso não merece provimento.


*

III – Decisão.

Atento todo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto pela assistente C..., confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, nos termos dos artigos 513.º e 514.º (e artigo 8º do Regulamento das custas processuais e, bem assim, tabela anexa n.º III), fixando-se a taxa de justiça devida em 4 [quatro] UCs.


*

Brízida Martins (Relator)

Orlando Gonçalves



[1] Diploma de que serão os normativos doravante a citar, quando sem referência expressa da origem.
[2] Cfr. José Souto de Moura, Inquérito e instrução, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, 1989, pág. 125, citado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido pela Ex.ma Desembargadora Maria Dolores Silva e Sousa, no âmbito do recurso n.º 5.881/07.4 TAVNG.P1, a 11 de Maio de 2011, acessível no site www.dgsi.jtrp.
[3] Veja-se, exemplificativamente, o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Direito Processual Penal, III, pág. 141.
[4] Segredo de justiça e Acesso ao Processo, In jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, pág. 90.
[5] Veja-se no mesmo sentido os Acórdãos do STJ de 05.05.1993, CJ, III, 243, 07.12.2005, 22.03.2006, 25.10.2006, disponíveis no site da DGSI, e muitos outros, nomeadamente da Relação do Porto de 23-05-2000, in CJ, III, 239.
Também neste sentido o Ac. do STJ de 24.09.2003, processo 03P2299, relator Henriques Gaspar, disponível no site da DGSI: “O requerimento do assistente não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve, pois, constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo (da instrução), e por isso, os termos e os limites dos poderes de conhecimento e de decisão do juiz de instrução – artigos 308.º e 309.º do Código de Processo Penal.”

[6] Neste sentido se pronunciaram os Acórdãos da RL de 30.03.2003, (CJ, II, pág. 131); da RP de 07.01.2009, proc. 0846210 e de 11.10.2006, proc. 0416501; da RG de 14.02.2005 (CJ, I, pág. 299); da RP de 23.05.2001 (CJ, III; pág. 238), e os Ac. da RP de 07.01.2009, proc. 0846210 e de 11.10.2006, proc. 0416501, estes dois últimos no que tange à necessidade de constar do RAI o elemento subjectivo do tipo de crime.
[7] Cfr. Acórdão da RP de 23.05.2001, in CJ, III, 239.
[8] Cfr. Acórdãos da RC, de 24.11.1993, CJ, V, 61 e da RL, de 28.05.91, BMJ, 407, 613.
[9] Cfr. Acórdãos da RL, de 09.02.2000, CJ, I, 153; da RP, de 05.05.93, CJ, III, 243 e da RE, de 14.04.1995, CJ, I, 280.


[10] Cfr. Acórdão da RL de 11.10.2001, CJ, XXVI, tomo 4, pág. 141.
[11] Cfr. artigo 137.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art.º 4.º.