Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
44/19.9PAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
DESOBEDIÊNCIA QUALIFICADA
CONCURSO APARENTE
NE BIS IN IDEM
Data do Acordão: 10/16/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE, J2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA, EM PARTE
Legislação Nacional: ART.ºS 30.º; 292.º, N.º 1, E 348.º, N.º 2, DO CP; ART.º 29.º, N.º 5 DA CRP
Sumário: I – A moldura abstracta da pena aplicável ao crime de desobediência qualificada (n.º 2 do art.º 348.º do CP) é superior – o dobro – da aplicável ao crime de condução em estado de embriaguez. O que evidencia que o tipo de crime tutela, simultaneamente, a segurança da condução rodoviária inerente à proibição da condução em estado de embriaguez qualificado pela desobediência à ordem anterior, específica, para não o fazer.

II - A desobediência contém já dentro da sua esfera de protecção a punição do estado de alcoolemia previamente revelado, dentro das 12 horas subsequentes, além da desobediência á notificação para não o fazer sob pena de incorrer naquele crime específico.

III – Por isso, existe concurso aparente, por especialidade/consumpção, entre o crime de desobediência qualificada e o crime de condução no estado de alcoolemia revelado pelo teste previamente efectuado, dentro das 12 horas subsequentes.

IV - Daí que o arguido apenas poderá ser punido pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez (o primeiro), em concurso real, efectivo, com o crime de desobediência qualificado - à notificação para não conduzir nas 12 horas subsequentes à realização do teste de alcoolemia, sob pena de incorrer na prática deste crime. Sob pena de dupla punição do mesmo desvalor jurídico-penal, proibida pelo princípio ne bis in iden consagrado no art.º 29.º, n.º 5 da CRP.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

Nos autos, após realização da audiência pública de discussão e julgamento com exercício amplo do contraditório, foi proferida sentença, gravada, com o seguinte dispositivo, exarado em ata:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal julga procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, consequentemente, decide:

1- Condenar o arguido RC:

- pela prática em 19-01-2019 pelas 02:21 horas, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292°, nº 1 e do artigo 69°, nº 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 4 (meses) meses de prisão e ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 8 (oito) meses;

- pela prática em 19-01-2019 pelas 05:05 horas, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292°, nº 1 e pelo artigo 69°, nº 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão e ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 8 (oito) meses;

- pela prática em 19-01-2019, de um crime de desobediência, p. e. p. pelos artigos 154° do Código da Estrada e 348° nº2 do Código Penal na pena de 5 (cinco) meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 8 (oito) meses, nos termos do artigo 69°, nº1, alínea b), do Código Penal.

2 - Operar o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido RC, condenando-o na pena única de 9 (nove) meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 14 (catorze) meses.

3 - Suspender a pena de prisão de nove meses em que o arguido RC vai condenado, pelo período de 1 (um) ano, acompanhada de regime de prova.


*

Inconformado com a sentença, dela recorre o arguido RC, rematando a motivação com as seguintes CONCLUSÕES:

(Nota: não se transcrevem as conclusões 1 a 5 por reproduzirem a decisão recorrida, nos termos supra enunciados) (…)

6. Salvo o devido respeito por opinião diversa, o arguido, aqui Recorrente, discorda da douta sentença recorrida, na parte em que o condenou pela prática de 2 crimes de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), do CP, entendendo que o aqui Recorrente deveria ter sido condenado APENAS por 1 crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do CP e por 1 crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 348.º, n.º 1, alíneas a) e n.º 2, 14.º, n.º 1, 26.º, 1 ª parte, e 30.º, n.º 1, do CP.

7. Consta dos factos provados que no mesmo dia, 19-01-2019, o aqui recorrente foi alvo de 2 fiscalizações por órgão de polícia criminal, a primeira às 02:21 horas, tendo sido submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, apresentando uma TAS de 2,18 g/l, e uma segunda fiscalização, nesse mesmo dia, às 5:05 horas, tendo sido novamente submetido a um exame de pesquisa de álcool no sangue, apresentando uma TAS de 1,56 g/l;

8. Ou seja, entre a primeira fiscalização, que despoletou a primeira condenação dos presentes autos, a título de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, e a segunda fiscalização, a qual despoletou a segunda condenação a título de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, apenas decorreu um lapso temporal de, sensivelmente, 2 horas e 30 minutos.

9. Ora, entende o arguido recorrente que apenas cometeu um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (ainda que em concurso real com o crime de desobediência) porque existe uma só resolução criminosa;

10. A questão ora levantada pelo arguido recorrente, não foi abordada em primeira instância, como decorre da Douta sentença recorrida, tendo-se concluído tão-somente que o arguido cometeu dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, não havendo sequer ponderação por parte do tribunal sobre esta mesma questão!

A jurisprudência dos tribunais superiores que defende o entendimento perfilhado pelo arguido recorrente tem sido abundante, senão vejamos,

10. O Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão datado de 11.11.2009, o qual pode ser consultado www.dgsLpt, defendeu o seguinte entendimento:

"- O legislador estabeleceu no artigo 154.º, n.º 1, do Código da Estrada, o impedimento de conduzir pelo período de 12 horas após obtenção de resultado positivo no exame de pesquisa de álcool no ar expirado, cominando a violação de tal comando com crime de desobediência qualificada no n." 2 do mesmo preceito legal;- É um só o acto (ingestão de bebidas alcoólicas) que constitui a génese do crime, mas os seus efeitos prolongam-se no tempo, pelo que, sendo o arguido encontrado a conduzir, por diversas vezes, durante tal período e sujeito a testes de alcoolemia positivos, seria autuado e submetido a julgamento mais que uma vez, com base na mesma fonte geradora da responsabilidade criminal, resultado que constituiria uma violação do princípio ne bis in idem, que tem consagração constitucional no artigo 29.º, n.º 2, da CRP."

11. Na esteira de entendimento jurisprudencial recente (vide neste sentido o douto aresto proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 03-06-2016, no Processo n.º 810/15.4PFPRT.Pl, e ainda, o douto aresto proferido pelo mesmo Tribunal, datado de 11-11-2009, no Processo n.º 516/09.3PTPRT.Pl) sobre a questão, defende o aqui Recorrente que o condutor que incorre na prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, se voltar a conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes, com taxa de álcool igualou superior a 1,20 g/l, não comete um novo crime de condução de veículo em estado de embriaguez em concurso real com o crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos art.ºs 348.º, n.º 2, do Código Penal e 154.º, n.º 2, do Código da Estrada, mas antes, existe somente um concurso aparente, pois que autonomizar o conteúdo de ilícito desta segunda condução com álcool significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto, em violação do art.º 29.º n.º 5 CRP: ou seja, punir o arguido duas vezes mesmo facto.

12. No crime de condução de veículo em estado de embriaguez, o estado de embriaguez, por si só, não tem relevância criminal, sendo apenas o elemento do tipo objetivo do crime em causa, que obviamente, é provocado pela ingestão excessiva de bebidas alcoólicas.

13. Como tal, pode afirmar-se que a conduta criminosa, o iter criminis, se inicia com a ingestão de bebidas alcoólicas, residindo aqui a sua "génese", até o agente atingir o estado de embriaguez, o qual para a tipicidade criminal, exige um grau de alcoolemia de, pelo menos, 1.20 g/l no sangue, consumando-se quando o agente, nesse estado, inicia a condução do veículo na via pública.

14. Segundo o Professor Eduardo Correia, a resolução criminosa corresponde ao "termo daquele específico momento do processo volitivo em que o «eu» pondera o valor e o desvalor, os prós e os contras dum projeto concebido", pelo que "se diversas resoluções foram tomadas para o desenvolvimento da atividade criminosa, diversas vezes deixa a norma de alcançar concretamente a eficácia determinadora a que aspirava e vários serão os fundamentos para o juízo de censura em que a culpa se analisa" (in "Unidade e Pluralidade de Infrações", 1968, pág. 94).

15. O crime de condução de veículo em estado de embriaguez embora seja consumado logo que o agente, tendo uma TAS igualou superior a 1.2 g/l, inicia a condução, não se esgota nesse momento. A consumação prolonga-se no tempo, persiste enquanto se mantiver o exercício da condução nesse estado. Por isso, pode qualificar-se como um crime duradouro, que se caracteriza justamente por o estado antijurídico ter "uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo a esse estado de coisas" in Figueiredo Dias, "Direito Penal", Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 296.

16. No caso concreto, quando iniciou o exercício da condução, depois de se ter colocado em estado de embriaguez, o arguido, projectou fazê-lo até atingir o seu destino. Ora, se a meio caminho tivesse uma avaria na sua viatura (ou uma indisposição provocada pela embriaguez) e fosse obrigado a imobilizar o veículo, ninguém dotado de razoabilidade e bom senso diria que ele teve de renovar o respetivo processo deliberativo, renovar a intenção de agir, ao retomar o exercício da condução automóvel.

17. A decisão criminosa é uma só e o dolo do arguido abarca, ab initio, uma pluralidade de atos sucessivos que ele se dispôs logo a praticar, desde o seu início até ao destino final. Na verdade, o que aqui temos é um processo resolutivo inicial que não se esgota com a detenção pelo OPC, mas sim com a chegada ao destino, aquela que o arguido tinha em mente quando iniciou a viagem.

18. Verifica-se um único dolo, o qual abrange todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de determinação volitiva, a par da manifesta homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, levam-nos a concluir pela unidade no crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

19. Existe apenas um ato que constitui a génese do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, consistindo o mesmo apenas na ingestão de bebidas alcoólicas, sendo consabido, aliás, facto que está mais do que provado pela ciência médica, que os efeitos da ingestão de bebidas alcoólicas prolongam-se no tempo e no mínimo por 12 horas.

20. Pelo que autonomizar o conteúdo de ilícito da segunda condução do veículo, a qual foi alvo da 2ª condenação nos presentes autos, significa uma dupla valoração do mesmo substrato de facto.

21. "Há um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de determinação volitiva, a par da manifesta homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal levam-nos a concluir pela unidade no crime de condução de veículo em estado de embriaguez" (neste sentido: o douto aresto proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 03-06-2016, no Processo n.º 810/15.4FPRT.P1);

22. Entende pois o recorrente, seguindo o entendimento do professor Figueiredo Dias, in "Direito Penal -Parte Geral", Tomo I, Coimbra Editora, 2007, pág. 1018/1019, que, decisivo para a determinação da unidade ou pluralidade de crimes é a "unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribuna!", e que na "apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto" desempenha papel fundamental o julgador, que não poderá ficar-se pela simples aplicação automática das normas sobre concurso de crimes, sobretudo das normas do artigo 30.º do CP.

23. Seguindo ainda o entendimento do professor Figueiredo Dias, dir-se-á que, se o facto global, apenas, preenche um tipo legal, será de presumir que estamos perante uma unidade de facto punível. Presunção que pode ser elidida se se mostrar que o mesmo tipo legal de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente.

24. O comportamento global do arguido, depois de ter sido fiscalizado e detido pelos agentes policiais por conduzir um veículo automóvel, na via pública, sob influência do álcool e de ter sido advertido de que não poderia conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes, preenche os tipos legais de desobediência e de condução de veículo em estado de embriaguez.

25. Mas esse comportamento do arguido deverá considerar-se dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, pois é patente que ele agiu movido pelo propósito de não acatar a proibição temporária de conduzir. A condução do veículo surge como o meio necessário de concretizar a desobediência e nesta se esgota a sua danosidade social.

26. Temos, então, um concurso aparente de crimes, pois o sentido de ilícito da desobediência surge como absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da condução automóvel sob influência do álcool, pelo que autonomizar o conteúdo de ilícito desta condução significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto.

27. Sujeitar o caso à incidência das regras da punição do concurso de crimes contidas no artigo 77.º do Código Penal afigura-se desproporcionado e politico-criminalmente desajustado.

28. Seria violar a proibição do principio ne bis in idem, constitucionalmente consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, que proíbe a punição de um mesmo arguido, duas vezes, pelo mesmo facto.

29. Neste sentido, versa ainda o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, adaptado de 11/11/2009, proferido no proc. n.º 516/09.3 PTPRT. P1, o qual pode ser consultado em www.dgsi.pt) entendendo que não poderia ser imputado novo crime de condução em estado de embriaguez, "até completa eliminação pelo organismo dos efeitos do álcool, convencionada pelo legislador em 12 horas, restando a imputação do crime de desobediência se o arguido for encontrado a conduzir durante tal período': em observância do "princípio consagrado no art.º 29.º n.º 5, da Constituição da República Portuguesa. É que, o acto (...) é único". O comportamento global do aqui arguido/Recorrente depois que foi fiscalizado pelos agentes policiais por conduzir o seu veículo automóvel na via pública sob influência do álcool e de ter sido advertido de que não poderia conduzir nas 12 horas imediatamente seguintes, preenche somente o tipo legal de desobediência e 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

30. Ao desacatar a ordem de inibição de condução que lhe foi emitida pelos Órgãos de Polícia Criminal e retomando a marcha em estado de embriaguez, o comportamento do arguido deverá considerar-se norteado somente por um único sentido de desvalor jurídico-social, o qual consiste no não acatamento da inibição da condução pelo período de 12 horas. A retoma da condução do veículo por parte do aqui Recorrente, surge apenas como meio necessário de concretizar a desobediência e nesta se esgota a sua danosidade social.

31. O sentido de ilícito de desobediência é que é absolutamente dominante, enquanto o sentido de ilícito da condução de veículo em estado de embriaguez assume carácter subsidiário.

32. Pelo exposto, subscrevendo integralmente o entendimento vertido no douto aresto supracitado, bem como, no douto aresto proferido pelo mesmo Tribunal da Relação, no Processo n.º 516/09.3PTPRT.Pl, datado de 11-11-2009, considera o aqui Arguido/ Recorrente, com o devido respeito, que mal andou o douto Tribunal "ad quo" ao condená-lo, pela prática de 2 (dois) crimes de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido no artigo 292.º, n.º 1, do C.P;

33. Assim, entende o arguido recorrente que deveria ter sido condenado apenas por 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal e por 1 (um) crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 348.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, 14.º, n.º 1, 26.º, 1 ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal.

34. Salvo o devido respeito, defende o aqui recorrente que a decisão aqui recorrida, ao decidir como decidiu, violou o disposto no artigo 29º n.º 2 da CRP, princípio ne bis in idem e, consequentemente, é manifestamente inconstitucional. Inconstitucionalidade essa que aqui se argui para todos os efeitos legais.

Por fim, defende o Recorrente que sujeitar os factos aqui em litígio e objeto do presente recurso, às regras da punição do concurso de crimes, previstas no artigo 77.º do Código Penal é manifestamente desproporcionado e politico-criminalmente desajustado.

37. Pelo que, salvo o devido respeito por entendimento contrário, cremos que ao decidir como decidiu, o douto Tribunal "a quo" incorre num manifesto erro de interpretação dos preceitos legais previstos nos artigos 292º nº 1, 14º nº 1, 30º nº 1, todos do CP, bem como, do artigo 29º n.º 2 da CRP - Princípio ne bis in idem, e, em consequência, deverá ser revogada e substituída por outra que condene o aqui Recorrente em apenas 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal em concurso efetivo com 1 (um) crime de desobediência qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 348.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª parte, e 30.º, n.º 1, do Código Penal, procedendo-se consequentemente a um novo cálculo da pena concretamente aplicável em cúmulo jurídico.

(...)

Corridos vistos, cumpre decidir.


***

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Síntese das questões a decidir:

- determinação do n.º de crimes de condução em estado de embriaguez; - espécie e medida das penas; - em caso de absolvição por algum dos crimes de condução em estado de embriaguez por que o arguido vem condenado, importa ainda daí retirar consequências no cúmulo jurídico das penas.

Questões a decidir em função da matéria de facto provada.

2. Resulta provado

No dia 19 de janeiro de 2019 pelas 02:21 horas, o arguido, que ingerira bebidas alcoólicas, conduzia o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula..., pela Avenida ...

Intercetado pela PSP e submetido ao teste de alcoolemia, através do aparelho DRAGER ALCOOTEST 7110MKIII, ACUSOU UMA TAXA DE ALCOOL NO SANGUE (TAS) DE 2,30 gr./l. a que corresponde a TAS de 2,18gr./l., depois de deduzido o erro máximo admissível.

Foi então o arguido notificado, pelas 3:25 horas desse mesmo dia, de que ficava impedido de exercer a condução pelo período de 12 horas, sob pena de incorrer em crime de desobediência qualificada (n.º 2 do art.º 154º do CE). E que o impedimento podia finalizar antes do termo desse período se, até lá, fosse por si requerido e efectuado novo exame que revelasse uma TAS inferior a 0,50 gr/l ou 0,20 gr/l (nos casos previstos no n.º 2 da notificação).

Ainda nesse mesmo dia 19-01-2019, pelas 05:05 horas, o arguido, que ingerira bebidas alcoólicas e fora notificado nos termos supra referidos e que não requerera nem efetuara novo exame, conduzia o já referido veículo ligeiro de mercadorias de matrícula 14-06-TL, pela Rua...

Intercetado pela PSP e submetido ao teste de alcoolemia, através do aparelho DRAGER ALCOOTEST 7110MKIII, ACUSOU UMA TAXA DE ALCOOL NO SANGUE (TAS) DE 1,65 gr./l., a que corresponde a TAS de 1,56 gr./l., depois de deduzido o erro máximo admissível.

(…)


***

3. Apreciação

A questão suscitada consiste, resumindo, em apurar se existe um único crime (subordinado a uma única resolução) de condução sob o efeito do álcool; - ou se existe concurso aparente entre o crime de desobediência qualificada e o crime de condução em estado de embriaguez praticado dentro das 12 horas posteriores à prática de um primeiro crime de condução em estado de embriaguez.

Estabelece o art.º 30.º do Código Penal:

1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.

A Lei 59/2007 de 04.09, deu ao n.º 3 do art.º 30.º a seguinte redação: O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa. Redação esta que coincidia com a aprovada na Comissão Revisora do C.P., em sessão de 08.02.1964 e que não tinha sido reproduzia na versão originária do C. Penal, por se entender ser desnecessário.

No entanto a Lei 40/2010 de 03.09, voltou a eliminar a expressão “salvo tratando-se da mesma pessoa” que havia sido aditada em 2007, consagrando, de novo, a redacção inicial, supra reproduzida.  

Como ensina EDUARDO CORREIA (Direito Criminal, II vol., 202) quando diversas condutas violam o mesmo tipo de crime, o número de crimes define-se pelo número de resoluções, sendo o critério temporal fundamental para se apurar se existiu uma ou mais resoluções a presidir aos vários actos.

O conceito de ação aceite pelo C.P. como critério para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções é o conceito normativo de acção também definido por Eduardo Correia: não um conceito naturalístico, mas antes o conceito teleológico, reportado aos valores jurídicos violados – cfr. Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, ed. de 1983, pp. 74 e 84.

Consagra-se não o conceito naturalístico da ação, mas o chamado critério teleológico, reportado aos valores violados, em que, para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, releva o número de tipos legais de crime efectivamente preenchido pela conduta do agente ou o número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime.

Existe concurso efectivo de crime nos casos de concurso real e de concurso ideal (homogéneo ou heterogéneo) de infracções.

O comando formulado no n.º 1 sofre, porém, duas importantes restrições: os casos do concurso aparente e de crime continuado.

No concurso aparente, apenas formalmente existe a violação de múltiplos preceitos incriminadores ou a violação múltipla do mesmo preceito. O concurso aparente de crimes constitui uma questão de qualificação jurídica e não fáctica, suscitando-se fundamentalmente quando uma única acção é susceptível de integrar mais que um tipo de crime que proteja, nuclearmente, o mesmo bem jurídico. A violação de vários preceitos é apenas aparente e não real ou efectiva, na medida em que, formalmente são violados vários preceitos mas, numa interpretação criteriosa dos preceitos legais concorrentes, apenas uma delas tem cabimento, por, de uma forma completa, redonda, esgotar toda a ilicitude do facto/acção. A mesma ação está prevista em dois tipos distintos de crime, sendo que um deles abrange, de forma completa, “todos” os elementos do crime concorrente ou apenas lhe acrescenta um grau “superior” de ilicitude. Daí que, punindo o mais, engloba/consome o menos que ali está contido.

Os casos típicos de concurso aparente são aqueles em que existe uma relação de especialidade ou de consumpção entre os tipos de crime concorrentes, susceptíveis de, em abstracto, serem preenchidos pela acção, em que a infracção mais grave “consome” a menos grave ou reproduz, teleologicamente, todos os elementos da menos grave, como numa relação de dois círculos concêntricos em que o círculo de raio menor fica totalmente abrangido dentro do círculo maior.

O concurso aparente fica, porém, afastado quando a disposição legal violada protege bens jurídicos eminentemente pessoais, como a vida, a honra, a integridade física, que não se podem desligar da personalidade e apenas podem ser violados na pessoa que os cria com o só existir – cfr. EDUARDO CORREIA, Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, ed. de 1983, p. 123. Em tal caso, os tipos legais desdobram-se em tantos outros quantos os possíveis indivíduos aos quais se estende a protecção da lei – EDUARDO CORREIA, Unidade e Pluralidade, cit., p. 123.


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No caso, a construção efectuada na motivação do recurso tem como fundamento o pressuposto da existência de duas atuações sob o domínio de única resolução criminosa a presidir aos dois atos, consecutivos (com menos se 12 horas de intervalo) de condução em estado de embriaguez.

No entanto o pressuposto da única resolução a presidir às duas atuações, não se verifica, em concreto. Com efeito, houve um primeiro ato de condução que cessou com a intervenção da PSP que pôs termo à atuação quando fez parar o condutor e o submeteu a exame para pesquisa de álcool. E houve uma segunda atuação, necessariamente sob uma segunda resolução, por já ocorrida “depois” de o arguido ter sido interceptado, autuado e solenemente advertido de que não podia conduzir nas 12 horas subsequentes (no estado evidenciado pelo teste de alcoolemia), sob pena de incorrer, aliás, em crime de desobediência.  

Se, depois de realizado o teste de alcoolemia e autuado por conduzir em estado de embriaguez, notificado ainda de que não podia conduzir nas próximas 12 horas, o arguido iniciou novo ato de condução, é óbvio que teve que tomar uma nova resolução - não pode ter sido de outra forma, face à solene advertência de que se o fizesse incorrida em crime de desobediência.

Não pode assim afirmar-se que o arguido praticou um único crime de condução sob o efeito do álcool com fundamento na existência de uma única resolução.

Permanece todavia a questão se saber se existe concurso aparente entre o crime de desobediência e o segundo crime de condução em estado de embriaguez praticado no período de 12 horas depois da realização do teste que determinou a condenação pelo primeiro crime.

Tendo o arguido sido condenado em crime de desobediência qualificada, por ter sido encontrado (de novo) a conduzir nas 12 horas subsequentes à primeira autuação, a questão é saber se o crime de desobediência qualificada engloba já em si a condução no estado de alcoolemia. O mesmo é dizer se o segundo ato de condução sob o efeito do álcool é já censurado pelo específico crime de desobediência cominado para o efeito. O mesmo é dizer se toda a ilicitude é “consumida” pela punição da desobediência - agravada.

Ora, se o arguido foi notificado de que não podia conduzir nas 12 horas seguintes sob pena de, se o fizesse, incorrer no crime de desobediência qualificado, o estado de alcoolemia, pré-existente á notificação, não poderá deixar de ser considerado como contido na punição do novo crime. Porque este crime, específico, de desobediência – qualificada - prevê, precisamente, a condução sob o efeito do álcool, nas 12 horas seguintes à realização do teste com resultado positivo.

Caso a condução no estado de alcoolemia integre já, como elemento material, o crime de desobediência qualificada, não poderá o arguido ser punido – de novo – por crime de condução sob o efeito do álcool. Englobando o crime de desobediência qualificada o estado de alcoolemia que determinou a notificação para não o fazer sob pena de incorrer naquele crime, existirá uma relação de especialidade em que a “mera” condução em estado de embriaguez já é sancionada pela desobediência à ordem para não o fazer naquele estado.


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O artigo 154° do Código da Estrada estabelece:

Impedimento de conduzir

1 - Quem apresentar resultado positivo no exame previsto no n.º 1 do artigo anterior ou recusar ou não puder submeter-se a tal exame, fica impedido de conduzir pelo período de doze horas, a menos que comprove, antes de decorrido esse período, que não está influenciado pelo álcool, através de exame por si requerido.

2 - Quem conduzir com inobservância do impedimento referido no número anterior é punido por crime de desobediência qualificada.

3 - O agente de autoridade notifica o condutor ou a pessoa que se propuser iniciar a condução nas circunstâncias previstas no n.º 1 de que fica impedido de conduzir durante o período estabelecido no mesmo número, sob pena de crime de desobediência qualificada.

Pela remissão dos nºs 1, 2 e 3 do artigo 154º para o preenchimento do crime de desobediência qualificada resulta que a desobediência à notificação (nºs 2 e 3) de que fica impedido de conduzir pelo período de doze horas (nº 1) contém a censura do ato de conduzir, depois de “apresentar resultado positivo no exame” de pesquisa de álcool no sangue. Além da desobediência à expressa notificação da autoridade que procedeu ao exame efectuada nos ternos do nº 3.

Sanciona o prévio “resultado positivo no exame” e que a condução seja exercida no período de 12 h. subsequente à realização do teste.

Por isso, aliás, é que o crime de desobediência é qualificado – pela soma da desobediência e da condução no estado de alcoolemia previamente identificado.

Sendo certo, ainda, que a MOLDURA ABSTRATA da pena aplicável ao crime de desobediência qualificada (nº 2 do art.º 348º CP) é superior – o dobro – da aplicável ao crime de condução em estado de embriaguez. O que evidencia que o tipo de crime tutela, simultaneamente, a segurança da condução rodoviária inerente à proibição da condução em estado de embriaguez qualificado pela desobediência à ordem, específica, para não o fazer.

A desobediência contém já dentro da sua esfera de protecção a punição do estado de alcoolemia previamente revelado, dentro das 12 horas subsequentes, além da desobediência á notificação para não o fazer sob pena de incorrer naquele crime específico.

 Conclui-se assim, ainda que com fundamentação parcialmente diverso, que existe concurso aparente, por especialidade/consumpção, entre o crime de desobediência qualificada e o crime de condução no estado de alcoolemia revelado pelo teste previamente efectuado, dentro das 12 horas subsequentes.

Daí que o arguido apenas poderá ser punido pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez (o primeiro), em concurso real, efectivo, com o crime de desobediência qualificado - à notificação para não conduzir nas 12 horas subsequentes à realização do teste de alcoolemia, sob pene de incorrer na prática deste crime. Sob pena de dupla punição do mesmo desvalor jurídico-penal, proibida pelo princípio ne bis in iden consagrado no art. 29º, nº5 d CRP


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(...)

III- DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos decide-se:

- Julgar o recurso parcialmente procedente, absolvendo o arguido do segundo crime de condução em estado de embriaguez (o de 19-01-2019 pelas 05:05 horas), p. e p. pelo artigo 292.°, n.º 1 e pelo artigo 69.°, n.º 1, alínea a) do Código Penal; ----

- Reformular o cúmulo jurídico, condenando o arguido – pela prática dos dois crimes subsistentes supra referenciados, na pena única de 7 (sete) meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 12 (doze) meses. ---

- Manter a suspensão da execução da pena principal de prisão, agora pelo período de 1 (um) ano, acompanhada de regime de prova. ---

Sem tributação (provimento parcial)

Coimbra, 16 de Outubro de 2019

Belmiro Andrade (relator)

Luís Ramos (adjunto)