Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1341/16.0T9CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: FALSIDADE DE TESTEMUNHO;
MOMENTO EM QUE A TESTEMUNHA FALTOU À VERDADE
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J L CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 360.º DO CP
Sumário:
I – A falsidade de declaração a que se reporta o artigo 360.º do CP corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, de acordo com a conceção subjectivista que seguimos, pelo que a circunstância de o tribunal de julgamento nada ter apurado sobre a verdade do facto objeto da declaração, ou seja, se a compra de produto estupefaciente aos três arguidos no processo anterior teve ou não lugar, não impede que a conduta do ora arguido possa ter preenchido os elementos objectivos e subjetivos do crime de falsidade de testemunho previsto no artigo 360.º do CP, contrariamente ao que sucederia na conceção objetiva de declaração falsa.
II – Assim, caso se imponha concluir, perante declarações claramente contraditórias entre si, em que uma delas exclui necessariamente a outra, que o agente declarou com falsidade, é igualmente irrelevante que não se apure em que momento a testemunha faltou à verdade, pois o seu comportamento como declarante no processo deve ser perspectivado na sua globalidade, pelo que “essa falta de fidelidade à verdade traduzida num desvio da declaração em relação à realidade apreendida pelo próprio declarante e descortinada através de uma visão integrada de toda a sua conduta processual, é por si só suficiente para implicar a prática de um ilícito-típico objectivo de falsidade de depoimento” – cfr Nuno Brandão, Inverdades e consequências: considerações em favor de uma conceção subjectiva da falsidade de testemunho. Anotação aos acórdãos da Relação do Porto de 30.01.2008 e da Relação de Guimarães de 29.06.2009 in RPCC 2010, 3, p. 477 e segs. (pág. 503).
III – Quando subsista dúvida sobre o exacto momento em que o agente faltou à verdade e essa dúvida tenha relevo penal ou processual penal, v.g. para efeitos de prescrição ou da agravação prevista no n.º 3 do art.º 360.º do CP, tal dúvida não pode deixar de ser valorada a favor do arguido em obediência ao princípio in dubio pro reo.
IV – A exigência de que a verdade histórica objectiva tivesse de ser apurada e, por isso, devesse constar já da acusação, parece-nos excessiva, atentando em que, além do mais, essa mesma verdade consubstancia matéria do âmbito do processo em que depôs, e não, propriamente, do objecto agora em julgamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I. Relatório.
1.1. No âmbito dos autos supra epigrafados, realizado o contraditório, o arguido AA, entretanto já melhor identificado, acabou condenado, isto tal como, aliás, se mostrava acusado pelo Ministério Público, da autoria material de um crime de falsidade de testemunho agravado, p.p.p. art.º 360.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, na pena de quatrocentos (400) dias de multa, à razão de cinco euros (€ 5,00) dia, ou seja, num total de dois mil euros (€ 2.000,00) de multa.
Precavendo a possibilidade de verificação da hipótese do art.º 49.º, n.º 1, do mesmo Código Penal, consignou-se ainda que cumprirá, então, duzentos e sessenta e seis (266) dias de prisão subsidiária.
1.2. Porque inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs recurso para este Tribunal da Relação, extraindo da correspondente motivação as seguintes conclusões e pedido (transcrição parcial):
«(...)
v) A sentença recorrida apenas dá como provado que, em dias diferentes e perante órgãos distintos, o arguido prestou depoimentos parcialmente diversos ou contrários. Não descreve qual o acontecimento real que o arguido alterou, e que tinha consciência de estar a alterar, nem em que momento o fez.
vi) Sem essa demonstração não podia o arguido ter sido condenado pela prática de um crime de falsidade de testemunho agravado p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
vii) Como decorre do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 29.06.2009, no âmbito do processo n.º 840/08.2TABRG.G1: “I. Não basta para a condenação por crime de falsas declarações que se prove que a testemunha, em dois momentos distintos, fez depoimentos contraditórios que mutuamente se excluem.
II. É necessário que se demonstre que houve desconformidade entre a palavra (ou palavras) e a verdadeira história e que, no momento em que o prestou, a testemunha sabia que afirmava como verdadeiro um facto inexistente.”
viii) Para apurar a existência ou não de falso testemunho há que considerar duas teorias: uma objectiva – de acordo com a qual se considera que há falso testemunho quando o que foi dito não corresponde ao efectivamente sucedido; - outra subjectiva – para esta teoria há falsidade de testemunho quando não há correspondência com o que a testemunha percebeu, privilegiando, por isso, a percepção que o arguido teve dos factos.
ix) De acordo com o que entende Medina de Seiça, in Comentário Conimbricense pág. 477, o depoimento prestado é falso se a testemunha relata de modo díspar o acontecimento dos factos que o Tribunal vem a dar como provado. Isto é, será falso o depoimento da testemunha que conhecia a realidade tal como o Tribunal a dá como provada, mas apesar disso, e intencionalmente, a deturpou.
x) No caso dos autos, nem a acusação referia qual a realidade dos factos que acabou por ser dada por provada; nem em sede de audiência de julgamento ficou demonstrado qual era essa realidade que supostamente o arguido teria deturpado, nem em que momento, ou melhor, em qual dos seus depoimentos, o fez. Pelo que não houve, nem podia ter havido qualquer confronto dos depoimentos prestados pelo arguido com a realidade objectiva.
xi) O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães já citado dispõe a este respeito que: “A verdade que se busca para determinação do elemento típico do crime de falso testemunho não é a verdade formal, mas sim a que corresponde a um dado acontecimento histórico conhecido de quem depõe e que é intencionalmente negado, ou do conhecimento de um facto inexistente que intencionalmente se afirma como verdadeiro.”
xii) E termina a mesma decisão afirmando que: “em qualquer situação (adira-se à teoria objectiva ou à subjectiva da falsidade, tanto importa), é sempre imperioso que se demonstre o contrário daquilo que foi declarado (de uma ou de todas as versões) e, mais que isso, que se alegue e demonstre que a testemunha, agindo intencionalmente, conhecia o contrário daquilo que declarou. No caso, nada disto resulta sequer indiciado, pelo que o arguido deve ser absolvido.”
xiii) Da prova produzida nos autos, quer do depoimento da testemunha T1 que, de acordo com a acta de audiência de julgamento, se encontra gravado na plataforma Habilus através do programa WMA – Windows Media Áudio (inicio:13h:02m; fim:13h:10m), quer dos documentos indicados pelo Tribunal como base à formação da sua convicção de fls. 2 a 11, fls. 101 a 114, fls. 200/1 e fls. 182 a 192, bem como ainda em presunções naturais, não decorre qual a verdade dos factos. O que impunha decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo.
xiv) Não podiam ter sido dado como provados os pontos 23 e 24.
xv) Não constando da acusação, nem tendo sido produzida qualquer prova (tanto mais que tal não foi dado como provado) que permita afirmar qual o acontecimento verdadeiro que o arguido, enquanto testemunha naquele outro processo, deturpou com consciência de que o fazia, não é possível condenar o arguido pela prática do crime de falsidade de testemunho (p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do CP). Pois, de outro modo, viola o Tribunal o disposto no artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
xvi) Impõe-se, antes, a sua absolvição, o que deve ter lugar por revogação da sentença recorrida e substituição por outra que absolva o arguido da prática do crime de que vinha acusado.
xvii) E mesmo que assim não se entendesse, o que apenas por cautela de patrocínio e de raciocínio se equaciona, nunca deveria o Tribunal a quo ter condenado o arguido pelo crime de falsidade de testemunho agravado (art.º 360.º, n.ºs 1 e 3 do CP), mas apenas pelo crime de falsidade de testemunho simples (art.º 360.º, n.º 1 do CP).
xviii) Com efeito, da factualidade dada como provada, ou da fundamentação da sentença de que ora se recorre, não é possível extrair qual dos depoimentos prestados pelo arguido é que o Tribunal considerou como falso, já que, em momento algum o Tribunal refere qual das versões dos factos relatadas pela testemunha, aqui arguido, se verifica corresponder à verdade e qual delas, ao invés, é falsa.
xix) Não resulta de qualquer das provas existentes nos autos, e produzidas em sede de audiência de julgamento, que tenha sido o depoimento prestado perante o Tribunal aquele em que o arguido, como testemunha, tivesse falado com falsidade. Mais a mais, quando, conforme dito supra, nem sequer se disse qual era afinal a realidade dos factos, e se confrontou essa verdade com os depoimentos prestados pelo arguido.
xx) Por isso, ao considerar que as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de julgamento são falsas, sem afirmar quais os factos objectivos e concretos donde emerge tal afirmação, limita-se o Tribunal a quo a proferir uma conclusão, um juízo de valor desacompanhado das provas e fundamentos donde aquela se pudesse extrair.
xxi) Isto importa, desde logo, para a tipificação legal do crime de que o arguido vinha acusado e pelo qual foi condenado, como explanado supra, mas também no que respeita à condenação em crime de falsidade de testemunho agravado, considerando a circunstância agravante do n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal. E, consequentemente, importa também para efeitos de determinação da pena aplicada.
xxii) Para que se possa imputar ao arguido o crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º, n.º 1 do Código Penal, exige-se que a prestação de depoimento falso por parte da testemunha perante Tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova o seu depoimento; e que o agente tenha conhecimento de que o seu depoimento é falso e ainda assim tenha intenção de o prestar.
A pena prevista para este tipo legal de crime é de prisão de 6 meses a 3 anos ou de multa não inferior a 60 dias.
xxiii) Já o crime de falsidade de testemunho agravado, p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, além daqueles elementos constitutivos do tipo legal de crime, exige ainda que o agente tenha prestado depoimento falso após ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe. E aqui a moldura penal é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias.
xxiv) Não existindo na sentença recorrida qualquer prova ou fundamentação para que seja considerado que foi em sede de audiência de julgamento, único momento processual em que o arguido prestou juramento como se viu, que o arguido prestou depoimento falso, deve ser aplicada ao arguido a norma que lhe é mais favorável: o n.º 1 do artigo 360.º do Código Penal.
xxv) Pelo que, não podia o Tribunal ter condenado o arguido pela prática de um crime de falsidade de testemunho agravado, p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, mas apenas pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal (cujo limite máximo da pena de multa a aplicar se encontra fixado em termos gerais no artigo 47.º do Código Penal e se cifra em 360 dias).
xxvi) Neste sentido decidiu já, aliás, o Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão proferido em 30.10.2013, no âmbito do processo n.º 802/11.2TAPBL.C1.
xxvii) Importa então considerar o artigo 47.º do Código Penal que determina que, em regra, a pena de multa tem como limite mínimo 10 dias e limite máximo 360 dias. E, nessa sequência, a pena aplicada ao arguido deveria ter-se situado algures entre o mínimo fixado no artigo 360.º, n.º 1 do CP (60 dias) e o limite máximo de 360 dias.
xxviii) Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os artigos 360.º e 47.º, ambos do Código Penal devendo a sentença de que ora se recorre ser revogada, e substituída por outra que apenas condene o arguido pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal, diminuindo em conformidade a pena aplicada.
Sem prescindir,
xxix) Não pode o arguido concordar nem conformar-se com a pena que lhe foi aplicada, pois a mesma revela-se excessiva, desproporcional e desmedida, em total desrespeito e violação das normas que determinam a escolha e medida da pena, ínsitas nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal.
xxx) A moldura penal prevista para o crime pelo qual o arguido foi condenado encontra-se limitada a 600 dias de multa, tendo o arguido sido condenado na pena de multa fixada em 400 dias, à razão de € 5,00/dia.
xxxi) O arguido não tem antecedentes criminais pela prática de crime de igual natureza, e como o próprio Tribunal a quo admite, à prática deste tipo de ilícito anda frequentemente associado o receio de represálias – o que também foi corroborado pela testemunha inquirida. Pelo que não podemos concordar que a intensidade do dolo é elevada, como se lê na sentença recorrida.
Acresce que o arguido depende economicamente da sua mãe, já que não tem trabalho.
xxxii) Pelo que não se percebe, nem se pode aceitar que o arguido tenha sido condenado em pena superior a metade do limite máximo de dias fixado na norma legal acima mencionada.
xxxiii) O artigo 40.º do Código Penal determina que a pena visa a protecção de bens jurídicos mas também a reintegração do agente na sociedade e que, em caso algum, a pena aplicada pode ultrapassar a medida da culpa. As penas têm, pois, uma dupla finalidade: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Mas tal desiderato deve ser sempre limitado pelo princípio da estrita necessidade da reacção sancionatória à medida da culpa.
xxxiv) Como nos ensina FIGUEIREDO DIAS a este respeito (in Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Coimbra Editora, 2.ª Reimpressão, 2009, p. 84):
“(...) O art.º 18.º-2 da CRP, por seu lado, deve porventura reputar-se o preceito político criminalmente mais relevante de todo o texto constitucional: vinculando a uma estreita analogia material entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídico-penais, e subordinando toda a intervenção penal a um estrito princípio de necessidade, ele obriga, por um lado, a toda a descriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalização dispensável, o que vale por dizer que não impõe, em via de princípio, qualquer criminalização em função exclusiva de um certo bem jurídico; e sugere, ainda por outro lado, que só razões de prevenção geral de integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais. Este pensamento básico sobre a essência, o fundamento e o sentido de tais reacções é, porém, completado em outras duas vertentes: na necessária intervenção do princípio da culpa, como consequência da exigência incondicional de defesa da dignidade da pessoa humana que ressalta dos art.ºs 13.º-1 e 25.º-1 da CRP; e no reconhecimento do princípio da socialidade que resulta, com suficiente clareza, do modelo do Estado de Direito social sem o qual a CRP não pode ser compreendida. (...)”.
xxxv) Por outro lado, no que respeita à determinação da medida da pena, o Tribunal deve atentar no que dispõe o artigo 71.º do Código Penal. Pelo que, e no caso concreto, o Tribunal a quo deveria ter atendido ao grau de ilicitude do facto e ao modo de execução deste, à intensidade do dolo, não olvidando que, como o próprio Tribunal admite, à prática deste tipo de ilícito criminal está associado o temor de sofrer represálias; a situação económica do arguido e condições pessoais como sejam a ausência de rendimentos, e a certamente idade avançada da sua mãe.
xxxvi) A pena aplicada deve ainda obedecer ao princípio basilar que se funda na necessidade, adequação, razoabilidade, e proporcionalidade. Em consonância com estes critérios, as penas aplicadas devem ser necessárias para satisfazer as exigências de prevenção, não devendo nunca ser fixada uma pena excessiva e que ultrapasse o limite do razoável e do adequado.
xxxvii) Não sendo razoável nem proporcional a pena aplicada pelo Tribunal a quo, violando o preceituado no artigo 18.º da CRP quanto à necessidade, adequação e proporcionalidade da pena, deve a pena ser diminuída em conformidade com as citadas normas legais.
(...)».
1.3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 242.
1.4. Notificado ao efeito, o Ministério Público respondeu (a fls. 244/247), concluindo pelo improvimento global da impugnação e, consequentemente, pela manutenção in totum da sentença recorrida, isto alicerçado na seguinte síntese de razões:
1.ª Inexiste qualquer erro de julgamento na apreciação da prova produzida em julgamento;
2.ª Nunca ficou o tribunal em estado de dúvida razoável que pudesse fazer funcionar o princípio «in dúbio pro reo»;
3.ª Inexistem vícios do artigo 410.º/2 do CPP;
4.ª A circunstância de não se ter provado o momento em que o agente, então na qualidade de testemunha, faltou à verdade – no âmbito do inquérito ou no decurso de audiência de julgamento – não impede a conclusão de a prestação de depoimentos divergentes nas duas fases processuais referidas integrar, ainda assim, todos os elementos do tipo de crime previsto no artigo 360.º, n.º 1, do CP (falsidade de testemunho);
5.ª A dosimetria da pena da multa foi adequada;
6.ª Foi justa e adequadamente condenado o arguido pela prática do crime constante da acusação pública.
1.5. Observadas as formalidades devidas, foram os autos remetidos para este Tribunal da Relação, onde, aquando do momento previsto pelo art.º 416.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunta emitiu parecer (a fls. 251/254) conducente ao improvimento do recurso.
1.6. No âmbito do subsequente art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
1.7. Porque não vinha requerida a realização de audiência e também nenhum fundamento obstava ao prosseguimento do recurso, ordenou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, e sua submissão a conferência.
É dos trabalhos desta que emerge a presente apreciação e decisão.
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II. Fundamentação.
2.1. Antecedendo a delimitação do objecto do recurso e seu respectivo conhecimento, vejamos a Fundamentação de facto da decisão recorrida. Escreveu-se, a propósito:
«A. OS FACTOS.
A audiência de julgamento realizou-se com observância de todo o formalismo legal, Cfr. acta respectiva. dela resultando os seguintes
factos provados:
1. No dia 1 de Outubro de 2013, no âmbito do processo n.º 38/13.8JACBR, que correu termos nos serviços do DIAP de Coimbra, ainda em fase de inquérito e no qual era arguida ---, o arguido foi ouvido como testemunha perante a Polícia Judiciária.
2. Antes de prestar declarações, o arguido foi advertido do dever de responder com verdade às questões que lhe fossem feitas, nos termos do artigo 132.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, tendo ficado ciente dessa obrigação.
3. Questionado declarou, em suma, que o número 9------ é o seu número há dez anos.
4. Disse que foi consumidor de drogas pesadas durante cerca mais de 20 anos, sendo que, naquela data, o fazia apenas pontualmente.
5. Confrontado com as fotografias constantes de fls. 27, 28, 60 e 61, admitiu ser uma das pessoas retratadas a entrar no n.º ------, local onde ia adquirir a droga. Não obstante, diz não saber identificar as pessoas a quem o fez.
6. Mais disse que, relativamente às sessões transcritas nos autos, nomeadamente a sessão 5879 e 1169 do alvo 56543M (número 9---, utilizado por CC) não se recordava de as ter efectuado, embora se recorde de ter efectuado uns serviços de mecânica para o referido rapaz.
7. Declarou que costumava comprar cocaína, em dentes, pagando por cada um dez euros.
8. Por fim, referiu que se deslocou àquela morada supra mencionada, para comprar droga, pagando por cada um dez euros.
9. Todavia, a 14 de Março de 2014, o arguido foi ouvido, no âmbito do mesmo processo, em audiência de discussão e julgamento, tendo prestado declarações em sentido contrário àquelas a que se fez referência supra.
10. Após ser identificado, e antes de prestar declarações sobre os factos, o arguido foi advertido pelo Meritíssimo Juiz do dever de responder com verdade às questões que lhe fossem feitas sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, tendo ficado ciente.
11. De seguida, o arguido jurou pela sua honra que iria responder com verdade.
12. Contudo, mais à frente na sua inquirição, foi questionado pelo Senhor Procurador da República se então conhecia CC, tendo o arguido declarado “Sim”.
13. Questionado porquê o conhece, o mesmo disse: “Eu conheço-o porque eu costumo frequentar ali um espaço que é o ---, costumo lá ir almoçar e jantar e a pessoa sabia que eu era mecânico, não sei como, que a cidade também não é grande não é e pediu-me para lhe fazer um trabalho e eu fiz. Um ou dois, acho que foi um só, um apoio de uma caixa”.
14. Questionado se é só por isso que o conhece, o mesmo disse: “Exactamente”.
15. Foi-lhe ainda perguntado se continuava a ser titular do telemóvel 9--…, o mesmo disse: “Sou.”
- “…-?”, o mesmo disse: “Há vinte anos, sou.”
16. Ao ser-lhe perguntado qual o motivo de ir tantas vezes ao ---, o mesmo disse: “Ia ao --- porque ele também se calhar não tinha tempo e eu também não e combinámos uma série de vezes arranjar-lhe o carro e chegou uma altura que consegui arranjar”.
17. Mais à frente no seu depoimento, foi perguntado ao arguido se ele se reconhecia nas fotografias, tendo ele dito: “Reconheço”.
18. Ao ser questionado sobre o que estava lá a fazer neste sitio onde entrou e saiu, o arguido disse: “…eu fui lá falar com o senhor CC para lhe arranjar o carro”.
19. Mais à frente no seu discurso foi-lhe perguntado se nunca lá foi àquele local comprar droga, ao que o mesmo disse: “Não, não”.
20. Questionado se não o tinha feito a ninguém, o mesmo disse: “A ninguém.”
21. Questionado se tinha a certeza disso, o arguido disse: ”Absoluta”.
22. O arguido manteve esta negação de ter adquirido produto estupefaciente no --- e ao dito CC em todo o depoimento prestado nessa sede de audiência de discussão e julgamento.
23. Ao prestar os depoimentos referidos, de sentido contrário e antagónico, sabia o arguido que em audiência prestava declarações falsas, não obstante estar ciente que estava legalmente obrigado a prestar declarações verdadeiras, encontrando-se sob juramento, tendo sido advertido para o efeito.
24. Ao actuar da forma descrita perante o Tribunal e perante órgão de polícia criminal após ter sido advertido das consequências em que incorria se faltasse à verdade, o arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Elementos pessoais do arguido:
25. Acha-se sem ocupação laboral; vive só, em casa da mãe e a expensas desta;
26. Foi condenado, a 03.11.1997, pela prática, em 1986, de um crime de burla agravada, em três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos – extinta nos termos do art.º 57.º do CP;
a 19.06.2001, pela prática, a 25.05.2001, de um crime de desobediência, em quatro meses de prisão, substituída por igual período de multa – extinta pelo pagamento;
a 06.06.2002, pela prática, a 06.10.2000, de um crime de desobediência qualificada, em 120 dias de multa;
a 27.05.2008, pela prática, a 31.12.2006, de um crime de falsificação de documento, em quinze meses de prisão, substituída por 450 horas de PTFC – extinta pelo cumprimento;
a 13.07.2010, pela prática, a 30.01.2009, de um crime de furto simples, em 180 dias de multa – extinta pelo pagamento;
a 06.04.2011, pela prática, a 27.11.2009, de um crime de ameaça simples, em 100 dias de multa – extinta pelo pagamento;
a 22.11.2012, pela prática, a 28.10.2009, de um crime de dano simples e de um crime de ofensa à integridade física simples, em 200 dias de multa (pena única) – substituída por prestação de trabalho;
a 06.01.2015, pela prática, a 12.09.2013, de um crime de furto simples, em 5 meses de prisão, suspensa pelo período de um ano, condicionalmente;
a 08.06.2015, pela prática, a 21.10.2014, de um crime de desobediência simples, em 110 dias de multa e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 10 meses – extinta a pena acessória pelo cumprimento;
a 31.07.2015, pela prática, a 18.07.2015, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em 5 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses;
a 24.08.2015, pela prática, a 21.08.2015, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em 110 dias de multa e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 meses;
a 18.12.2015, pela prática, a 11.12.2015, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em 90 dias de multa, substituída por trabalho, e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses;
a 16.03.2016, pela prática, a 29.02.2016, de um crime de desobediência simples e de um crime de violação de proibição, em 18 meses de prisão, substituída por 480 horas de PTFC (pena única);
a 21.09.2016, pela prática, a 23.05.2014, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em 6 meses de prisão, substituída por 180 horas de PTFC, e proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 meses;
a 30.09.2016, pela prática, a 05.07.2015, de um crime de furto simples, em prisão por dias livres, fixada em 12 períodos de 48 horas.
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factos não provados:
Inexistem.
*
B. A CONVICÇÃO.
Convicção do tribunal:
Foram determinantes para a fundamentar:
Factos 1.º a 22.º: O depoimento da testemunha, T1, Inspectora da Polícia Judiciária – que confirmou a audição efectuada ao arguido, enquanto testemunha, no inquérito, precisando que ele estava pouco à vontade a prestar declarações e que, no final, leu o teor do auto respectivo e assinou-o –, que encontra suporte sólido e incontornável no teor dos docs. de fls. 2 a 11 (certidão relativa ao Processo Comum Colectivo n.º 38/13.8JACBR, da então Instância Central de Coimbra, Secção Criminal, J3, de onde constam o auto de inquirição como testemunha no inquérito e a acta da audiência de julgamento) e 101 a 114 (transcrição da gravação do depoimento concernente), que confirmam, na parte respectiva, toda essa factualidade dada por assente, prova essa, consistente e sólida, que não foi objecto de refutação, nem por parte do arguido, quem nem se dignou comparecer em audiência de julgamento;
23.º e 24.º: Presunção natural – atenta a idade do arguido, experiência vivencial e criminal respectiva, experiência de vida e da normalidade das coisas;
25.º: O teor do doc. de fls. 200/1 (relatório da PSP, referente à situação vivencial e económica do arguido) que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se considerou atendível;
26.º: O teor do doc. de fls. 182 a 192 (CRC do arguido, de onde resultam os elementos especificados).»
2.2. Delimitação do objecto do recurso.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e delimita através das conclusões formuladas na motivação apresentada (art.º 412.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, tal como transposto nas conclusões apresentadas, e porque não intercede fundamento conducente a qualquer intervenção oficiosa, as questões decidendas consistem em apurarmos i) se a prática do crime de falsidade de testemunho não se basta com a mera prova de que a testemunha, em dois momentos distintos, fez depoimentos contraditórios que mutuamente se excluem, antes reclama como necessária a comprovação de que existiu desconformidade entre a palavra (ou palavras) e a verdadeira história e que, no momento em que o prestou, a testemunha sabia que afirmava como verdadeiro um facto inexistente, primeira hipótese exactamente a verificada in casu e donde se devam ter por não provados os factos assim considerados sob os n.ºs 23. e 24 e, consequentemente, absolvido o arguido; ii) se a subsistir o dever de condenação do arguido, sempre a mesma deve ser sob a forma simples do ilícito, que não a agravada, como sucedeu, pois que da factualidade dada como provada, ou da fundamentação da sentença de que ora se recorre, não é possível extrair qual dos depoimentos prestados pelo arguido é que o Tribunal considerou como falso, já que, em momento algum refere qual das versões dos factos relatadas pela testemunha, aqui arguido, se verifica corresponder à verdade e qual delas, ao invés, é falsa; iii) se concedendo a manutenção da condenação do recorrente, sempre a pena aplicada o foi em medida excessiva e que, por isso, deve ser reduzida.
2.3. A delimitação da primeira das questões nos termos sobreditos, reclama uma breve consideração.
Constitui regra geral de apreciação a ponderação da questão de facto antecedentemente à apreciação da questão de direito. In casu, sucede porém que a ponderação das provas, mais do que uma sua ponderação indevida, decorre igualmente de um juízo valorativo (efectuado sobre as mesmas) previamente contaminado por uma determinada interpretação das normas jurídicas aplicáveis, interpretação que, sabemos, deve então considerar todas as soluções jurídicas possíveis e de conhecimento viável.
Com efeito, o que o recorrente começa por controverter são factos atinentes ao elemento subjectivo da infracção em causa, e em cujo âmbito releva a conhecida lição de Castanheira Neves (desenvolvida em “Metodologia da Ciência do Direito, Questão de Facto, Questão de Direito”) no sentido de que o puro facto e o puro direito inexistem na ordem jurídica e de que “uma questão de facto é sempre uma questão de facto de uma certa questão de direito e uma questão de direito é sempre uma questão de direito de uma certa questão de facto”. Deste insolúvel círculo lógico resulta que, no presente caso, a detecção do erro na apreciação da prova implicaria a prévia apreciação do direito do caso. Os enunciados fácticos referentes ao dolo surgem na sentença como provados na decorrência de um juízo conclusivo retirado de determinada interpretação do direito e não, como sucede comummente, numa estrita sequência normal e lógica dos factos (provados) do tipo objectivo. Ou seja, na leitura natural e em consequência normal e lógica de determinada conduta exteriorizada no sentido de dolosa – cfr. Ac. TRE in processo n.º 54/14.2TAVRS.E1, sendo relatora a Exma. Desembargadora Ana Barata Brito, acedido em www.dgsi.pt/jtre.
Por isto o tratamento conjunto de ambas, já que as duas questões se entrecruzam no “insolúvel círculo lógico” de que fala Castanheira Neves.
Urge começar, assim, pela caracterização do crime de falsidade de testemunho, previsto no art.º 360.º do Código Penal. Porque contendo uma resenha dos dados actuais do entendimento da questão que hoje prevalece nos nossos Tribunais, iremos acompanhar o constante do Ac. TRE, prolatado pelo Exmo. Desembargador Carlos Berguete, in processo n.º 40/10.1TAFAL.E1, acessível em www.dgsi.pt/jtre, no qual exarou:
Sempre tal ilícito foi considerado como sendo um crime de perigo, prevenindo em especial o interesse do Estado na boa administração da justiça, através de decisões judiciais correctas, havendo estas, inegavelmente, de resultar da colaboração dos intervenientes processuais no tocante ao conhecimento dos factos de que disponham.

Já Leal-Henriques e Simas Santos referiam em “Código Penal”, 2.º volume, Rei dos Livros, 2.ª edição, pág. 1134, citando Nélson Hungria, em anotação ao preceito, que «Entre os meios de prova ou elementos de convicção para a averiguação de facto juridicamente relevante (…) está o testemunho, isto é, informação prestada, perante quem de direito, acerca de tal facto ou de qualquer das suas circunstâncias integrantes, por pessoa que tenha conhecimento a respeito. Muitas vezes, é mesmo o testemunho o único meio probatório que se apresenta in concreto, isto é, a ulterior decisão pela autoridade competente fica adstrita, frequentemente, a louvar-se tão-só no depoimento de testemunhas, posto que o julgador não pode pronunciar-se pelo que acaso saiba fora dos autos…ou pelas simples alegações dos interessados…A presunção juris da verdade do testemunho é admitida pela lei no imperioso interesse da fixação histórica de factos que, afectando a ordem jurídica, têm de ser objecto ou base de julgamento, quer na órbita judiciária, quer na esfera administrativa em geral».
Configura-se como crime de perigo abstracto, na medida em que não é necessário que a declaração falsa prejudique efectivamente o esclarecimento da verdade suporte da decisão, nem sequer que, “in concreto”, o tenha colocado em perigo; como crime de mera actividade, pois o comportamento esgota-se precisamente na efectivação da conduta proibida, não se exigindo qualquer resultado decorrente dessa conduta e dela autonomizável; e como crime de mão-própria, que só pode ser praticado por determinadas pessoas investidas de certa qualidade (vd., Medina de Seiça in “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, tomo III, Coimbra, 2001, a págs. 462 e seg.).
O núcleo essencial do ilícito coloca-se na prestação de declaração falsa, desde que feita perante entidade competente e que o agente esteja sujeito a um dever processual de verdade e de completude.
Acerca do entendimento do que se deve considerar como falsidade da declaração, têm-se desenhado três teorias, a que Medina de Seiça, ob. cit., a págs. 475/477, esclarecidamente se refere.
Assim, a denominada teoria objectiva, segundo a qual a falsidade reside na contradição entre o declarado e a realidade.
A designada teoria subjectiva, que considera falsa a declaração que não coincida com a representação do declarante no momento da declaração, assentando, pois, na contradição entre a declaração e a ciência ou conhecimento do declarante.
E as teorias ditas intermédias, que põem a tónica na violação do dever processual do declarante, mais orientadas pelo bem jurídico protegido com a incriminação e fazendo residir a falsidade, não no acontecimento histórico, mas sim na percepção que dele a testemunha tenha feito.
Não obstante os elevados contributos que tais teorias têm para a correcta subsunção àquele conceito, afigura-se, salvo melhor opinião, que cada uma delas não deve ser vista com a autonomia e a diferenciação das restantes ao ponto de comportar interpretação em que se revelem incompatíveis.
Ao invés, não denotando incompatibilidade, reflectem, sim, as dificuldades a que a interpretação do que seja a falsidade conduz, mormente, no confronto das múltiplas situações que são susceptíveis de se verificar.
As discrepâncias fazem-se notar, afinal, em acentuar-se, mais ou menos, a vertente da realidade histórica, perante o declarado, sem prejuízo da teoria subjectiva se reportar, também, a elementos que, intrinsecamente, se devem entender como referidos ao dolo do agente.
Este, consiste em o agente agir com consciência da falsidade da declaração e em contrário da verdade por si adquirida, com a intenção de prestá-la dessa forma ou, pelo menos, representando a possibilidade da falta de verdade da declaração, conformando-se com esse resultado.
Nesta mesma perspectiva do problema, e, aliás, seguindo em muito como nele refere expressamente o expendido no aresto vindo de acompanhar, também se escreveu, com propósito, num outro aresto do TRE, in processo n.º 49/13.3T3STC.E1, relatado pelo Exmo. Desembargador António Latas, acedido em www.dsgi.pt/jtre:
«2.1.Assim, face às divergências verificadas na jurisprudência e doutrina a tal respeito, importa começar por tecer algumas considerações de ordem mais geral sobre o conceito de falsidade de declaração (no que aqui importa), enquanto elemento do tipo de Falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução previsto no art.º 360.º do C.Penal.
Conforme decorre com clareza da motivação de recurso, a questão que constitui o objeto do presente recurso convoca questão de ordem substantiva e processual que tem dividido a jurisprudência e a doutrina e que pode enunciar-se assim, sem prejuízo de ulteriores especificações:
“Pratica o crime de falsidade de testemunho p.p. pelo art.º 360.º, n.º 1 do Código Penal, aquele que, na qualidade de testemunha, presta dois depoimentos contraditórios entre si ainda que se não apure em qual delas mentiu?”.
Para um dos entendimentos, a resposta é afirmativa, podendo ver-se nesse sentido, o Ac deste TRE de 22.11.2011, relator Carlos Berguete, e a jurisprudência aí citada no mesmo sentido (e em sentido contrário).
Para o entendimento oposto, “Não basta para a condenação por crime de falsas declarações que se prove que a testemunha, em dois momentos distintos, fez depoimentos contraditórios que mutuamente se excluem, é preciso confrontá-lo com os factos verdadeiros (…): sem aquele confronto, há́ apenas depoimentos divergentes mas não necessariamente contrários à verdade” - Cfr Ac. TRG de 29 de Junho de 2009, proc. com o NUIPC 840/08.2TABRG.G1, relator, Anselmo Lopes e, entre outros, Ac. RE de 10.04.2012, Relator Alberto Borges. Os acórdãos citados encontram-se acessíveis em www.dgsi.pt.
Na doutrina, que se divide essencialmente conforme entenda que o art.º 360.º do C.Penal acolhe um conceito subjetivo ou objectivo de declaração falsa, destacamos neste último sentido (conceção objectivista), Medina Seiça (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, III, 2001, pp. 473- 8) e Pinto de Albuquerque, que consideram, na formulação deste último, que “A declaração é falsa quando não corresponde à verdade histórica. A verdade não é a mesma coisa do que a sinceridade: o depoente não deixa de faltar à verdade quando está sinceramente convencido de que está a dizer a verdade, mas o que diz não corresponde à realidade das coisas.” (cfr. Comentário do Código penal, UCP-2008, p. 848). Deste modo, só no caso de se apurar no processo qual a verdade histórica e, portanto, qual a declaração em que o agente faltou à verdade, se mostra preenchido o tipo legal, com a consequente condenação pela prática do crime de Falsidade de testemunho p. e p. pelo art.º 360.º do C.Penal.
No sentido de um conceito subjetivo de declaração falsa, vale por todos a posição de Nuno Brandão, Inverdades e consequências: considerações em favor de uma conceção subjectiva da falsidade de testemunho. Anotação aos acórdãos da Relação do Porto de 30.01.2008 e da Relação de Guimarães de 29.06.2009 in RPCC 2010, 3, p. 477 e segs.
Escusando-nos de a repetir aqui, para além do essencial, limitamo-nos a dar conta da nossa concordância com a clara e bem fundamentada posição deste autor, seguindo de perto aquele mesmo texto.
Em primeiro lugar, convence o entendimento do autor segundo o qual parece não ter sido posta em causa ou abandonada pelo Código Penal de 1982 a conceção de pendor subjetivo que una voce vinha valendo há mais de um século na doutrina e na jurisprudência portuguesa (embora escassa sobre a questão), segundo a qual “será falso o depoimento que se mostre contrário ou que oculte a verdade conhecida pela testemunha” ou, em enunciado de Luís Osório, referindo-se a Manzini, “ a falsidade do testemunho consiste na desconformidade entre a declaração e a ciência da testemunha; e não entre aquela declaração e a realidade das coisas”.
Em segundo lugar, constituindo a (correta) realização da justiça o bem jurídico protegido pelo crime de Falsidade de testemunho, não faz sentido a conceção objetiva da falsidade que vê nesta a desconformidade entre a declaração do agente e a realidade objetivamente apurada, porquanto a verdade histórica ou material que a conceção objetiva toma por termo de comparação com a declaração da testemunha, não constitui um dado prévio e autónomo em relação àquela declaração.
A verdade que se procura e se alcança no processo é, antes, uma verdade processualmente construída, com base nos meios de prova carreados para o processo onde muitas vezes avultam decisivamente os depoimentos das testemunhas, pelo que fazer depender a falsidade do depoimento da verdade que vier a apurar-se no processo, nomeadamente com base no depoimento da testemunha e/ou outros meios de prova, significa incorrer num raciocínio circular, com efeitos potencialmente perversos relativamente ao bem jurídico (correta realização da justiça) que se pretende proteger, podendo redundar na impunidade de quem, deturpando a realidade, consegue convencer o tribunal de que os factos se passaram nos termos por si falsamente descritos.
Em terceiro lugar, a doutrina ou conceção objetiva mostra-se incapaz de funcionar nas constelações de casos de in dúbio pro reo em processo penal, pois subsistindo dúvida insanável, eventualmente inculcada pelo próprio depoimento falso, não se apura no processo a realidade objetiva, pelo que é assegurada a impunidade de quem, notoriamente, mentiu sobre esses mesmos factos, relatando versão que não correspondia à percepção e memória que tinha desses mesmos factos, ficando impunes os depoimentos que objetivamente comprometeram a realização da justiça.
Em quarto lugar, como enfatiza Nuno Brandão, é essencial a ligação que a conceção subjectiva reconhece entre o dever da testemunha relatar com verdade os factos sobre os quais é inquirida, tal como afirmado nas leis de processo (vg. art.º 132.º n.º 1 d) CPP ), e a tutela do bem jurídico protegido pelo crime de Falsidade de testemunho, ou seja, a realização da justiça, pois o cumprimento deste dever pela testemunha [declarando o que pensa ser a verdade] constitui o penhor mais seguro de uma boa administração da justiça. Havendo coincidência entre a realidade que a testemunha pessoalmente conheceu [e recorda] e a realidade que relata quando é inquirida, (…) o seu depoimento não é idóneo a afetar o bem jurídico protegido, sendo, antes, um meio adequado para que a justiça se realize efetivamente, ao mesmo tempo que cumpre fielmente o seu dever de depor com verdade, pelo que a sua conduta não deve ser qualificada como típica, nem mesmo no plano do tipo-de-ilícito objectivo, pois corresponde exactamente àquilo que dela se espera.
Independentemente de um depoimento com estas características não ser típico mesmo de acordo com a teoria objetiva, por não ser doloso, sempre o universo de condutas impunes aumentaria sem justificação político criminal se apenas fosse punível a declaração desconforme com a verdade apurada no processo. Na verdade, se a testemunha relata uma realidade diferente daquela por si experienciada ao tempo dos factos, o testemunho deve ser qualificado como falso, dado que viola o seu dever de ser fiel à verdade e do mesmo passo pode comprometer o desiderato de um efetiva realização da justiça no caso concreto. Como enfatiza Nuno Brandão, isto sucede mesmo quando o relato da testemunha [que sabe que o mesmo não corresponde à sua percepção dos factos] vá ao encontro daquilo que o tribunal acabou por dar como provado, como sucederá, num caso em que a testemunha, que não estava presente no local onde se deu um acidente de viação, narra ao tribunal os factos tal como [o tribunal considerou que] efetivamente ocorreram, como se deles tivesse tido conhecimento directo.
Por último, acrescentamos, a conceção objetiva da falsidade típica a que se reporta o crime de Falsidade de testemunho previsto no art.º 360.º do C. Penal é a que melhor se coaduna com a qualificação daquele tipo legal como crime de perigo abstrato e com a caracterização da verdade processual como verdade a construir no processo. Não constituindo a verdade processual que se protege uma qualquer verdade ontológica alcançável em termos absolutos, a conduta ilícita a reprimir é a de quem ponha em risco a obtenção da verdade processual que se procura obter no processo, por não narrar os factos tal como os percepcionou e recorda, independentemente de tal risco (ou o dano respetivo) se ter concretizado no caso, pois, como é próprio dos crimes de perigo abstrato, o perigo releva no momento da motivação do legislador para a incriminação e não para o preenchimento do tipo legal, o qual tem lugar mesmo que a declaração não tenha tido qualquer influência na decisão do processo em que ocorreu.
2.2. Consideramos, pois, como aludido, que a falsidade de declaração a que se reporta o artigo 360.º do C. Penal corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, de acordo com a conceção subjectivista que seguimos, pelo que a circunstância de o tribunal de julgamento nada ter apurado sobre a verdade do facto objeto da declaração, ou seja, se a compra de produto estupefaciente aos três arguidos no processo anterior teve ou não lugar, não impede que a conduta do ora arguido possa ter preenchido os elementos objectivos e subjetivos do crime de Falsidade de testemunho previsto no artigo 360.º do C. Penal, contrariamente ao que sucederia na conceção objetiva de declaração falsa.
Assim, caso se imponha concluir perante declarações claramente contraditórias entre si, em que uma delas exclui necessariamente a outra, que o agente declarou com falsidade, é igualmente irrelevante que não se apure em que momento a testemunha faltou à verdade, pois o seu comportamento como declarante no processo deve ser perspectivado na sua globalidade, pelo que “essa falta de fidelidade à verdade traduzida num desvio da declaração em relação à realidade apreendida pelo próprio declarante e descortinada através de uma visão integrada de toda a sua conduta processual, é por si só suficiente para implicar a prática de um ilícito-típico objectivo de falsidade de depoimento” – cfr Nuno Brandão, est. cit. p. 503.
Assim sendo, continua o autor, não vale a objecção de que não se apurando especificamente em que momento a testemunha faltou à verdade, impõe-se a sua absolvição por falta de prova de qual das declarações é falsa, pois encontramo-nos aí perante uma perspetiva que pretende fraccionar a atuação do agente em tantos momentos quantos os que ele foi chamado a depor, quando uma correta ponderação do seu comportamento pressupõe necessariamente que o mesmo seja visto unitariamente e em toda a sua amplitude. Quando subsista dúvida sobre o exacto momento em que o agente faltou à verdade e essa dúvida tenha relevo penal ou processual penal, v.g. para efeitos de prescrição ou da agravação prevista no n.º 3 do art.º 360.º do C. Penal, [como se verifica no caos presente], tal dúvida não pode deixar de ser valorada a favor do arguido em obediência ao princípio in dúbio pro reo.
2.3. O preenchimento do tipo legal de Falsidade de testemunho previsto no art.º 360.º do C. Penal depende, pois, de se apurar no caso concreto se “Ao prestar tais depoimentos, cujos conteúdos são contraditórios, bem sabia o arguido que pelo menos um deles não correspondia à verdade e que agia de forma livre, deliberada e consciente de alterar a versão dos factos por si já relatada, pelo que passamos a decidir da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto objeto do presente recurso, interposto pelo MP. Na verdade, conforme diz Nuno Brandão (est. citado p. 503), não pode pretender-se que “…sempre que existam discrepâncias entre versões produzidas por uma mesma testemunha durante um processo haja necessariamente o cometimento de um crime de falsidade de depoimento”.
Assim, sejam as declarações meramente discrepantes ou efetivamente contraditórias, no sentido de pelo menos uma delas excluir necessariamente a outra, de modo que pelo menos uma delas não pode logicamente corresponder à verdade objetiva dos factos (qualquer que ela seja), não pode inferir-se, sem mais, que o agente/arguido sabia necessariamente que pelo menos uma das declarações era falsa, pois pode suceder que estivesse convencido da verdade de cada uma delas no momento em que as proferiu, ainda que mais tarde não possa deixar de reconhecer a contradição entre ambas.
Mesmo as afirmações factualmente contraditórias proferidas em momentos distintos, o que implica que pelo menos uma delas seja desconforme com a realidade, não significam necessariamente que o arguido saiba e queira faltar à verdade num daqueles momentos. Pode estar convencido que viu e/ou ouviu o que narrou no primeiro momento em que o faz e em momento posterior faltar-lhe, mais ou menos extensamente, a memória do acontecimento, para além de novas memórias poderem pôr em causa a recordação inicial. Desde logo porque, independentemente de outro tipo de considerações (vd. infra), as condições em que a reconstituição da memória armazenada tem lugar, nomeadamente o modo como é dirigido o interrogatório forense, podem levar a narrações distintas ou, em todo o caso, a graus de convicção bem diferentes entre si, podendo passar-se de afirmações peremptórias num primeiro momento a formulações subsequentes dubitativas, inseguras, ou vice-versa.
Sendo assim, sempre se impunha apreciar autonomamente, como bem fez o tribunal a quo, a prova concernente ao conhecimento pelo arguido de que pelo menos um dos depoimentos prestados sobre a compra de produto estupefaciente aos três arguidos naquele mesmo processo (392/11) (in casu na fase de Inquérito e em audiência de julgamento), bem como se agiu deliberada e conscientemente para alterar a versão dos factos por si já relatada, na medida em que tal facto corresponde a dolo directo do arguido.»

Arrimados nesta perspetiva das coisas, vejamos:
O arguido, nos termos constantes da acusação deduzida, ao prestar depoimentos nos dias 1 de Outubro de 2013 e 14 de Março de 2014, de sentido contrário e antagónico, sabia que numa dessas ocasiões prestava falsas declarações, não obstante estar ciente que estava legalmente obrigado a fazê-lo com verdade, encontrando-se na última situação sob juramento, tendo para isso sido advertido. Já de acordo com o provado, ao prestar os depoimentos referidos, de sentido contrário e antagónico, sabia o arguido que em audiência prestava declarações falsas, não obstante estar ciente que estava legalmente obrigado a prestar declarações verdadeiras, encontrando-se sob juramento, tendo sido advertido para o efeito (sublinhados nossos).
Nestes exactos termos, depreende-se que o Tribunal a quo descortinou a verdade histórica dos factos (seja, que depôs falsamente em Março de 2014), indagação imprescindível segundo alega e por via disto claudica o seu entendimento, desde logo.
Em todo o caso, e reafirmamos, não podemos olvidar que a verdade aqui em causa está, sempre, relacionada com aquilo de que a testemunha tinha conhecimento, e não propriamente com o que na realidade tenha sucedido, só assim se coadunando com as funções da testemunha, que é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova, nos termos do art.º 128.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Certamente ninguém exigirá a qualquer testemunha que tenha o cabal conhecimento da verdade objectiva, tida como correspondendo à realidade histórica, mas sim e apenas que deponha, só com verdade e toda a verdade, relativamente àquela de que tenha conhecimento.
De modo diverso, equivaleria a que a sua declaração se reconduzisse àquilo que cabe ao tribunal, e não à testemunha, ou seja, à descoberta da verdade material (art.º 340.º do Código de Processo Penal), pelo que alguma reserva tem de merecer a perspectiva de que a falsidade unicamente decorra de contradição entre o declarado e essa realidade histórica.
Tudo dependerá da análise do caso em apreciação e do que, nesse aspecto, se torne, ou não, imprescindível para aquilatar da existência de mentira.
A exigência que transparece da alegação do recorrente de que a verdade histórica objectiva tivesse de ser apurada e, por isso, devesse constar já da acusação, parece-nos excessiva, atentando em que, além do mais, essa mesma verdade consubstancia matéria do âmbito do processo em que depôs, e não, propriamente, do objecto agora em julgamento.
A conclusão de que o recorrente omitiu a verdade resulta da manifesta contradição entre o declarado num e noutro momentos, a que o tribunal recorrido logrou chegar, usando de presunção legalmente admitida (arts. 125.º do Código de Processo Penal e 349.º e 351.º, estes ambos do Código Civil, tal como especificou na motivação probatória concernentemente a tais factos 23.º e 24.º), assente em raciocínio indutivo e lógico, sem que se divise que tivesse, para tanto, de apelar à referida realidade histórica.
Se o recorrente agiu como descrito, mentiu (omitiu a verdade) num dos momentos em que foi inquirido como testemunha, tal como vinha da acusação, e provadamente no segundo momento tal como concluiu o Tribunal a quo, sendo que a desconformidade com a realidade resulta de não poder ter tido o conhecimento contraditório, revelado pelos seus depoimentos e, por isso, ter preterido o dever de verdade que lhe era legalmente imposto, independentemente de saber-se qual o sentido da decisão tomada no processo criminal em que depôs.
Pese embora não se desconheça posição jurisprudencial que defende uma acrescida exigência no elenco dos factos provados, com vista a suportar a conclusão de que existiu declaração falsa, ainda que em situações em que a factualidade disponível era muito mais escassa do que a presente e, até, relativamente diferente nos seus contornos (vd. Acs. do TRE, de 15.04.2008, no proc. n.º 2613/07-1, e de 08.04.2010, no proc. n.º 333/07.5TALGS.E1, relatados pelo Exmo. Desembargador Gilberto Cunha, e de 03.06.2008, no proc. n.º 1564/07-1, relatado pelo Exmo. Desembargador Ribeiro Cardoso; do TRP, de 05.07.2006, no proc. n.º 0546988, relatado pelo Exmo. Desembargador José Piedade; todos acessíveis em www.dgsi.pt; do TRG, de 11.05.2009, sendo relator o Exmo. Desembargador Anselmo Lopes, in Col. Jur. ano XXXIV, tomo III, a pág. 307, e de 01.03.2010, no proc. n.º 2711/07, sendo relator o Exmo. Desembargador Filipe Melo, disponível em www.colectaneadejurisprudencia.com), afigura-se que a tese que se vem explicitando é a mais consentânea, em concreto, com a tutela do interesse da incriminação e não põe em crise princípios fundamentais de salvaguarda das garantias de defesa.
Com efeito, através do sentido explicitado, ficam respeitados os limites interpretativos que o tipo legal consente ao reportar-se a declaração falsa, bem como a conformidade com a natureza e as características do crime, acrescendo que, por um lado, a data da sua consumação não constitui requisito indispensável ao seu preenchimento e, por outro, não contende com o princípio “in dúbio pro reo” (em contrário, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica, 2008, pág. 848).
Desta perspectiva, se dá conta nos Acs. do TRP, de 17.11.2004 e de 07.12.2005 (relatados pela então Exma. Desembargadora Isabel Pais Martins), in Col. Jur., respectivamente, ano XXIX, tomo V, pág. 211, e ano XXX, tomo V, pág. 223, e de 30.01.2008, no proc. n.º 0712790 (relatado pelo Exmo. Desembargador José Carreto); e deste TRC, de 28.09.2011, no proc. n.º 157/10.2TAMMV.C1 (sendo relator o Exmo. Desembargador Paulo Guerra); e na decisão sumária da Relação de Coimbra de 18.05.2011, no proc. n.º 195/09.8T3AVR.C1, (proferida pelo Exmo. Desembargador Jorge Jacob); todos estes em www.dgsi.pt.
As dificuldades que, eventualmente, se coloquem ao nível da prescrição, ou da amnistia, decorrentes da ausência de certeza da data da consumação do ilícito (o que não é o caso, saliente-se face à conclusão do Tribunal a quo), não são de molde a infirmar a referida circunstância atinente à sua falta de essencialidade para o preenchimento do crime, a que acresce que, sempre, virão a ser resolvidas com apelo ao tratamento mais favorável ao arguido.
Tal como Figueiredo Dias escrevia no seu “Direito Processual Penal”, Coimbra, 1974, a págs. 218 e seg., reportando-se ao funcionamento do princípio “in dúbio pro reo”, existem casos em que o juiz não logra esclarecer, em todas as suas particularidades juridicamente relevantes, um dado substrato de facto, mas em todo o caso o esclarece suficientemente para adquirir a convicção de que o arguido cometeu uma infracção e, nesses casos, ensina-se ser admissível, dentro de certos limites, uma condenação com base em uma comprovação alternativa dos factos. Se assim deve ser ou não constitui porém, claramente, problema que extravasa do âmbito processual, para ir radicar na interpretação dos tipos aplicáveis, à luz da função de garantia que jurídico-constitucionalmente lhe cumpre.

Nesta vertente, o princípio “in dúbio pro reo” torna-se alheio à problemática de que os factos preencham, ou não, o tipo legal em apreço.
Tudo para concluirmos então que não merece censura o acervo fáctico acolhido na 1.ª instância, o qual prefigura o cometimento pelo arguido de um crime de falso testemunho, p.p.p. art.º 360.º do Código Penal.
2.4. Ante o exposto, já se intuiu da solução que deve dar-se à segunda questão suscitada, qual seja a de sabermos se a provada conduta do recorrente integra a previsão deste normativo, seu n.º 1 ou seu n.º 3.
Resposta inequívoca da integração na previsão do n.º 3, pois que foi depois de devidamente ajuramentado e advertido para as consequências que lhe adviriam acaso o não fizesse que o arguido prestou como testemunha depoimento falso.
2.5. Para ponderar a última das questões elencadas, isto é, do quantum de pena arbitrado que o recorrente considera excessivo uma vez que sem atentar aos seus princípios constitucionais norteadores da necessidade, adequação e proporcionalidade, por seu turno ordinariamente plasmados nos art.ºs 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal. Aduz, em suma, ser delinquente primário relativamente a crime de natureza idêntico ao ajuizado; mostrar-se o crime associado ao receio de represálias, o que aliás foi corroborado pela testemunha inquirida, e daí, ao invés do consignado na sentença recorrida, não se mostrar o dolo intenso; ser o recorrente economicamente dependente de sua mãe, já que não tem trabalho; tudo conjugado, não se justificar a condenação em pena superior a metade do limite máximo de dias fixado na norma legal em causa.
Na construção dogmática de Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005) e de Anabela Rodrigues (A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995), para citar a doutrina mais representativa, a pena prossegue finalidades exclusivamente preventivas.
Figueiredo Dias resume o seu pensamento da forma seguinte: “toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais” (Direito Penal Português, Parte Geral I, 2004, p.81).
A prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, não podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, tendo a culpa como limite.
No caso sub judice, o Tribunal a quo ponderou, com equilíbrio, todas as circunstâncias relevantes à cometida tarefa de escolha (que não vem controvertida) e fixação da medida concreta da pena.
Não colhe a argumentação do arguido quando apela ao carácter primário deste tipo de actuação. O «histórico» do seu certificado de registo criminal comprova, à exuberância, da sua indiferença quanto à salvaguarda de vários bens jurídicos, constituindo este, malogradamente, mais um deles. Por outro lado, o dolo é intenso, não o infirmando e colhendo a circunstância - que não foi ele próprio a trazer ao Tribunal, pois se não dignou sequer a comparecer em audiência – segundo a qual o ilícito é cometido por receio de se sofrerem represálias. A ausência de trabalho, sendo objectiva, não vem demonstrada na sua génese: por vontade própria ou circunstância alheia? Por fim, ponderadas as agravantes e atenuantes referidas na decisão recorrida, mostra-se ajustada a opção por um limite acima da média da pena abstractamente cominada para o ilícito como meio de salvaguarda da premente prevenção especial que o caso reclama.
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III. Dispositivo.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste TRC em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, decidem manter a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em quatro UCs a taxa de justiça devida (sem prejuízo de eventual concessão de apoio judiciário e/ou de legal isenção) – cfr. art.ºs 513.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.
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Coimbra, 24 de Abril de 2018
Francisco José Brízida Martins (relator)
Orlando M. Gonçalves (adjunto)