Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3244/11.6TJCBR-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PESSOAL
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA, 3.º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 28.º, 1 E 2; 36.º; 239.º, 1, 2 E 3, B), I); DO CIRE
Sumário: 1. O parâmetro referido no artigo 239.º, n.º 3, alínea b, (i) é apenas um tecto ou limite máximo a partir do qual o juiz passa a estar vinculado a justificar expressamente o motivo pelo qual exclui a esse título do rendimento a ceder um montante superior.

2. Na cedência do rendimento disponível ao fiduciário exigida no nº 2 do art.º 239.º do CIRE está subjacente a ideia de que os credores não podem deixar de aceder a esse rendimento, só não devendo ser atingido pelo desiderato ressarcitivo que preside ao processo de insolvência aquele montante mínimo que é indispensável a proporcionar ao devedor e seu agregado uma subsistência condigna.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... apresentou-se à insolvência no 3º Juízo Cível de Coimbra, e, ao mesmo tempo, formulou pedido de exoneração do passivo restante, alegando:

Que desempenha as funções de assistente técnica na X..., categoria a que corresponde o vencimento ilíquido mensal de € 961,18, encontrando-se penhorado um 1/3 desse valor; aufere ainda € 550 mensais provenientes do arrendamento de uma fracção autónoma de um prédio urbano, pelo que o seu rendimento líquido mensal total é de € 1.200; por força da sua situação divorciada recebe do ex-marido alimentos de € 500,00 mensais, enquanto para os dois filhos menores que têm à sua guarda está destinado o pagamento pelo pai da quantia mensal de € 250,00 e metade das despesas médicas e escolares; no entanto, encontra-se a pagar € 820 mensais por causa de um empréstimo ao Banco C... e € 830. Também por mês, relativos a um empréstimo hipotecário para habitação concedido pela D..., somando estes encargos € 1650/mês; dado que o seu ex-marido não tem cumprido as suas obrigações de alimentos, deixou de pagar as prestações devidas ao dito Banco E...; entretanto foi notificada para pagar vários montantes ao F..., ascendendo a várias dezenas de milhares de euros, tem contra si pendente uma execução de € 135.530,57 por causa de um aval prestado ao G..., deve € 1.106,26 ao H..., € 2.588,03 de quotas ao condomínio do prédio em que se integra a fracção onde mora, € 1.150,56 de quotas ao condomínio do prédio onde se situa a fracção que tem arrendada, e € 85.987,27 por virtude de um aval prestado a I..., Lda; os dois imóveis de que é proprietária valerão cerca de € 350.000,00.

Termina requerendo que lhe seja concedido o benefício da exoneração do passivo restante, salvaguardando-se o montante que se considere razoavelmente necessário para o sustento da Requerente e seus filhos.

Decretada a insolvência da Requerente ao abrigo do disposto nos art.ºs 3º, nºs 1 e 2, 28º e 36º do CIRE, após o Sr. Administrador da Insolvência se ter pronunciado, em 26 de Janeiro de 2012, foi proferido despacho, nos termos dos nºs 1 e 2 do art.º 239 do CIRE, a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, embora com a determinação de que “o rendimento disponível que a devedora venha a auferir se considere cedido ao fiduciário - que, actualmente e tendo presente o valor ilíquido do seu vencimento mensal, se estima em € 275 (…)”.

Inconformada, desta decisão interpôs a Requerente A... recurso, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

Os pressupostos de facto a ter em conta são os seguintes:

A - A Requerente aufere mensalmente, como funcionária da X..., uma retribuição líquida total de € 950,00/mês;

B - Encontra-se divorciada desde 2009, tendo a seu cargo dois filhos de 17 e 12 anos:

C - O pai dos menores encontra-se obrigado a prestar mensalmente alimentos de € 250,00 para cada um dos menores e € 500,00 para a requerente, obrigações que não tem vindo a cumprir;

D - Na partilha a que se procedeu, à Requerente ficou a pertencer a fracção autónoma designada pela letra M do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., Coimbra, onde a Requerente vive, onerada com empréstimos hipotecários à D...; e as fracções designadas pelas letras BB e CB (esta aparcamento) do prédio em idêntico regime, sito no lote 2, correspondente ao gaveto formado pela Av. ...com a Rua ..., Oliveira de Azeméis, arrendada pela renda de € 550,00/mês;

E - Os empréstimos hipotecários à D... suportados pela Requerente orçam os € 1.200,00/mês.

                                                                            *

A apelação.

A recorrente encerra a respectiva alegação com as conclusões que se passam a transcrever:

a) A douta decisão recorrida, considerado o vencimento da devedora e a quantia que ordenou fosse entregue ao fiduciário, julgou a verba de € 675 como suficiente para o seu sustento;

b) Tal decisão só pode ter ocorrido por lapso, atenta a composição do agregado familiar, com mais dois filhos, de 12 e 17 anos de idade, a exigir verba nunca inferior a € 700, habitação e despesas extraordinárias à para assegurar o seu sustento;

c) Implicando o arrendamento que teve de celebrar um dispêndio mensal de € 500 nem a ajuda familiar permite suprir a enorme diferença que vai dos € 175 que lhe restam para esses € 700;

d) Isso mesmo foi reconhecido no relatório do Sr. Administrador de Insolvência constante dos autos;

e) Foi assim infringida a regra do art.º 239, nº 3, al.ª b), i), do CIRE, cuja correcta aplicação no caso concreto se julga apontar para a fixação da quantia a excluir das entregas ao fiduciário em duas vezes e meia o salário mínimo nacional.

Não houve resposta.

Apreciando.

Começa a recorrente por sublinhar que a decisão recorrida “julgou a verba de € 675 como suficiente para o seu sustento”.

Mas não foi isso que se decidiu.

O que se decretou foi antes o valor do rendimento a ceder ao fiduciário, sem se especificar a parte que ficava excluída para o sustento da Requerente e respectivo agregado familiar.

Ora, partindo da soma dos proventos da Requerente que decorre dos factos acima dados como provados, soma que se cifra em € 1.500,00 mensais, correspondendo à remuneração líquida global de 950,00 acrescida do valor da renda das fracções que tem arrendadas - as fracções BB e CB - que é de € 550,00 mensais, disporá aquela de uma importância total, deduzido o valor do rendimento a ceder fixado na decisão ora impugnada que é de € 275,00, que será ainda de € 1225,00, e não apenas de € 950,00, como enfatiza na alegação do recurso.

Alega também a recorrente que em 22 de Dezembro de 2011 - por conseguinte, antes da prolação da decisão ora sob censura - tomou de arrendamento nova casa para sua habitação e dos seu agregado, tendo com isso um novo encargo de € 500,00 mensais.

Chega até a juntar um contrato escrito alusivo a tal arrendamento.

Sucede, porém, que não se mostra explicado motivo pelo qual, habitando a Requerente uma casa própria - a constituída pela fracção M do prédio sito na Rua ..., em Coimbra, eventualmente deixou de o poder fazer.

Como também nada transparece quanto ao facto de a Requerente ter hipoteticamente deixado de perceber a renda de € 550 mensais que lhe advinha da fracção de Oliveira de Azeméis - e a que o Sr. Administrador de Insolvência ainda se refere no seu parecer de 25/11/2011 - cfr. fls. 85-87.

Enfim, não se vê razão para não postular que os proventos auferidos pela Requerente não continuam a ser de € 1500,00 mensais.

 

Mas traz também a recorrente à colação o já conhecido argumento de que o art.º 239, nº 3, al. b), i) do CIRE impõe como critério referencial do razoavelmente necessário para o sustento mínimamente digno do insolvente aquele que leva à exclusão do rendimento disponível de uma quantia excedente ao equivalente a três vezes o salário mínimo nacional.

Já por mais de uma vez fomos confrontados com esta questão, e, como sempre propugnamos, continuamos a defender que aquele parâmetro da lei é apenas um tecto ou limite máximo a partir do qual o juiz passa a estar vinculado a justificar expressamente o motivo pelo qual exclui a esse título do rendimento a ceder um montante superior.

No art. 239.º, n.º 3, do CIRE, considerou-se que o rendimento disponível é integrado por todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão, designadamente, “do que seja razoavelmente necessário para i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional”.

Na cedência do rendimento disponível ao fiduciário exigida no nº 2 do art.º 239 do CIRE está subjacente a ideia de que os credores não podem deixar de aceder a esse rendimento, só não devendo ser atingido pelo desiderato ressarcitivo que preside ao processo de insolvência aquele montante mínimo que é indispensável a proporcionar ao devedor e seu agregado uma subsistência condigna.

Subsistência ou sustento condigno - como já tivemos ocasião de acentuar - pode implicar que o devedor abdique de hábitos de consumo que não são compatíveis com a situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações que caracteriza a insolvência.

Na verdade, as ideias-chave que ressumam deste dispositivo do CIRE podem enunciar-se do seguinte modo:

1. O montante a definir tem natureza aberta, cabendo ao julgador fixá-lo;
2. O legislador considerou dever impor um «tecto» a este montante, de dimensão claramente baixa e apontando para uma necessária compressão do estilo de vida e redução de dispêndios;
3. Tal limite máximo pode ser ultrapassado pelo juiz mas sempre sob a obrigação de fundamentar essa opção. 

Como, de resto, se escreveu no Ac. desta Relação de 31/01/2012, na apelação nº 3638/10.4TJCBR-G.C1, disponível in www.dgsi.jtrc.pt,  relatado pelo Desembargador aqui segundo Adjunto, “A exclusão em causa – é uma observação óbvia – é a resposta natural, forçosa e obrigatória às necessidades e exigências que a subsistência e sustento coloca ao devedor/insolvente (e ao seu agregado familiar).

Assim, na definição da amplitude do “rendimento disponível”, é certo e seguro que, fosse qual fosse a técnica legislativa utilizada, sempre teria que ficar de fora (do “rendimento disponível” a ceder) uma parte do rendimento do devedor/insolvente; parte essa suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência.

Cumprindo tal inevitabilidade, o legislador enunciou, a nosso ver, em termos de limite mínimo da exclusão, o critério “do que seja razoavelmente necessário para um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”; logo acrescentado, em termos de limite máximo, que não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional.

É esta a “leitura” que fazemos do preceito em causa; ou seja, o legislador não adoptou um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por sustento minimamente digno.

Tendo em conta a unidade do sistema jurídico, não estamos autorizados a afirmar que o legislador, quando, ano após ano, fixa o montante do salário mínimo nacional, considera e avalia o montante que para tal efeito fixa como 1/3 do montante necessário a um sustento minimamente digno. Por outro lado, “sustento minimamente digno” não se confunde com mínimo de sobrevivência, uma vez que também no nosso ordenamento jurídico existe, “abaixo” do salário mínimo, como critério orientador de tal limite mínimo de sobrevivência, o rendimento social de inserção”.

E será que a circunstância de o insolvente ter a seu cargo - parcialmente - dois filhos menores de 12 e 17 anos altera substancialmente a dimensão de sobrevivência inerente ao salário mínimo individual ?

É evidente que a noção de dignidade é eminentemente pessoal e que o que é razoável para um adulto pode revelar-se indigno para um agregado de três pessoas (adulto e dois adolescentes).

Em todo o caso, importa naturalmente fazer intervir a justa medida de bom senso e razoabilidade na fixação do quantum necessário ao concreto agregado familiar.

E, na situação vertente, restando ao agregado formado pela Requerente e seus filhos a disponibilidade de uma verba mensal não inferior a € 1.000,00, julgamos que o mínimo imposto na lei se mostra respeitado.

Donde que a ordenada cessão de € 275 do rendimento disponível da Requerente ao fiduciário peque apenas por defeito.

Donde o insucesso do recurso.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins