Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
111/19.9PBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ROSA PINTO
Descritores: BURLA
MODO DE VIDA
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 01/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 217.º E 218.º, N.º 2, AL. B), DO CP; ART.ºS 2.º, 32.º, 202.º, N.º 1, E 204.º, DA CRP
Sumário: I. Para o funcionamento da qualificativa modo de vida não é necessária uma ocupação exclusiva com a actividade ilícita, podendo simultaneamente o agente trabalhar de forma lícita, nem mesmo contínua, podendo até ser intermitente, desde que contribua para o sustento do arguido, o que tem que ressaltar da série de ilícitos cometidos.

II. Sintomática, igualmente, e por exemplo, como é o caso, a pluri-reincidência, as condenações anteriores do agente constantes do seu CRC, assim como as denúncias ou participações policiais existentes, o conteúdo dos ficheiros policiais e todos os outros elementos testemunhais ou documentais.

III. Perante normas penais com conceitos normativos e indeterminados, coloca-se a questão de saber se contêm o grau de determinação exigível para que possam cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de bens jurídicos. Se as normas incriminadoras se revelarem incapazes de definir com suficiente clareza o que é ou não objecto de punição, tornam-se constitucionalmente ilegítimas.

IV. O conceito modo de vida foi, há muito, devidamente interpretado e concretizado pela doutrina e jurisprudência

Por outro lado, é uma expressão usada na linguagem comum, significando a forma como o indivíduo vive, abrangendo quer as suas actividades, quer as suas escolhas.

V. A norma do artigo 218.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, não contém um teor extremamente vago que não permita a delimitação exacta das situações abrangidas pelo conceito modo de vida, não colocando em causa os direitos de defesa do arguido. Para além de ser uma expressão usada na linguagem corrente, também a nível do direito já o conceito foi definido tanto pela doutrina como pela jurisprudência, não podendo o arguido afirmar que desconhece o seu significado.

VI. A ser assim, a mesma não padece de inconstitucionalidade, por violar o disposto nos artigos 2.º, 32.º, 202.º, n.º 1, e 204.º, todos da CRP.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

A – Relatório

1. Pela Comarca de Castelo Branco (Juízo Local Criminal da Covilhã), sob acusação do Ministério Público, por um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º e 218º, nº 2, alínea b), ambos do Código Penal, foi submetido a julgamento o arguido RM.

2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, a 8.6.2020, decidindo-se:

- Condenar o arguido RM pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º, nº 1, e 218º, nº 2, alínea b), do Código Penal, na pena de três anos e três meses de prisão.

(…)

3. Inconformado com a douta sentença, veio o arguido RM interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“1 – Do teor da douta Sentença recorrida, resultou para o Arguido/Recorrente a sua condenação como «autor de um crime de burla qualificada p. p. pelos arts. 217º, nº 1, 218º, nº 2, al. b), todos do Cód. Penal, na pena de três anos e três meses de prisão».

2 – Não pode o Arguido conformar-se com a Douta Sentença, relativamente à qualificação do crime de burla e à escolha e determinação da concreta medida da pena.

3 - A Mmª Juiz “a quo” na matéria dos factos provados:

No ponto 10º refere na sentença que: “Apesar de o arguido ter afirmado não ter profissão, faz da prática de burlas seu modo de vida, sendo uma das suas fontes de rendimento”.

4 - Com o devido respeito, não entende o arguido em que concreto meio de prova se estribou a Mmª Juiz para dar como provado o referido facto.

5 – Segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (acessível em www.dgsi.pt), de 07.11.2018, no qual foi relatora a Exmª Srª Juiz Desembargadora Maria José Nogueira:

“I – A circunstância qualificativa do crime de burla prevista na alínea b), nº 2, do artigo 218º do CP deve ser entendido como a maneira com que o agente logra obter os proveitos indispensáveis à sua vida em comunidade, não sendo absolutamente preciso que se trate de uma ocupação exclusiva ou contínua, podendo até ser intermitente ou esporádica, desde que ela contribua significativamente para o sustento do visado (…)”

6 - O Tribunal a quo subsumiu os factos e qualificou o crime praticado com fundamento nos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, al. b), ambos do Cód. Penal. De acordo com a alínea b), do nº 2, do referido preceito legal, o crime de burla é qualificado se “o agente fizer da burla modo de vida”.

7 - Para que uma atividade se possa concretizar como “modo de vida”, exige-se que seja uma atividade reiterada e que ocorra durante um lapso temporal alargado, que permita afirmar-se – com certeza – que o agente fez das suas condutas um modo de subsistência.

8 - Com o devido respeito, não se pode concluir indubitavelmente do que consta do processo que o arguido faz da burla o seu modo de vida; senão vejamos o que consta do relatório social elaborado pela DGRSP – no ponto II – condições sociais e pessoais.

“A nível laboral, o arguido trabalhou por contra própria como mecânico de automóveis e vendedor de peças de automóveis, num espaço arrendado em X... – Vila Nova de Cerveira. Em março de 2018, referiu estar coletado como empresário, em nome individual, na área do comércio a retalho de peças e acessórios para automóveis, alterando a sua atividade para Viana do Castelo, onde arrendou um espaço, encerrando a sua atividade em Vila Nova de Cerveira. Presentemente, RM afirma continuar coletado em nome individual, tendo um outro espaço de trabalho, desde agosto de 2018, nas proximidades de SC…., em Viana do Castelo, onde diz proceder à reparação de viaturas que adquire para venda. Paralelamente compra e venda de peças também para automóveis.

O arguido refere retirar uma média de 600 € a 700 € mensais e a companheira aufere o equivalente ao salário mínimo nacional.

As despesas do agregado são repartidas entre o casal, uma vez que a filha da companheira assegura a amortização do crédito contraído para a realização de obras na habitação (…)”.

9 - Aliás, na esteira da mesma jurisprudência dominante, seria necessário para qualificar o crime de burla, que se dessem como provados na sentença sob recurso, os concretos factos em que a Mma. Juiz fundamenta o facto provado “10.” que não apenas o historial dos processos nos quais o arguido foi julgado.

10 - Com efeito, do processo até resulta provado o contrário, ou seja, que o recorrente não faz da burla um modo de vida e, antes pelo contrário, exerce a profissão de mecânico de automóveis na cidade de Viana do Castelo, pela qual aufere uma média de 600 a 700 € mensais, vivendo com a sua companheira e com a filha desta, todos contribuindo com os rendimentos que auferem das suas profissões para o sustento do agregado familiar, tal como tudo melhor se encontra descrito no facto provado 15, als. e) e f).

(…)

20 – Acresce ainda que, o arguido pretende que seja declarada a inconstitucionalidade da interpretação levada a cabo pelo Tribunal “a quo” da norma do art. 218º, nº 2, al. b), do Cód. Penal:

“Apesar do arguido ter afirmado não ter profissão, faz da prática de burlas seu modo de vida, sendo uma das suas fontes de rendimento.”

21 – In casu está provado que “… presentemente, o arguido continua coletado em nome individual, tem um outro espaço de trabalho, desde agosto de 2018, nas proximidades do SC…, em Viana do Castelo, onde procede à reparação de viaturas que adquire para venda. Paralelamente, compra e vende peças também para automóveis”.

“O arguido aufere uma média de 600 € a 700 € mensais e a companheira aufere o equivalente ao salário mínimo nacional.

As despesas do agregado são repartidas entre o casal, uma vez que a filha da companheira assegura a amortização do crédito contraído para a realização de obras na habitação”.

22 – Pelo que, segundo o tribunal a quo, da interpretação que faz daquela norma, ou seja, do concreto “modo de vida”, considerou que “atenta a factualidade dada como provada, verifica-se que a astúcia exercida pelo arguido no negócio encetado com o ofendido, integrada num complexo idêntico ao de infrações cometidas pelo arguido em moldes semelhantes à dos autos, é suscetível de revelar um sistema de vida (como é o caso do ladrão ou do burlão que viveu sem trabalhar) alicerçada no provento do delito”.

23 – Ora com o devido respeito, esta norma do artigo 218º, nº 2 al. b) do CP, deverá ser julgada inconstitucional, por possuir um teor incriminatório extremamente vago, quando não permite a delimitação exata das situações abrangidas por aquele conceito de “modo de vida”. Com efeito, a interpretação suprarreferida do artigo 218º, nº 2, al. b), do CP deve ser declarada inconstitucional, por violação das seguintes disposições, todas da Constituição da República Portuguesa:

Artigo 2º, uma vez que ofende o subprincípio da confiança inerente ao princípio do Estado de direito democrático (princípio da precisão ou determinabilidade dos actos normativos);

Artigo 202º, nº 1, na medida em que, assim, se impede a administração da justiça, a qual é um dever;

Artigo 204º, já que aplica normas inconstitucionais.

24 – Além disso, aquela norma viola também o artigo 32º da CRP, uma vez que coloca em causa os direitos de defesa do arguido,

Senão vejamos:

Nas definições legais dos Crimes Contra o Património, o Código Penal não define “modo de vida”, o que, com o devido respeito, dá uma margem de liberdade para os Tribunais interpretarem a norma da forma que bem entenderem, dificultando desta forma que o arguido exerça o seu direito de defesa”.

(…)

7. Respeitando as formalidades aplicáveis, após o exame preliminar e depois de colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

8. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.


*

B – Fundamentação

(…)

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelo recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

- se a situação sub judice pode subsumir-se na qualificativa “modo de vida”;

(…)

- se é inconstitucional a norma do artigo 218º, nº2, alínea b), do Código Penal, por violar os artigos 2º, 202º, nº 1, 204º e 32º todos da CRP, na interpretação que lhe foi dada pelo tribunal a quo e que conduziu ao facto provado nº 10 (“apesar do arguido ter afirmado não ter profissão, faz da prática de burlas seu modo de vida, sendo uma das suas fontes de rendimento) e ainda por possuir um teor incriminatório extremamente vago e não permitir a delimitação exacta das situações abrangidas pelo conceito “modo de vida”.

3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos a factualidade e motivação da sentença recorrida:

“FACTOS PROVADOS

 DA ACUSAÇÃO PÚBLICA:

1.

Em data anterior a 07.03.2019, o arguido RM, com o propósito de obter para si vantagem económica, publicitou para venda, na secção de classificados do jornal diário Correio da Manhã, um anúncio com os seguintes dizeres: “Peças usadas,VENDO, Motores, caixas velocidades, todo tipo material mecânica, eletricidade, chapa, airbags, etc. Entrega todo País. Sr. Marques. T: 92…”.

2.

Na sequência do anúncio mencionado em 1., no dia 07.03.2019, o ofendido MF contactou o arguido, através do número 92…, que se apresentou como sendo “RM” e acordou com este a compra de um motor para um veículo de marca Peugeot, modelo 206hdi, de 90cv.

3.

Assim, estipularam que o ofendido transferiria o valor de €650,00 para a conta com o IBAN (…), titulada pelo arguido RM e IB, para pagamento do dito motor.

4.

O arguido forneceu o seu IBAN ao ofendido, tendo para esse efeito enviado uma mensagem de correio eletrónico com tais dados, a partir do endereço (…) assinando aquela mensagem com o nome “RM”.

5.

Convicto do negócio celebrado e com o propósito de cumprir o acordado, nesse dia 07.03.2019, pelas 18.49h, o ofendido efetuou a transferência bancária da quantia de 650,00€ para a conta bancária com IBAN indicado em 3. e co titulada pelo arguido RM.

6.

Sucede que o arguido, até à data, não enviou o motor nos termos acordados, tampouco devolveu o montante recebido, deixando de atender as chamadas que o ofendido lhe fez depois de efetuado aquele pagamento.

7.

O arguido RM sabia que, ao colocar um anúncio de venda na secção de “classificados” de um jornal diário como é o “Correio da Manhã”, ali se exibindo como vendedor de várias peças usadas para veículos, como se de para venda se tratasse, e ao encetar negociações com o ofendido para a aquisição de um motor, criava neste a convicção de que o negócio se iria concretizar nos termos anunciados e depois acordados.

8.

Mais sabia o arguido que a publicitação daquele anúncio, no local e pela forma como foi feito, era um meio idóneo a criar a convicção no ofendido da concretização do negócio, o que levou a que este efetuasse o pagamento de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros), provocando-lhe desta forma um empobrecimento pelo menos em igual valor.

9.

Ao agir da forma descrita, o arguido teve como propósito alcançar para si benefícios e enriquecimento que sabia não lhe serem devidos e como tal ilegítimos, o que conseguiu, enriquecendo o seu património no montante de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros), à custa do empobrecimento do ofendido MF, que se viu privado deste valor.

10.

Apesar de o arguido ter afirmado não ter profissão, faz da prática de burlas seu modo de vida, sendo uma das suas fontes de rendimento.

11.

Tanto assim é que decorre do certificado de registo criminal de RM que o mesmo, além das inúmeras condenações sofridas no estrangeiro, quando emigrado, e de outras por crimes diversos, já sofreu, também, as seguintes condenações:

a) Por sentença transitada em julgado em 27.10.2008, pela prática, em 19.12.2004, de um crime de burla simples na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €4,00;

b) Por sentença transitada em julgado em 16.08.2016, pela prática, em 2008, de um crime de burla simples na pena de 6 meses de prisão efetiva;

c) Por sentença transitada em julgado em 08.07.2016, pela prática, em 03.04.2014, de um crime de burla simples na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €5,00;

d) Por sentença transitada em julgado em 07.01.2019, pela prática, em 08.03.2016, de um crime de burla simples, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano; e

e) Por sentença transitada em julgado em 03.04.2019, pela prática, em 03.10.2018, de um crime de burla simples, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.

12. Além destas condenações, o arguido é suspeito em 14 outros inquéritos, todos pela prática de crimes de burla relativas a vendas de peças automóveis, a saber, nos seguintes NUIPC’s:

(…)

13.

O arguido vem atuando de forma livre, voluntária e consciente, apesar de bem saber que a sua conduta era proibida por lei.

DAS CONDIÇÕES PESSOAIS E SÓCIO ECONÓMICAS DO ARGUIDO:

14.

O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:

. Nos autos de proc. n. (…), por decisão datada de 25-10-2007, transitada em julgado no dia 19-11-2007, o arguido foi condenado na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 4,50 euros, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art. 11, n. 1, do DL n. 454/91, pena esta declarada extinta em 20-03-2013.

. Nos autos de proc. n. (…), por decisão datada de 28-04-2008, transitada em julgado no dia 27-10-2008, o arguido foi condenado na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 4,00 euros, pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217, do CPenal, pena esta declarada extinta em 15-03-2013.

. Nos autos de proc. n. (…), por decisão datada de 21-07-2008, transitada em julgado no dia 22-09-2008, o arguido foi condenado na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204, do CPenal, pena esta declarada extinta em 19-12-2013.

. Nos autos de proc. n. (…), por decisão datada de 30-10-2012, transitada em julgado no dia 17-12-2012, o arguido foi condenado na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art. 11, do DL 454/91, pena esta declarada extinta em 21-03-2017.

. Nos autos de proc. n. (…), por decisão datada de 05-08-2016, transitada em julgado no dia 16-08-2016, o arguido foi condenado na pena de seis meses de prisão, pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217, do CPenal, pena esta declarada extinta em 02-04-2017.

. Nos autos de proc. n. (…), por decisão datada de 08-06-2016, transitada em julgado no dia 08-07-2016, o arguido foi condenado na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217, do CPenal, pena esta declarada extinta em 21-03-2017.

. Nos autos de proc. n. (…), por decisão datada de 22-11-2017, transitada em julgado no dia 07-01-2019, o arguido foi condenado na pena de oito meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, mediante a condição do arguido pagar ao assistente, no prazo de seis meses, a quantia fixada a titulo de indemnização por danos patrimoniais, pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217, do CPenal.

. Nos autos de proc. n. (…), por decisão datada de 26-03-2019, transitada em julgado no dia 03-04-2019, o arguido foi condenado na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217, do CPenal.

15.

(…)


*

 4. Cumpre agora apreciar e decidir.

A primeira questão que cumpre apreciar é a de saber se a situação sub judice pode subsumir-se na qualificativa “modo de vida”.

Alega o arguido que o presente recurso visa apenas a matéria de direito.

Porém, alega igualmente que a Mmª Juiz “a quo na matéria dos factos provados:

No ponto 10º refere na sentença que: “Apesar de o arguido ter afirmado não ter profissão, faz da prática de burlas seu modo de vida, sendo uma das suas fontes de rendimento”. Ora, com o devido respeito, não se entende em que se baseou a Mmª Juiz para dar como provado o referido facto”.

Mais alega que para que uma atividade se possa concretizar como “modo de vida”, exige-se que seja uma atividade reiterada e que ocorra durante um lapso temporal alargado, que permita afirmar-se – com certeza – que o agente fez das suas condutas um modo de subsistência. Com o devido respeito, o arguido não fez da burla modo de vida; senão vejamos o que consta do relatório social elaborado pela DGRSP – no ponto II – condições sociais e pessoais:

“A nível laboral, o arguido trabalhou por contra própria como mecânico de automóveis e vendedor de peças de automóveis, num espaço arrendado em X... – Vila Nova de Cerveira. Em março de 2018, referiu estar coletado como empresário, em nome individual, na área do comércio a retalho de peças e acessórios para automóveis, alterando a sua atividade para Viana do Castelo, onde arrendou um espaço, encerrando a sua atividade em Vila Nova de Cerveira. Presentemente, RM afirma continuar coletado em nome individual, tendo um outro espaço de trabalho, desde agosto de 2018, nas proximidades de SC…, em Viana do Castelo, onde diz proceder à reparação de viaturas que adquire para venda. Paralelamente compra e venda de peças também para automóveis.

O arguido refere retirar uma média de 600 € a 700 € mensais e a companheira aufere o equivalente ao salário mínimo nacional.

As despesas do agregado são repartidas entre casal, uma vez que a filha da companheira assegura a amortização do crédito contraído para a realização de obras na habitação (…)”.

Assim, o arguido acaba por impugnar o facto 10 da factualidade provada, por entender encontrar-se em contradição com o teor do referido relatório, defendendo ainda que a matéria dos autos não se subsume no conceito de modo de vida.

Vejamos se lhe assiste razão.

O arguido foi condenado por um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º, nº 1, e 218º, nº 2, alínea b), do Código Penal.

 Estipula o artigo 217º, nº 1, do Código Penal que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

Por sua vez, de acordo com o artigo 218º, nº 2, alínea b), do mesmo diploma legal, a pena é a de prisão de dois a oito anos se o agente fizer da burla modo de vida.

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 3ª ed. atualizada, pág. 804 “o modo de vida é a actividade com que o agente se sustenta. Não é necessário que se trate de uma ocupação exclusiva, nem contínua, podendo até ser intermitente ou esporádica, desde que ela contribua significativamente para o sustento do agente. Não se identifica, pois, com a mera habitualidade”.

Maia Gonçalves, in Código Penal Português, anotado e comentado, 18º ed., pág. 734, afirma que “a qualificativa da alínea h) do nº 1 do artigo 204º corresponde à da alínea e) do nº 2 do artigo 297º da versão originária do Código. O texto desta alínea e) era, no entanto, mais abrangente: habitualmente ou fazendo da sua prática, total ou parcialmente, modo de vida”.

Por sua vez, Faria Costa in Comentário Conimbricense ao Código Penal, em anotação à alínea h) do nº 1 do artigo 204º do Código Penal, defende que “modo de vida é a maneira - em uma óptica estritamente objectiva, isto é, sem qualquer espécie de valoração sobre o sentido lícito ou ilícito do comportamento assumido no quotidiano - pela qual quem quer que seja consegue os proventos necessários à própria vida em comunidade. Modo de vida é, aqui, por conseguinte, perspectivado como uma categoria axiologicamente neutral.

Por outro lado, a plasticidade com que hoje se captam os diferentes modos de vida - em tudo quase coincidentes com as profissões que todos conhecemos – tidos por normais e aceitáveis na actual sociedade - v. g., canalizador, médico, pedreiro, advogado - não pode também deixar de se reflectir neste domínio.

Os modos de vida, hoje, mesmo os que se afirmam como os mais tradicionais ou comuns, não se espelham nem cristalizam em um só segmento. Aí esta o pluri-emprego ou o emprego em tempo parcial a prová-lo. …

As pessoas tendem a fazer várias coisas ao mesmo tempo, tendem a trabalhar em diferentes domínios ao mesmo tempo, e isso é o seu modo de vida. Ora, se isto é assim em uma chamada vida normal não temos a menor dúvida em considerar que o mesmo se passa quando alguém se lança na carreira criminosa da pratica de furtos. Quer isto significar de forma muito clara que não é absolutamente preciso que o delinquente se dedique, de jeito exclusivo, aos furtos para que se possa dizer que dessa pratica faz um modo de vida. Bem pode ter uma profissão socialmente visível - o que não poucas vezes até facilita a actividade ilícita que se realiza às ocultas - e, mesmo assim, poder considerar-se que a série de furtos que pratica seja factor determinante para que se possa concluir que ele disso - isto é, desse pedaço da vida - faça também um modo de vida. Mesmo nas situações ilegais ou criminosas os modos de vida devem ser compreendidos de maneira plural e suscetíveis de se cruzarem com modos de vida assumidamente legitimados pela sociedade. …

Uma tal forma de apreciar este elemento faz com que afastemos qualquer ligação, materialmente fundada, entre modo de vida e habitualidade. Na verdade, se é certo que as duas noções que ora se confrontam têm, formalmente, um elemento comum, qual seja, uma série reiterada de modelos de comportamento, é evidente que as representações sociais que se ligam ao modo de vida e à habitualidade são radicalmente diversas. Para o modo de vida temos uma representação de estabilidade ligada, sem margem para dúvidas, a um comportamento que, em princípio, se traduz em benefício pessoal e social enquanto a habitualidade se cristaliza, nas representações sociais, como uma forma de conduta reiterada tout court. Forma de conduta que, desde sempre, foi valorada pelo direito penal. Neste sentido, a habitualidade é uma categoria dogmático-penal conexionada com a perigosidade criminal sobretudo enquanto contraponto a uma criminalidade meramente ocasional (EDUARDO CORREIA II 272). Um delinquente habitual é, ipso facto, um delinquente perigoso. Ora, uma tal correspondência não existe, nem de longe nem de perto, quando operamos com o conceito “modo de vida”. O modo de vida do delinquente pode ser a prática de furtos, mas isso não faz dele um delinquente perigoso. A única coisa que determina é uma qualificação do furto”.

O que vale integralmente para a mesma qualificativa do crime de burla.

Também a jurisprudência se encontra em consonância com as aludidas posições doutrinárias.

No esclarecedor acórdão desta Relação de Coimbra, de 16.6.2015, in www.dgsi.pt, pode ler-se que:

“O legislador preocupou-se em censurar de forma especial a conduta daqueles que têm a propensão para a prática de crimes contra o património, isto é, aqueles que vivem à custa do alheio, conhecidos vulgarmente por “ladrões” ou “burlões” (Título I - artigos 202.º a 235.º), elevando a qualificativa agravante os que fazem de determinado crime “modo de vida”. Assim acontece ao considerar como qualificativa quem fizer do crime “modo de vida” relativamente aos crimes de furto (art. 204.º, n.º 1, al. h)), roubo (art. 210.º, n.º 2, al. b)) e burla (art. 218.º, n.º 2, al. b)). 

Como primeira observação diremos que não se exige que o agente se dedique de forma exclusiva à prática de um daqueles tipos legais de crime, mas sim que a série de ilícitos contra o património que o agente pratique seja factor determinante para que se possa concluir que disso também faz modo de vida.

Fazer da burla modo de vida não quer significar que faça da burla a única forma do arguido obter rendimentos para o seu sustento. A lei não exige tanto e nem poderia exigir. E não vai tão longe porque o que acentua a censurabilidade para qualificar o crime face à al. b), do n.º 2, do art. 218.º, é a prática reiterada e habitual de actos que consubstanciem o crime de burla. Ao punir como burla qualificada o agente que “fizer da burla modo de vida” a lei quis punir de forma mais severa o “burlão profissional”, conforme terminologia utilizada no Anteprojecto do anterior art. 213.º, relativamente ao agente que praticou o crime de forma ocasional. Para qualificar o crime não é necessário que se verifique a “profissionalidade” ou indo mais longe como o fez na argumentação o recorrente a “exclusividade” de ocupação para o agente se sustentar, bastando para tal a habitualidade da prática do crime para funcionar a qualificativa aqui em análise (BMJ n.º 287, pág. 43)”. 

Refere ainda o mesmo aresto que para integrar o conceito fazendo da burla modo de vida, “o complexo das infracções deve revelar um sistema de vida, como é o caso do ladrão ou do burlão que vivem sem trabalhar, dos proventos dos delitos (Cfr. Manzini, Tratado, Vol. III, pág. 223). E neste sentido não exigem condenações transitadas em julgado para daí se concluir pela habitualidade, bastando que se prove a propensão do agente para a prática de actos que integrem o crime de burla. Neste sentido, entende-se como fazendo “da burla modo de vida”, a entrega habitual à burla, que se basta com a pluri-reincidência, devendo ser tomadas em consideração, não só as anteriores condenações do agente constantes do seu registo criminal, mas também as denúncias ou participações policiais existentes, o conteúdo dos ficheiros policiais e todos os outros elementos testemunhais ou documentais.  O facto de o agente ter meios próprios de subsistência ou meios de rendimentos lícitos, não exclui que possa fazer da burla modo de vida, considerando-se verificada a circunstância qualificativa do crime de burla, constante do artigo 218.º, n.º 2, alínea b), do CP.”.

Também o Ac. da RC de 7.11.2018 refere que “a circunstância qualificativa do crime de burla prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 218.º do CP deve ser entendida como a maneira com que o agente logra obter os proventos indispensáveis à sua vida em comunidade, não sendo absolutamente preciso que se trate de uma ocupação exclusiva ou contínua, podendo até ser intermitente ou esporádica, desde que ela contribua significativamente para o sustento do visado”.

Revertendo ao caso concreto, frisam-se os seguintes factos provados:

10. Apesar de o arguido ter afirmado não ter profissão, faz da prática de burlas seu modo de vida, sendo uma das suas fontes de rendimento.

11. Tanto assim é que decorre do certificado de registo criminal de Rui Marques que o mesmo, além das inúmeras condenações sofridas no estrangeiro, quando emigrado, e de outras por crimes diversos, já sofreu, também, as seguintes condenações:

a) Por sentença transitada em julgado em 27.10.2008, pela prática, em 19.12.2004, de um crime de burla simples na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €4,00;

b) Por sentença transitada em julgado em 16.08.2016, pela prática, em 2008, de um crime de burla simples na pena de 6 meses de prisão efetiva;

c) Por sentença transitada em julgado em 08.07.2016, pela prática, em 03.04.2014, de um crime de burla simples na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €5,00;

d) Por sentença transitada em julgado em 07.01.2019, pela prática, em 08.03.2016, de um crime de burla simples, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano; e

e) Por sentença transitada em julgado em 03.04.2019, pela prática, em 03.10.2018, de um crime de burla simples, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.

12. Além destas condenações, o arguido é suspeito em 14 outros inquéritos, todos pela prática de crimes de burla relativas a vendas de peças automóveis, a saber, nos seguintes NUIPC’s:

(…)

15. b) Na sequência do divórcio do casal, o arguido emigrou para Espanha onde viveu vários anos, alguns dos quais em união de facto com a anterior companheira, de quem tem dois filhos.

Em 2013, voltou a residir em Portugal, movimentando-se habitualmente entre as regiões de Valença, Vila Nova de Cerveira e Caminha, sendo neste último concelho que fixou residência já com a actual companheira, que conheceu em 2013.

No início da vida adulta, o arguido obteve formação profissional na área da mecânica de automóveis, à qual se foi dedicando como segunda actividade, em simultâneo com outras profissões que exerceu: feirante, cortador de carnes num supermercado e motorista de ligeiros. Mais tarde, o arguido assumiu como profissão principal a actividade de mecânico de automóveis, após ter estado emigrado em Espanha, onde trabalhou por conta de outrem e, posteriormente, por conta própria, numa oficina que, alegadamente, encerrou quando regressou definitivamente a Portugal em 2013.

c) O arguido tem antecedentes criminais, tendo sido julgado e condenado em Espanha, por crimes de “apropriacion indebida, impago de prestaciones economicas familiares e estafa”.

e) Ao nível laboral, o arguido trabalhou por conta própria como mecânico de automóveis e vendedor de peças para automóveis, num espaço arrendado em X... – Vila Nova de Cerveira. Em março de 2018, esteve coletado como empresário, em nome individual, na área do comércio a retalho de peças e acessórios para automóveis, alterando a sua actividade para Viana do Castelo, onde arrendou um espaço, encerrando a sua atividade em Vila Nova de Cerveira. Presentemente, o arguido continua coletado em nome individual, tendo um outro espaço de trabalho, desde agosto de 2018, nas proximidades do SC…, em Viana do Castelo, onde procede à reparação de viaturas que adquire para venda. Paralelamente, compra e vende peças também para automóveis.

f) O arguido aufere uma média de €600 a €700 mensais e a companheira aufere o equivalente ao salário mínimo nacional. As despesas do agregado são repartidas entre o casal, uma vez que a filha da companheira assegura a amortização do crédito contraído para a realização de obras na habitação.

g) No actual meio comunitário de referência, para o qual mudou muito recentemente, o arguido teve já registo de um incidente, noticiado nos órgãos de comunicação social, aquando da concentração de um grupo de indivíduos junto à sua residência, todos lesados pelo arguido, em consequência de factos semelhantes aos ids. em 1. a 6. e 10, supra. Esta movimentação exigiu a intervenção da GNR e do NIC de Viana do Castelo e causou alguma apreensão junto da população.

Ora, como se disse, para a qualificativa modo de vida não é necessário uma ocupação exclusiva com a actividade ilícita, nem mesmo contínua, podendo até ser intermitente, desde que contribua para o sustento do arguido, o que tem que ressaltar da série de ilícitos cometidos.

É sintomática a pluri-reincidência, as condenações anteriores do agente constantes do seu CRC, assim como as denúncias ou participações policiais existentes, o conteúdo dos ficheiros policiais e todos os outros elementos testemunhais ou documentais.

No caso sub judice, face às várias condenações do arguido pelo crime de burla, aos 14 inquéritos onde o arguido é suspeito por crimes de burla relativas a venda de peças de automóveis, e ainda ao incidente já ocorrido junto da sua residência e supra mencionado, levado a cabo por indivíduos por si lesados em consequência de factos semelhantes aos mencionados nos pontos 1 a 6 e 10 da factualidade provada, dúvidas não existem que a situação sub judice se enquadra na qualificativa modo de vida.

Conclusão que não é infirmada pelo facto de o arguido trabalhar, também, de forma lícita. Como se disse, o conceito modo de vida não exige exclusividade da actuação ilícita.

Estamos perante um agente que foi praticando várias burlas ao longo dos anos, em paralelo com o exercício, lícito, de outras atividades profissionais, sendo de realçar que nos 14 inquéritos em que é suspeito, supra identificados, por crimes de burla, estas são relativas a vendas de peças automóveis. Isto é, são actividades ilícitas em estreita ligação às actividades lícitas exercidas.

Naturalmente que dessas actividades ilícitas retira proventos para fazer face às suas despesas.

A ser assim, bem andou o tribunal a quo ao dar como provado o facto 10. É, aliás, o que resulta da conjugação dos demais factos supra referidos.

Também o teor do relatório social elaborado pela DGRSP, na parte atinente às condições sociais e pessoais, não infirma o que acaba de dizer-se. Aliás, tal matéria resultou provada, como consta das várias alíneas do ponto 15.

Assim, deve manter-se como provado o ponto 10 da factualidade provada, com a redacção que lhe foi conferida pelo julgador, concluindo-se que a situação “sub judice” subsume-se no conceito de modo de vida do artigo 218º, nº 2, alínea b) do Código Penal.

Pelo exposto improcede esta questão suscitada pelo recorrente.


*

(…)

Passa-se agora a apreciar se é inconstitucional a norma do artigo 218º, nº2, alínea b), do Código Penal, por violar os artigos 2º, 202º, nº 1, 204º e 32º todos da CRP, na interpretação que lhe foi dada pelo tribunal a quo e que conduziu ao facto provado nº 10 (“apesar do arguido ter afirmado não ter profissão, faz da prática de burlas seu modo de vida, sendo uma das suas fontes de rendimento) e ainda por possuir um teor incriminatório extremamente vago e não permitir a delimitação exacta das situações abrangidas pelo conceito “modo de vida”.

Relembrando, dispõe o artigo 218º, nº 2, alínea b), do Código Penal que: “A pena é a de prisão de dois a oito anos se o agente fizer da burla modo de vida”.

Por sua vez, as referidas normas da nossa Lei Fundamental são do seguinte teor:

 O artigo 2º, com a epígrafe Estado de Direito Democrático, dispõe que “a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.

O artigo 202º, nº1, com a epígrafe Função Jurisdicional, estipula que “os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”.

Nos termos do artigo 204º, com a epígrafe Apreciação da inconstitucionalidade, “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”.

Por último, com a epígrafe Garantias do Processo Criminal, dispõe o artigo 32º que:

1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.

3. O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.

4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.

5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

6. A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.

7. O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.

8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

9. Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.

10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.

Alega o arguido que “a norma do artigo 218º, nº 2, al. b), do CP, deverá ser julgada inconstitucional, por possuir um teor incriminatório extremamente vago, quando não permite a delimitação exata das situações abrangidas por aquele conceito de “modo de vida”. Com efeito, a interpretação supra-referida do artigo 218º, nº 2, al. b), do CP deve ser declarada inconstitucional, por violação das seguintes disposições, todas da Constituição da República Portuguesa:

Artigo 2º, uma vez que ofende o subprincípio da confiança inerente ao princípio do Estado de direito democrático (princípio da precisão ou determinabilidade dos actos normativos);

Artigo 202º, nº1, na medida em que, assim, se impede a administração da justiça, a qual é um dever;

Artigo 204º, já que aplica normas inconstitucionais.

Mais alega que “além disso, aquela norma viola também o artigo 32º do CRP, uma vez que coloca em causa os direitos de defesa do arguido. Nas definições legais dos Crimes Contra o Património, o Código Penal não define “modo de vida”, o que, com o devido respeito, dá uma margem de liberdade para os Tribunais interpretarem a norma da forma que bem entenderem, dificultando desta forma que o arguido exerça o seu direito de defesa”.

Vejamos, então.

É sabido que a criminalização de determinadas condutas tem que resultar de normas certas, precisas.

Como afirma o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 164, “não pode haver crime, nem pena, que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa”.

Aliás, só assim o princípio da legalidade satisfaz a sua dimensão de garantia dos cidadãos contra a actuação punitiva do Estado.

Exige-se, de facto, uma suficiente especificação do tipo de crime e seus pressupostos, tornando ilegítimas as definições vagas, incertas e insusceptíveis de delimitação. Na descrição da conduta proibida a lei penal tem que ser certa, clara, precisa e rigorosa.

Porém, com isto não se pretende afirmar que esteja vedado ao legislador a utilização de elementos normativos e de conceitos indeterminados, como por exemplo o grave abuso de autoridade, motivo torpe ou fútil, o meio insidioso, entre tantos outros.

Relevante e mesmo indispensável é que nestes casos a sua utilização não obste à determinabilidade objectiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade.

“Como adverte o Professor Figueiredo Dias (Ob. Cit., 173/174), no plano da determinabilidade do tipo legal (ou tipo de garantia), importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até um ponto em que se tornem objectivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objectivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos” e “o critério decisivo para aferir do respeito pelo princípio da legalidade (e da respectiva constitucionalidade da regulamentação) residirá sempre em saber se, apesar da indeterminação inevitável resultante da utilização destes elementos, do conjunto da regulamentação típica deriva ou não uma área e um fim de protecção da norma claramente determinados” – cfr. Ac. da RL de 29.11.2011, in www.dgsi.pt.

Perante normas penais com conceitos normativos e indeterminados, coloca-se então a questão de saber se contêm o grau de determinação exigível para que possam cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de bens jurídicos. Se as normas incriminadoras se revelarem incapazes de definir com suficiente clareza o que é ou não objecto de punição, tornam-se constitucionalmente ilegítimas.

Questão que irá ser solucionada com a actividade interpretativa.

Como se pode ler no Ac. do TC nº 852/2014, o que se exige é “que a lei penal apresente «suficiente densidade» ou «grau de determinação»; que «descreva o mais pormenorizadamente possível» a conduta proibida, detalhando-a «suficientemente» ou com «suficiente clareza»; que aquilo que se exige é «alguma determinação» e que aquilo que se proíbe é o recurso a termos de «determinação difícil»;

Também o Ac. do TC nº 93/2001, menciona que «nem sempre é possível alcançar uma total determinação - nem será, porventura, desejável -, bastando que o facto punível seja definido com suficiente certeza»; ou ainda o Acórdão do TC n.º 76/2016, quando refere que a segurança e a confiança jurídicas postuladas pelo princípio da legalidade penal impõem a exclusão de «normas excessivamente indeterminadas».

“No mesmo sentido, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. I. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2007 [DP I], p. 186, quando nota que os comportamentos proibidos devem ser «objectivamente determináveis»; ou AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, "Artigo 29.º", in Constituição da República Portuguesa Anotada. I, Universidade Católica Editora, 2017 p. 488, quando nota que o princípio da tipicidade impõe um dever de «reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados»; ou MARIA FERNANDA PALMA, Direito Penal. Conceito material de crime, princípios e fundamentos. Teoria da lei penal: interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas, AAFDL, 2017, quando afirma que a violação deste princípio não ocorre «logo que o legislador utiliza conceitos menos precisos», mas somente «quando a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor expresso no tipo legal deixa de existir» - cfr. Ac. do TC 20/2019, de 9.1.2019, in www.jusnet.pt.

Como se refere ainda neste aresto do Tribunal Constitucional “será indiscutível que a língua é uma convenção social, no sentido de que os significados correspondentes aos vários significantes que a compõem são aqueles que uma dada comunidade lhes atribuir - cf. e.g. DAVID DUARTE, op. cit., 198 ss., notando que, consequentemente, o «acesso ao ordenamento» pressupõe um exercício de determinação da norma jurídica que permita ultrapassar a barreira da língua. … Isto é, os significados que os significantes previstos na lei assumem usualmente - ou seja, aqueles que lhes são comummente atribuídos pela generalidade dos indivíduos pertencentes à comunidade - constituem um ponto fundamental de ancoragem do limite mínimo da escala de determinação pressuposta por aquele princípio. Por outras palavras: se o princípio da tipicidade visa fundamentalmente proporcionar aos indivíduos a possibilidade de conhecerem as condutas que podem praticar sem incorrerem numa pena, o significado geralmente atribuído às palavras previstas na lei constitui uma referência central para ponderar a suficiente determinação desta”.

Continua ainda o mesmo aresto, citando, “Neste sentido, veja-se por exemplo o Acórdão n.º 852/2014, notando que os comportamentos proibidos, «para constituírem crimes, têm de ser (...) definidos de modo a poderem ser percebidos como tais pelos destinatários da norma»; ou o Acórdão n.º 338/03, observando que os tipos legais de crime devem permitir «identificar os tipos de comportamentos descritos, na medida em que integram noções correntes da vida social, aferidas pelos padrões em vigor»; ou ainda o Acórdão n.º 545/2000, recorrendo mesmo à noção de «bonus pater famílias» para se reportar ao destinatário da norma penal e beneficiário primacial do princípio da tipicidade”.

Revertendo ao caso concreto, o conceito modo de vida foi, há muito, devidamente interpretado e concretizado pela doutrina e jurisprudência, em termos consonantes, como resulta do que já ficou dito supra. Por outro lado, é uma expressão usada na linguagem comum, significando a forma como o indivíduo vive, abrangendo quer as suas actividades, quer as suas escolhas.

Neste conspecto, não se pode afirmar que a defesa do arguido possa sair prejudicada ou mesmo beliscada.

Como se refere no Ac. do TC nº 20/2019, de 9.1.2019, in www.jusnet.pt. “Voltando à questão da não incompatibilidade necessária entre elementos normativos e/ou técnicos e o princípio da tipicidade, cumpre notar o seguinte relativamente ao ponto mínimo de determinação exigido por aquele princípio: ao aceitar-se que os tipos legais de crime podem, e mesmo devem, fazer uso de tais elementos, está-se necessariamente a aceitar que a sua suficiente determinação dependerá também de eles proporcionarem aos tribunais um quadro suficientemente recortado para que estes, no exercício de uma atividade interpretativa que atenda - aqui sim já inquestionavelmente - a outros elementos da norma penal para além do literal (mas sempre sem o perder de vista), possam fazer, ainda e sempre, um exercício de aplicação do direito e não já de criação de direito”.

O que foi feito com o conceito modo de vida. Conceito este suficientemente determinado, que tanto a doutrina como a jurisprudência já concretizaram.

O que fica dito é suficiente para se concluir que a norma do artigo 218º, nº 2, alínea b), do Código Penal, não contém de forma alguma um teor extremamente vago que não permita a delimitação exacta das situações abrangidas pelo conceito modo de vida.

Não se colocam em causa os direitos de defesa do arguido uma vez que, para além de ser uma expressão usada na linguagem corrente, também a nível do direito já o conceito foi definido tanto pela doutrina como pela jurisprudência. A ser assim, não pode o arguido afirmar que desconhece o seu significado.

Pelo que fica dito, a referida norma, com a interpretação que lhe foi conferida pelo Tribunal a quo e que levou à redacção do ponto 10 da factualidade provada, não padece de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 32º da CRP.

Como também não viola o disposto nas restantes normas constitucionais invocadas (artigos 2º, 202º, nº1, e 204º).

Pelo exposto, improcede igualmente esta questão colocada pelo recorrente.


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C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido RM e, em consequência, decidem manter a sentença recorrida.

                                                                    *

            (…)

                                                                    *

 Notifique.

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Coimbra, 27 de Janeiro de 2021

(Elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal).

Rosa Pinto (Relatora)

Orlando Gonçalves (Adjunto)