Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
509/10.8TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO
MORTE
COMA
Data do Acordão: 09/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 494, 496, PORTARIA Nº 377/2008 DE 26/5, PORTARIA Nº 679/2009 DE 25/6
Sumário: 1 - O estado de coma comporta vários graus - profundo, intermédio e leve – sendo que, atenta a Escala de Coma de Glasgow, cientificamente elaborada e acolhida na prática hospitalar, apenas no primeiro existe, por banda da vítima, completa insensibilidade à dor e inconsciência da sua situação infortunística.

2- Destarte, assiste ao fenecido jus à compensação por danos não patrimoniais ante-morte, se se provar, através de uma adequada exegese dos elementos probatórios dos autos, que ele, antes de morrer, não se encontrava em coma profundo, mas apenas em coma intermédio ou leve, pois que nestes inexiste tal insensibilidade e inconsciência.

3 - Mostram-se adequadas, ou, no mínimo, admissíveis, - em si mesmas e comparativamente com os parâmetros compensatórios hodiernamente fixados pela jurisprudência-, as compensações de 80 mil euros pelo dano morte e de 30 mil euros por danos não patrimoniais da sua mãe, atinentes a um jovem de 20 anos e com forte ligação afectiva a esta.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

MG (…) instaurou contra  MC (…), CJ (…) e Fundo de Garantia Automóvel, ação declarativa, de condenação, com processo ordinário.

Pediu:

A condenação solidária dos réus a pagarem-lhe a importância de € 227.200,00, acrescidos de juros de mora, desde a data da citação, até integral pagamento, sendo € 60.000,00, pela perda do direito à vida do seu filho J (…); € 25.000,00 pelo desgosto que a autora sente, em resultado da morte do filho; € 7.000,00 pelo sofrimento da vítima, antes de falecer e € 135.200,00, referentes ao montante dos rendimentos com que o falecido iria contribuir para as despesas da autora.

Alegou, para tanto, e em síntese, a morte do seu filho J (…), em acidente de viação.

Os réus contestaram pugnando pela improcedência da ação por motivos formais –ilegitimidade da autora – e substanciais – inexistência de alguns dos factos alegados.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual, para além do mais e no que para o que para este recurso releva, foi decidido:

«julgo a presente ordinária nº 509/10.8TBVNO parcialmente provada e procedente e, em consequência:

Condeno solidariamente os réus… a pagarem à autora … a quantia de € 117.000,00, a título de compensação por danos não patrimoniais, sendo € 80.000,00 pela perda do direito à vida de seu filho J (…); € 7.000,00 pelo sofrimento da vítima entre o momento em que sofreu as lesões determinantes da sua morte e aquele em que morreu e € 30.000,00 para ressarcir o desgosto e o sofrimento da autora pela perda de seu filho, todas estas quantias acrescidas de juros às taxas legais, a partir do trânsito em julgado da presente sentença e até integral pagamento;

Absolvem os réus …do remanescente do pedido formulado pela autora…»

3.

Inconformado recorreu o  Fundo de Garantia Automóvel.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Ao direito à vida da vítima do acidente de viação em apreço, que tinha 20 anos de idade, será de atribuir o valor de 65.000,00€.

2. Não resultou provado qualquer sofrimento precedente à morte, pelo que a este título a decisão condenatória terá de ser revogada.

3. Pelos danos não patrimoniais da mãe, a indemnização de 16.472,00€ estaria correcta ou se pecasse, seria por excesso…

4. A douta sentença de fls. violou a Portaria 377/2008, de 26 de maio, que fixou critérios orientadores para a indemnização do dano corporal em Direito Civil.

5. Ainda, o artº 566º, nº 3 do Código Civil.

4.

Sendo que, por via de regra - artºs 635º e 639º-A  do CPC -, de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Inadequação, por excessivos, dos valores pecuniários fixados pela perda do direito à vida do falecido  e  por danos não patrimoniais da sua mãe; e ilegalidade  da fixação dos danos não patrimoniais do falecido por sofrimento ante-morte.

5.

Os factos dados como provados e que importa considerar, são os seguintes:

J (…) nasceu em 16 de Janeiro de 1987, faleceu, no estado de solteiro, em 4 de Maio de 2007 e era filho de MG (…) e de AG (…) falecido em 2 de Agosto de 1994 (alínea A) da matéria assente);

J (…) faleceu em consequência de acidente de viação (alínea B) da matéria assente);

CJ (…) foi condenado pelo crime de homicídio por negligência no âmbito do Processo nº 281/07.9GAVNO que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ourém (alínea C) da matéria assente);

No dia 27 de Abril de 2007, pela 1 hora da madrugada, CJ (…) conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula EU (...), na Estrada Municipal, em Bairro, freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias, comarca de Ourém, no sentido de Bairro para Outeiro das Matas (resposta ao nº 1 da base instrutória);

No interior do referido veículo viajavam ao lado do réu CJ (…), BM (…) e, no banco traseiro, J (…) (resposta ao nº 2 da base instrutória);

Naquele momento, o veículo em causa circulava na via que formava curva acentuada para o lado direito, atento o mesmo sentido de marcha (resposta ao nº 3 da base instrutória);

O réu Carlos J (…) retirou uma das mãos do volante e acendeu a luz interior do veículo de forma a constatar a velocidade a que seguia (resposta ao nº 4 da base instrutória);

O veículo acabou por seguir para o lado esquerdo, por onde circulou atento o mesmo sentido de marcha (resposta ao nº 5 da base instrutória);

Face a tal facto, o réu CJ (…) guinou para o lado direito na direcção do veículo, voltando ainda a dar outra guinada na direcção contrária (resposta ao nº 6 da base instrutória);

E desse modo o veículo invadiu a hemi-faixa do lado esquerdo atento o sentido de marcha do veículo (resposta ao nº 7 da base instrutória);

Embatendo em duas pedras grandes que se encontravam na berma desse mesmo lado esquerdo (resposta ao nº 8 da base instrutória);

Após o que capotou (resposta ao nº 9 da base instrutória);

O veículo de matrícula EU (...) ficou imobilizado do lado direito, perpendicularmente à via, atento o sentido Bairro-Outeiro das Matas (resposta ao nº 11 da base instrutória);

Nessa dinâmica, e em consequência de tais factos o “de cujus” foi projectado para fora do veículo ficando prostrado no solo (resposta ao nº 10 da base instrutória);

O veículo ficou imobilizado no lado oposto, a cerca de 44,75 metros do local onde ocorreu o embate com as referidas pedras (resposta ao nº 14 da base instrutória);

A via asfaltada tem a largura de 5 metros e encontrava-se em regular estado de conservação e o piso encontrava-se seco (resposta ao nº 15 da base instrutória);

O local do acidente constitui curva acentuada, com pouca visibilidade (resposta ao nº 16 da base instrutória);

À data deste acidente, os riscos emergentes da circulação do veículo EU (...) não estavam cobertos por qualquer contrato de seguro de responsabilidade civil (alegado no art. 74º da petição inicial e informação emitida pelo Instituto de Seguros de Portugal junta a fls. 244 e 245);

O condutor do veículo EU (...) o réu CJ (…) conduziu este veículo, naquele dia 27 de Abril de 2007 sem ser titular de licença de condução ou de qualquer outro documento que o habilitasse a tal (alegado no artigo 5º da petição inicial e certidão da sentença proferida no Processo Comum Singular nº 281/07.9GAVNO que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ourém de fls. 197 e seguintes, especialmente, fls. 220 a 242 e da cópia integral da mesma sentença, junta a fls. 20 a 44 e reconhecida por todas as partes como genuína, conforme declaração conjunta em acta de fls. 246 e seguintes, especialmente, fls. 247);

À data deste acidente, o direito de propriedade sobre o veículo EU (...) encontrava-se registado, na Conservatória do Registo Automóvel de Alcanena, em nome da ré MC (…)(artigo 73º da petição inicial e certidão da conservatória do registo automóvel de fls. 257);

Como resultado dos factos supra descritos, o “de cujus” J (…), sofreu lesões traumáticas crâniomeningo-encefálicas (resposta ao nº 12 da base instrutória);

Lesões essas, que lhe causaram directa e necessariamente a morte (resposta ao nº 13 da base instrutória);

J (…) era uma pessoa alegre, forte e saudável (resposta ao nº 18 da base instrutória);

J (…) era amigo e querido da sua mãe e entre ambos existia amor e carinho (resposta ao nº 19 da base instrutória);

Em consequência da morte e do sofrimento do seu filho J (…), a mãe MC (…) passou a viver numa profunda tristeza, angústia e desgosto (resposta aos nºs 23 e 24 da base instrutória);

O “de cujus” J (…), esteve oito dias em coma no Hospital dos Covões em Coimbra (resposta ao nº 25 da base instrutória);

MC (…) acompanhou diariamente o seu filho no hospital (resposta ao nº 26 da base instrutória);

J (…) despendia nos seus gastos próprios quantia não concretamente apurada (resposta ao nº 29 da base instrutória);

Em consequência do acidente referido em 1), J (…) foi assistido nos serviços de urgência e internado até 4 de Maio de 2007 no Centro Hospitalar de Coimbra em 27 de Abril de 2007 (resposta ao nº 31 da base instrutória);

Os encargos com a assistência hospitalar referida em 51) importam na quantia global de € 7.603,95 (resposta ao nº 32 da base instrutória).

6.

Apreciando.

6.1.

Da perda do direito à vida.

6.1.1.

O recorrente pugna pela fixação, no máximo, da quantia de 65.000,00 euros, como compensação pela perda do direito à vida.

Para tanto fundamenta-se nos valores considerados na Portaria 377/2008, de 26/05, já atualizada pela Portaria 679/2009 de 25/06, que fixou critérios e valores orientadores para fixação do quantum indemnizatório, com o intuito da sua uniformização.

E aduz que em tal diploma, e para uma pessoa que tenha até 25 anos, é fixada a indemnização máxima de 61.560,00€. (cf. Anexo II (C) à referida Portaria).

Pelo que, considerando que a Portaria 377/2008 prevê que os valores indemnizatórios sejam atualizados anualmente de acordo com o índice de preços no consumidor, deve ser arbitrado a quantia por ele defendida.

Mas, sdr., não lhe assiste razão.

Para a análise, dilucidação e decisão sobre a presente problemática importa ter presente e interiorizar os seguintes, necessários, pressupostos/critérios orientadores:

Primeiro:

O bem vida é o bem e valor supremo do ser humano, sendo que, correlativamente, o dano da morte é o prejuízo supremo; decorrentemente, o ressarcimento/compensação da perda do direito é vida deve ser impressivamente superior à indemnização concedida pela violação de qualquer outro dano – cfr. entre outros, o Ac. do STJ de 10.2010, p. 488/07.9GBLSA.C1.S1, in dgsi.pt.

Segundo:

«Ocupando o topo da pirâmide dos direitos fundamentais, do qual derivam, deve abandonar-se um critério miserabilista, numa visão moderna e actualista assumindo-se um que corresponda ao valor da vida posto em ênfase nos areópagos internacionais, ao valor que lhe é dedicado num Estado de direito, prestigiando-o por atribuição de adequada importância monetária, ajustada a compensar o desgosto da sua supressão» - Cfr., entre outros, o aresto sup.cit. com sublinhado nosso.

Terceiro.

Ainda  que  numa perspetiva  altruísta, filosófica e ético/moral, o bem vida tenha um valor igual para todos, o que, tendencialmente, imporia uma unicidade compensatória,  não nos podemos esquecer que: «A vida não só tem um valor de natureza - igual para toda a gente - mas também um valor social, uma vez que o homem é um ser em situação.» - Ac. do STJ de 08.09.2011, p. 2336/04.2TVLSB.L1.S1.

Destarte, e sem postergar aquela princípio fundamental e estruturante - o qual impedirá o arbitramento de valores profundamente díspares/diferenciados -, podem e devem fixar-se montantes que tenham em consideração a efetiva ou potencial relevância social do fenecido, considerando-se, vg. «o papel excepcional que desempenha na (família) sociedade»– Ac. do STJ ante cit., a sua idade, o seu estado de saúde, etc. – neste sentido, cfr. ainda, o Ac. do STJ de 29.10.2013, p. 62/10.2TBVZL.C1.S1.

Quarto.

Aqui, como em outros campos/vertente jurisdicionalmente apreciados e decididos, urge prolatar decisões o mais possivelmente uniformes no quantum arbitrado.

Consequentemente não pode olvidar-se que, hodiernamente, a jurisprudência do nosso mais alto tribunal entende que se encontram dentro de limites admissíveis, em função precisamente de fatores de jaez social e etário que permitem uma certa relativização compensatória, valores que se situem  em torno dos 60/80 mil euros.

Havendo, inclusive, arestos que, considerando a jovem idade da vítima, admitem como ajustado o montante de cem mil euros.

Assim:

No Ac. do STJ de 23.02.2011, p. 395/03.4GTSTB.L1.S1 fixou-se 80 mil euros para fenecido de 23 anos, académico.

No Ac. do STJ de 08.09.2011, p. 2336/04.2TVLSB.L1.S1 arbitrou-se cem mil euros para uma infortunada jovem de 14 anos.

E no Ac. de 31.05.2012, p. 14143/07.6TBVNG.P1.S, arbitrou-se a quantia de 80 mil euros para um jovem de 19 anos.

Quinto.

Constitui jurisprudência uniforme e sedimentada do STJ que: «Os tribunais não estão vinculados, na fixação equitativa dos montantes indemnizatórios a atribuir aos lesados em acidentes de viação, à aplicação das tabelas plasmadas na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, …estas estabelecendo padrões mínimos, a cumprir pelas seguradoras, na apresentação a tais lesados de propostas sérias e razoáveis de regularização dos sinistros» - Ac. do STJ de 16.01.2014, p. 1269/06.2TBBCL.G1.S1.

Na verdade e tal como o recorrente acaba por admitir, os valores constantes na Portaria supra referida têm apenas uma função meramente orientadora para o julgador.

E nunca se lhes podendo inelutavelmente impor, o que, a acontecer, muitas vezes acarretaria, inexoravelmente, a injustiça do caso concreto, atentas as múltiplas facetas e cambiantes factico-circunstanciais que cada um pode assumir – neste sentido, cfr. ainda os Acs. do STJ de 27.10.2010, p. 488/07.9GBLSA.C1.S1; de 29.10.2013, p. 62/10.2TBVZL.C1.S1; e de 28.11.2013, p. 177/11.0TBPCR.S1.

6.1.2.

Descendo ao caso concreto, verifica-se que se trata de falecido muito jovem, com vinte anos, relativamente ao qual, e à míngua de factos que provem o contrário, tem, em termos de normalidade, de conceder-se uma longa e útil/profícua vida, individual, familiar e socialmente considerada.

Ademais, apurou-se que era «uma pessoa alegre, forte e saudável», o que reforça aquele juízo prognóstico positivo.

Nesta conformidade e tendo em consideração os mencionados critérios ou pressupostos, meridianamente se conclui que o valor fixado se alcança como adequado/justo/equitativo, ou, ao menos, ainda ínsito dentro do parâmetro quantitativo jurisprudencialmente fixado.

Pelo que o mesmo se alcança, quer em termos absolutos, atentos os contornos do caso, quer na vertente relativa/comparativa, por reporte a decisões proferidas em casos similares, como claramente admissível.

6.2.

Dos danos não patrimoniais da progenitora.

6.2.1.

Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – artº 496º nº1 do CC.

A indemnização por danos não patrimoniais reveste uma natureza acentuadamente mista.

 Por um lado visa, mais do que indemnizar, reparar os danos sofridos pela pessoa lesada; pretende-se proporcionar ao lesado uma compensação ou benefício de ordem material - a única possível -, que lhe permite obter prazeres ou distracções - porventura de ordem puramente espiritual - que, de algum modo, atenuem o desgosto sofrido: não consiste num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris.

Por outro lado não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente. – cfr. Antunes Varela,  in Das Obrigações em Geral, vol. I, pág. 488.

 Resta sempre difícil apurar, com rigor, da adequação do montante compensatório dos danos não patrimoniais.

Deve porém ter-se presente, no seguimento do já supra exposto, que a mais recente jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal vem reconhecendo que se torna necessário elevar o nível dos montantes compensatórios dos danos morais, afastando-se critérios miserabilistas.

Certo é que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, e designadamente, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso  - arts 496º, nº 3 e 494º do C.C.

E que a gravidade do dano ha-de medir-se por um padrão objetivo, que tenha em conta o circunstancialismo de cada caso, e não por padrões subjetivos, resultantes de uma sensibilidade particular.

Urge outrossim interiorizar que, fazendo-se apelo a um julgamento équo, em que os critérios que os tribunais devem seguir não são nem podem ser fixos, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”, só se justificando uma intervenção corretiva se a indemnização se mostrar desajustada por  meridianamente desconforme a esses elementos – cfr. Ac. do STJ de 18.06.2009, supra citado.

Havendo aqui, naturalmente, que conviver e aceitar uma certa álea e relatividade das decisões judiciais, características que são inerentes a tais decisões como aliás a qualquer atividade  humana que não se estribe em premissas de rigor absoluto porque de cariz científico-natural ou matemático.  

Finalmente importando perspetivar as diversas decisões prolatadas em casos similares para se tentar operar a fixação de valores idênticos, pois que tal contribui não só para a certeza e segurança do direito como, também, para a consecução da justiça material, quer na sua vertente absoluta, quer na vertente relativa ou comparativa e para  a imagem e o prestígio dos tribunais.

Assim e neste particular atente-se em algumas deliberações do STJ.

No Ac. de 27.10.2010, p. 488/07.9GBLSA.C1.S1, arbitrou-se à viúva de um falecido de 40 anos, por danos não patrimoniais pela perda do marido, a quantia de 25 mil euros.

No Ac. de 23.02.2011, p. 395/03.4GTSTB.L1.S1 fixou-se a pai de vítima de 23 anos, académico, a quantia de 50 mil euros.

No Ac. de 08.09.2011, p. 2336/04.2TVLSB.L1.S1, arbitrou-se  à mãe de menor falecida com 14 anos, que era  saudável, inteligente e bem disposta,  que se dedicava à poesia, à pintura e ao desporto e que  era muito ligada à progenitora, a quantia de 70.000 (setenta mil) euros.

No Ac. de 12.09.2013, p. 1/12.6TBTMR.C1.S1, arbitrou-se, a cada uma dos progenitores de um jovem filho de 19 anos, a quantia de 35.000 euros.

No Ac. de 28.11.2013, p. 177/11.0TBPCR.S1, arbitrou-se a uma filha de 58 anos pela morte de sua mãe com 78 anos, a quantia de  20 mil euros.

No Ac. do STJ de 19.06.2014, p. 1679/10.0TBVCT.G1, julgou-se adequada, como danos não patrimoniais próprios decorrentes de sequelas do acidente, a quantia de 70.00 euros para vitima com 65 anos.

E neste aresto se citando outros que arbitraram, a este título, montantes ainda mais elevados.

6.2.2.

In casu a julgadora decidiu neste particular conspeto alicerçada no seguinte discurso argumentativo:

«Quanto aos danos não patrimoniais da própria autora, em virtude da perda do filho, eles estão plenamente provados e constam das respostas aos nºs 19; 23 e 24 da base instrutória.

Com efeito, delas resulta que J (…) era amigo e querido da sua mãe e entre ambos existia amor e carinho bem assim que, em consequência da morte e do sofrimento do seu filho…, a mãe …passou a viver numa profunda tristeza, angústia e desgosto.

Neste contexto, considerando as vertentes compensatória e sancionatória da compensação por danos não patrimoniais e recorrendo a um juízo de equidade, mostram-se ajustadas à dimensão do desgosto, da gravidade da conduta do réu C (…) e das demais circunstâncias do caso, a importância de € 30.000,00 para amenizar o desgosto da autora.»

Atento o supra exposto em 6.2.1. corrobora-se totalmente esta fundamentação.

Importando frisar que efetivamente se tratava de um jovem  de apenas vinte anos, ou seja, que se encontrava na primavera da vida, ao qual, e em termos de uma certa normalidade, seria de augurar um futuro promissor, ou, ao menos, um futuro de normal integração e proficuidade, familiar e comunitária.

O que, e sendo esta certamente a perspetiva da sua progenitora, obvia e certamente que para ela a morte do filho acarretou um desgosto tremendo e uma frustração das suas expectativas relativamente ao descendente, factos estes que, naturalmente, têm de ser dignamente compensados.

Ademais e como se demonstrou, o valor fixado coaduna-se perfeitamente com outros arbitrados em casos similares, ou alcança-se numa aceitável relação de proporcionalidade com valores diferentes concretizados em casos dissemelhantes.

Urge, pois, mantê-lo.

6.3.

Dos danos não patrimoniais do falecido por sofrimento ante-morte.

Clama o recorrente que o quantum arbitrado a título de danos não patrimoniais pelos sofrimentos do falecido no período  de oito dias que medeou entre o acidente e a sua morte é ilegal e inadmissível, pois que não se provou que em tal lapso de tempo a vítima tenha padecido.

Antes se tendo provado que ele sempre  esteve em coma, pelo que não pode ter consciência do seu estado nem sofrimento.

Apreciemos.

 Em sentido técnico-científico estrito: «Coma (do grego κῶμα, sono profundo) é um estado de inconsciência». -cfr. WWW Wikipédia, a enciclopédia livre.

Sendo que: «A consciência é o estado de alerta que permite ao indivíduo a percepção de si e do meio. Alterações da consciência são definidas como quantitativas e qualitativas. Alterações qualitativas modificam o conteúdo da consciência, como delírios, alucinações e perturbações que não afetam o estado de alerta.

Alterações quantitativas, também conhecidas como nível de consciência, variam em um continuum entre o coma e o estado de alerta normal. Neste continuum descrevem-se o alerta, letárgico, estuporoso e o comatoso. Alerta é o indivíduo no estado de despertar normal. Estuporoso é o indivíduo irresponsivo, que pode ser desperto por estímulo vigoroso, e o comatoso é o estado vegetativo do qual o indivíduo não pode ser desperto mediante estimulação externa. Letárgico é o estado de lentificação psicomotora intermediário entre o estupor e o alerta.

O estado vegetativo é uma desordem de consciência em que pacientes com dano cerebral severo permanecem num estado de vigília parcial em vez de consciência plena.

Estado vegetativo é fruto de um dano grave no córtex cerebral que controla o pensamento e a personalidade. Uma pessoa em estado vegetativo pode parecer acordada e ter reflexos, mas é amplamente aceito que ela não tem consciência do ambiente que a cerca e é incapaz de sofrer mentalmente e sentir dor. Ou seja, a pessoa está viva mas sem consciência ou discernimento de si mesma e do ambiente que a cerca.» - idem com sublinhado nosso.

Já em sentido  menos rigoroso, ou mais lato ou abrangente, podem surpreender-se vários graus ou gradações do estado comatoso.

Assim:

« A profundidade do coma pode ser classificada por diversas escalas onde o avaliador através de uma padronização de exame quantifica o grau do coma, desde uma leve confusão mental até o coma profundo. Uma das escalas mais utilizadas no mundo, conhecida como Escala de Coma de Glasgow, somando a pontuação pelos seguintes critérios:

123456
OcularNão abre os olhosAbre os olhos em resposta a estímulo de dorAbre os olhos em resposta a um chamadoAbre os olhos espontaneamenteN/AN/A
VerbalEmudecidoEmite sons incompreensíveisPronuncia palavras desconexasConfuso, desorientadoOrientado, conversa normalmenteN/A
MotorNão se movimentaExtensão a estímulos dolorosos (descerebração)Flexão anormal a estímulos dolorosos (decorticação)Flexão inespecífica (normal)/ Reflexo de retirada a estímulos dolorososLocaliza estímulos dolorososObedece a comandos

Resultado:

3 a 6 = Coma profundo; (85% de probabilidade de morte; estado vegetativo)

7 a 10 = Coma intermediário;

11 a 14 = Coma leve;

15 = Normalidade.» - -ibidem

Ora no caso sub judice, perscrutando e escalpelizando o documento fulcral para este particular conspeto, qual seja o Relatório completo de episódio de urgência do Centro Hospitalar de Coimbra, dele se retira, expressis verbis (fls. 213): «trata-se de doente…transferido para o CHC onde deu entrada em coma Glasgow 3, com pupilas mióticas e reativas…ficou na sala de emergência conectado ao ventilador. Hoje, cerca das 18 horas fomos contactados por o doente estar em ventilação espontânea, com boas saturações de O2, e apresentar resposta motora esboçando flexão bilateral dos membros superiores (menos à direita, provavelmente pela fratura), mantendo pupilas reativas, embora mióticas com 2mm de diâmetro, com reflexo de deglutição presente tal com os corneanos e palpebrais. EC Glasgow: 4-5T (O1;VT;M2-3»

Tal exposição surge, nos termos de tal documento carreado para os autos, na sequencia do nele anteriormente plasmado (fls.205 e segs); sendo de realçar que a fls. 206 se chegou a verificar uma situação Glasgow 5, com referencia, se bem interpretamos (e estamos convictos de tal) de uma reação ou abertura dos olhos e de uma resposta/extensão motora, ao estímulo dor.

Temos assim que os autos nos fornecem elementos fidedignos e suficientes para se poder interpretar especificadamente o teor do facto provado, a saber: «o de cujus” J (…) esteve oito dias em coma no Hospital dos Covões em Coimbra (artº 25º BI)»

Perante tais elementos probatórios fica vedada a conclusão de que o coma do infortunado jovem era de grau tão elevado – 1 e/ou 2 – que lhe tivesse provocado  o fenecimento todos os seus órgãos e tecidos  psíquico/intelecto/sensoriais, o que o  colocaria em coma profundo/estado vegetativo, obstaculizante de interiorização/assunção de qualquer sentimento/sensação.

Antes pelo contrario, sendo de concluir que o coma era um coma intermédio  -  pelo menos de grau 3 – que permitiu, em menor ou maior grau/intensidade, conforme as circunstancias fácticas e o próprio desenvolvimento dos efeitos do sinistro, que o sucumbido tenha sido vitima sofredora, decorrência inelutável dos graves ferimentos que  lhe advieram do sinistro e das suas posteriores irreversíveis e fatais consequências.

Interpretação escalpelizada esta que, perante os elementos probatórios supra referidos e em benefício da justiça material - fito consabidamente reforçado na última reforma adjetiva -, é possível operar por este tribunal ad quem, em função do estatuído no artº 662º nº1 do CPC,  aqui aplicável, mutatis mutandis e/ou a fortiori.

A quantificação do dano sofrido pela vítima antes de morrer varia em função de fatores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima se manteve consciente ou inconsciente, se teve ou não dores, qual a intensidade das mesmas, a existirem, se teve consciência de que ia morrer.

Importa, outrossim, operar uma analise comparativa relativamente a outros casos jurisprudencialmente decididos, de sorte a consecutir-se o mais  possível a também almejada justiça relativa ou comparativa.

 Destarte, no Ac. 08.09.2011, p. 2336/04.2TVLSB.L1.S1 in dgsi.pt, fixou-se a quantia de 25.000 euros  a título de danos morais  de falecida de 14 anos pelos sofrimentos havidos só  durante alguns segundos, no periodo do medeou entre  ter caído ao chão e o rodado posterior do autocarro lhe ter passado por cima, tendo ela sentido medo e a perceção que ia morrer.

Já no Ac. do STJ de  29.10.2013, p. 62/10.2TBVZL.C1.S1 arbitrou-se a quantia  de € 12 500 a vítima que sofreu graves ferimentos e denotava forte sofrimento durante as 7h40 que mediaram entre o acidente e a sua morte, gemendo, aflito, com muitas dores e angústia, sentindo as suas forças a esvaírem-se e pressentindo o pavor da aproximação da sua morte.

 E no Ac. do STJ de 28.11.2013, p. 177/11.0TBPCR.S1  entendeu-se como adequada e razoável a quantia de € 20 000,00 para compensar, a este título, a vítima  que antes de morrer sofreu, com culpa exclusiva do condutor do veículo automóvel ligeiro, graves lesões corporais, em estado consciente, assim tendo permanecido durante cerca de meia hora, tendo-lhe sido prestados os primeiros socorros no local, durante cerca de 45 minutos até que foi transportada para o Hospital onde entrou com paragem cardio-respiratória, sem responder a manobras de recuperação.

Nesta conformidade e considerando que o infeliz jovem esteve oito dias em coma intermédio, em que, pelo menos durante um largo período, quiçá intermitente, esteve num estado de consciência que lhe permitiu certamente interiorizar o lastimável estado em que se encontrava; e, bem assim, que tal grau comatório clama a conclusão da  existência de sensação dolorosa, a qual, certamente, atingiu picos de elevada intensidade, tem de concluir-se, meridianamente, que  o quantum fixado não merece, por excessivo, qualquer reparo, antes, eventualmente, pelo contrário.

Em final conclusão: naufraga, in totum, o recurso.

7.

Sumariando.

I - O estado de coma comporta vários graus - profundo, intermédio e leve – sendo que, atenta a Escala de Coma de Glasgow, cientificamente elaborada e acolhida na prática hospitalar, apenas no primeiro existe, por banda da vítima, completa insensibilidade à dor e inconsciência da sua situação infortunística.

I – Destarte assiste ao fenecido jus à compensação por danos não patrimoniais ante-morte, se se provar, através de uma adequada exegese dos elementos probatórios dos autos, que ele, antes de morrer, não se encontrava em coma profundo, mas apenas em coma intermédio ou leve, pois que nestes inexiste tal insensibilidade e inconsciência.

III - Mostram-se adequadas, ou, no mínimo, admissíveis, - em si mesmas e comparativamente com os parâmetros compensatórios hodiernamente fixados pela jurisprudência-, as compensações de 80 mil euros pelo dano morte e de 30 mil euros por danos não patrimoniais da sua mãe, atinentes a  um jovem de 20 anos  e com forte ligação afetiva a esta.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2014.09.16.

Carlos Moreira ( Relator)

Anabela Luna de Carvalho

Moreira do Carmo