Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
557/09.0JAPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: AUTORIA
CUMPLICIDADE
Data do Acordão: 09/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 26º, 27º CP
Sumário: 1. São elementos da comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria os seguintes: - a intervenção directa na fase de execução do crime («execução conjunta do facto»); - o acordo para a realização conjunta do facto; acordo que não pressupõe a participação de todos na elaboração do plano comum de execução do facto; que não tem de ser expresso, podendo manifestar-se através de qualquer comportamento concludente; e que não tem de ser prévio ao início da prestação do contributo do respectivo co-autor;- o domínio funcional do facto, no sentido de o agente «deter e exercer o domínio positivo do facto típico» ou seja o domínio da sua função, do seu contributo, na realização do tipo, de tal forma que, numa perspectiva ex ante, a omissão desse contributo impediria a realização do facto típico na forma planeada.
2. No que respeita à execução propriamente dita, não é indispensável nem necessário que cada um dos agentes cometa integralmente o facto punível, que execute todos os factos correspondentes ao preceito incriminador, que intervenha em todos os actos a praticar para obtenção do resultado pretendido, bastando que a actuação de cada um, embora parcial, seja elemento componente do todo e indispensável à produção do resultado.

3. Quanto à cumplicidade, pressupõe ela um mero auxílio material ou moral à prática por outrem do facto doloso, de forma que ao cúmplice falta o domínio do facto típico no sentido acima indicado como elemento indispensável da co-autoria. O cúmplice limita-se a favorecer um facto alheio, não toma parte no domínio do facto; o autor não necessita sequer conhecer a cooperação que lhe é prestada (a chamada cumplicidade oculta).

4. Neste ponto se distingue precisamente a cumplicidade da co-autoria, posto que esta requer o domínio funcional do facto sobre a base de um acordo comum.

Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. No Círculo Judicial da Figueira da Foz, foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção de tribunal colectivo, os arguidos:
- A..., solteiro, sem profissão, nascido no dia …, em …, Oliveira de Azeméis, actualmente detido no Estabelecimento Prisional regional de Leiria;
- M..., solteira, doméstica, nascida a …, em Ílhavo, Aveiro,;
- J..., solteiro, cesteiro/sucateiro, actualmente detido no Estabelecimento Prisional Regional de Leiria;
- R..., solteiro, cesteiro/sucateiro, nascido,,,, em Matosinhos; e
- B..., solteira, doméstica, nascida no dia …, em Albergaria-a-Velha;
pronunciados nos seguintes termos:
a) Os arguidos J…, R..., A... e M…, pela prática, em co-autoria material, de um crime de rapto, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 161.º, n.ºs 1, alínea b), 2, alínea a), e 158.º, n.º 2, alíneas a) e b), ambos do Código Penal;
b) Os arguidos J..., R..., A..., M...e B..., pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal;
c) O arguido R..., pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, com referência aos artigos 121.º a 123.º, do código da Estrada.
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2. Por acórdão de 17 de Maio de 2010, o Tribunal Colectivo, após ter procedido a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na pronúncia (por remissão para a acusação) relativos ao imputado crime de abuso sexual de crianças referido no alínea c) do n.º 1 do presente relatório, devidamente comunicada aos arguidos, proferiu decisão deste teor:
1. Absolveu a arguida B... do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, por que estava pronunciada;
2. Condenou o arguido J..., como co-autor material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.°, n.º 1, alínea a), e 132.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, e absolveu-o do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, por que veio pronunciado;
3. Condenou o arguido J..., como co-autor material de um crime de rapto, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 161.°, n.ºs 1, alínea b), e 2, alínea a), e 158.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão;
4. Condenou o arguido J..., nos termos do artigo 77.º, do Código Penal, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
5. Condenou o arguido R..., como co-autor material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a), e 132.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, e absolveu-o do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, por que veio pronunciado;
6. Condenou o arguido R..., como co-autor material de um crime de rapto, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 161.°, n.ºs 1, alínea b), e 2, alínea a), e 158.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
7. Condenou o arguido R..., nos termos do artigo 77.º, do Código Penal, na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, a qual, ao abrigo do disposto nos artigos 50.º, n.ºs 1 e 5, e 53.º, n.º 1, ambos do Código Penal, foi declarada suspensa na sua execução por igual período de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses, com sujeição a regime de prova.
8. Condenou a arguida M..., como co-autora material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a), e 132.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, e absolveu-a do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, por que veio pronunciada;
9. Condenou a arguida M..., como co-autora material de um crime de rapto, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 161.°, n.ºs 1, alínea b), e 2, alínea a), e 158.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
10. Condenou a arguida M..., nos termos do artigo 77.º, do Código Penal, na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, a qual, ao abrigo do disposto nos artigos 50.º, n.ºs 1 e 5, e 53.º, n.º 1, ambos do Código Penal, foi declarada suspensa na sua execução por igual período de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses, com sujeição a regime de prova.
11. Condenou o arguido A..., como cúmplice de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a), e 132.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, e absolveu-o do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, por que veio pronunciado;
12. Condenou o arguido A..., como cúmplice de um crime de rapto, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 161.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), e 158.º, n.º 2, alienas a) e b), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão;
13. Condenou o arguido A..., nos termos do artigo 77.º, do Código Penal, na pena única e efectiva de 5 (cinco) anos de prisão.
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3. Inconformados, interpuseram recurso os arguidos A... e J....

3.1. Todavia, por despacho a fls. 1477, datado de 30-07-2010, o recurso do arguido A... não foi admitido, por extemporaneidade.

3.2. O arguido J... extraiu da motivação do recurso as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª – Impugna-se a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, quanto:
- Aos pontos 5. a 13. dos factos dados como provados pelo douto acórdão recorrido, uma vez que o Tribunal a quo não podia ter dado credibilidade plena ao depoimento da ofendida C..., pelo facto do seu testemunho ser notoriamente incongruente e claramente contraditório na sua extensão.
Os factos supra mencionados, dados como provados, não correspondem fielmente ao depoimento da ofendida C... e testemunha U....
Não se vislumbra onde o Tribunal a quo se baseia para dar como provado “plano previamente elaborado para subtracção da menor”;
- Ao ponto 17. dos factos dados como provados pelo douto acórdão recorrido, uma vez que o Tribunal a quo não carreou elementos probatórios que permitissem concluir que a menor se encontrava no acampamento de … sob o controlo e domínio dos arguidos J..., M... e R...;
- Aos pontos 18. e 19. dos factos dados como provados pelo douto acórdão recorrido, como já supra se alegou, não podia o Tribunal a quo ter dado credibilidade plena ao depoimento da ofendida C..., pelo facto do seu testemunho ser notoriamente incongruente e claramente contraditório na sua extensão;
- Aos pontos 26. a 28. dos factos dados como provados pelo douto acórdão recorrido, uma vez que não foram realizadas diligências probatórias de modo a permitir provar que na actuação dos arguidos tivesse havido conjugação de esforços e, em execução de um plano previamente delineado, quisessem os arguidos subtrair, de forma ardilosa, a menor e levarem-na para o acampamento, com o objectivo de forçá-la a casar-se com o arguido R....
Da mesma forma, não houve suporte probatório bastante da participação do arguido J...nos crimes pelo qual foi condenado, muito menos na figura da co-autoria.

Restantes vícios da douta sentença recorrida:
2.ª – A forma como o Tribunal a quo apreciou as provas disponíveis revela uma clara violação do artigo 127.º do Código de Processo Penal. Extraiu conclusões que plasmou na matéria de facto provada que não têm assento razoável, nem lógico, na prova efectivamente produzida.
3.ª – O douta acórdão violou outrossim o princípio constitucional in dubio pro reo.
4.ª – Pugnamos ainda que o douto acórdão viola os artigos 40.º e 71.º do Código Penal, pois da hipotética imputação ao arguido, ora recorrente, da prática dos crimes em causa não poderia, de modo algum, resultar uma pena de prisão aplicada, dadas as circunstâncias da prática dos factos e personalidade do arguido ora recorrente.
5.ª – Sem prescindir ou de alguma forma conceder no que toca à absolvição do arguido, ora recorrente, pugnamos que, na eventualidade do Tribunal de Recurso considerar que o arguido teve alguma participação nos crimes que aqui se colocam em crise, a eventual participação deste seja considerada na figura da cumplicidade (art. 27.º do CP), atendendo à prova que efectivamente se produziu em sede de audiência e julgamento, e não como co-autor, como erradamente foi condenado pelo tribunal a quo.
Termos em que, deve o presente recurso ser considerado provido nos termos enunciados nas conclusões, como é de direito e justiça!!!
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4. O Magistrado do Ministério Público rematou a resposta que apresentou ao recurso do arguido J... nos seguintes termos (devidamente adaptados à realidade verificada de o recurso do arguido A... não ter sido, posteriormente, admitido):
1. O que está sob recurso é o douto acórdão de 17 de Maio de 2010, proferido nos autos de Processo Comum Colectivo n.º 557/09.0JAPRT, do Tribunal Judicial do Montemor-o-Velho.
2. O recurso vem movido pelo arguido J... que foi condenado na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática, em co-autoria com os arguidos R... e M…, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e 132.º, n.º 2, alínea c), e de um crime de rapto, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 161.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) e 158.º, n.º 2, alienas a) e b), todos do Código Penal.
3. Sucede que nenhuma das razões invocadas pelos recorrentes é a nosso ver procedente, não se vislumbrando, por outro lado, fundamentos para invalidar o douto acórdão recorrido, no todo ou em algum dos seus segmentos.
4. Assim, não se vislumbra que tenham sido violados quaisquer preceitos legais, nomeadamente os indicados pelo recorrente, e isso seja no tocante à fixação dos factos ou às determinações de direito.
5. No que concerne à impugnação da matéria de facto, por parte do recorrente J..., não tem este, manifestamente, a menor razão, desde logo porque desconsiderou totalmente não só a fundamentação elaborada pelo tribunal recorrido, como as declarações para memória futura prestadas pela menor C... e o depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento pela testemunha U... ., conjugados com os demais meios de prova constantes dos autos, a que de resto se alude em tal fundamentação.
6. Aliás, o douto acórdão em recurso apresenta-se, designadamente no que concerne à factualidade dada como provada, devida e correctamente motivado.
7. Por isso, nenhum reparo pode merecer a apreciação da matéria de facto feita pelo tribunal recorrido, porquanto formou a sua convicção segundo critérios lógicos, objectivos e em obediência às regras de experiência comum, o que tudo bem motivou e objectivou, segundo o princípio consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
8. Desta sorte, os factos dados por provados no douto acórdão em apreço são bastantes e conduzem à conclusão inexorável de que os arguidos J..... praticou, como co-autor, os crimes de ofensa à integridade física qualificada e de rapto por que foi condenado.
9. Parece também evidente que o Tribunal recorrido, ao lançar mão das regras da experiência comum, de acordo com as exigências da lei processual – como prescreve o artigo 127.º do Código de Processo Penal -, e face à prova produzida em audiência de julgamento, não poderia concluir de forma diversa da expressa na factualidade provada.
10. De resto, é entendimento pacífico, que se partilha, que o recurso amplo em matéria de facto não se traduz na renovação do julgamento já realizado, mas num mero reexame da decisão da primeira instância, o que implica que o tribunal superior, tendencialmente, deverá respeitar o critério e a sensibilidade – que só os princípios da oralidade e da imediação podem proporcionar – do julgador de primeira instância, desde que estes não colidam, de forma inconciliável, com o que resulta da gravação da prova e demais elementos existentes no processo.
11. Devem, pois, improceder todos os fundamentos invocados pelo recorrente J..., devendo ser confirmada a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo.
12. Aliás, o douto acórdão ora em recurso captou com rigor a prova produzida na audiência de discussão e julgamento.
13. Tendo operado uma sábia subsunção jurídica e aplicação do direito.
14. Também as penas aplicadas ao arguido J... se nos afiguram justas, necessárias e adequadas.
15. Acresce que a violação do princípio “in dubio pro reo” tão só pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão decorrer, por forma mais que evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra os arguidos, o que não é manifestamente o caso dos autos.
16. Aliás, o douto acórdão recorrido não padece de qualquer um dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso interposto pelo arguido J... e manter-se o douto acórdão proferido nestes autos nos seus precisos termos, fazendo-se assim, uma vez mais, a costumada justiça.
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5. Neste Tribunal da Relação, em parecer a fls. 1511/1512, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto defendeu, de igual modo, a manutenção integral do decidido pelo Tribunal Colectivo de 1.ª instância.
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6. Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, o recorrente e os demais arguidos não exerceram o seu direito de resposta.
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7. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, resumem-se ao seguinte quadro as questões de que cumpre conhecer:

A) Alterabilidade da matéria de facto em consonância com os desígnios do recorrente;

B) Violação do artigo 127.º do Código de Processo Penal;

C) Violação do princípio in dubio pro reo;

D) Caso não se justifique a sua absolvição, se o recorrente deve ser condenado como cúmplice, e não como co-autor, dos crimes de rapto agravado e ofensa é integridade física qualificada;

D) Violação do disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal;


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2. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:
1. A ofendida C... .. nasceu a 18 de Outubro de 1997 e é filha de S....
2. Quando tinha cerca de 3 anos de idade, a menor foi entregue pelo pai S...à guarda e cuidados do casal T..., seu tio paterno, e U... ., com eles tendo vivido desde então.
3. Por sentença homologatória proferida a 25 de Junho de 2008, no âmbito dos autos de Regulação do Poder Paternal n.º 887/08.9TBOAZ, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis, foi regulado o exercício do poder paternal relativo à indicada menor, a qual ficou, por essa via, entregue à guarda de U... .
4. O arguido J... mantém relação análoga à dos cônjuges com a arguida M..., é pai do arguido R..., nascido a 29 de Outubro de 1991, e é irmão de T... e S..., este pai da menor.
5. Em data não concretamente apurada, os arguidos J..., M...e R..., por pretenderem casar a menor C... com este último arguido de acordo com os costumes e tradições da etnia cigana, engendraram plano para subtraírem a menor da residência de U... . e T..., trazendo para a área desta comarca a menor para aqui celebrar aquele casamento, para o que pediram ajuda ao arguido A....
6. Assim, em comunhão de esforços e mediante o plano por todos previamente elaborado, no dia 12 de Abril de 2009, os arguidos J..., M...e R..., fazendo-se transportar em dois veículos ligeiros de passageiros, um dos quais conduzido pelo arguido A..., que aceitou participar na execução do referido plano, dirigiram-se à localidade de S…no concelho de …, onde a menor residia com T... e U... ..
7. Aí chegados a hora não apurada desse mesmo dia, e enquanto o arguido R... os ficou a aguardar em local previamente combinado, os arguidos J..., M...e A..., seguindo no veículo ligeiro de passageiros com matrícula ...., dirigiram-se à residência da menor situada na casa …, onde a vieram encontrar bem como U... e T....
8. Passados alguns momentos, e de acordo com o plano referido, a arguida M…, sob pretexto de querer beber café e necessitar de comprar tabaco para o arguido J..., pediu a U... . que a deixasse levar consigo a menor C... até ao café, ao que aquela anuiu.
9. Quando se aproximavam do café, onde não chegaram a entrar, a arguida M...disse à menor C... que continuasse a andar, ordem a que esta obedeceu.
10. A arguida M...levou então a C... para a rua nas imediações do Café onde, alguns momentos mais tarde, e de acordo com o plano antes elaborado, surgiu o arguido R... a conduzir veículo ligeiro de passageiros. A arguida M...ordenou então à menor que entrasse para o carro, o que esta fez, sentando-se no banco de trás acompanhada pela arguida.
11. Depois de se ausentarem de casa de T..., os arguidos J...e A... foram, no veículo ...., ao encontro dos arguidos R... e M...que, na companhia da menor, se encontravam no outro veículo em rua ali situada perto.
12. Os arguidos, acompanhados da menor, seguiram então viagem até a acampamento situado em …, na área desta comarca, onde residiam.
13. Ainda nessa noite, T... e U..., após terem logrado informar-se do paradeiro da C..., estabeleceram contacto telefónico com a arguida M...que, apesar dos insistentes pedidos daqueles, se recusou a entregar-lhes a menor, dizendo-lhes que a ia casar com o arguido R....
14. Na concretização desse propósito e enquanto esteve naquele acampamento, a menor pernoitou na barraca dos arguidos J..., M...e R..., sendo que logo no dia 13 de Abril se deu início aos preparativos para a cerimónia do casamento.
15. A meio da manhã do dia 14 de Abril, os arguidos J..., M...e R... levaram a menor para acampamento cigano situado em …, onde se veio a realizar o casamento, ao qual o arguido A... assistiu.
16. Sabiam os arguidos, todos de etnia cigana, que, de acordo com os costumes e tradições da etnia a que pertencem, antes de se celebrar a cerimónia do casamento, efectuar-se-ia teste para comprovar a virgindade da menor, no âmbito do qual, uma mulher mais velha, através da penetração da vagina da menor com os dedos e um pano branco, aferiria se a C... era virgem através do sangramento que daquele modo causaria ao romper o hímen.
17. No período da tarde desse dia, a menor, que ali se encontrava sob o controlo e domínio dos arguidos J..., M...e R..., que, com a ajuda do arguido A…, para ali a tinham levado, com o conhecimento destes, foi levada por diversas mulheres ciganas para o interior de casa existente no acampamento a fim de se efectuar o referido teste de virgindade.
18. No interior daquela casa, após se ter deitado e despido as cuecas como lhe foi ordenado, uma mulher não identificada de etnia cigana, vulgarmente designada como “ajuntadeira”, introduziu-lhe na vagina um dedo da mão envolto num pano branco, que revirou durante algum tempo, causando dores à menor. Passados alguns momentos, retirou o dedo e, verificando que o mesmo se encontrava imaculado, repetiu o procedimento, voltando a penetrar a vagina da C... com o dedo envolto no pano branco e assim lhe causando novamente dores. Quando retirou o dedo, o pano vinha ensanguentado. Aquela mulher voltou a penetrar a vagina da menor com o dedo envolto noutro pano branco que também retirou com sangue, dando assim por findo aquele teste.
19. Em consequência da conduta descrita, para além de dores, C... .. sofreu as lesões descritas e examinadas no relatório pericial a fls. 203 a 205 dos autos (relatório cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido), designadamente: solução de continuidade completa (atingindo o bordo himenial de inserção), de extremidades rectas (a nível do bordo himenial livre), de bordos coaptáveis e friáveis, infiltrados de sangue, localizada entre as 5 e as 6 horas (de acordo com o esquema do “mostrador do relógio”), apresentando assim perda de continuidade do bordo himenial livre sugestiva de laceração; edema do bordo himenial livre, mais exuberante entre as 5 e as 10 horas; infiltração sanguínea da parede himenial vulvar, eminentemente sob a forma petequial, entre as 5 e as 10 horas; placas fibrinosas, esbranquiçadas, não detectáveis, observáveis a nível dos bordos das soluções de continuidade atrás descritas e suas áreas adjacentes; mucosa eritematosa, de aspecto erosionado, a nível da comissura posterior; óstio himenial ao 2.º dedo dos peritos.
22. Alguns momentos mais tarde, foi celebrado o casamento entre a menor C... e o arguido R... de acordo com o ritual da cultura cigana.
23. Já de noite, a menor C... foi levada para o interior de uma carrinha pelo arguido R..., onde deveriam passar a primeira noite juntos depois de casados. Dentro da carrinha e deitados na parte traseira, o arguido R... abraçou a menor para a beijar, o que não fez por esta se ter recusado.
24. Na manhã do dia seguinte, 15 de Abril, os agentes da Polícia Judiciária organizaram operação de cerco ao acampamento onde a menor se encontrava, tendo-a então ali encontrado quando efectuaram operação policial no local, sendo que ao avistar os agentes da PJ o arguido R... tentou fugir, o que não logrou.
25. O arguido R... não é titular de licença de condução que o habilite a conduzir veículos ligeiros de passageiros.
26. Ao actuarem do modo descrito, em conjugação de esforços e em execução de plano previamente delineado, quiseram os arguidos J..., R... e M…, que nisso contaram com o auxílio do arguido A..., de forma ardilosa, subtrair a menor à guarda de T... e U... e levaram-na consigo para acampamento situado em …, o que conseguiram, tendo como propósito, conhecido pelo arguido A..., forçá-la a casar-se com o arguido R... de acordo com os ritos da etnia cigana e, consequentemente, querendo também que o casamento viesse a ser consumado, mantendo o arguido R... relações sexuais de cópula completa com a menor.
27. Sabiam também os arguidos J... , R... e M…, todos de etnia cigana que, ao subtraírem a menor, levando-a consigo, para que se celebrasse aquele casamento de acordo com os ritos e costumes ciganos, a C... seria forçada a sofrer o exame acima escrito para aferir da sua virgindade.
28. Actuaram os arguidos J..., R... e M...em conjugação de esforços e em execução de plano por todos delineado, com o intuito logrado de casarem a menor segundo o ritual cigano e a sujeitarem ao exame acima descrito no qual lhe foram inseridos dedos de pessoa não identificada na vagina bem com panos brancos, no que contaram com o auxílio do arguido A....
29. De igual modo, sabendo que a ofendida C... tinha menos de 14 anos de idade, o arguido R... não se coibiu de a tentar beijar na boca, abraçando-a para esse efeito.
30. Sabia o arguido R... que não estava legalmente habilitado para conduzir veículos ligeiros de passageiros.
31. Agiram sempre os arguidos de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas previstas e punidas por lei penal.
32. O arguido A... tem antecedente criminais, tendo sido sujeito às condenações descritas no certificado do registo criminal junto a fls. 1191-1104, que aqui se dá por integralmente reproduzido. É tido socialmente como pessoa educada e bom trabalhador.
33. A arguida B... tem antecedentes criminais, tendo sido sujeita à condenação descrita no certificado do registo criminal junto a fls. 1105-1106, que aqui se dá por inteiramente reproduzido. Está desempregada e vive do rendimento de inserção, que ronda os € 270,00 mensais. Não sabe ler nem escrever.
34. O arguido J... tem antecedentes criminais, tendo sido sujeito às condenações descritas no relatório do registo criminal junto a fls. 1107-1113, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
35. O arguido R... não tem antecedentes criminais.
36. A arguida M... não tem antecedentes criminais.
37. Todos os arguidos são de etnia cigana e, vivendo norteados pelos costumes ancestrais dessa etnia, revelam ausência de consciência crítica perante a gravidade dos factos acima descritos, designadamente, perante a sujeição da menor C... ao ritual referido, que reputam de normal no quadro das tradições e costumes de tal etnia.
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3. Quando aos factos provados, está referido no acórdão:
Não se provaram quaisquer factos para além ou em contradição com os supra alinhados, designadamente, não se provou:
a) Que o arguido A... tenha pretendido casar a menor C... com o arguido R... de acordo com os costumes e tradições da etnia cigana, e que tenha delineado com os arguidos J..., M...e R... o referido plano para subtraírem a menor da residência de U... . e T..., trazendo-a para a área desta comarca a menor para aqui celebrar aquele casamento.
b) Que enquanto se passava o descrito no ponto 10., dos factos provados, os arguidos J... e A..., que ainda se encontravam em casa da menor a conversar com T... e U..., alegando não se poderem demorar mais tempo já que J...estava fugido das autoridades, encontrando-se em violação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação que lhe havia sido aplicada no inquérito 397/08.4JAAVR, disseram a T... que iam de carro ao café buscar a arguida M...e a menor para, após trazerem a C... de volta a casa, seguirem viagem.
c) Que o arguido A... tenha levado a menor para o acampamento cigano situado em Ílhavo.
d) Que enquanto permaneceu nos acampamentos de … e … a menor tenha estado sob o controlo e domínio do arguido A....
e) Que durante a tarde do dia 13 e na manhã do dia 14 de Abril, e quando surgiram no acampamento soldados da GNR à procura da menor, os arguidos, fazendo-se acompanhar de C..., fugiram para terreno contíguo, onde se esconderam.
f) Que durante a ocorrência do descrito no ponto 18., dos factos provados, a arguida M...segurava a C... pelos braços e a arguida B... lhe segurava as pernas para assim impedirem que a criança se mexesse.
g) Que os arguidos e a menor tenham regressado já de noite ao acampamento de … .
h) Que no interior da carrinha referida em 23., dos factos provados, o arguido R... tenha beijado por diversas vezes a menor na boca e lhe tenha tocado com a mão na barriga, dizendo-lhe ainda para tirar a roupa para que mantivessem relações sexuais, o que apenas não aconteceu porque a menor se recusou, afastando o arguido, não tendo este insistido.
i) Que a arguida B... tenha actuado em conjugação de esforços com os restantes arguidos e em execução de plano por todos delineado, com o intuito logrado de casar a menor segundo o ritual cigano e a sujeitar ao exame acima descrito no qual lhe foram inseridos dedos de pessoa não identificada na vagina bem como panos brancos.
j) Que, ao avistar os agentes da PJ, os arguidos M…, A… e J... tenham tentado fugir.
*
4. Relativamente à motivação da decisão de facto, ficou consignado:
Este Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada apoiando-se nos elementos de prova oportunamente produzidos, analisados à luz das regras e princípios que entretecem o direito processual penal vigente.
- Socorreu-se o Tribunal, em primeira linha, das declarações para memória futura prestadas pela menor C... ., conforme auto de fls. 486-487, as quais estão registadas em CD anexo aos presentes autos e transcritas a fls. 557-604, onde a menor fez uma descrição circunstanciada dos factos relativos à visita que os arguidos J..., A... e M...fizeram à sua residência, ao artifício empregue para dali a retirarem, dizendo a arguida M...que a levava consigo ao café para comprarem tabaco ao arguido J..., à sua entrada no carro conduzido pelo arguido R..., à aproximação posterior do veículo conduzido pelo arguido A..., onde seguia também o arguido J..., à viagem de todos para … e daqui para …, aos sucessivos contactos da sua “mãe” no sentido de saber do seu paradeiro e resposta dada, à celebração do ritual destinado a comprovar a sua virgindade e subsequente casamento e, finalmente, dos factos passados no interior da carrinha, para onde foi levada pelo arguido R....
- Atendeu-se, igualmente, ao depoimento da testemunha U... . que confirmou igualmente os factos relativos à visita que os arguidos J..., A... e M...fizeram à sua residência, ao artifício empregue para dali a retirarem, dizendo a arguida M...que a levava consigo ao café para comprarem tabaco ao arguido J..., referindo que foi por se aperceber que a menor tinha sido levada pelos arguidos para realizarem o seu casamento com o arguido J...que apresentou queixa na polícia, pois não estava de acordo com esse casamento.
- Atendeu-se, ainda, ao teor do relatório de perícia de natureza sexual constante de fls. 203-205, onde se descrevem as lesões provocadas na menor, as quais são compatíveis com o ritual de comprovação da sua virgindade a que a criança foi sujeita.
- Os descritos meios de prova, analisados à luz das regras da experiência comum, permitiram ainda concluir pela existência de um plano prévio no sentido de subtrair a menor às pessoas a cuja guarda legitimamente se encontrava, tendo em vista a realização do seu casamento de acordo com os costumes e rituais próprios da etnia cigana.
- Na verdade, a forma como ocorreu a visita à residência da menor, o artifício empregue para dali a retirarem, a aproximação subsequente do arguido R... (que não apareceu na casa dos “pais” da menor) são tudo indícios que apontam, para além de toda a dúvida razoável, para a existência do referido plano, sendo reveladores de uma actuação concertada e previamente preparada.
- Uma vez que quem tinha interesse directo na realização do casamento da menor eram os arguidos J..., M...e R... e por não se encontrar quaisquer indícios que permitam antever qualquer interesse do arguido A... na realização de tal evento, as mesmas regras da experiência atribuem a autoria do dito plano apenas aos arguidos J..., M...e R..., deixando de fora o arguido A..., cuja participação se circunscreveu por isso à prestação de auxílio aos referidos arguidos na concretização do plano que haviam delineado, designadamente, transportando no seu veículo os arguidos J...e M...até à residência da menor (permitindo assim que o arguido R... para ali se deslocasse sem ser visto pelos pais da menor e pudesse ficar a aguardar pela menor e pela sua mãe, para depois as trazer para o acampamento de …).
- Os meios de prova referidos chocam, é certo, com as declarações prestadas pelos arguidos A..., J...e R..., que apresentaram distinta versão dos factos, pretendendo fazer passar a ideia de que foi a menor e o arguido R... que engendraram um fuga, sendo que foi por força de tal situação que se decidiu depois, de harmonia com os costumes e tradições ciganas, celebrar o seu casamento, e, ainda, com o depoimento da testemunha T... que pretendeu confirmar a versão apresentada pelos referidos arguidos.
- Todavia, pelas contradições evidenciadas e pelo carácter fantasioso da dita versão, a qual choca frontalmente com as declarações da menor, que negou alguma vez ter querido casar com o arguido R... e confirmou no essencial a descrição dos factos contida na acusação, não se reconheceu às declarações dos arguidos A..., J...e R... e ao depoimento da testemunha T... virtualidade bastante para abalar os restantes meios de prova produzidos e acima sucintamente indicados, nem sequer para fazer criar alguma dúvida sobre a forma como os factos ocorreram.
- Atendeu-se, ainda, às declarações prestadas pelos arguidos J...e R..., das quais resultou demonstrado o grau de parentesco entre os arguidos J...e R... e da relação que aquele mantém com a arguida M....
- Tomaram-se igualmente em consideração os documentos juntos a fls. 24-26 (cópia de certidão de nascimento da menor C...) e a fls. 29-30 (cópia do auto de conferência de pais realizada no âmbito dos autos de regulação do poder paternal n.º 887/08.9TBOAZ, do Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis), os quais, conjugados com as declarações prestadas pelos arguidos J...e R... e com os depoimentos das testemunhas T.... e U… ., sustentam a realidade dos factos relativos à entrega da menor a U… . no âmbito de processo de regulação do poder paternal.
- Levou-se, ainda, em conta, quer as declarações dos arguidos A..., R... e J...e das testemunhas T..., U… . e P..., todos de etnia cigana, dos quais resultou que o ritual a que foi sujeita a menor e seu casamento assumem foros de normalidade no quadro das tradições e costumes da etnia cigana a que pertencem.
- Atendeu-se, também, ao depoimento da testemunha MF…, que é o inspector da Polícia Judiciária, responsável pelas diligências de investigação efectuadas, tendo confirmado como se iniciou a investigação e os actos a que na mesma se procedeu.
- Tomou-se, igualmente, em consideração o resultado da pesquisa efectuada na base de dados de condutores, documentado a fls. 658, de onde resulta que o arguido R... não é titular de carta de condução.
- Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos, atendeu-se aos certificados de registo criminal juntos aos autos - fls. 1109, 1111, 1191 -1104, 1105-1106 e 1107-1113.
- Atendeu-se, finalmente, às declarações prestadas pela arguida B...e ao depoimento da testemunha MA…, quanto aos factos sobre as condições de vida daquela arguida e imagem social do arguido A..., bem como aos relatórios sociais juntos aos autos, dos quais resulta a ausência de consciência crítica de todos os arguidos perante os factos em apreço nestes autos.
*
- Quanto aos factos não provados, a decisão do Tribunal é directa decorrência do facto de não ter sido feita prova bastante para demonstrar a sua realidade, no que se deu ainda aplicação ao princípio “in dubio pro reo”.
- Assim, quanto aos contornos da participação do arguido A... nos factos em apreço, como acima se deixou dito, a prova produzida não forneceu quaisquer indícios que permitam antever um interesse do arguido A... na realização do casamento da menor, interesse para cuja ausência aponta a circunstância de não ser familiar de nenhum dos intervenientes.
- Por outro lado, da prova produzida apenas resultou demonstrada a participação deste na deslocação à residência da menor, de onde se retirou a prestação de auxílio aos arguidos R..., J... e M…, nos termos que se consideraram provados, sendo certo que das declarações para memória futura prestadas pela menor resulta que, após a sua chegada ao acampamento praticamente não teve qualquer contacto com o mesmo (o que impede que se diga que a mesma ali permaneceu sob o seu controlo e domínio e que este a tenha levado depois para o acampamento de …, onde ocorreu o casamento).
- Quanto à alegada fuga dos arguidos para terreno contíguo ao acampamento de … aquando da chegada àquele local dos soldados da GNR, trata-se de facto que não foi objecto de qualquer prova.
- Relativamente à participação das arguidas M… e B...no ritual de comprovação da virgindade a que foi sujeita a menor C..., constata-se que nas suas declarações para memória futura a indicada menor não lhe faz qualquer referência, pelo que, na ausência de qualquer outra prova, se considerou provado que aquando de tal prática a arguida M...segurasse a menor pelos braços e a arguida B...pelas pernas.
- Ainda relativamente à arguida B…, as declarações da menor são totalmente omissas quanto à sua intervenção nos factos em apreço, não existindo qualquer outro suporte - testemunhas ou documental - que permita afirmar que a mesma actuou em conjugação de esforços com os outros arguidos e que também ela tenha tido intenção de casar a menor com o arguido R....
- Quanto aos factos passados no interior da carrinha entre a menor e o arguido J..., aquela apenas referiu que este a abraçou e a tentou beijar, o que não concretizou por ela se ter recusado, pelo que apenas esses factos se consideraram provados, considerando-se não provados os demais factos alegados por referência a esse contexto na acusação.
- A prova produzida não permitiu, finalmente, situar temporalmente os factos descritos com a precisão que surge na acusação, designadamente, quanto às horas a que ocorreram os factos, assim se justificando que tais segmentos do despacho acusatório se tenham considerado não provados.
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5. Alterabilidade da matéria de facto:
Há que ver se as objecções contrapostas pelo recorrente ao juízo de convicção íntimo sobre a prova dos julgadores do tribunal a quo têm ou não razão de ser.
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza/conteúdo das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.

Resulta impressivamente do contexto global da motivação do recurso e das próprias conclusões que são postos em causa os seguintes pontos do acervo factológico dado como provado pelo tribunal a quo:
- 5. a 13. e 18 e 19., porquanto, na tese argumentativa do recorrente, o Colectivo de 1.ª instância não podia ter dado credibilidade plena ao depoimento da menor C... .., pelo facto do seu testemunho ser notoriamente incongruente e claramente contraditório na sua extensão, acrescendo ainda que, relativamente aos factos dos pontos 5. a 13., os mesmos não correspondem fielmente ao depoimento quer da testemunha C... quer da testemunha U... .;
- 17., uma vez que, segundo a posição vertida no recurso, o tribunal a quo não carreou elementos probatórios que permitam concluir que a menor se encontrava no acampamento de … sob o controlo e domínio dos arguidos J..., M...e R...;
- 26. a 28., sendo invocado, neste domínio, a insuficiência de prova demonstrativa da actuação conjugada, em comunhão de esforços e na execução de um plano previamente delineado, dos arguidos, orientada para a subtracção, de forma ardilosa, da menor, tendo em vista o casamento, forçado, desta com o arguido R....

Analisada a fundamentação da decisão de facto, na fixação do acervo factológico provado, atinente aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, relevaram, fundamentalmente, em primeira linha, as declarações para memória futura prestadas pela menor C... .., coadjuvadas pelo depoimento da testemunha U... ., elementos de prova esses que, analisados à luz das regras da experiência comum, permitiram também concluir pela existência de um plano prévio, traçado pelos arguidos J..., R... e M…, no sentido da subtracção da menor C... às pessoas a cuja guarda legitimamente se encontrava, tendo em vista o realização do seu casamento, com o arguido R..., de acordo com os costumes e rituais próprios da etnia cigana.
Não foi reconhecida nenhuma relevância probatória às declarações dos arguidos A..., J...e R... ., e bem assim ao depoimento da testemunha T..., pelas razões delineadas a fls. 12 do acórdão recorrido.
Dito isto, procederemos de imediato à análise do conteúdo das provas.
As arguidas M... e B... fizeram uso do direito ao silêncio.
As declarações dos arguidos A..., J... e R..., evidenciam, genericamente, uma posição previamente concertada entre todos.
Como está dito na motivação da decisão de facto, afirmaram, concordantemente, em suma, que a “fuga” que se verificou se deveu à conjugação de vontades da menor C... e do arguido R..., para cujo acto os arguidos A..., J...e M...não contribuíram de nenhum modo.
Pormenorizando o conteúdo das declarações dos arguidos J...e A..., estes, acompanhados da arguida M..., efectuaram uma visita ao irmão e “cunhada” do primeiro, respectivamente T... e U... ., tendo utilizado no transporte veículo automóvel pertencente ao arguido A..., conduzido pelo mesmo.
No decurso da referida visita, a arguida M...e a menor C... dirigiram-se a um estabelecimento de Café situado nas proximidades da habitação dos visitados T...e U..., com o propósito de a primeira adquirir tabaco para o arguido J....
Em determinado momento, T... avisou o arguido J...das diligências efectuadas por agentes da Polícia Judiciária no sentido da localização do segundo, que havia violado a obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica [«Olha veio aqui a Judiciária (…), perguntou por ti (…)»].
Em função de tal aviso, os arguidos J...e A... dirigiram-se ao “Café”, junto ao qual se encontrava a arguida M…, a chorar, tendo por ela sido dito que, entretanto, surgira o arguido R..., conduzindo um veículo automóvel, e levara a menor C....
O arguido R... e a menor C... gostavam um do outro.
Não contactaram de imediato T... e U… . porque o arguido J... tinha receio de ser detectado pela Polícia Judiciária (declarações do arguido A...).
No acampamento, em …, a menor mostrava-se feliz, referindo gostar do arguido R... (declarações do arguido A...).
«O arguido J... falou, pelo telefone, com T... e comunicou-lhe o casamento». O T...queria o regresso da menor mas o «J... dizia: não porque a miúda gosta dele e quer-se casar». Também a menor falou com T... a quem manifestou o seu desejo de se casar com o arguido R... (declarações do arguido A...).
«O J... só teve de realizar o casamento, no qual compareceram duzentos convidados» (declarações do arguido A...).
O arguido R... também costumava visitar o casal T... e U... . (declarações do arguido A...).
No referido acampamento de …, o arguido J...foi contactado, via telefone, por seu irmão T..., pretendendo este que a menor lhe fosse entregue. No entanto, a menor, em conversa mantida, pela mesma via, com T..., recusou abandonar o acampamento, referindo, por 4/5 vezes, pretender “casar” com o arguido R..., por gostar do mesmo. Perante isto, ao arguido J...não restou outra alternativa senão celebrar o casamento (declarações deste arguido).
No acampamento, antes do “casamento” era o arguido J...quem cuidava da menor C... (declarações deste arguido).
Auscultadas as declarações do arguido R..., recolhem-se os seguintes aspectos relevantes:
- Deslocou-se, sozinho, em veículo automóvel, a S…, local da residência de T..., U... . e da menor C... .., com o propósito de se casar com esta. Tencionava encontrar a C... na casa de habitação; «ia lá à fala com o pai da rapariga»;
- No entanto, viu a menor C... no exterior da habitação e falou com ela;
- Junto ao “Café” já acima referenciado, quando M...se encontrava no interior do estabelecimento e a menor no exterior, «esta entrou no carro e foram-se embora», em direcção a …;
- «O T... queria o casamento». Porém, em momento posterior, referiu, contraditoriamente, não ter contactado T... e U... porque o primeiro estava sob medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica e, nesta situação, não aceitava a realização do casamento;
- Quando se deslocou a …, com o propósito de levar consigo C... .., sabia que a menor seria submetida, no decurso do “casamento”, ao “teste de virgindade”;
- Não chegou a ter relações sexuais com a menor C... por esta não o ter permitido;
- Quando chegou ao acampamento, falou com seu pai, o arguido J..., que lhe disse: «vamos fazer o casamento».
Expostas, em traços largos mas suficientemente abrangentes, as declarações dos arguidos, é patente que as mesmas, como bem é referido na motivação da decisão de facto, são de todo em todo inverosímeis, destituídas de sentido lógico, afrontando decididamente as mais elementares regras da experiência comum, roçando mesmo o campo da fantasia.
Estranha e racionalmente não explicada coincidência a deslocação, no mesmo dia, à mesma hora, em separado, dos arguidos ao local onde se situa a residência da menor.
Não menos intrigante é o surgimento do arguido R... no preciso sítio onde se encontrava a menor C... acompanhada da arguida M….
À luz da versão sustentada pelos arguidos A... e J..., perante o sucedido, porque razão um deles, ou a arguida M…, não contactou, de imediato, U..., a quem legalmente estava confiada a guarda da menor, ou o companheiro desta, T...? O pretenso receio do arguido J... perante os órgãos de polícia criminal não é minimamente aceitável. Afinal, tinha-se deslocado, em longa viagem, sem qualquer preocupação dessa ordem. Além do mais, como ressalta do depoimento da testemunha U... ., o telefonema que esta efectuou, logo após o desaparecimento da menor C..., no sentido de encontrar explicação para tal facto, não foi atendido pelo arguido A....
A par, há que contar com as flagrantes contradições e/ou inverosimilhanças nas declarações do arguido R... e entre as declarações do arguido J... e o depoimento da testemunha T....
Se o arguido R... pretendia, como disse a dado momento, estabelecer contacto pessoal com seu tio T... porque o não fez, aproveitando, como seria sensato e normal, a presença de seu pai, o arguido J..., tanto mais que, como chegou a referir, aquele estava de acordo com a celebração do casamento?
Não causa menor perplexidade a circunstância invocada pelo mesmo arguido, de ter encontrado junto à residência em causa a menor C..., facto que não foi revelado por mais ninguém.
Contrariamente ao declarado pelos arguidos A... e J..., a testemunha T... apresentou versão diversa sobre o assunto relativo à Polícia Judiciária, tendo apenas respondido a pergunta que lhe foi dirigida pelo arguido J...do seguinte teor: «Ó T... aqui não passa de vez em quando a polícia?».
Ainda menos compreensível se torna o comportamento descrito pelo próprio arguido J..., que, não obstante a oposição manifestada por seu irmão à realização do casamento, recusou a entrega da menor e insistiu na concretização desse evento, o qual, incrivelmente, ocorreu no curto período de dois dias, contados desde a deslocação da menor da sua residência.

Passando às declarações de C... .., prestadas para memória futura (registadas em CD anexo aos presentes autos e transcritas a fls. 557/604), lidas e examinadas em audiência de julgamento, a menor revelou todo o processo relativo à sua retirada forçada, da zona onde residia para o acampamento sito em …, às condições da sua estada nesse acampamento e à posterior deslocação para Ílhavo, local onde se realizou o “casamento”.
Segundo referiu, acompanhou a arguida M…, a solicitação desta, com o pretexto afirmado daquela comprar tabaco num determinado “Café”.
No entanto, por iniciativa da arguida M…, não se dirigiram ao dito estabelecimento, tendo aquela invocado, falsamente, que iriam visitar uma irmã da mesma.
Seguiram viagem, em veículo automóvel, para o acampamento de …. Aqui, o arguido J... disse-lhe que iria casar com seu filho R..., não sendo, contudo, essa a sua vontade.
Acrescentou que queria ir para casa de seus pais, mas o arguido J... não o permitia.
Os telefonemas efectuados por U... tinham sempre a mesma resposta, de que a menor não se encontrava no acampamento. «Eles desligavam». «Sua “mãe” estava sempre a ligar, mas eles desligavam».
Dirigiu-se a Ílhavo, para contrair “casamento”, na companhia, entre outros elementos de etnia cigana, dos arguidos J..., M...e R....
No próprio dia do “casamento” foi submetida a “teste de virgindade”, através da introdução, por três vezes, de um dedo de elemento do sexo feminino, envolto num pano branco, na sua vagina. No ritual, embora sem interferir, estave presente a arguida M….
Consumado o casamento, recusou a realização de relações sexuais com o arguido R.... Nas palavras sugestivas da menor: «queria os meus pais».
Não gosta do R.... A festa de casamento foi «triste» porque não estavam lá os seus pais e o acto não foi de sua vontade.
Como está escrito pelo recorrente, detectam-se contradições pontuais no referido depoimento, relativos a actos concretos envolventes da deslocação da menor do local da sua residência para o acampamento em … .
Expliquemo-nos.
Numa versão inicial, C... referiu ter sido transportada no veículo automóvel conduzido pelo arguido A..., o qual viajaram também os arguidos J... e M…. Quanto ao arguido R..., não participou, de qualquer forma, no dito facto; apenas o viu em … .
Posteriormente, perante interrogatório profundo e persistente do Sr. Juiz Presidente do Tribunal Colectivo, acabou por dizer que viajou na viatura automóvel do arguido R..., conduzido por este, também acompanhada pela arguida M…. Os arguidos A... e J..., por sua vez, seguiram viagem, imediatamente atrás, no veículo automóvel do primeiro.
Contudo, o depoimento da menor não pode ser visto de forma truncada e sincopada. Antes há-de ser apreciado na sua complexidade global. E se for assim perspectivado, é detectável uma tentativa inicial da menor na desculpabilização do arguido R... em relação aos factos ocorridos, no entendimento de a responsabilidade pelo sucedido pertencer aos arguidos J... e M… .
Na formulação deste juízo valorativo são concludentes as seguintes expressões da menor: «O R... não queria casar, foi o pai que o forçou»; «O R... disse que não queria casar»; «O culpado disto é o J...».
Não obstante a contradição registada, justificada à luz das ditas motivações, apesar da sua idade, apenas 11 anos na data do depoimento, a menor C... produziu um testemunho circunstanciado dos factos, caracterizado, nos aspectos fundamentais, pelo rigor e objectividade e, deste modo, merecedor de ampla credibilidade.
O mesmo não se pode dizer, como decorre explicitamente do que acima já ficou exposto, das declarações dos arguidos, marcadas por patentes incongruências e inverosimilhanças.
Relativamente à demais prova produzida na audiência de julgamento, no essencial, a testemunha U... deixou bem vincado: «levaram a C... para casar»; «a menina foi casada contra a sua vontade».
As testemunhas …, …, …, todos Inspectores da Polícia Judiciária, AC… e MA… não revelaram conhecimento sobre os factos ora em análise.
Por seu turno, as testemunhas T... e P..., irmãos do arguido J... e tios do arguido R..., patentearam uma posição de alinhamento, não crível, com as declarações dos arguidos (como estes, e contrariamente à posição reiteradamente manifestada pela menor, esta não quis regressar à sua residência, disse a testemunha T…; a C... gostava do R..., assinalou a testemunha P.....).
Não obstante, a testemunha T...deixou bem expresso as diversas insistências que fez, sem resultado, no sentido de o arguido J... proceder à entrega da menor.

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O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova. Num segundo nível, intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo que as inferências hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”.
O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a decisão do julgado, face à credibilidade que a prova mereça e as circunstâncias do caso, com recurso a prova indiciária, podendo esta por si só conduzir à convicção do julgador.
Assim, relevantes no domínio probatório, para além dos meios de prova directa, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
O artigo 349.º do Código Civil prescreve que «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido», sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351.º do mesmo diploma).
É legítimo o recurso às presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do Código de Processo Penal).
No plano de análise em que nos movemos importam as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
«Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência)» Cfr., v.g., Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ, n.º 112, pág. 190..
As presunções simples ou naturais são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções.
As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto Cfr. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 333 e ss..
Como é referido no Ac. do STJ de 07-01-2004 In www.dgsi.pt (proc. n.º 03P3213)., «na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
(…).
A ilação decorrente de uma presunção natural não pode, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável».
Em suma, nos parâmetros expostos, a apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apresáveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras da experiência, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova. Tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve, naturalmente, também, elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer, com consistência e maturidade, no sentido de prevenir a arbitrariedade e, ao contrário, permitir que actuem como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível.
*
Decorre inequivocamente da prova produzida, supra analisada, que os arguidos se deslocaram, desde …, no mesmo dia, à mesma hora, em dois veículos automóveis (os arguidos A..., J...e M..., numa viatura, e o arguido R..., filho do arguido J..., noutra) à residência da menor C... .., sita em S… .
Enquanto os arguidos A..., J... e M...entraram e permaneceram na dita residência, pertencente a T... e U... ., respectivamente, irmão e cunhada do arguido J..., o arguido R... optou por atitude diversa, tendo-se dirigido a local indeterminado.
Em certo momento, a arguida M…, com o pretexto de pretender adquirir tabaco num determinado “Café”, solicitou a presença da menor C..., que a acompanhou.
Porém, não se dirigiram àquele estabelecimento comercial. Ao invés, a arguida M...referiu, então, à menor que iriam visitar uma irmã da primeira, o que não tinha correspondência com a realidade.
Entretanto, surgiu o arguido R..., tendo a menor e a arguida M...entrado no veículo automóvel que o primeiro conduzia.
Em contexto temporal aproximado, os arguidos A... e J...abandonaram a residência em que se encontravam e dirigiram-se ao local onde estavam o arguido R..., a arguida M...e a menor C....
Então, nos dois veículos, todos se dirigiram ao acampamento sito em … .
Nesse dia, apesar de contactado telefonicamente, o arguido J... recusou a entrega da menor C... a quem legalmente a mesma estava confiada, ou seja, a U... ., persistindo na ideia, concretizada, do “casamento” entre a menor e seu filho, também arguido, R..., evento esse que ocorreu passados que foram apenas dois dias.
Tendo por base estes factos, fazendo apelo ao razoável entendimento das regras de vida, são manifestamente apreensíveis laços de continuidade lógica que permitem formular um seguro juízo de inferência, superando qualquer dúvida razoável, sobre: (i) a existência de um plano previamente delineado entre os arguidos J..., M...e R..., tendente à subtracção de C... da casa onde residia, com o objectivo da menor contrair casamento, segundo os costumes e tradições da etnia cigana, com o arguido R...; (ii) a execução conjunta desse plano, nos termos descritos nos pontos 8. a 13. do acervo factológico provado.
Outro juízo dedutivo atentaria manifestamente contra o senso comum de qualquer cidadão medianamente sensato e perspicaz.
Ficaria sem sentido a (injustificada) coincidência da deslocação, em separado, no mesmo momento, dos arguidos A..., J...e M..., de um lado, e do arguido R..., de outro, à localidade de S…. Como seria de todo incompreensível a não comparência do arguido R... perante seu tio T…, com o propósito de anunciar o seu desejo de “união matrimonial” com a menor C....
Ainda menos explicável seria o expediente utilizado pela arguida M...para afastar a menor da sua residência, com o falso pretexto acima referido.
Não menos ilógico se afiguraria a recusa de entrega da menor por parte do arguido J..., perante os vários contactos que recebeu nesse sentido, provindos das pessoas a quem a menor está legalmente entregue, e a insistência num “casamento”, organizado e realizado no curto período de dois dias, não desejado por essas pessoas e pela própria menor.

No mais, no que concerne ao ponto 17., merecem ainda inteira credibilidade as declarações da menor C..., particularmente explícitas sobre a relação de domínio exercido sobre si pelos arguidos J... e M… .
Aliás, ainda neste específico domínio, as regras da experiência comum de vida não poderiam deixar margem para diverso juízo de ponderação, posto o que já ficou dito sobre a deslocação não desejada da menor da sua residência para ….

Quanto ao facto do ponto 18., com diferenças, irrelevantes, de pormenor, prevalecem também, em função das razões já sobejamente expostas, as declarações da menor C..., as quais são particularmente explícitas sobre o “teste de virgindade” a que foi submetida.
Acresce ainda que, essas declarações têm a corroboração periférica de outros elementos de prova, quais sejam as declarações do próprio recorrente e do arguido R..., que confirmaram a ocorrência do referido teste, e, sobretudo, do relatório de perícia sexual constante de fls. 203/205.

Os factos do ponto 19. são inequivocamente confirmados pelas declarações da menor - que referiu ter sentido dores (outra conclusão não seria possível, dada a natureza e intensidade do acto praticado) decorrentes da conduta descrita no ponto n.º 18. - e, fundamentalmente, pelo já mencionado relatório pericial.

Por fim, em relação aos pontos 26. a 28., não colhem as objecções contrapostas pelo recorrente na parte final da 1.ª conclusão da motivação de recurso. Sem necessidade de maiores considerações, reafirma-se aqui o que já anteriormente ficou escrito sobre os elementos probatórios que sustentam a segura conclusão da comparticipação do arguido J... no planeamento e execução dos factos descritos nos pontos 5. a 13. da factualidade dada como provado pelo tribunal de 1.ª instância.

Por todo o exposto, não procedem os desígnios do recorrente no sentido da alteração da matéria de facto constante do acórdão recorrido.

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6. Da violação do princípio da livre apreciação da prova:
Na concreta situação dos autos, o tribunal objectivou e motivou o seu convencimento da verdade dos factos através de uma via suficientemente racionalizável, em que assumiu compreensível relevo a fundamentação da decisão de facto que se transcreveu, onde é perfeitamente perceptível o raciocínio lógico-dedutivo seguido e as razões que determinaram que se dessem como provados e não provados os factos que a decisão recorrida acabou por consagrar.
Ao invocar a violação do princípio consignado no artigo 127.º do CPP, o recorrente mais não pretende a final do que a modificação da matéria de facto, pretensão essa que já foi sindicada por este tribunal ad quem, nos termos acima expostos.
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7. Destituída de fundamento se apresenta também a residual alusão ao princípio processual do in dubio pro reo, já que, de todo, não se antolha da fundamentação da decisão de facto – supra transcrita – qualquer estado de dúvida razoável, positiva, racional sobre o comportamento do arguido/recorrente, impeditiva da convicção do julgador nos termos em que se revelou.
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8. Resulta dos fundamentos do recurso, supra reproduzidos, que a pretensão do recorrente de ser absolvido dos crimes que lhe estão imputados e pelos quais foi condenado em 1.ª instância assenta apenas na sugerida, e não aceite, alteração da matéria de facto provada e não provada.
Por isso, há agora que apreciar se o comportamento do recorrente se enquadra, como é sua pretensão, na figura jurídica de cúmplice e não de co-autor.
De acordo com a disposição normativa do art. 26.º do Código Penal «é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrém, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução».
Por sua vez, prescreve o art. 27.º, n.º 1, do mesmo diploma: «É punível como cúmplice quem, dolosamente, e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrém de um facto doloso».
Seguindo de perto as posições da doutrina e da jurisprudência, são elementos da comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria os seguintes:
- a intervenção directa na fase de execução do crime («execução conjunta do facto»);
- o acordo para a realização conjunta do facto; acordo que não pressupõe a participação de todos na elaboração do plano comum de execução do facto; que não tem de ser expresso, podendo manifestar-se através de qualquer comportamento concludente; e que não tem de ser prévio ao início da prestação do contributo do respectivo co-autor;
- o domínio funcional do facto, no sentido de o agente «deter e exercer o domínio positivo do facto típico» ou seja o domínio da sua função, do seu contributo, na realização do tipo, de tal forma que, numa perspectiva ex ante, a omissão desse contributo impediria a realização do facto típico na forma planeada.
No que respeita à execução propriamente dita, não é indispensável nem necessário que cada um dos agentes cometa integralmente o facto punível, que execute todos os factos correspondentes ao preceito incriminador, que intervenha em todos os actos a praticar para obtenção do resultado pretendido, bastando que a actuação de cada um, embora parcial, seja elemento componente do todo e indispensável à produção do resultado.
Quanto à cumplicidade, pressupõe ela um mero auxílio material ou moral à prática por outrem do facto doloso, de forma que ao cúmplice falta o domínio do facto típico no sentido acima indicado como elemento indispensável da co-autoria. O cúmplice limita-se a favorecer um facto alheio, não toma parte no domínio do facto; o autor não necessita sequer conhecer a cooperação que lhe é prestada (a chamada cumplicidade oculta).
Neste ponto se distingue precisamente a cumplicidade da co-autoria, posto que esta requer, como já ficou dito, o domínio funcional do facto sobre a base de um acordo comum.
A propósito das figuras jurídicas em análise, escrevem:
- Johannes Wessels Direito Penal, Parte Geral (Aspectos Fundamentais), Porto Alegre, 1976, págs. 121 e 129.:
«A co-autoria baseia-se no princípio do actuar em divisão de trabalho e na distribuição funcional dos papéis. Todo o colaborador é aqui, como parceiro dos mesmos direitos, co-titular da resolução comum para o facto e da realização comunitária do tipo, de forma que as contribuições individuais completam-se em um todo unitário e o resultado total deve ser imputado a todos os participantes.
O acordo necessário pode (expressa ou tacitamente) também ser ainda firmado entre o início e o término do facto.
Será punido por cumplicidade quem, dolosamente, preste auxílio a outrém para o cometimento doloso do facto antijurídico. A cumplicidade diferencia-se da co-autoria pela ausência do domínio do facto; o cúmplice limita-se a promover o facto principal através de auxílio físico ou psíquico».
- Francisco Munõz Conde e Mercedes Garcia Arán Derecho Penal, Parte Geral, 4.ª Edição, tirant lo blanch, Valência, 2000, págs. 501/502.:
«Lo decisivo en la coautoría es que lo dominio del hecho lo tienen varias personas que, en virtud del principio del reparto funcional de roles, asumen por igual la responsabilidad de su realización. Las distintas contribuciones deben considerarse, por tanto, como un todo y el resultado total debe atribuirse a cada coautor, independientemente de la entidad material de su intervención.... El simple acuerdo de voluntades no basta. Es necesario, además, que se contribuya de algún modo em la realización del delito (no necessariamente com actos ejecutivos), de tal modo que dicha contribución pueda estimarse como un eslabón importante de todo el acontecer delictivo».

- Faria Costa Formas do Crime, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, pág. 170.,:
«Desde que se verifique uma decisão conjunta (“por acordo ou juntamente com outro ou outros”) e uma execução também conjunta estaremos caídos» na figura jurídica da co-autoria (“toma parte directa na sua execução”).
«Todavia, para definir uma decisão conjunta parece bastar a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime (“juntamente com outro ou outros”). É evidente que na sua forma mais nítida tem de existir um verdadeiro acordo prévio – podendo mesmo ser tácito – que tem igualmente que se traduzir numa contribuição objectiva conjunta para a realização típica. Do mesmo modo que, em princípio, cada co-autor é responsável como se fosse autor singular da respectiva realização típica.
Relativamente ao conceito de cumplicidade, mais é referido na pág. 174 da citada obra:

«A primeira ideia que ressalta.....é a de que a cumplicidade experimenta uma subalternização, relativamente à autoria. Há, pois, uma linha que se projecta não na assunção de todas as consequências....mas que se fica pelo auxílio. Isto é, fazendo apelo a um velho critério...., deparamo-nos aqui com uma causalidade não essencial».
- Germano Marques da Silva:
«A linha divisória entre autores e cúmplices está em que a lei considera como autores os que realizam a acção típica, directa ou indirectamente, isto é, pessoalmente ou através de terceiros (dão-lhe causa) e como cúmplices aqueles que não realizando a acção típica nem lhe dando causa ajudam os autores a praticá-la» Direito Penal Português, Verbo, 1998, II volume, pág. 279.;
Na comparticipação criminosa, de que a cumplicidade é um dos modos, «cada comparticipante responde pelo facto típico, porque todos os comparticipantes concorrem para a prática do mesmo facto. O modo de cooperação é que é diverso: o objecto a que se dirige a cooperação é o mesmo: o facto, o crime» Idem, pág. 280.;
A fls. 291/2 da mesma obra afirma ainda o mesmo autor que a cumplicidade é uma forma de participação secundária na comparticipação criminosa. «Secundária num duplo sentido: de dependência na execução do crime ou começo de execução e de menor gravidade objectiva, na medida em que não é determinante da prática do crime (o crime seria sempre realizado, embora eventualmente em modo, tempo, lugar ou circunstâncias diversas)».
Traduz-se «em mero auxílio, não sendo determinante da vontade dos autores nem participa da execução do crime, mas é sempre auxílio à prática do crime e nessa medida contribui para a prática do crime, é um concausa do crime».


No caso a que se reportam os autos, perante os pontos 5. a 27. da matéria de facto dada como provada é evidente a existência do elemento «acordo», firmado entre o recorrente e os arguidos M...e R..., tendo como objectivo a subtracção da menor C... e o posterior casamento da mesma com o arguido R..., segundo os ritos da etnia cigana.
Em conformidade com tal acordo, cada um dos arguidos praticou actos de execução do plano antes congeminado tendentes à obtenção do referido desiderato.
Concretamente, no dia 12 de Abril de 2009, o arguido J... dirigiu-se, acompanhado dos arguidos A... e M..., à residência de C... e, posteriormente, foi ao encontro do arguido R..., em cujo veículo automóvel já se encontrava a menor; seguidamente, rumaram ao acampamento de …. Enquanto esteve neste acampamento, a menor pernoitou na barraca dos arguidos J..., M...e R....
A meio da manhã do dia 14 de Abril de 2009, o arguido J..., conjuntamente com os arguidos M...e R..., levaram a menor para o acampamento cigano situado em Ílhavo, onde se veio a realizar o “casamento”, tendo a menor ficado continuadamente sob o controlo dos referidos arguidos.
No crime de rapto, a agressão da liberdade de movimento pessoal do sujeito passivo é, em última análise, a base fundamental da incriminação. Trata-se de um crime permanente ou duradouro: a sua consumação material (o resultado/dano privação da liberdade) ocorre (inicia-se) com a efectiva privação da liberdade e só termina com a libertação da vítima.
Ora, o recorrente J..., através dos actos concretos supra descritos, comparticipou directamente na transferência da vítima C... de um lugar para outro diferente e, sobretudo, reteve-a no local onde ultimamente se encontrava, ou seja, no acampamento de …, transportando-a, em seguida, para …, local onde se realizou o “casamento”.
Deste modo, os factos provados configuram inequivocamente uma situação de comparticipação directa do recorrente na execução do crime de rapto, sob a forma de co-autoria, e não de cumplicidade, pois não se limitou a facilitar a execução do facto, ou a prestar ajuda à sua concretização.
Diversamente, o arguido J..., tal com os arguidos M...e R..., deteve e exerceu o domínio da sua função, do seu contributo, para a execução do facto (privação da liberdade da menor), em harmonia com o plano e acordo referidos, com a finalidade de a vítima ser sujeita, a final, a crime de natureza sexual. Sem a sua actuação, sem esse contributo, a realização do crime de rapto, tal como planeado, não teria sido possível nos termos em que ocorreu.

Quanto à comparticipação do arguido na prática dos factos típicos do crime de ofensa à integridade física qualificada, o acórdão recorrido versou a questão nos seguintes termos:
«(…) relativamente aos arguidos M....., J...e R..., estando provado que actuaram em conjugação de esforços e em execução de plano previamente delineado, com o objectivo de forçar a menor a casar-se com o arguido R... de acordo com os ritos da etnia cigana sabendo também que, ao subtraírem a menor, levando-a consigo, para que se celebrasse aquele casamento de acordo com os ritos e costumes ciganos, a C... seria forçada a sofrer o exame acima descrito para aferir da sua virgindade, a sua responsabilidade criminal encontra o necessário apoio no quadro da figura da co-autoria.
(…).
Ora, no caso em apreço, a actuação da “ajuntadeira” só foi possível graças à intervenção dos referidos arguidos, que claramente a desejaram, tendo empreendido esforços no sentido da sua concretização, designadamente, subtraindo a menor à pessoa a quem legalmente estava atribuída a respectiva guarda, tudo o que fizeram em conjugação de esforços e em execução de plano previamente delineado.
Nessa medida, tendo participado activamente na criação das condições para que a menor fosse à dita “ajuntadeira” e submetida ao referido teste de comprovação da virgindade, afigura-se que se justifica a sua punição como co-autores do referido crime de ofensa à integridade física qualificada, praticado pelo “ajuntadeira”, nos sobreditos termos».
Perante o acerto desta análise, pouco mais se poderá dizer.

No caso em apreciação, tal como sucede no facto típico do crime de rapto, estamos perante um exercício conjunto no domínio do facto; uma contribuição objectiva dos arguidos J..., M...e R... para a realização do designado “teste de virgindade” sofrido pela menor C.... O recorrente, conjuntamente com os outros dois arguidos aderiu ao projecto global e dele participou através de contributo essencial à sua concretização, nos termos já suficientemente explanados. Sucede que os arguidos sabiam que o plano congeminado e executado (subtracção/retenção da menor, tendo em vista o casamento da mesma com o arguido R...) implicaria necessariamente a efectivação do referido teste, do qual resultariam lesões, pelo menos físicas, para a menor.

Assim, também nesta vertente, não estamos perante um caso de intervenção ou mero favorecimento do arguido J... em facto alheio, mas em face de uma situação de co-autoria.


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9. Medida das penas:
Insurge-se o recorrente contra as penas parcelares que lhe foram impostas, pela prática dos crimes de rapto e ofensa à integridade física qualificada, que, segundo se intui dos termos da motivação do recurso, tem por quantitativamente excessivas.
Apela, genericamente, aos critérios de determinação da pena previstos no artigo 71.º do Código Penal e, expressamente, à previsão da alínea c) do n.º 2 do mesmo artigo, referenciada ao circunstancialismo provado (ponto n.º 37.) de todos os arguidos serem de etnia cigana, vivendo norteados pelos costumes ancestrais de tal etnia.
É questão que, por fim, cabe apreciar.
Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).
Abstractamente a pena é definida em função da culpa e da prevenção, intervindo, ainda, circunstâncias que não fazendo parte do tipo, atenuam ou agravam a responsabilidade do agente - art. 71.º, n.ºs 1 e 2 do CP.
A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Como refere Claus Roxin, em passagens escritas perfeitamente consonantes com os princípios basilares no nosso direito penal, «a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada.
A sensação de justiça, à qual corresponde um grande significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só uma pena de acordo com a culpabilidade.

Certamente a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.

A pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais». Derecho Penal - Parte General, Tomo I, Tradução da 2.ª edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas), págs. 99/101 e 103.

Ao definir a pena o julgador nunca pode eximir-se a uma compreensão da personalidade do arguido, afim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformação com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformação a medida da censura pessoal do agente, e, assim, o critério essencial da medida da pena Prof. Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa, Direito Penal, pág. 184..

A submoldura da prevenção geral é fortemente influenciada pela importância dos bens jurídicos a proteger, desempenhando uma função pedagógica através da qual se procura dissuadir as consequências nocivas da prática de futuros crimes e conseguir o reforço da crença colectiva na validade e eficácia das normas, em ordem à defesa da ordem jurídica penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva.

Por sua vez, a prevenção especial positiva ou de socialização responde à necessidade de readaptação social do arguido.


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As penas (parcelares) impostas ao recorrente estão justificadas pelo Tribunal Colectivo de 1.ª instância nos termos infra transcritos:
«Quanto ao arguido J..., cotejando todos os factos provados acerca da concreta actuação do arguido, afigurando-se que a circunstância de a sujeição da menor C... ao ritual referido ser reputada de normal no quadro das tradições e costumes da etnia a que tal arguido pertence (circunstância que, não descriminalizando a conduta, contribui para contemporizar a sua culpa), olhando ao facto de tal arguido ter antecedentes criminais, afigura-se equitativa a imposição da pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada, e de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão, quanto ao crime de rapto».

O crime de rapto, cometido pelo arguido, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 161.º, n.ºs 1, al. b), e n.º 2, al. a), e 158.º, n.º 2, als. a) e b), do CP, é punido com pena de prisão de três a quinze anos, enquanto a moldura abstracta do crime de ofensa à integridade física qualificada, também perpetrado pelo mesmo arguido, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a), e 132.º, n.º 2, al. c), todos do referido diploma legal, tem como limite mínimo 1 mês de prisão e limite máximo 4 anos de prisão.
No caso, é elevado o grau de ilicitude, revelado pela intensidade da afectação dos bens jurídicos protegidos pelas normas jurídicas violadas.
A gravidade das consequências dos factos praticados é bem patente, tendo em conta, sobretudo, as sequelas físicas produzidas em menor de apenas 11 anos de idade.
A par, também não podemos olvidar o comportamento anterior do arguido, pautado, essencialmente, pela prática de dois crimes de tráfico de estupefacientes, pelos quais foi condenado em penas de 6 anos e 10 meses de prisão e de 6 anos e 3 meses de prisão, e na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.
No domínio da culpa e da necessidade da pena, como ficou exposto, não deixou o tribunal de 1.ª instância de manifestar a devida sensibilidade às idiossincrasias e especificidades culturais da etnia cigana.
Tudo ponderado, tendo também em conta as patentes exigências de prevenção geral e especial, as penas parcelares impostas pelo tribunal a quo são justas e adequadas, não merecendo também qualquer reparo a pena única, de 6 anos e 6 meses de prisão, que está criteriosamente fixada.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido J..., mantendo-se, na íntegra, o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido, com 6 UC´s de taxa de justiça (artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, e artigos 82.º, n.º 1 e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, do Código das Custas Judiciais).


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(Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)

Coimbra, 29 de Setembro de 2010


JOÃO:
- Porventura, justificar-se-ia uma redução das penas parcelares, em face, essencialmente, do facto provado n.º 37; mas se assim fosse, haveria manifesto desajustamento entre as penas do recorrente e as penas (especialmente atenuadas) dos arguidos R... e M...(menores) e A... (cúmplice);
- Penso que o facto 37 não consagra falta de consciência da ilicitude e, ainda menos, erro sobre a proibição. Na verdade, o que está provado é a falta de consciência crítica perante a gravidade dos factos e não qualquer erro moral, de valoração, em relação à previsão e punição dos factos praticados, ou a ausência de consciência, psicológica, intelectual, de que o sistema jurídico proíbe a prática de semelhantes condutas.
Mas é questão que, antecipadamente, submeto à vossa apreciação.
Embora a questão não tenha sido, directa ou indirectamente, ventilada no recurso, se entendesse existir, em face do descrito no referido ponto de facto 37., falta de consciência da ilicitude, haveria contradição insanável entre esse ponto e o ponto n.º 31.
A propósito da censurabilidade ético-jurídica da conduta dos arguidos, em parâmetros de apreciação que não se situam especificamente no quadro da questão que agora coloco mas que com a mesma têm manifesta ligação, está escrito (bem, segundo me parece), na fundamentação de direito do acórdão recorrido:
«Problema que nesta sede se poderá equacionar prende-se com a possibilidade de a punição dos arguidos pelo referido crime, nos termos expostos, ser afastada por um eventual juízo de adequação social, ou seja, por a actuação imputada aos arguidos encerrar um costume ancestral da etnia cigana, o respeito pela idiossincrasia cigana e pelo seu modus vivendi, não imporá que os descritos factos pura e simplesmente não sejam considerados crime.
A tal questão terá, no entender deste Tribunal, que responder-se negativamente.
Na verdade, o respeito pela diversidade cultural dos vários grupos, etnias, raças ou credos que integram a sociedade portuguesa não pode ir ao ponto de conduzir à completa postergação das normas e princípios que regem e estruturam a vida e funcionamento desta sociedade, afigurando-se que as liberdades, os costumes, as tradições, as mundividências terão sempre que ceder perante o património axiológico sobre o qual foi construída a ordem jurídica.
Assim, sempre que a actuação dessas liberdades, dos costumes, das tradições, das mundividências acarrete lesões socialmente insuportáveis de bens jurídicos penalmente protegidos, é legítima a intervenção do direito penal com os seus instrumentos próprios de actuação, ainda que para sancionar práticas e costumes arreigados em determinado grupo, etnia, raça ou credo.
Ora, a integridade física é um bem constitucional, civil e penalmente protegido, afigurando-se estarem proibidas pelo princípio da igualdade quaisquer considerações que monosprezem a integridade física da menor C... apenas pelo facto de ser cigana.
Entende-se por isso que, quando está em causa o respeito por regras, princípios e valores que se reputam de fundamentais à vida em sociedade (e são-no todos os direitos constitucionalmente consagrados) são os distintos grupos, etnias, raças ou credos que têm de se adaptar à ordem social e juridicamente vigente e, se necessário for, adaptar, numa perspectiva de evolução, as suas crenças, costumes e tradições às regras, princípios e valores que estruturam a sociedade em que se integram.
Finalmente, na apreciação da referida questão, não pode deixar de sublinhar-se que a actuação do Estado se sublima aqui num acto que surgiu do interior da própria etnia, porquanto foi o representante legal da menor que, por não concordar nem aceitar a actuação dos arguidos, apresentou a competente queixa-crime.
Nessa medida, surge manifesto que a própria titular do direito de queixa, representante legal da vítima, não estava de acordo com a sujeição desta aos costumes e práticas da etnia, o que é fundamento bastante para a intervenção do direito penal e das suas sanções próprias».

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)