Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10927/20.8YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEILOEIRA
VENDA DE IMÓVEL
COMISSÃO DA VENDA
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 837º, Nº 1 DO NCPC.
Sumário: Tendo sido celebrado um contrato entre a massa insolvente e uma leiloeira, com o fim de promover a venda de um imóvel, nos termos do qual o comprador seria responsável pelo pagamento da comissão devida à leiloeira, como contrapartida da sua atividade; tendo o comprador procedido ao seu registo prévio, como participante no leilão, na respetiva plataforma eletrónica – n.º 1 do artigo 837.º do Código de Processo Civil e artigo 20.º da Portaria n.º 282/2013, de 29 de agosto – e aderido às condições do leilão, entre as quais se encontrava esse contrato, o comprador do imóvel é responsável pelo pagamento dessa comissão à leiloeira.
Decisão Texto Integral:






I. Relatório

a) Através da presente ação, inicialmente uma injunção, a autora I..., S. A., demanda S... com o fim de obter a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de €8.470,70 (capital, juros de mora vencidos, taxa de justiça), mais juros vincendos e também compulsórios à taxa de 5% com a aposição da fórmula executória.

Fundamenta o pedido num contrato de prestação de serviços celebrado entre si e a Massa Insolvente de S..., ao abrigo dos artigos 12.º, n.º 11, da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro, e artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 155/2015, de 10 de agosto, nos termos do qual a Autora procedeu à organização de um leilão eletrónico para venda de uma fração autónoma que integrava a massa insolvente.

Alega que a Ré participou nesse leilão; que conhecia as respetivas cláusulas e que a quantia pedida corresponde à comissão prevista e devida à Autora, que foi de 5% sobre o preço da venda, mais IVA.

A Ré contestou referindo, em síntese, não ser devedora porque não celebrou qualquer contrato com a Autora e que sendo, como era, credora com direito de retenção, não carecia de entrar no leilão para adquirir o bem, sendo ainda certo que, nos termos do contrato de prestação de serviços relativo à organização do leilão o credor hipotecário estava dispensado de pagar a mencionada comissão, norma que é extensível à Ré, pois esta, por maioria de razão, está dispensada do pagamento dessa comissão.

Procedeu-se a audiência de julgamento e depois foi proferida sentença, com este dispositivo:

«Face ao exposto, na total improcedência da ação, absolve-se a R. S... do pedido nestes autos formulado pela I...,l S.A.

Custas a cargo da A. (artigo 527º do CPC).»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da Autora, cujas conclusões são as seguintes:

...

51. Tem-se, pois, que a douta sentença infringe o disposto nos artigos art.º 227º, nº1 do CC, art.º 236º nº 1 e 2 do CC, art.º 334.º do CC art.º 406.º n.º 1 do CC; art.º 762.º n.º 2 do CC e art.º 5.º, n.º 2 do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro.

Termos em que deve:

A) Ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto, e em consequência, dar como provado que a “RÉ AO LICITAR NO LEILÃO QUE A AUTORA ORGANIZOU POR DECISÃO DA ADMINISTRADORA DE INSOLVÊNCIA, CONHECIA O PAGAMENTO DA COMISSÃO DE 5% SOBRE O VALOR DA ALIENAÇÃO EM LEILÃO DO IMÓVEL QUE ADQUIRIU.”

B) Ser REVOGADA a sentença ora recorrida e julgar procedente, por provada a ação, pelo abuso de direito, condenando a Ré na totalidade do pedido efetuado pela Autora, com todas as consequências legais Assim se fazendo JUSTIÇA!!!!»

c) Contra-alegou a Ré, a qual concluiu nestes termos:

...

II. Objeto do recurso.

O âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.

As questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – Em primeiro lugar verificar se deve alterar-se a matéria de facto adicionando aos factos provados o seguinte:

«A ré ao licitar no leilão que a autora organizou por decisão da administradora de insolvência, conhecia o pagamento da comissão de 5% sobre o valor da alienação em leilão do imóvel que adquiriu.»

 Ré argumenta em sentido negativo, alegando que e trata de facto essencial e estes não foi alegado.

2 – Em segundo lugar, cumpre verificar se a matéria de facto deve conduzir á procedência da ação.

III. Fundamentação

a) Impugnação da matéria de facto

Vejamos se deve alterar-se a matéria de facto, adicionando aos factos provados o seguinte facto:

«A ré ao licitar no leilão que a autora organizou por decisão da administradora de insolvência, conhecia o pagamento da comissão de 5% sobre o valor da alienação em leilão do imóvel que adquiriu.»

 Ré argumenta em sentido negativo, alegando que e trata de facto essencial e que o mesmo não foi alegado.

Não tem razão.

A Autora alegou no requerimento injuntivo o seguinte:

«2. No leilão, inscreveu-se e participou a ora requerida.

3. Nos termos das condições do contrato, do conhecimento da requerida e a que esta deu a sua concordância (Cfr. em especial, cláusula 4, alínea b)) a comissão devida à ora requerente era de 5% sobre o valor de venda, acrescida de IVA à taxa em vigor.

4. Nos termos das condições do contrato, do conhecimento da requerida e a que esta deu a sua concordância (Cfr cláusula quarta)” as PARTES convencionam que o pagamento da remuneração pela prestação de serviços ora contratados será, alvo estipulação expressa em contrário, da responsabilidade do(s) adquirentes(s) do(s) bem(ns), conforme estipulado nas condições de venda da L…»

Verifica-se, por conseguinte, que o facto foi alegado, ou seja, a Autora alegou expressamente que a Ré ao participar no leilão concordou com o pagamento da comissão de 5% sobre o preço da venda.

Vejamos então o mérito da impugnação.

Parte da pretensão da Recorrente já consta do facto provado n.º 6, com esta redação:

«6- A. Ré tinha conhecimento à data em que licitou o bem indicado em 1, do conteúdo do acordo referido em 2.»

A diferença entre este facto e consiste apenas na contextualização das circunstâncias em que a Ré adquiriu esse conhecimento, ou seja, quanto ao modo como a Ré adquiriu esse conhecimento.

Como se vê dos factos alegados nos pontos 2 e 3 da petição, a Autora afirma que a Ré se inscreveu no leilão, conhecia e deu a sua concordância, isto é, aderiu, ao contrato realizado entre a massa e a Autora leiloeira.

É esta factualidade alegada que está em causa.

Face à prova produzida tem de se formar a convicção de que, efetivamente, a Ré só pode ter tomado conhecimento da dita cláusula (facto provado n.º 6) através da plataforma eletrónica que suportou a realização do leilão.

É o que se concluiu do depoimento da testemunha ..., que não foi contrariado por qualquer outro meio de prova, nem pelas regras de experiência.

Afirmou que a Ré para participar no leilão teve de aceder necessariamente à respetiva plataforma digital e seguir os passos aí indicados para poder participar no leilão, ou seja, teve de se registar como participante e acionar o campo do formulário onde se assinalava que o participante concordava com as condições do leilão e nessas condições constava o contrato que aqui está em causa, o qual se encontrava disponível para ser lido por quem participava.

Este procedimento faz parte do modus operandi deste tipo de leilão.

Por conseguinte, procede a impugnação.

Cumpre, porém, em vez de afirmar «conclusivamente» que a Ré «conhecia» a cláusula, descrever a factualidade que permite concluir que a «conhecia», fazendo-se uma descrição mais próxima da realidade factual, tal como ela ocorreu e que vem alegada nos referidos pontos 2 e 3 da petição.

Por conseguinte, cumpre descrever o que se passou e o que se passou foi que «A Ré acedeu à plataforma eletrónica onde decorria o leilão, inscreveu-se como participante e assinalou no formulário que tinha de preencher que concordava com as condições do leilão entre as quais constava o contrato celebrado entre a massa insolvente e a Autora».

Esta novo facto provado terá o n.º 13.

Para evitar uma interpretação que conclua pela existência de uma contradição com o facto não provado da al. a) [«A Ré deu a sua concordância ao pagamento do valor de 5% sobre o valor da alienação do imóvel que adquiriu, na sequência do leilão organizado pela Autora a ao qual a ré acedeu»], este será eliminado.

b) 1. Matéria de facto – Factos provados

1- Por sentença proferida em 25 de outubro de 2019 no âmbito do apenso de reclamação de créditos - processo nº ... - da insolvência de S..., foi por referência à fração autónoma identificada com a letra n, descrita na CRP de Leiria sob o nº ..., único bem apreendido naquele processo, graduados os créditos reclamados, do seguinte modo:

«- i. Em primeiro lugar, o crédito de S...

- ii. Em segundo lugar, os créditos garantidos por hipoteca da C..., SA.

- iii. Em terceiro lugar, os restantes dois créditos constantes da lista de credores reconhecidos, cuja natureza é comum”.

2- Entre a Massa Insolvente de S..., representada pela Administradora Judicial S... e a Autora foi reduzido a escrito e assinado, em 02 de janeiro de 2019 o acordo ([1]), que se encontra a fls. 10 e 10 verso.

3- Em 06 de março de 2019 a Ré remeteu à Administradora Judicial da Massa Insolvente, por correio registado com aviso de receção, uma proposta no valor de €85.000,00 para adquirir o bem imóvel indicado em 1, mais informado que com tal missiva seguia um cheque no valor de €17.000,00, pedindo ainda à Administradora a dispensa de pagamento do remanescente do preço, e informando que tal proposta ficava condicionada à verificação e graduação do crédito que detinha sobre a massa.

4- Àquela missiva respondeu a Administradora nos termos que abaixo se transcrevem:

«Ex. ma. Senhora,

Na qualidade de Administradora da Insolvência nomeada nos autos à margem identificados, tendo recebido de V. Exa. uma proposta para aquisição do imóvel apreendido nos autos:

(…)

Pelo montante de 85.000,00€ (oitenta e cinco mil euros), vem pelo presente notificar V. Exa., que de acordo com a notificação enviada para o mandatário de V. Exa, Dr. ..., a venda encontra-se a decorrer através de Leilão electrónico através da plataforma da L..., (Doc.1), tendo sido esta autorizada por Despacho Judicial.

Pelo exposto não pode a signatária assegurar a adjudicação, nem prever o valor de venda do imóvel.

Pelo que, a posição de V. Exa. deverá ser garantida através de licitação em leilão electrónico, na medida em que detém direito de retenção, mas não de preferência (…).»

5- Seguidamente, a Ré apresentou no leilão eletrónico organizado pela Autora em data não concretizada de março de 2019, uma proposta para adjudicação do bem imóvel indicado em 1, no valor de €135.850,00.

6- A. Ré tinha conhecimento à data em que licitou o bem indicado em 1, do conteúdo do acordo referido em 2.

7- Em 28 de março de 2019 a A. remeteu à R. uma mensagem de correio eletrónico com o conteúdo seguinte: «(…)» [2], cuja cópia se encontra a fls. 12 dos autos.

8- Em 17 de maio de 2019 a R. remeteu à A. uma mensagem de correio eletrónico com o seguinte conteúdo:

«Conforme referi no e-mail anterior, adquiri o imóvel na qualidade de credora, com direito real de garantia, por força do direito de retenção que me foi reconhecido nos autos.

Decorre do contrato de prestação de serviços junto aos Autos pela Sra. Administradora de Insolvência, desde logo impugnado pela insolvente «exclui-se desta cláusula (remuneração) a adjudicação de bens ao Credor Hipotecário.»

Pergunto a V.Exas., qual a diferença entre a adjudicação do imóvel ao credor hipotecário e a sua adjudicação ao retentor?

Pois, salvo melhor opinião, gozando também o retentor de um direito real de garantia, que lhe permite adquirir o imóvel ao abrigo do artigo 164º do CIRE e que por isso não necessita dos Vossos serviços para a aquisição do mesmo, por isso está excluída a Vossa Remuneração.

 (…).»

9- Em 20 de maio de 2019 a A. remeteu à R. uma mensagem de correio eletrónico com o seguinte conteúdo:

«A questão resolve-se com grande simplicidade.

O credor hipotecário, nos termos Contrato de Prestação de Serviços assinado com a Sra. Administradora de Insolvência, caso adjudicasse o imóvel, estaria dispensado de pagamento da prestação de serviços.

O caso do retentor, tal como qualquer outro direito de preferência está perfeitamente enquadrado e considerado no Decreto Lei nº 155/2015 cuja consulta desde já aconselhamos (…).»

10- A R. remeteu à A. em 23 de maio de 2019 uma mensagem de correio eletrónico com o seguinte conteúdo:

«Exmos. Senhores

O contrato de prestação de serviços junto aos autos, exclui a remuneração na situação de adjudicação de bens ao credor hipotecário (cfr. artigo 4.2.)

Por maioria de razão, quando o bem é adjudicado ao retentor, como aconteceu nos presentes autos, também não é devida qualquer remuneração.

Aproveito para devolver a factura, por não concordar com a emissão da mesma pois nada devo a V.Exas.»

11- No dia 27 de janeiro de 2020 em cartório notarial de Barcelos, entre S..., Administradora Judicial da Massa Insolvente de S... - primeira outorgante - e S... - segunda outorgante – foi reduzida a escrito e assinada, uma escritura pública de “compra e venda” relativa à fração autónoma indicada em 1, a qual fazia parte da Massa Insolvente, tendo-se dito nesse documento que o valor da venda era de €135.850,00, e que o pagamento era feito do modo seguinte:

12- Com data de 28 de janeiro de 2020, e vencimento na mesma data a A. emitiu o documento apelidado de «factura» com o nº 20/13, a favor da R., com o valor total de €8.354,78, IVA incluído, e com a seguinte descrição “Comissão MI S..., Proc. ..., quantidade 1, preço unitário 6.792,50, desconto 0,0 IVA 23% total líquido 6.792,50”.

13 - A Ré acedeu à plataforma eletrónica onde decorria o leilão, inscreveu-se como participante e assinalou no formulário que tinha de preencher que concordava com as condições do leilão entre as quais constava o contrato celebrado entre a massa insolvente e a Autora.

2. Matéria de facto – Factos não provados

a- (eliminado)

b- A A. remeteu à R. o documento indicado em 12.

c) Apreciação da questão de mérito.

Vejamos se a matéria de facto deve conduzir à procedência da ação.

A Autora sustenta que sim, porquanto a Ré ao participar no leilão aceitou as respetivas condições e entre estas constava a obrigação de pagar uma comissão de 5% sobre o valor da venda à entidade organizadora do leilão.

A Ré argumenta em sentido oposto, sustentando que não celebrou qualquer contrato com a Autora sendo, por isso, tal comissão da responsabilidade da massa insolvente.

Na sentença também se concluiu que a despesa com a comissão da empresa leiloeira integrava as despesas da massa insolvente, não devendo onerar o comprador.

Por outro lado, a Ré argumenta que sendo-lhe aplicável o contrato celebrado com a leiloeira, então a Ré como titular de um direito de retenção sobre o imóvel leiloado e tendo sido graduada na reclamação de créditos em primeiro lugar, deverá beneficiar da cláusula contratual «4.2» que isenta o credor hipotecário do pagamento de tal comissão no caso do bem lhe ser adjudicado, credor este que ficou graduado em segundo lugar, atrás de si.

Vejamos.

A venda em leilão eletrónico vem prevista no n.º 1 do artigo 837.º do Código de Processo Civil, nestes termos:

«Exceto nos casos referidos nos artigos 830.º e 831.º, a venda de bens imóveis e de bens móveis penhorados é feita preferencialmente em leilão eletrónico, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.»

Em conformidade, no preâmbulo da Portaria n.º 282/2013, de 29 de agosto (diploma que regulamenta vários aspetos das ações executivas cíveis) referiu-se que «As vantagens do leilão eletrónico são claras, permitindo obter a máxima transparência do ato de venda e criar as condições para a valorização máxima dos bens, ao mesmo tempo que se obtém maior celeridade na tramitação. São, por esta via, beneficiados todos agentes processuais e a generalidade dos potenciais interessados na aquisição dos bens, à semelhança do que tem sucedido nas execuções fiscais.»

Sem dúvida que a Ré só pode ser responsabilizada pela comissão se se considerar que ela ao participar no leilão se obrigou (contratualmente) a suportá-la.

Para concluir nesse sentido é necessário considerar que a Ré ao entrar na plataforma digital e ao ter acionado o campo onde se indicava que aceitava as condições do leilão, automaticamente ficou titular passiva das obrigações que o leilão colocava sobre quem participasse no leilão, entre as quais constava o pagamento da comissão da leiloeira.

Ou seja, é necessário verificar se existiu ou não uma vinculação da Ré de natureza negocial, contratual, relativamente ao mencionado contrato, pois se não se concluir por essa vinculação a Ré não pode ser juridicamente responsabilizada.

Acerca da noção de declaração de vontade negocial, Manuel de Andrade referiu o seguinte:

«Podemos defini-la nestes termos: é todo o comportamento de uma pessoa (em regra, palavras escritas ou faladas ou sinais) que segundo os usos da vida, convenção dos interessados ou até, por vezes, segundo disposição legal, aparece como destinado (directa ou indirectamente) a exteriorizar um certo conteúdo de vontade negocial, ou em todo o caso o revela e traduz.

Vontade negocial é a vontade dirigida a efeitos práticos (em regra económicos), com a intenção de que esses efeitos sejam juridicamente tutelados e vinculativos. É, em suma, a vontade correspondente ao conceito de negócio jurídico em geral, e em especial a determinado negócio jurídico particular e concreto.

Insista-se, por outro lado, em que, para existir uma declaração de vontade, será bastante que qualquer comportamento dum indivíduo apareça como tal. Para o efeito de que se trata, esse comportamento deve, portanto, ser visto de fora; deve ser considerado exteriormente. Se, encarado desde um tal ponto de vista, ele aparecer com um significado negocial, já estaremos em face duma declaração de vontade, enquanto elemento da existência dum negócio jurídico. Pode ser que por trás desta exterioridade falte a interioridade correspondente; que por baixo desta super-estrutura – digamos – não exista a correlativa infra-estrutura. Pode ser, em suma, que a vontade real do comportante seja nenhuma, ou, em todo o caso, seja diversa da que aparece reflectida ou extrincecada naquele comportamento. Mas isso já é outra coisa.

Ao comportamento indicado podemos chamar comportamento declarativo» - Teoria Gerald a Relação Jurídica (1966), Vol. II, 7.ª reimpressão, Almedina/1987, pág. 122.

Vejamos se a mencionada vinculação negocial existiu.

Nos termos do artigo 20.º da citada portaria, «Entende-se por “leilão eletrónico” a modalidade de venda de bens penhorados, que se processa em plataforma eletrónica acessível na Internet, concebida especificamente para permitir a licitação dos bens a vender em processo de execução, nos termos definidos na presente portaria e nas regras do sistema que venham a ser aprovadas pela entidade gestora da plataforma e homologadas pelo membro do Governo responsável pela área da justiça.»

Pelo Despacho n.º 12624/2015, de 9 de novembro, ficou determinado que a entidade gestora da plataforma de leilão eletrónico seria a Câmara dos Solicitadores, tendo sido homologas as regras do sistema aprovadas por esta câmara.

O artigo 21.º desta mesma portaria estabelece as regras gerais do leilão eletrónico, nestes termos:

«1. A entidade gestora da plataforma eletrónica, a qual é definida por despacho do membro do Governo responsável pela área da justiça, disponibiliza a todos os interessados, em sítio da Internet de acesso público definido nas regras do sistema, a consulta dos anúncios de venda de bens que decorra através de leilão eletrónico bem como as regras do sistema.

2 - A plataforma eletrónica mencionada no artigo anterior dispõe de um módulo de acesso restrito a utilizadores registados no sistema, no qual se processa a negociação dos bens a vender em leilão eletrónico, estando permanente e publicamente visível em cada leilão o preço base dos bens a vender, o valor da última oferta e o valor de venda efetiva dos bens leiloados.

3 - Só podem efetuar ofertas de licitação no leilão eletrónico regulado na presente portaria utilizadores que se encontrem registados, após autenticação efetuada de acordo com as regras do sistema.

4 - As regras do sistema regulam o processo de registo referido no número anterior, devendo assegurar a completa, inequívoca e verdadeira identificação de cada uma das pessoas registadas como utilizadores da plataforma a que alude o artigo anterior.

5 - A cada utilizador registado são fornecidas credenciais de acesso constituídas por um nome de utilizador e uma palavra-chave pessoais e intransmissíveis, que permitam a sua autenticação na plataforma referida no artigo anterior.»

Verifica-se, por conseguinte, que só é possível participar no leilão depois do interessado se registar no sistema (n.º 3 e 4) e obter as credenciais necessárias (nome de utilizador e uma palavra-chave).

Ou seja, quem participa no leilão só o pode fazer aderindo às condições do leilão, as quais se encontram previamente publicitadas, expostas, na respetiva plataforma, sendo obrigação do participante, ao querer participar do leilão, inteirar-se do seu conteúdo.

Deste modo, objetivamente, quem se inscreve e participa no leilão está a dar o seu acordo às respetivas condições, ainda que subjetivamente não tome conhecimento dessas condições.

Como referiu Manuel de Andrade, acima citado, a declaração negocial é constituída pelo comportamento exterior do agente, tal como é visto por terceiros, tal como ele «aparece» aos olhos dos outros, considerado exteriormente.

No caso, a Ré ao registar-se como participante no leilão deu o seu acordo à indicada cláusula onde se previa o pagamento da comissão de 5% à leiloeira, a cargo do comprador.

Tendo exteriorizado objetivamente o seu acordo ao contrato em questão, ao participar no leilão, então é responsável pelo pagamento da mencionada comissão.

Isto porque, nos termos do artigo 406.º, n.º 1 do Código Civil, «O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.»

Vejamos agora a questão da exoneração do pagamento da comissão atribuída ao credor hipotecário.

Em primeiro lugar, cumpre referir que a cláusula e de tal modo precisa ao nomear o credor hipotecário que exclui a sua aplicação a outro credor, como é o caso da Ré

Por outro lado, não se trata de uma cláusula destinada a conceder um favor injustificado.

Com efeito, existe pelo menos uma justificação para o credor hipotecário ser dispensado do pagamento da comissão.

Com efeito, a comissão paga à imobiliária, como não podia deixar de ser, entra nas despesas da massa falida inerentes à venda desse bem.

Nos termos do n.º 2 do artigo 172 do CIRE «As dívidas da massa insolvente são imputadas aos rendimentos da massa, e, quanto ao excedente, na devida proporção, ao produto de cada bem, móvel ou imóvel; porém, a imputação não excederá 10% do produto de bens objeto de garantias reais, salvo na medida do indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos.»

Verifica-se que as despesas com a venda dos bens são imputadas aos rendimentos da massa, mas se estes rendimentos não existirem ou forem insuficientes são imputadas e descontadas no produto alcançado na venda do respetivo bem que lhes deu causa.

Assim, neste caso, se a venda foi de 100 e as despesas da venda de 5, os credores só vão repartir entre si 95 porque as despesas de cada bem são suportadas apenas pelo produto da venda desse bem, ou proporcionalmente se forem vendidos vários bens no mesmo ato.

De acordo com estes princípios, sendo a comissão da leiloeira uma despesa relativa à venda, se a comissão não fosse paga pelo comprador, seria, em regra, descontada no produto alcançado com a venda.

Neste caso, se o credor hipotecário vencesse o leilão e tivesse um crédito superior ao preço alcançado na venda, pagando a comissão, recebia integralmente o preço pago; se não pagasse a comissão, receberia o preço epois de deduzida a comissão.

Ou seja, quer pagasse a comissão, quer não a pagasse, recebia sempre o mesmo e daí a razão da isenção.

Exemplificando, colocando o credor hipotecário no lugar da Ré recorrente.

Colocando a hipótese do crédito hipotecário ser de €150.000,00.

O preço da venda foi de €135.850,00.

O preço, mais a comissão de €8.354,78 somaria a quantia de €144.204,78.

Se o credor hipotecário pagasse €144.204,78, seriam atribuídos ao seu crédito os €135.850,00 alcançados pela venda.

Se a comissão fosse paga pela massa, caso ela saísse do produto da venda, o credor hipotecário não receberia os €135.850,00 alcançados pela venda, mas apenas esta quantia deduzida da comissão, ou seja, receberia €127.495,22.

Verdadeiramente ele só tem direito a €127.495,22.

Mas se pagar a comissão, tem direito a estes €127.495,22, mais a comissão que pagou, ou seja, tem direito a €135.850,00 porque paga a comissão esta já não seria deduzida ao preço da venda.

No caso da Ré recorrente as coisas já não se passam deste modo porque o seu crédito é de €100.00,00, inferior ao preço alcançado pela venda.

Se não pagasse a comissão, esta seria deduzida ao produto da venda e este produto seria reduzido a €127.495,22, quantia que chegava para pagar o seu crédito e ainda sobravam €27.495,22.

Ignora-se o valor do credito hipotecário, mas se porventura o crédito hipotecário é superior ao preço alcançado pela venda, a situação do credor hipotecário e a situação da Ré recorrente não são iguais e, por isso, não podem reclamar o mesmo tratamento.

Pretendeu-se com isto mostrar que a cláusula em questão não é destituída de fundamento.

Concluiu-se pela responsabilidade da Ré o que implica revogar a sentença e reapreciar o mérito.

Como se referiu, nos termos do artigo 406.º, n.º 1 do Código Civil, «O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.»

O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está obrigado – artigo 762.º, n.º 1 do Código Civil.

Se não a realizar, culposamente, deve indemnizar o credor do prejuízo que lhe haja causado – artigo 798.º do Código Civil – e o credor tem o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento – artigo 817.º do Código Civil.

Nas obrigações pecuniárias, como e o caso, a indemnização consiste nos juros a contar do dia da constituição em mora – artigo 806.º do Código Civil.

Por conseguinte, é devido o pagamento do valor da comissão no montante de €8.354,78, IVA incluído, correspondente à fatura n.º 20/13 da requerente, emitida em 28-01-2020, e na mesma data vencida; mais juros legais vencidos e vincendos à taxa legal de 4% - artigo 559.º do Código Civil –, desde o vencimento da fatura.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e condena-se a Ré a pagar à Autora a quantia de €8.354,78, acrescida de juros legais vencidos e vincendos à taxa de 4%, desde 28-01-2020 até pagamento.

Custas pela Ré.


Coimbra, em 26/10/2021


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[1] Nos factos provados da sentença consta uma imagem do contrato que se encontra a fls. 10 e 10 verso
[2] Nos factos provados da sentença consta uma imagem da mensagem que se encontra a fls. 12