Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3721/11.9TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LEI NOVA
NCPC
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 03/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 136º E 607º, Nº 4 DO NCPC (LEI Nº 41/2013, DE 29/06); 334º DO C.CIVIL.
Sumário: I) Dado que no Código de Processo Civil de 1961 o princípio da plenitude da assistência dos juízes só valia para os actos de produção da prova e de julgamento da matéria de facto – e, portanto, para a fase da audiência – e não também para a fase da sentença, o proferimento da sentença por juiz diferente daquele que decidiu a matéria de facto não infringia aquele princípio – nem, aliás, qualquer outro princípio ou norma processual.

II) Uma vez que o NCPC concentrou o julgamento da questão de facto na sentença final, esta sentença só pode ser proferida pelo juiz que assistiu aos actos de instrução e discussão praticados na audiência ou audiências de discussão e julgamento.

III) Essa regra não é, porém, aplicável aos casos em que, antes do início da vigência do NCPC, a matéria de facto já se mostrava julgada pelo juiz que assistiu aos actos de produção da prova.

IV) O proferimento da sentença final por juiz diferente do que decidiu a matéria de facto resolve-se, no NCPC, numa simples nulidade processual, inominada ou secundária, que não constitui objecto admissível do recurso.

V) A selecção da matéria de facto, tenha ou não sido objecto de impugnação, não transita em julgado e, por isso, não se torna vinculativa no processo, nunca tornando indiscutível que os factos incluídos na base instrutória sejam efectivamente controvertidos, nem que os considerados assentes não sejam afinal controvertidos – nem ainda que não existam factos relevantes que não foram sequer seleccionados.

f) Há abuso do direito, por desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, sempre que exista uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências nefastas para o respectivo sujeito passivo ou para terceiros.

g) A consequência do abuso, por desequilíbrio no exercício, é a inibição do exercício do direito, claramente desproporcionado ou desequilibrado.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

A… e cônjuge, C…, pediram em acção declarativa com processo comum sumário pelo valor, cuja petição foi apresentada por via electrónica no dia 27 der Junho de 2011, ao Sr. Juiz de Direito do 4º Juízo Cível da Comarca de Leiria, que condenasse R…, SA:

a) A reconhecer que o prédio dos AA., identificado no artº 1º da petição, goza de uma servidão de passagem sobre o prédio da Ré, servidão essa com as características (início, configuração, largura, comprimento, trajecto e traçado) referidas nos artºs 9º, 10º, 15º e 18º da presente petição;

b) A retirar do leito dessa servidão o silo que aí construiu e a restitui-la ao estado anterior à construção do referido silo;

c) A retirar a rede de vedação, numa largura de 3 metros, implantada nessa servidão de passagem na parte em que o prédio da Ré confronta com o prédio dos AA e em que o caminho, em que se consubstancia tal servidão, inicia o atravessamento do prédio dos AA até à antiga Mata Nacional, onde actualmente se encontra instalada a Z…;

d) A deixar integralmente livre, desimpedida e desobstruída toda a referida servidão de passagem, desde o seu início, na Rua … até ao prédio dos AA, dali retirando tudo, designadamente o referido silo e aquele bocado de rede com 3 metros de largura, que possa impedir, estorvar ou, por alguma forma, dificultar a entrada e passagem dos AA, quer a pé, quer com viaturas motorizadas ou não, para o seu referido prédio;

e) A abster-se de, por qualquer forma, impedir, estorvar ou dificultar a entrada e passagem dos AA, a pé ou com viaturas, pela referida servidão, até atingir o seu prédio.

 Fundamentaram estas pretensões no facto de serem proprietários do prédio rústico, localizado em …, que não tem comunicação com via pública, fazendo-se o seu acesso através de um caminho, com cerca de 3 m de largura e 500 m de cumprimento, marcado no terreno, com leito determinado e calcamento do terreno pelos pés das pessoas e rodados de carros de bois, tractores e outros veículos, com início na Rua …, passando junto ao muro de vedação da fábrica de resinas da ré, atravessando-o até alcançar a antiga Mata Nacional, de desde sempre, por si e antepossuidores, há mais de 80 anos, acederem, continuamente, ao seu prédio, através daquele caminho, passando nela a pé, com tractores e outros veículos, á frente de toda a gente, sem oposição, com consciência de exercerem o direito de passagem e de não lesar direitos de terceiros, pelo que se acha constituída, por usucapião, uma servidão legal de passagem, de a ré, em Janeiro de 2009, ter construído, no leito do caminho, um silo, que o ocupa em toda a largura, tendo, ao lado dele, aberto um outro caminho, pelo que continuaram a poder aceder ao seu prédio, e de, em 27 de Outubro de 2010, a ré ter vedado, com uma rede, este caminho, cortando o acesso ao seu pinhal.

A ré defendeu-se alegando que o prédio dos autores sempre teve ligação com a via pública por três caminhos, livres e desimpedidos, que não construiu um silo, mas uma ETAR que utiliza na sua actividade de exploração de resinas, fundamental no tratamento das águas provenientes da sua fábrica, que custou mais de € 1 000 000,00, tendo gasto, só em betão, € 600 000,00, que desde a construção da ETAR os autores sempre tiveram acesso pelo caminho que alargou e passa ao lado da ETAR, acedendo, desde a construção desta, ao seu prédio por esse caminho, e que os autores, por visarem criar uma desproporção objectiva entre o exercício do seu direito e as consequências económicas que teria de suportar, agem com abuso do direito.

Oferecida a resposta, procedeu-se à selecção da matéria de facto, tendo a ré reclamado contra a base instrutória, pedindo, com fundamento na sua necessidade para a boa decisão da causa, a inserção nela dos enunciados de facto que articulou nos artºs 3º 6º, e 11º a 16º da contestação.

A Sra. Juíza de Direito, porém, indeferiu a reclamação, sem prejuízo de esses factos poderem ser aditados à base instrutória em sede de julgamento, se assim entender o juiz que vier a presidir ao julgamento, nos termos do disposto no artº 650º, nº 1 f) do C.P.C.

Na audiência de discussão e julgamento, realizada no dia 5 de Junho de 2013, a Sra. Juíza de Direito, que a ela presidiu, …, apercebendo-se que, em sede de contestação, foi arguida pela ré a excepção do abuso de direito e não tendo os factos invocados para o efeito sido levados à base instrutória, ao abrigo do disposto no artº 650 nº 2, alínea f), determinou o aditamento à base instrutória dos seguintes factos:

                                                                              14º

Os autores têm acesso ao prédio referido em A. da matéria assente por três formas:

- Uma com início no …?

- Outras duas têm ambas início na Z…, sendo que uma tem início na rua do … e outra tem início na Rua dos …?

                                                                              15º

A ETAR tem um papel fundamental no tratamento das águas provenientes da fábrica da Ré?

                                                                              16º

A construção da ETAR teve um custo superior a € 1 000 000,00, sendo que só em betão a ré gastou cerca de € 600 000,00?

Decidida, por aquela Sra. Juíza, no dia 9 de Julho de 2013, a matéria de facto controvertida, a sentença final da causa – proferida no dia 17 de Setembro de 2013, pela Sra. Juíza de Direito, … - com fundamento em que se é certo que os autores adquiriram uma servidão por usucapião a favor do prédio de que são proprietários, não é menos verdade que essa não é a única forma que dispõem de aceder a esse prédio, circunstância que, conjugada com os elevadíssimos custos suportados pela ré para a construção da ETAR levam a que se conclua necessariamente que o direito que os autores querem exercer com a presente acção se mostra manifestamente excessivo., resultando tal excesso da ponderação dos benefícios que os autores retirariam com a construção da servidão predial de passagem e dos custos que a ré teria que suportar com a retirada da ETAR de forma a permitir a passagem dos autores, não restando, por isso, dúvidas que os autores agem com abuso de direito, e havendo abuso, não há direito - julgou a acção improcedente.

É esta sentença – cuja notificação às partes foi elaborada no dia 21 de Outubro de 2013, que os autores impugnam no recurso ordinário de apelação – no qual pedem que a ré seja condenada nos pedidos, tomando-se em consideração, na decisão, a situação existente no terreno, no momento do encerramento da discussão, nos termos do referido auto de inspecção ao local, realizada em 05.06.2013 ou, caso assim se não entenda, pelo menos parcialmente procedente nos termos da alínea N) - tendo rematado a sua …

A ré concluiu, na resposta, pela improcedência do recurso.

2. Factos provados.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito objectivo do recurso pode ser limitado, pelo próprio recorrente, no requerimento de interposição ou, expressa ou tacitamente, nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC de 1961).

Nestas condições, tendo em conta o conteúdo das decisões impugnadas e da alegação de ambas as partes, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se:
                a) A sentença final da causa, por violação do princípio da plenitude da assistência do juiz, deve ser declarada
sem efeito;

b) O despacho do tribunal da audiência que ordenou ao aditamento à base instrutória dos pontos de facto nºs 14 a 16 deve ser anulado e estes pontos de facto declarados não escritos;

c) A sentença final da causa deve ser revogada e substituída por outra que julgue procedente todos os pedidos, ou, ao menos, o pedido de remoção da rede de vedação, implantada na servidão de passagem.

A resolução destes problemas vincula, naturalmente, ao exame, leve mas minimamente estruturado, do princípio da plenitude da assistência do juiz e da consequência jurídica que deve associar-se à sua infracção, à eficácia da composição do objecto da prova resultante do despacho da selecção da matéria de facto e do despacho que decida a reclamação produzida contra aquela selecção e, finalmente, dos pressupostos do abuso do direito.

3.2. Ineficácia da sentença final da causa por violação do princípio da plenitude da assistência dos juízes.

A lei adjectiva vigente ao tempo da realização da audiência de discussão e julgamento e do proferimento da decisão da matéria de facto organizava-se, nitidamente, segundo um modelo de separação ou de césure entre a decisão da matéria de facto e o proferimento da sentença.

Assim, à luz daquela lei, a fase da audiência final compreendia as actividades de produção da prova – constituenda – de julgamento da matéria de facto e de discussão sobre a matéria de direito. Uma das funções primordiais desta fase era, por isso, a produção da prova e o consequente julgamento da matéria de facto (artºs 652 nº 4, 653 e 657 do CPC de 1961). 

Um princípio estruturante desta fase era, decerto, o da plenitude da assistência dos juízes, de harmonia com a qual só podiam intervir na decisão da matéria de facto aqueles que tivessem assistido a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência (artº 654 nº 1 do CPC de 1961). A justificação desta regra é óbvia ou evidente: trata-se de uma exigência lógica e iniludível do regime da oralidade. Tal assistência é condição absolutamente imprescindível do consciencioso julgamento da matéria de facto, dado que – por razões que se explicam por si – não pode decidir aquela matéria quem não presenciou, do princípio ao fim, todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência.

 A violação do princípio originava, porém, um simples nulidade processual, inominada ou secundária (artº 201 do CPC de 1961)[1].

Para assegurar a plenitude da assistência determinava-se, designadamente, que se o juiz que tivesse começado a audiência fosse transferido, promovido ou aposentado, concluir-se-ia, em princípio, o julgamento antes da efectivação dessa deslocação ou aposentação, excepto se esta se fundamentasse na incapacidade física, moral ou profissional para o exercício do cargo, ou se, em qualquer dos casos, fosse preferível a repetição dos actos já praticados[2] (artº 654 nº 3, do CPC de 1961).

À fase da audiência seguia-se a da sentença, i.e., aquela em que era proferida a decisão final do procedimento em 1ª instância, decisão que deveria utilizar como fundamentos de facto todos os que foram adquiridos durante a tramitação da causa, portanto, também os factos julgados provados pelo tribunal, singular ou colectivo, na fase da audiência final (artº 653 nºs 2 e 3 do CPC de 1961).

Todavia, o princípio da plenitude da assistência dos juízes só valia para os actos de produção da prova e de julgamento da matéria de facto – e, portanto, para a fase da audiência – e não também para a fase da sentença[3]. Por esse motivo, o proferimento da sentença por juiz diferente daquele que decidiu a matéria de facto não infringia aquele princípio – nem, aliás, qualquer outro princípio ou norma processual[4]. Ao proferimento da sentença por juiz distinto do decisor da matéria de facto não se associava, portanto, qualquer valor negativo – muito menos o da nulidade substancial ou de conteúdo da sentença, dado, além do mais, o carácter taxativo dessas causas de nulidade[5], entre as quais se não contava – nem se conta – a heterogeneidade do decisor de facto e do juiz da sentença.

Movido – parece - pelo propósito de agilizar o processo, o Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 29 de Junho – e que entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2013 – removeu da fase da audiência o julgamento da matéria de facto e concentrou-o na fase da sentença: o julgamento da matéria de facto passou a conter-se na sentença final (artº 607 nº 4 do NCPC)[6]. Note-se que esta regra não se limita a exigir a identidade ou unidade do decisor da matéria de facto e do decisor da sentença final, antes impõe a concentração da decisão da questão de facto e da questão de direito - interpretação e aplicação das correspondentes normas jurídicas – num mesmo acto: a sentença final.

Por força dessa concentração, o princípio da plenitude da assistência dos juízes passou a valer, lógica necessariamente, também para a fase da sentença, dado que como a matéria de facto é agora decidida na sentença final, esta sentença só pode ser proferida pelo juiz que assistiu aos actos de instrução e discussão praticados na audiência ou audiências de discussão e julgamento. E para assegurar o princípio da plenitude vincou-se, sem qualquer excepção, que no caso de transferência ou promoção, o juiz que assistiu aos actos de instrução e discussão praticados na audiência, profere, sempre, a sentença (artº 605 nº 4).

Na espécie sujeita, a decisão da matéria de facto foi proferida por uma Sra. Juíza de Direito, ainda na vigência do CPC de 1961, mas a sentença final da causa, por virtude da transferência da primeira, foi proferida por outra, já depois da entrada em vigor do NCPC.

Os recorrentes notando que o novo Código de Processo é aplicável às acções pendentes, sustentam que a sentença final deveria – deverá - ser proferida pela Magistrada que decidiu a matéria de facto: não o tendo sido, a sentença proferida deve, no seu ver, ser declarada sem efeito, devendo o processo ser reenviado para a 1ª instância para nela ser proferida, pela decisora da matéria de facto, outra sentença.

Não se julga exacto um tal ponto de vista.

Quanto à aplicação no tempo da lei processual civil, a regra é a mesma que vale na teoria geral do direito: a lei nova é de aplicação imediata aos processos pendentes, mas não possui qualquer eficácia retroactiva (artº 12 nº 1 do Código Civil). Excepciona-se, evidentemente, o caso de a lei nova ser acompanhada de normas de direito transitório ou de para ela valer uma norma transitória como, por exemplo, a que enuncia o princípio tempus regit actum (artº 142 nº 1 do CPC de 1961 e 136 do NCPC).

Nestas condições, a norma de direito transitório de que a nova lei se fez acompanhar - de harmonia com a qual é imediatamente aplicável aos processos pendentes – outra coisa não faz que repetir, escusadamente, a solução que já resultaria dos princípios gerais (artº 5 nº 1 da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho).

Portanto, como é regra, a lei processual civil – como em geral toda a lei – só dispõe para o futuro. Todavia, esta regra é respeitada logo que a nova lei se aplique a actos processuais que tenham lugar no domínio da sua vigência, mesmo que o processo tenha sido instaurado à sombra da lei antiga. Ressalva-se, em qualquer caso, o valor que a lei antiga atribuía a actos praticados e a situações esgotadas no domínio da lei revogada, que, como consequência do princípio tempus regit actum, não podem ser postos em causa (artº 136 nº 1 do NCPC).

Em geral, são duas as razões que se podem convocar para justificar que uma alteração legislativa processual apenas se deva aplicar aos processos iniciados na vigência da lei nova: o carácter sequencial dos actos processuais e a natureza unitária e estruturada do processo; o princípio da protecção da confiança.

O processo jurisdicional é constituído por uma sequência de actos, das partes e do tribunal, que se relacionam entre si, cada um deles condicionando o conteúdo e, às vezes, a realização dos demais. Como os diversos actos se encandeiam entre si, por vezes de forma inextricável, a lei nova não deve aplicar-se a processos instaurados antes do início da sua vigência, se dessa aplicação resultar a quebra da lógica sequencial e do carácter estruturado do processo, ainda que essa aplicação não conduza, directamente, a por causa o valor de certo acto ou situação constituída à sombra da lei antiga.

A segunda razão, de índole material, e de longe mais relevante, é a que a se faz decorrer do princípio da protecção da confiança, ínsito no estado de direito democrático (artº 2 da Constituição da República Portuguesa).

O princípio da protecção da confiança valora a estabilidade do direito vigente e assegurar a previsibilidade e a calculabilidade das suas inevitáveis alterações futuras. Nos seus termos, e no que tange ao direito à impugnação das decisões, devem as partes poder saber com o que contam, que meios é que a lei lhes disponibiliza para obter a correcção de uma decisão que as desfavoreça. O que, portanto, o princípio proíbe são as alterações legislativas imprevisíveis, inimagináveis ou incalculáveis, que afectam a confiança que as partes legitimamente depositaram no Direito e que os inibe, v.g., de obter tutela para as suas situações subjectivas, como por exemplo, a faculdade de impugnar a decisão de um tribunal perante outro tribunal de hierarquia superior. Como proíbe transformações bruscas de regimes legislativos ordinários, que tragam consequências in pejus para as partes, sem lhes conceder tempo para se adequarem à transformação: nestes casos, a confiança legítima que as partes depositam na ordem jurídica processual obriga o legislador a assegurar regimes de transição entre a lei velha, mais favorável à parte, e lei nova, menos favorável, de modo a que estas possam reequacionar as suas posições, expectativas, projectos e previsões. Daqui resultará que não deve aplicar-se a nova lei adjectiva civil a um acto ou situação processual que ocorra em processo pendente, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual da parte.

Ao tempo em que foi decidida a matéria de facto, por força da lei adjectiva vigente, o princípio da plenitude da assistência do juiz era vinculante apenas para a decisão da matéria de facto, e o processo estruturava-se de harmonia com um princípio da separação entre aquela decisão – que se compreendia na fase da audiência – e a o proferimento da sentença final – que se inscrevia na fase da sentença.

Como ao tempo do início da vigência da lei nova, a matéria de facto já se mostrava autonomamente decidida, ao caso não é aplicável a regra daquela lei, dado que esta impõe a concentração ou a unidade de julgamento daquela matéria e da questão de direito, e, no caso, a simultaneidade desse julgamento já não é possível, uma vez que, antes do início de vigência da lei nova, a matéria de facto já se mostrava autónoma e licitamente julgada. Uma tal impossibilidade vincula à conclusão de que a lei nova – no aspecto considerado – só seja aplicável às audiências de discussão de julgamento em que a fase da audiência final se não mostre encerrada e em que, portanto, o julgamento da matéria de facto não se mostre concluído. 

Nem um tal entendimento do problema, frusta qualquer expectativa das partes que seja merecedora de tutela, dado que, no momento em que foi concluída a audiência de discussão e julgamento e decidida a matéria de facto, nada vinculava a que a sentença fosse proferida pelo mesmo juiz que julgou a questão de facto e, portanto, não existia sequer, quanto a este ponto, qualquer expectativa das partes que devesse ser considerada.

Mas vamos – ad argumentam - que este entendimento do problema não é exacto e que, realmente, por aplicação da nova lei, a sentença final deveria ter sido proferida pela Magistrada que decidiu a matéria de facto. Em tal caso, verificar-se-ia uma simples nulidade processual, inominada ou secundária – e não de uma nulidade da sentença, sujeita a um numerus clausus - que só é apreciada mediante reclamação da parte interessada na repetição ou eliminação do acto e que deve ser alegada no prazo de 10 dias a contar de qualquer intervenção da parte na acção ou da sua notificação para qualquer termo do processo, sempre que a parte não esteja presente no momento em que ela foi cometida (artºs 149 nº 1, 195, 196, 2ª parte, 197 e 199 nº 1 do NCPC). Esta nulidade deve ser imediatamente julgada pelo tribunal após a resposta da contraparte (artºs 200 nº 3 e 201 NCPC).

Ora, o que pode ser impugnado no recurso é uma decisão do tribunal a quo anterior, pelo que é claro que a parte não pode aproveitar esse recurso para suscitar ex-novo uma qualquer questão que deveria ter colocado em momento anterior. Assim, no caso de nulidades cometidas na 1ª instância, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade – e não a nulidade ela mesma. O recurso é um instrumento de impugnação de decisões judiciais e não um meio de julgamento de questões novas. A perda do direito à impugnação por via da reclamação – v.g., por caducidade – importa a extinção do direito à impugnação por via do recurso ordinário.

Isto só não é assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades que sejam de conhecimento oficioso e de que seja lícito conhecer em qualquer estado do processo, enquanto não devam considerar-se sanadas, dado que estas últimas constituem objecto implícito do recurso, pelo podem ser sempre alegadas no recurso ainda que anteriormente o não tenham sido (artº 199 nº 3 do NCPC).

Mas não é isso, decerto, o que sucede com a nulidade resultante do proferimento da sentença por juiz distinto do que decidiu a matéria de facto. Uma tal nulidade não é de conhecimento oficioso e o prazo de arguição esgotou-se antes mesmo da expedição do recurso para esta Relação.

Efectivamente, na espécie sujeita é claro que os recorrentes tomaram conhecimento da nulidade considerada no momento em que foram notificados da sentença final, dado que nesse momento tomaram necessariamente consciência que aquela sentença não tenha sido proferida pela mesma Magistrada que havia julgado a matéria de facto controvertida.

Como a notificação daquela sentença foi elaborada no dia 21 de Outubro de 2013 e os recorrentes só a arguiram na alegação do seu recurso, oferecida no dia 20 de Novembro de 2013 - é irrecusável a extinção, por caducidade, do direito de reclamar contra ela (artºs 144 nºs 1 a 3, 145 nºs 1 e 3 e 153 nº 1 do NCPC).

A nulidade apontada – além de não constituir fundamento e objecto admissível do recurso – deve, por isso, considerar-se sanada ou suprida.

A conclusão de que as nulidades inominadas ou secundárias não constituem objecto admissível do recurso encontra, no NCPC, um argumento irrespondível. Entre as decisões irrecorríveis contam-se as proferidas sobre as nulidades inominadas ou secundárias, excepto se contenderem com os princípios da igualdade e do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios de prova probatórios (artº 630 nº 1 do NCPC).

Ora, se não é admissível recurso da decisão proferida sobre a arguição de nulidades inominadas ou secundárias – desde que não referidas à violação dos princípios estruturantes da igualdade, do contraditório ou do direito à prova - por argumento a fortiori, muito menos será admissível argui-las directamente, ex-novo, perante o tribunal ad quem.

Nestas condições, não há realmente motivo para, com fundamento na violação do princípio da plenitude, concluir pela ineficácia da sentença proferida e para reenviar o processo para a instância recorrida para que seja proferida, pela Magistrada que proferiu a decisão da matéria de facto, uma outra.

3.3. Eficácia da composição do objecto da prova resultante do despacho da selecção da matéria de facto e do despacho que decida a reclamação produzida contra essa selecção.

Uma decisão a que os recorrentes também se mostram hostis é a proferida no dia 5 de Junho de 2013, na audiência de discussão e julgamento, que ordenou o aditamento à base instrutória dos factos contidos nos quesitos nºs 14 a 16. No seu ver, aquela decisão não deve produzir qualquer efeito, devendo aqueles factos considerar-se não escritos. Razão: o trânsito em julgado da decisão que negou provimento à reclamação produzida pela apelada contra a base instrutória e com a qual visava a inserção naquela base, entre outros, dos factos cujo aditamento, à mesma base, foi determinado pelo juiz da audiência.

É exacto que o tribunal da audiência ordenou que fossem aditados à base instrutória factos cuja inserção nessa mesma base havia sido anteriormente recusada por via do indeferimento da reclamação, produzida pela apelada.

Mas de res judicata sobre a decisão que decidiu a reclamação contra a decisão da matéria de facto é coisa de que, no caso, em boa verdade, se não pode falar.

Após o proferimento de uma decisão judicial, verifica-se a extinção do poder jurisdicional do juiz (artº 666 nºs 1 e 3 do CPC de 1961). Esse esgotamento significa que o tribunal não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada. Daquela extinção decorrem, por isso, dois efeitos: um efeito negativo, que consiste na insusceptibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar; em efeito positivo, que se traduz na impossibilidade desse tribunal à decisão que proferiu.

O caso julgado consiste, por seu lado, na insusceptibilidade de impugnação – por meio de reclamação ou através de recurso ordinário - de uma decisão, decorrente do seu trânsito em julgado (artº 677 do CPC de 1961).

O caso julgado traduz-se, por isso, na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão – por qualquer tribunal, mesmo, portanto, por aquele que a proferiu – por força da insusceptibilidade da sua impugnação, por reclamação ou recurso ordinário.

Um distinguo fundamental neste domínio, e que assenta no âmbito da sua eficácia, é o que separa o caso julgado formal do caso julgado material: o caso julgado formal só tem um valor intraprocessual e, portanto, só é vinculativo no processo em que foi proferida a decisão que o adquiriu (artº 672 do CPC de 1961); já o caso julgado material, para além de valer no processo em que a decisão foi proferida, é susceptível de valer num outro processo (artº 671 nº 1 do CPC de 1961).

Estas considerações deixam, aliás, antever os dois efeitos processuais característicos do caso julgado: um efeito negativo, que se resolve na insusceptibilidade de qualquer tribunal, incluindo aquele que proferiu a decisão, de se voltar a pronunciar sobre a decisão proferida; um efeito positivo, que se traduz na vinculação do tribunal que proferiu a decisão – e eventualmente, de qualquer outro tribunal – ao que nessa mesma decisão se declarou ou definiu.

É claro que é sempre possível a violação destes efeitos e, portanto, a situação patológica da existência de casos julgados contraditórios – tanto no mesmo processo como em processos distintos. Para resolver o conflito a lei socorre-se de um critério ou princípio de prioridade: vale a decisão contraditória sobre o mesmo objecto que tiver transitado em primeiro lugar (artº 675 nº 1 do CPC de 9161). Este critério de remoção da contradição de casos julgados vale, igualmente, para as decisões que, num mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta (artº 675 nº 2 do CPC de 1961). Assim, por exemplo, se tiver sido interposto recurso da segunda decisão, o recurso tem necessariamente de improceder, dada a vinculação – do tribunal e das partes – ao caso julgado da primeira decisão[7].

Isto mostra que a decisão que se pronuncie sobre uma questão sobre a qual se tenha formado caso julgado, não incorre no vício grave da nulidade, v.g., por excesso de pronúncia, antes determina a ineficácia formal da segunda decisão[8]. Realmente, ao considerar que havendo duas decisões contraditórias sobre, por exemplo, a mesma questão concreta da relação processual, se cumprirá a que primeiramente tiver passado em julgado, mostra que a extinção do poder jurisdicional provocada pelo proferimento da decisão não constitui causa de nulidade da segunda decisão sobre o mesmo objecto, antes origina, simplesmente, a ineficácia formal da última das decisões conflituantes.

No tocante aos limites objectivos do caso julgado – i.e., ao quantum da matéria que foi proferida pelo tribunal que recebe a indiscutibilidade do caso julgado, a regra é esta: a decisão constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (artº 673, 1ª parte, do CPC de 1961).

A selecção da matéria de facto consiste na escolha dos factos que devem considerar-se assentes e aqueles que devem considerar-se controvertidos, orientada por um critério de relevância: devem ser seleccionados todos os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os possíveis enquadramentos possíveis do objecto da acção ou da excepção (artº 511 nº 1 do CPC de 1961).

Qualquer das partes pode reclamar contra a selecção da matéria de facto, designadamente cm fundamento na deficiência na escolha dos factos, i.e., na omissão de factos alegados com interesse para a decisão da causa (artº 512 nº 2 do CPC de 1961).

Sobre essa reclamação recai um despacho que, no entanto, só pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final (artº 511 nº 3 do CPC de 1961).

Isto significa que aquele despacho não produz, antes desse eventual controlo pelo tribunal de recurso, qualquer efeito de caso julgado no processo pendente, pelo que depois do seu proferimento não se torna indiscutível nem que os factos considerados não impugnados ou controvertidos o sejam realmente, nem que não existam outros factos que deveriam ser julgados não impugnados ou controvertidos (Assento do STJ 14/94, de 4 de Outubro, BMJ nº 437, pág. 35).

Assim, por exemplo, a inclusão de um facto na base instrutória não impede que o tribunal entenda, v.g., na sentença final, que o facto está provado ou admitido por acordo e, que por isso, não deveria ter sido inserido nessa base[9]. Identicamente, a consideração pelo tribunal de que o facto está admitido por acordo ou provado não significa que ele não seja realmente controvertido[10]. Corolário disto mesmo é a possibilidade de ampliação da base ordenada pelo juiz que preside à audiência final, pelo Tribunal da Relação ou até pelo Supremo (artºs 650 nº 2 f), 712 nº 4 e 729 nº 3 do CPC de 1961).

A selecção da matéria de facto – mesmo que contra ela tenha sido deduzida qualquer reclamação - não transita em julgado e, por isso, não se torna vinculativa no processo. Impugnada ou não, aquela selecção nunca torna indiscutível que os factos incluídos na base instrutória sejam efectivamente controvertidos, nem que os considerados assentes não sejam afinal controvertidos – nem ainda que não existam factos relevantes que não foram sequer seleccionados.

Em qualquer caso, sempre seria de recusar a formação de caso julgado ao despacho que indeferiu a reclamação produzida pela recorrida contra a deficiência da base instrutória, impeditivo da ampliação, pelo juiz da audiência, dessa mesma base relativamente aos factos objecto daquela reclamação. É que a decisão de indeferimento da reclamação ressalvou, justamente, o ulterior exercício, pelo juiz da audiência, da faculdade de ampliação da base instrutória. Ergo, como a decisão constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, a única coisa que ficou irrepetivelmente decidida pelo despacho de indeferimento da reclamação dirigida contra a base instrutória, foi que os factos objecto da reclamação não seriam inseridos, através dessa mesma reclamação, na base instrutória, mas podiam vir sê-lo – como o foram - por via do exercício, pelo juiz da audiência, da faculdade de ampliar aquela base.

De resto, em última análise, a consequência não seria nunca a anulação do despacho que ordenou a ampliação da base instrutória, mas, simplesmente, a sua ineficácia. Mas um tal ineficácia não precludiria nunca o uso por esta Relação dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto que a lei lhe reconhece.

A decisão de indeferimento da reclamação no tocante aos factos considerados foi nitidamente desacertada – desacerto que ela mesma implicitamente reconheceu ao ressalvar a possibilidade do seu aditamento à base instrutória pelo juiz da audiência – dado que como decorre do conteúdo da sentença impugnada, os factos cujo aditamento foi ordenado pelo juiz da audiência são inequivocamente relevantes, segundo o único enquadramento jurídico possível do seu objecto, para a decisão da excepção peremptória do abuso, pelos recorrentes, do seu direito real menor de servidão de passagem, alegada pela apelada. Nesta conjuntura, o que estava indicado era que esta Relação, ordenasse, mesmo oficiosamente, a ampliação da matéria de facto, e no uso dos seus poderes oficiosos de rescisão ou cassação, anulasse a decisão da matéria de facto proferida na 1ª instância, de modo a que aqueles factos fossem submetidos ao exercício da prova (artº 712 nº 4, 2ª parte, do CPC de 1961).

Por este lado, o recurso não dispõe de bom fundamento.

Resta, por isso, enfim, verificar se, ao concluir pela procedência da excepção peremptória do abuso do direito, alegada pela apelada, a sentença impugnada incorreu ou não, num error in iudicando, por erro na subsunção, i.e., no juízo de integração dos factos apurados na previsão da normal aplicável ao caso concreto.

3.4. Pressupostos do abuso do direito.

A sentença impugnada foi terminante na afirmação de que os recorrentes adquiriram por usucapião uma servidão de passagem – e não uma servidão legal de passagem, dado que a usucapião tal como a destinação do pai de família não são modos voluntários de constituir servidões e, portanto, quando constituídas por um qualquer desses modos, não são servidões legais - que onera o prédio da apelada.

Não há razão para divergir.

As servidões prediais podem, naturalmente, ser constituídas por usucapião (artº 1547 do Código Civil).

A usucapião é, sabidamente, a constituição do direito real correspondente a certa posse, desde que esta se prolongue, com certas características, pelo período legalmente fixado. A usucapião é um modo de aquisição originária de direitos reais: quando opere, é indiferente a anterior titularidade da coisa, bem como quaisquer outros ónus que o titular legítimo anterior teria de suportar.

A usucapião requer: uma posse pública e pacífica; correspondente a um direito usucapível; por um período de tempo legalmente bastante. A usucapião não é automática, antes assume um funcionamento potestativo. O beneficiário da usucapião terá de a invocar.

Exige-se, portanto, um posse de boa fé – quer dizer, uma posse que, não sendo na sua origem violenta, se constituiu pensando o possuidor que tinham ele próprio o direito real de servidão – pacífica – i.e., adquirida sem violência – pública, portanto, exercida de modo a ser conhecida por qualquer interessado, e contínua, o mesmo é dizer, sem ter conhecido qualquer causa de extinção (artºs 1257 nº 1, 1260 nºs 1 e 3, 1261 nºs 1 e 2 e 1262 do Código Civil).

Essa situação possessória, desde que seja pacífica e pública, é boa para usucapião, quer dizer, para a constituição ou aquisição originária, facultada ao possuidor, do direito real correspondente a essa posse. E caso essa situação possessória dure, sem qualquer interrupção ou suspensão, pelo lapso de tempo marcado na lei, segue-se a aquisição, originária, daquele direito (artºs 1287, 1289 nº 1, 1292, 1296 e 1316 do Código Civil).

Como a usucapião opera com efeitos retroactivos, reportados ao início da posse, considera-se que o direito real constituído o foi no momento em que se iniciou a posse boa para a usucapião invocada (artºs 1288 e 1317 c) do Código Civil).

Simplesmente, acto contínuo à afirmação de que os recorrentes são titulares daquele direito real menor – e de que estão impedidos de o exercer – a sentença apelada foi igualmente categórica na conclusão de que os impugnantes agem com abuso do direito.

Abstraindo da deslocada referência à boa fé nos preliminares, na formação e execução do contrato e o recurso, na retorica argumentativa, às locuções conduta clamorosamente ofensiva da justiça, afronta ao sentimento jurídico socialmente dominante e semelhantes – também não há razão para divergir.

A proibição do abuso do direito já era conhecida antes do actual Código Civil[11]. Todavia – como sublinha António Menezes Cordeiro[12] - apesar da superveniência deste Código, numa primeira fase, a jurisprudência manteve-se fiel às construções anteriores, limitando o abuso a situações de exercício inútil, gravemente danoso para terceiros, e, numa segunda fase, orientou-se para o acolhimento de fórmulas de Manuel de Andrade – conduta clamorosamente ofensiva da justiça – e de Vaz Serra – afronta ao sentimento jurídico socialmente dominante. Finalmente, numa terceira fase – ocorrida em meados da década de oitenta – iniciou-se a aplicação progressiva de diversas fórmulas de concretização do abuso do direito, com particular relevo para o venire contra factum proprium, assente na boa fé e na tutela da confiança.

Portanto, o apelo a fórmulas como clamorosa ofensa da justiça e semelhantes, não corresponde sequer ao estádio actual do entendimento e da concretização do abuso do direito corrente na jurisprudência – e muito menos na doutrina.

Apesar disso, alguma jurisprudência continua a utilizar, na concretização do abuso do direito, como retórica argumentativa, as locuções tanto de Manuel de Andrade como de Vaz Serra. É que ocorre, por exemplo, com o Acórdão do Supremo de 19.01.12[13].

Todavia, os resultados a que se chega, com a utilização daquelas fórmulas, no tocante ao carácter abusivo da conduta do exercente, são exactamente os mesmos que se podem alcançar pelo recurso – que tem por preferível - à boa fé e à tutela da confiança.

Apesar de o abuso do direito ser de conhecimento oficioso[14], o mais distraído dos operadores ou observadores judiciários não pode deixar de notar que quase não há processo em que as partes, per abundantiam, ou á míngua de outros argumentos, não invoquem o abuso do direito. Por contraste – e por certo também em consequência da erosão que o instituto sofre com a sua indevida convocação - há casos em que tal arguição de todo se justificaria, mas em que, inexplicavelmente, se omite a sua invocação.

O abuso do direito deve ser usado sempre que necessário. O que não deve é ser banalizado, exigindo-se sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos e, portanto, a correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita[15].

De outro aspecto, o abuso do direito, exprimindo um nível último e irrecusável de funcionalização dos direitos à realização dos interesses que justificam o seu reconhecimento, é um instituto de carácter poliédrico e multifacetado como logo se depreende a partir da tipologia dos actos abusivos que se incluem na categoria e com os quais se procura densificar a indeterminação do conceito correspondente.

Assim, são reconduzidos ao abuso do direito, por exemplo, o venire contra factum proprium, quer dizer, a proibição do comportamento contraditório e a supressio (supressão)[16], ou seja, a neutralização de um direito que durante muito tempo se não exerceu, tendo-se criado, pela própria conduta, uma expectativa legítima de que não iria ser exercido, e a surrectio, i.e., o surgimento de um direito por força de um comportamento contraditório qualificado pelo decurso do tempo[17] - e o desequilíbrio objectivo no exercício, comportamento abusivo cujo desvalor se objectiva na desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem (artº 334 do Código Civil).

Sempre que se verifique uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências nefastas para o respectivo sujeito passivo ou para terceiros, portanto, em que é patente um desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, é inteiramente justificado o apelo ao abuso do direito[18]:

Assim é abusivo, por desequilíbrio no exercício, por exemplo, o pedido do arrendatário de realização de obras, pelo senhorio, de valor inteiramente desproporcional ao da renda[19], ou actuação do direito de preferência, em negócio simulado, em termos de permitir ao preferente a aquisição de bem imóvel por uma pequena fracção do seu valor[20].

Ou – como é, justamente caso do recurso – em que a actuação de um direito real menor de servidão importaria um sacrifício ou um dano extraordinariamente grave para o titular do prédio dominado ou serviente – e mesmo para direitos difusos como o direito ao ambiente - inteiramente desproporcionado, que não encontra no direito dos recorrentes à fruição das utilidades que o prédio dominante é susceptível de lhes proporcionar, dado que eles dispõem não de um, nem de dois - mas de três acessos a esse mesmo prédio (artº 66 nº 1 e 2 a) da Constituição da República Portuguesa).

Pretender, neste contexto, fazer declarar e valer aquele direito real menor é, pois, nitidamente abusivo.

 O principal efeito do desequilíbrio no exercício é, naturalmente, o da inibição do exercício de poderes jurídicos ou de direitos, claramente desproporcionados ou desequilibrados.

Decerto por não estarem seguros da licitude da seu pedido, designadamente de demolição da ETAR – que, por certo, de caso pensado, apelidaram de silo - construída no leito da servidão, e viesse a encontrar acolhimento jurisdicional, designadamente por esta Relação, os recorrentes, deduziram, no recurso, subsidiariamente, uma pretensão, no seu ver mais sólida, para ser considerada pelo tribunal, no caso de não vingar a primeira: a de retirada da rede de vedação, numa largura de 3 metros, implantada nessa servidão de passagem.

A remoção desta rede é, patentemente, instrumental no tocante ao exercício, pelos recorrentes, da servidão de passagem. Ora, se não deve reconhecer-se aos recorrentes, por força do abuso, aquele direito real menor, faz algum sentido, mesmo no plano estritamente lógico, providenciar pela remoção de um obstáculo posto precisamente com a finalidade de evitar facticamente o exercício daquele mesmo direito?

Realmente, a procedência daquele pedido, conduziria a esta situação absurda: a remoção de um obstáculo físico á actuação de um direito – cujo reconhecimento deve ser recusado. Para quê ordenar a retirada da rede se se deve recusar aos recorrentes o reconhecimento e a actuação do direito mesmo de passar nesse local?

A procedência do pedido de remoção da rede seria uma pura consequência lógica do reconhecimento do direito de passagem. Correspondentemente, da improcedência, por virtude do abuso do direito, na modalidade apontada, da declaração daquele direito real menor de gozo decorre, como corolário que também não pode ser recusado, a improcedência do pedido de remoção da rede.

Sendo tudo isto exacto, a improcedência do recurso é meramente consequencial.

Síntese recapitulativa:

a) Dado que no Código de Processo Civil de 1961, o princípio da plenitude da assistência dos juízes só valia para os actos de produção da prova e de julgamento da matéria de facto – e portanto, para a fase da audiência – e não também para a fase da sentença, o proferimento da sentença por juiz diferente daquele que decidiu a matéria de facto, não infringia aquele princípio – nem, aliás, qualquer outro princípio ou norma processual;

b) Uma vez que o NCPC concentrou o julgamento da questão de facto na sentença final, esta sentença só pode ser proferida pelo juiz que assistiu aos actos de instrução e discussão praticados na audiência ou audiências de discussão e julgamento;

c) Essa regra não é, porém, aplicável aos casos em que, antes do início da vigência do NCPC, a matéria de facto já se mostrava julgada pelo juiz que assistiu aos actos de produção da prova;

d) O proferimento da sentença final por juiz diferente do que decidiu a matéria de facto, resolve-se, no NCPC, numa simples nulidade processual, inominada ou secundária, que não constitui objecto admissível do recurso.

e) A selecção da matéria de facto, tenha ou não sido objecto de impugnação não transita em julgado e, por isso, não se torna vinculativa no processo, nunca tornando indiscutível que os factos incluídos na base instrutória sejam efectivamente controvertidos, nem que os considerados assentes não sejam afinal controvertidos – nem ainda que não existam factos relevantes que não foram sequer seleccionados;

f) Há abuso do direito, por desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, sempre que exista uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências nefastas para o respectivo sujeito passivo ou para terceiros;

g) A consequência do abuso, por desequilíbrio no exercício, é a inibição do exercício do direito, claramente desproporcionado ou desequilibrado.

Os recorrentes deverão suportar, porque sucumbem no recurso, as custas dele (artº 527 nºs 1 e 2 do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes.

                                                                                                              14.03.18

                                                                                                                             Henrique Antunes

                                                                                                                             José Avelino Gonçalves

                                                                                                                             Regina Rosa        


[1] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 335.
[2] O princípio não era, portanto, absoluto: cfr. Ac. do STJ de 31.05.12, www.dgsi.pt.
[3] José Lebre de Freitas/A. Montalvão Machado/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 667.
[4] Tratava-se de jurisprudência firme: Acs. do STJ de 23.06.10, 13.01.09, 02.05.07 e 09.11.06, www.dgsi.pt.
[5] Acs. do STJ de 31.01.91, BMJ nº 403, pág. 382, e de 09.04.92, BMJ nº 416, pág. 558, e da RL de 21.01.93, BMJ nº 423, pág. 581.
[6] Criticamente, José Lebre de Freitas, “Sobre o novo Código de Proceso Civil (uma visão de fora)”, ROA, Ano 73, Jan/Mar 2013.
[7] Neste sentido, por exemplo, os Ac. da RC de 06.12.04, www.dgsi.pt., e 20.12.94, BMJ nºs 442, pág. 266.
[8] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 218.
[9] Ac. da RC de 22.03.94, BMJ nº 435, pág.917.
[10] Ac. da RC de 02.11.94, BMJ nº 441, pág. 409.
[11] Manuel de Andrade, Algumas questões em matéria de injúrias graves como fundamento do divórcio, Coimbra, 1956, pág. 73 e Adriano Vaz Serra, Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil) BMJ nº 85, pág. 331.
[12] Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, 2ª edição, 2000, Almedina, Coimbra, págs. 245 a 248 e 250 a 255.
[13] www.dgsi.pt.
[14] Cfr., v.g., Acs. do STJ de 22.11.94 e 25.11.99, CJ, STJ, II, III, pág. 157 e VII, III, 124.
[15] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, 2ª edição, Almedina, 2000, págs. 247 e 248.
[16] Cfr., v.g., os Ac. da RE de 26.11.87, CJ, XII, V, pág. 268 e de 23.01.86, CJ, XI, I, pág. 231, e do STJ de 03.05.90, BMJ nº 397, pág. 454 e de 11.03.99, www.dgsi.pt.
[17] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit. págs. 250 a 262 e Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra, 1984, § 30, págs. 797 e ss.
[18] Ac. da RP de 03.02.81, BMJ nº 304, pág. 469.
[19] Acs. do STJ de 09.10.97, BMJ nº 480, pág. 546, e 27.01.98, CJ, STJ, VI, II, pág. 52.
[20] Ac. do STJ de 04.03.97, CJ, STJ, V, I, pág. 121.