Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
912/05.5TBTMR-C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CONTRATO DE TRANSPORTE
COMISSÃO
Data do Acordão: 01/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 500º DO CC
Sumário: I- A relação de comissão caracteriza-se pela actividade levada a cabo por uma pessoa (o comissário) por conta, direcção e interesse de outra (o comitente). E, em virtude do primeiro dar ordens ou indicações ao segundo e deste agir nesse contexto e no interesse daquele, justifica-se que o comitente responda pela conduta do comissário.

II- Tendo o réu assumido a obrigação de transportar para a ré um conjunto de sapatos, que devia ser levado desde um armazém na Póvoa de Santa Iria até um estabelecimento em Tomar, sem que esta tenha de alguma forma determinado o modo como a operação de transporte se processaria, desde o carregamento do veículo até à descarga da mercadoria no destino, nomeadamente indicando o itinerário a seguir, a viatura a utilizar ou o número de pessoas para executar as diversas tarefas que o transporte implicava, não existe entre eles uma relação de comissão; estamos, sim, na presença de um contrato de transporte celebrado entre o réu e a ré.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... instaurou, na comarca de Coimbra, a presente declarativa, com processo sumário, contra B..., C... e D..., S.A., pedindo a condenação destes no pagamento de € 11 928,25, acrescidos de juros vincendos.

Alegou, em síntese, que no dia 23 de Junho de 2003, pelas 15h, na Rua ... em Tomar, o réu B...estava a descarregar de um veículo vários caixotes que se destinavam a uma sapataria da ré D..., aí situada, e que o fazia por conta e direcção dos réus C... e D.... Nessa tarefa o réu B...atirava caixotes para o chão, tendo um deles atingido a autora, que por aí passava, na sua perna esquerda. Em consequência disso a autora sofreu lesões que implicaram internamento hospitalar e que se submetesse a uma intervenção cirúrgica e a posteriores tratamentos. Essas lesões causaram-lhe sessenta dias de doença com incapacidade para o trabalho e uma IPP de 5%. Mais alega ter tido despesas com as deslocações ao hospital e em medicamentos que teve que tomar.

O réu B...foi citado editalmente, tendo o Ministério Público contestado em sua representação, afirmado desconhecer se os factos alegados correspondem à verdade.

O réu C... não contestou.

A ré D... contestou dizendo, em suma, que o réu C... é empresário em nome individual e exerce a actividade de transporte público ocasional de mercadorias. Este réu era seu fornecedor habitual de serviços de transporte, tendo-o incumbido do transporte da mercadoria, que este aceitou, que no dia 23 de Junho de 2003 estava a ser descarregada na Rua .... Mais afirma que não teve conhecimento do acidente de que foi vítima a autora e que o réu C... lhe debitou o serviço de transporte que nesse dia efectuou, não tendo com este qualquer relação de trabalho.

Respondeu a autora alegando que não foi celebrado qualquer contrato de transporte e que se está na presença de uma relação de comissão, entre os réus C... e D..., nos termos previstos no artigo 500.º do Código Civil.

Proferiu-se despacho saneador, fixaram-se os factos assentes e elaborou-se a base instrutória.

Realizou-se julgamento e foi proferida sentença em que se decidiu:

"Pelo exposto, julgo parcialmente procedente por provada, a presente acção e em consequência, condeno os Réus D..., S.A., C...e B..., a pagar à autora A..., a título de indemnização civil pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por esta sofridos, em consequência do acidente com a queda de caixotes de sapatos ocorrido em 23.06.2003, em Tomar, no montante global de 6.598,94 € (seis mil, quinhentos e noventa e oito euros e noventa e quatro cêntimos).

No que os condeno a pagar e de forma solidária.

Vão ainda condenados no pagamento dos juros de mora, os quais são devidos desde a data da citação para a presente acção, até integral e efectivo pagamento pelos Réus.

De resto, vão os Réus absolvidos do demais peticionado pela autora."

Inconformada com tal decisão, a ré D... dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação e com efeito meramente devolutivo, concluindo a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

Primeiro: A Ré D... e o Réu C..., no exercício das respectivas actividades profissionais, celebraram um contrato, entre si, pelo qual este se obrigou a efectuar o transporte por terra, das mercadorias, na data, e entre os lugares referidos na “guia de transporte” junta com a contestação como documento n.º 1;

Segundo: A Ré D... é uma sociedade comercial anónima que se dedica ao comércio de calçado, nos diversos estabelecimentos que possui e explora em diferentes localidades do país; e o Réu C...é um empresário em nome individual que se dedica à actividade profissional de Transporte Público Ocasional Rodoviário de Mercadorias, tem estabelecimento próprio e é titular do respectivo número de identificação fiscal.

Terceiro O contrato de transporte celebrado entre a Ré D... e o Réu C...é um acto comercial, objectiva e subjectivamente, que assenta numa relação de recíproca independência, e não subordinada, como é próprio da intrínseca natureza jurídica do respectivo contrato.

Quarto: O acto é comercial por natureza (absoluto), porque o contrato de transporte celebrado entre ambos estava regulado nos art.ºs 366.º do Código Comercial, então, vigente; deve a respectiva comercialidade à sua natureza intrínseca; e a própria Lei assim o caracteriza - art.º 230.º do Código Comercial e art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 366/90 de 24 de Novembro.

Quinto: O acto é bilateralmente comercial, porque a Ré D... e o Réu C...são comerciantes e celebraram o contrato de transporte, entre si, no exercício das respectivas actividades profissionais. – Art.ºs 2.º, 13.º, 230.º e 366.º do Código Comercial.

Sexto: A independência e não subordinação da relação contratual estabelecida entre a Ré D... e o Réu C..., para além decorrer da própria natureza jurídica do contrato de transporte que, entre si, celebraram, foram também afirmadas pelo Réu C..., na prática, pois executou o transporte e fez a entrega das mercadorias na data e na hora que ele próprio decidiu, e não na data e na hora pretendidos pela D... e estabelecida na “guia de transporte”. - “O Réu C... carregou os 238 pares de sapatos, no veículo 88-39-PR, no local indicado, às 11 horas e 15 minutos do dia 21-06-2003, mas só fez a entrega dos mesmos, no local do destino, no dia 23 de Junho de 2003, muito embora estivesse prevista a entrega, no próprio dia 21 de Junho, pelas 13,15 horas” conforme respostas aos quesitos de fls. 550.

Sétimo: Aliás, pela própria definição legal da sua actividade – Transporte Público Ocasional de Mercadorias (art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 360/90) - o Réu C...pode transportar, e normalmente transportará, mercadorias de diferentes expedidores, no mesmo camião, o que o obriga a organizar e a programar os horários das cargas e das descargas e os percursos a efectuar, para conciliar os diversos interesses dos expedidores e do próprio transportador, facto que supõe, necessariamente, o exercício livre, independente e responsável da sua actividade, até porque é responsável pelo pagamento da competente indemnização, se não fizer a entrega dos objectos nos prazos convencionados com os expedidores, como dispõe o art.º 382.º do Código Comercial.

Oitavo: A relação contratual que se estabeleceu entre a Ré D..., como expedidor, e o Réu C..., como transportador público ocasional de mercadorias, rege-se Lei Comercial – art.º 1.º - concretamente, pelas regras próprias do contrato de transporte previstas nos art.ºs 366.º e seguintes, todos do Código Comercial, e não se confunde com qualquer relação de comissão prevista no art.º 500.º do Código Civil, tratando-se, como se trata, de relações jurídicas distintas, por natureza, e que, reciprocamente, se excluem.

Nono: O transportador pode efectuar o transporte directamente por si, seus empregados e instrumentos, ou por empresa, companhia ou pessoas diversas, e responderá pelos seus empregados, pelas mais pessoas que ocupar no transporte dos objectos e pelos transportadores subsequentes a quem for encarregando do transporte, como dispõem os art.ºs 367.º e 377.º do Código Comercial.

Décimo: “In casu”, o Réu C... executou o transporte e nele ocupou o seu empregado ou colaborador B..., e o acidente dos autos ocorreu quando ambos movimentavam as caixas de calçado, executando este a sua tarefa por conta e sob a direcção daquele.

Décimo Primeiro: Não existe relação contratual de qualquer natureza entre o Réu B... e a Ré D..., e a presença e a intervenção daquele no dia, hora e local dos autos deveu-se, exclusivamente, à relação de comissão que o mesmo matinha com o Réu C....

Décimo Segundo: A única ligação que se pode estabelecer entre o acidente dos autos e a Ré D... reside no facto de esta ser a dona e expedidora das mercadorias e, portanto, ser dona do caixote que atingiu a Autora, A....

Décimo Terceiro: “In casu”, só foi estabelecida uma “relação de comissão” de natureza civil entre o Réus C... e o Réu B..., em que o primeiro é o comitente e o segundo é comissário - No dia 23 de Junho de 2003, pelas 15 horas, o Réu B... encontrava-se a descarregar uma série de caixotes, o que fazia por conta e sob a direcção do Réu C...– artigos 1.º e 2.º da Base Instrutória – e por isso só o Réu C... responde solidariamente com o Réu B..., pelos danos decorrentes do acidente dos autos, como dispõe o artigo 500.º do Código Civil.

Décimo Terceiro: A cadeia de responsabilidade de comissário e comitente relativa ao acidente dos autos começa no Réu B... e acaba no Réu C..., sem possibilidade de a mesma se estender à Ré D..., não só porque não existiu qualquer relação contratual entre ela e o Réu B..., mas também pela própria natureza jurídica e a Lei aplicável à relação contratual estabelecida entre a Ré D... e o Réu C..., que é incompatível e a exclui daquela relação de comissão.

Décimo Quarto: Quem recorre aos serviços profissionais duma empresa de transportes para expedir as suas mercadorias não é responsável pelos actos do transportador e ou das pessoas ao serviço deste, na execução do transporte.

Décimo Quinto: A Ré D... não assumiu nem podia ter assumido a posição de comitente na relação contratual que estabeleceu com o Réu Paulo Bringel, pela suficiente razão de que, entre eles, foi celebrado um contrato de transporte de natureza comercial, regulado pelas disposições dos art.º 366.º e seguintes do Código Comercial, tratando-se, como se trata, de figuras jurídicas de diferente natureza que, reciprocamente, se excluem.

Décimo Sexto: “A comissão pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este”, contrariamente ao que sucede no contrato de transporte celebrado entre comerciantes no exercício do seu comércio, os quais mantêm plena autonomia e independência e total liberdade e responsabilidade na sua execução.

Décimo Sétimo: Os riscos do transporte em relação a terceiros são do transportador, cuja responsabilidade está especialmente prevista no art.º 377.º do Código Comercial. E existindo uma norma especial a regular a responsabilidade civil do transportador, não pode a Ré D... responder pelos danos que os Réus B... e C... causaram à Autora, A..., ao abrigo do regime geral da responsabilidade pelo risco nas relações de comissão, nos termos do disposto no artigo 500.º do Código Civil.

Décimo Oitavo: A sentença recorrida está ferida de nulidade, nos termos do disposto no n.º 1 alínea b) do art.º 668.º do Código de Processo Civil, porque não especifica os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão de que entre a Ré D... e o Réu C...se estabeleceu uma relação de comissão de natureza civil, nos termos do disposto no art.º 500.º do Código Civil.

Décimo Nono: A sentença recorrida está também ferida de nulidade, nos termos do disposto no n.º 1 alínea c) do art.º 668.º do Código de Processo Civil, por manifesta oposição entre a decisão que condenou a Ré D..., por alegada existência duma relação de comissão de natureza civil entre ela e o Réu C..., sendo certo que o próprio Tribunal deu como provado que entre aquela e este foi celebrado um contrato de transporte, por se tratar de relações jurídicas de diferente natureza, incompatíveis entre si, e que se excluem, reciprocamente.

Vigésimo: A sentença recorrida viola e não faz correcta interpretação e aplicação das normas dos art.ºs 1.º, 2.º, 13.º, 230.º n.º 7, 366.º, 367.º, 373, 377.º e 382.º do Código Comercial; art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 366/90 de 24 de Novembro; e art.º 500.º do Código Civil.

O Ministério Público contra-alegou manifestando a sua concordância com a sentença recorrida e defendendo que ela se deve manter.

A autora contra-alegou sustentando que a decisão do tribunal a quo aplicou correctamente a lei e por "não merecer qualquer censura, deverá ser confirmada".

Colhidos os vistos legais, há que decidir.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do Código de Processo Civil[1], as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se a "ré D... e o réu C..., no exercício das respectivas actividades profissionais, celebraram um contrato, entre si, pelo qual este se obrigou a efectuar o transporte por terra, das mercadorias"[2] e se tal contrato "não se confunde com qualquer relação de comissão prevista no art.º 500.º do Código Civil".[3]


II

1.º


Estão provados os seguintes factos:

1. A R- D... SA exerce o comércio de calçado em diversos estabelecimentos comerciais de venda ao público, que possui e explora em diferentes localidades do país, conforme alínea A) da matéria assente;

2. Tendo o seu armazém principal ou central no Polígono das Actividades Económicas ...Póvoa de Santa Iria, conforme alínea B) da matéria assente;

3. A partir do qual abastece cada um dos seus estabelecimentos, com recurso a meios de transporte próprios e/ou a empresas comerciais especializadas de transportes públicos ocasionais rodoviários de mercadorias, conforme alínea C) da matéria assente;

4. O R- C...é empresário em nome individual, com o número de identificação fiscal ..., conforme alínea D) da matéria assente;

5. Dedica-se ao exercício de actividade profissional de Transporte Público Ocasional Rodoviário de Mercadorias, conforme alínea E) da matéria assente;

6. Possuindo o seu estabelecimento na Urbanização ... Rio de Mouro - ... Cacém, conforme alínea F) da matéria assente;

7. Sendo um fornecedor habitual da R- D..., de serviços de transporte rodoviário de mercadorias, conforme alínea G) da matéria assente;

8. No exercício das respectivas actividades profissionais, a R- D... incumbiu o R- C... e este aceitou efectuar diversos serviços de transporte rodoviário de calçado, no mês de Junho de 2003, conforme alínea H) da matéria assente;

9. Designadamente, incumbiu-o de realizar um serviço de transporte de 238 pares de calçado, no dia 21 de Junho de 2003, sendo local da carga o armazém da D..., sito no Polígono das Actividades Económicas, ... Póvoa de Santa Iria, conforme alínea I) da matéria assente;

10. E local da descarga, no estabelecimento da D..., sito na Rua ..., n.º 39/49, 2300 Tomar, conforme alínea J) da matéria assente;

11. O R- C...aceitou realizar este transporte, conforme alínea L) da matéria assente;

12. No dia 23 de Junho de 2003, pelas 15 horas, o primeiro Réu encontrava-se a descarregar uma série de caixotes, conforme resposta aos quesitos de f1s. 549;

13. O que fazia por conta e sob direcção do segundo Réu, a quem lhe confiaram a referida função, conforme resposta aos quesitos de f1s. 549;

14. Que se encontravam amontoados, em cima de um "carro de mão para descargas", vulgarmente designado por monta-cargas, conforme resposta aos quesitos de t1s. 549;

15. O R- B..., tinha o referido carro estacionado na Rua ..., em Tomar, conforme resposta aos quesitos de t1s. 549;

16. Junto do estabelecimento comercial de Sapataria, denominado " D...", conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

17. Para onde deslocava os caixotes, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

18. Caixotes estes que continham várias caixas com pares de sapatos, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

19. A fim de serem colocados e posteriormente comercializados, no referido estabelecimento, conforme resposta aos quesitos de f1s. 549;

20. Nessa altura, a Autora circulava a pé nessa mesma Rua, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

21. Rua essa que se encontrava vedada ao trânsito, excepto para cargas e descargas em horas previamente definidas, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

22. O R- B..., não tomou o devido cuidado na arrumação e descarga dos caixotes que transportava, conforme resposta aos quesitos de fls, 549;

23. Em cima do carro monta-cargas, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

24. Nesse mesmo momento um dos caixotes atingiu a Autora, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

25. Vindo o mesmo embater na sua perna esquerda, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

26. Provocando-lhe de imediato um inchaço e hematoma, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

27. Tendo de se deslocar no dia 23 de Junho de 2003 ao Hospital de Tomar, para receber tratamentos, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

28. Onde esteve internada até ao dia 24 de Junho de 2003, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

29. Continuou a efectuar tratamentos, uma vez que lhe foi diagnosticada uma hemorragia interna, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

30. No dia 29 de Julho de 2003 foi sujeita a uma intervenção cirúrgica pelo serviço de Ortopedia do Hospital de Tomar, conforme resposta aos quesitos de fls. 549;

31. Na sequência de necrose de tecido muscular, celular subcutâneo e pele da face externa da perna esquerda, conforme resposta aos quesitos de fls, 549;

32. Tendo sido efectuado desbridamento cirúrgico e sutura da pele, conforme resposta aos quesitos de fls. 550;

33. Onde se manteve internada até ao dia 1 de Agosto de 2003, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

34. Passando a ser seguida em consulta externa, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

35. Ficando clinicamente curada em finais de Agosto de 2003, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

36. A Autora foi sujeita a tratamentos nos serviços de ortopedia do Hospital de Tomar, conforme resposta aos quesitos de fls, 550;

37. Para onde se deslocava, a fim de ser submetida a tais tratamentos e ser seguida em consultas externas, em média duas vezes por semana, conforme resposta aos quesitos de fls. 550;

38. A Autora à data do acidente, tinha 55 anos, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

39. Ficou marcada com cicatrizes na perna esquerda, conforme resposta aos quesitos de fls. 550;

40. Como foi forçada a deslocar-se, em virtude de receber tratamentos médicos no Hospital na data do acidente, conforme resposta aos quesitos de fls. 550;

41. No que despendeu em serviços de táxis a quantia de € 275,36, conforme resposta aos quesitos de fls. 550;

42. A autora foi forçada a comprar um par de canadianas, pelo valor de 20 €, conforme resposta aos quesitos de fls. 550;

43. E em medicamentos gastou a quantia de € 160.98, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

44. Tendo ainda despendido a quantia de € 40.00. numa consulta médica particular, conforme resposta aos quesitos de fls. 550;

45. As lesões acima descritas determinaram 30 dias de doença com incapacidade temporária geral total e 39 dias com incapacidade temporária geral parcial, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

46. Bem como, lhe provocaram e provocam, dores acentuadas, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

47. A Autora, à data dos acontecimentos encontrava-se desempregada, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

48. Não auferindo quaisquer rendimentos, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

49. A necrose de tecido muscular, celular subcutâneo e pele da face externa da perna esquerda, causa-lhe uma incapacidade permanente parcial (lPP) de 1 ponto percentual, conforme resposta aos quesitos de fls. 550;

50. Embora a A. se encontre desempregada, vive na expectativa de encontrar um novo emprego, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

51. Exigindo-lhe maiores esforços no desempenho das tarefas quotidianas que dizem respeito e são comuns a todos os indivíduos, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

52. Na sequência do mencionado em I), J) e L), o R- C... carregou os 238 pares de sapatos, no veículo de matrícula 88-39-PR, no local indicado, às 11 horas e 15 minutos do dia 21.06.03, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

53. Só fazendo a entrega dos mesmos, no local do destino, no dia 23 de Junho de 2003, muito embora estivesse prevista a entrega, no próprio dia 21 de Junho, pelas 13,15 horas, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

54. O R- C... debitou à R- D... e esta pagou-lhe o preço desse e de outros serviços de transporte realizados no mês de Junho de 2003, conforme resposta aos quesitos de fls. 550;

55. A D... não tem conhecimento de qualquer acidente ocorrido e relacionado com o transporte e entrega de calçado destinado ao seu referido estabelecimento sito na Rua ..., n.os 39/49, Tomar, conforme resposta aos quesitos de f1s. 550;

56. O acidente ocorreu quando o R- C... e o R- B..., movimentavam as caixas de calçado, conforme resposta aos quesitos de fls. 550.


2.º

Na sentença recorrida a Meritíssima Juíza a quo, depois de tecer algumas considerações acerca da responsabilidade civil extracontratual, aborda o disposto no artigo 500.º do Código Civil e refere os pressupostos e características da relação de comissão estabelecida nesta norma.

Depois, ao analisar os factos dos autos à luz de tais considerandos, afirma que se provou que "a 3.ª Ré D..., contratou com o 2.º Réu, C..., um transporte ocasional de mercadorias, via terrestre rodoviário, sendo que este saiu do armazém daquela sito em Póvoa de Santa Iria, carregado com 238 pares de sapatos no seu veículo de matrícula 88-39-PR, destinando-se a mercadoria a ser descarregada na Rua ..., em Tomar"[4], isto é, a mercadoria tinha como destino o estabelecimento da ré D... situado naquela artéria.

 E, quase de seguida, conclui que "enfim, sem necessidade de outras considerações, prova-se que a Ré D... é uma comitente, porque precisamente contrata ainda que de forma ocasional e pontual com o Réu C... um contrato de transporte de mercadorias/sapatos para a sua loja sita em Tomar; este por sua vez, é o comissário que ainda por cima também provado ficou, contratou por sua vez o Réu B..., para o coadjuvar, auxiliar, no transporte e descarga dos sapatos, o qual vem em concreto e por via da sua falta de cuidado e imperícia, provocar um acidente do que originaram danos.

Está assim provada a responsabilidade objectiva e como comitente que a Ré D... tem de responder nesta acção, nos termos do referido artigo 500º/1 do CC, e perante a autora, independentemente da sua culpa sendo certo que o Réu C... responde com culpa, uma vez que ao contratar o Réu B... e ao deixar que este procedesse à descarga da forma totalmente descuidada com este fazia ao manobrar as caixas de sapatos, assume a culpa por essa conduta, uma vez que lhe é censurável e reprovada, podendo o Réu C... agir de forma mais cuidadosa porque disse era capaz."

A ré D... censura a decisão recorrida, justamente, por este enquadramento jurídico dos factos, pois sustenta que não existe entre ela e os réus qualquer relação de comissão.

O artigo 500.º do Código Civil dispõe que:

"1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.

2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.

3. O comitente que satisfizer a indemnização tem o direito de exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte; neste caso será aplicável o disposto no nº 2 do artigo 497º."

O termo comissão tem aqui "o sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, podendo essa actividade traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual, etc. A comissão pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este. Só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo."[5] Com efeito, "para que se verifique responsabilidade objectiva do comitente, impõe-se, em primeiro lugar, a existência de uma relação de comissão, traduzida num vínculo de autoridade e subordinação correspectivas. Quer dizer, exige-se que uma pessoa tenha encarregado outra, gratuita ou onerosamente, de uma comissão ou serviço, consistindo num acto isolado ou numa actividade duradoura. O que importa é que o comissário ou preposto, nomeado ou aceite pelo comitente, embora, porventura, não escolhido, se encontre numa relação de subordinação ou dependência quanto a este último, de maneira que ele possua o direito, não só de dar-lhe ordens ou instruções precisas sobre a finalidade e os meios de execução da comissão, mas também de fiscalizar directamente o seu desempenho".[6]  De realçar ainda que é necessário "que a função praticada pelo comissário possa ser imputada ao comitente, por os actos nela compreendidos serem praticados exclusivamente no seu interesse[7] por conta sua, ou seja, suportando ele as despesas e os ganhos dessa actividade."[8] 

Ora, no caso dos autos importa realçar entre os factos provados que:

- A ré D... exerce o comércio de calçado em diversos estabelecimentos comerciais de venda ao público e tem o seu armazém principal na Póvoa de Santa Iria;

- É a partir daí que abastece cada um dos seus estabelecimentos, com recurso a meios de transporte próprios e/ou a empresas comerciais especializadas de transportes públicos ocasionais rodoviários de mercadorias;

- O réu C... é empresário em nome individual e dedica-se ao exercício de actividade profissional de transporte público ocasional rodoviário de mercadorias, tendo o seu estabelecimento na Rinchoa, Rio de Mouro;

- O réu C... fornece habitualmente a ré D... de serviços de transporte rodoviário de mercadorias;

- No exercício das respectivas actividades profissionais, a ré D... incumbiu o réu C... de efectuar diversos serviços de transporte rodoviário de calçado, no mês de Junho de 2003, designadamente, o de transportar 238 pares de calçado do armazém daquela na Póvoa de Santa Iria para o seu estabelecimento situado na Rua ..., n.º 39/49, em Tomar;

- O réu C... aceitou realizar esses transportes;

- Na realização do serviço de transporte do dia 23 de Junho de 2003, o réu B...estacionou a viatura que usara para esse efeito na Rua ..., junto do estabelecimento da ré D..., para onde deslocava os caixotes;

- Esses caixotes, que continham várias caixas com pares de sapatos, estavam amontoados, em cima de um "carro de mão para descargas";

- Os caixotes deviam ser colocados naquele estabelecimento, para depois os sapatos que neles se encontravam serem aqui comercializados;

- O réu B...descarregava os caixotes por conta e sob direcção do réu C...;

- Nessa altura, a autora circulava a pé nessa mesma rua, que se encontrava vedada ao trânsito, excepto para cargas e descargas em horas previamente definidas;

- O réu B..., não tomou o devido cuidado na arrumação e descarga dos caixotes que transportava em cima do carro monta-cargas, tendo, então, um dos caixotes atingido a autora, embatendo-lhe na sua perna esquerda.

- Desse embate resultaram para a autora diversas lesões que implicaram, nomeadamente o seu internamento hospitalar e que se submetesse a uma cirurgia.

É também oportuno salientar que no quesito 2.º se perguntava se o réu B...se encontrava a descarregar os caixotes "por conta e sob a direcção dos segundo e terceiros réus, a quem lhe confiaram a referida função"[9] e que a ele se respondeu "provado apenas por conta e sob direcção do segundo Réu, a quem lhe confiaram a referida função"[10]; isto é, não se deu como provado que esse réu actuasse "por conta e sob a direcção" da ré D....

Conforme o que acima já se deixou dito, a relação de comissão caracteriza-se pela realização de uma actividade "por conta e sob a direcção de outrem" que "pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este", existindo, por isso, uma "relação de subordinação ou dependência" do comissário em relação ao comitente e que a função praticada por aquele possa ser imputada a este "por os actos nela compreendidos serem praticados exclusivamente no seu interesse por conta sua, ou seja, suportando ele as despesas e os ganhos dessa actividade".

Ora, examinados os facto provados, neles nada se encontra que permita afirmar que existia uma relação com estas, ou alguma destas, características entre a ré D... e os outros dois réus, nomeadamente o réu C.... Nada se provou no sentido de que, por exemplo, aquela ordenou a este a realização do transporte, ou que lhe deu instruções quanto à forma como esse transporte se devia concretizar, ou que a instruiu acerca do modo de carregar e descarregar o veículo que efectuou o transporte, ou que não houvesse um interesse próprio do réu C... na realização desse transporte.

Por outro lado, veja-se que se provou que este réu é um empresário que se dedica à actividade profissional de transporte rodoviário de mercadorias, tendo para o efeito o seu estabelecimento, que fornece habitualmente serviços de transporte à ré D... e que esta exerce o comércio de calçado em diversos estabelecimentos que possui.

E ficou igualmente provado que "no exercício das respectivas actividades profissionais" a ré D... "incumbiu" o réu " C... e este aceitou" de "realizar um serviço de transporte de 238 pares de calçado" desde o armazém daquela situado na Póvoa de Santa Iria até ao seu estabelecimento de Tomar.

A aceitação por parte do réu C... do serviço de transporte que a ré D... o "incumbiu" é bem revelador que entre aquele e esta não havia qualquer "relação de subordinação ou dependência", pois se ela se existisse, era de todo desnecessária essa aceitação, pois nesse caso bastava uma ordem da ré D... que este teria que cumprir.

Ora, "já não haverá, porém, comissão nas situações em que, apesar de se ter encomendado um serviço a outrem, esse serviço corresponda a uma função autonomamente exercida pelo devedor, a qual não lhe é por isso delegada por um comitente. Estarão neste caso as prestações de serviços em que a actividade é sempre imputada ao próprio devedor, ainda que o resultado dessa actividade seja objecto de uma prestação ao credor, como no depósito (art. 1185.º), empreitada (art.1207.º) ou no contrato de transporte."[11] 

Sabendo nós que um "contrato é um negócio jurídico bilateral ou plurilateral, isto é, integrado por duas ou mais declarações negociais exprimindo vontades convergentes no sentido da realização de um objectivo comum que justifica a tutela do direito. É, pois, a convenção pela qual duas ou mais pessoas constituem, regulam, modificam ou extinguem relações jurídicas, regulando assim os seus interesses"[12], ou, dito por outra palavras, um "acordo por que duas ou mais partes ajustam reciprocamente os seus interesses, dando-lhes uma regulamentação que a lei traduz em termos de efeitos jurídicos"[13], o que emerge dos factos provados é a existência de um contrato de transporte celebrado entre a ré D... e o réu C.... Pois, o contrato de transporte é aquele que "se estabelece, geralmente a título oneroso, entre um sujeito que ser deslocado ou ver deslocado um bem e aquele que se compromete a realizar essa deslocação"[14] e o que, na situação em apreço, foi o acordado é que o réu C... se obrigou a transportar para a ré D... um conjunto de sapatos, que devia ser levado desde a Póvoa de Santa Iria até um estabelecimento desta situado em Tomar.

No âmbito dessa relação contratual, cabia ao réu C... definir os termos em que esse transporte se concretizaria. A ré D... apenas podia exigir deste seu devedor, como cumprimento da obrigação por ele assumida, que a entrega dos sapatos se concretizasse no local convencionado, após estes serem para aí transportados.

Nada se encontra nos factos provados que autorize afirmar-se que à ré D... era possível, por via do acordo estabelecido, impor ao réu C... o modo como a operação de transporte, desde o seu início com o carregamento do veículo, até ao seu final, com a descarga da mercadoria, se devia concretizar, nomeadamente indicando o itinerário a seguir, a viatura a utilizar ou o número de pessoas para executar as diversas tarefas que esses transporte implicava.

À luz do que se deixa dito, não se pode acompanhar a Meritíssima Juíza a quo quando, "sem necessidade de outras considerações", conclui pela existência de uma relação de comissão, dado que estamos, sim, perante uma a relação contratual em que são sujeitos a ré D... e o réu C....

Neste contexto, e na ausência de uma relação de comissão, não se vê como se pode responsabilizar a ré D... por um facto ocorrido ainda no decorrer da actividade contratada, pese embora já perto da sua fase final, uma vez que a autora foi atingida pelo caixote com sapatos quando estes, ainda na rua, estavam a ser descarregados, para depois serem levados para o estabelecimento comercial daquela.

Inexistindo uma relação de comissão não se pode, portanto, responsabilizar a ré D... pelos danos que, lamentavelmente, a autora sofreu. Aquela é absolutamente alheia à conduta do réu B..., que, como se viu, actuava (unicamente[15]) por conta e sob direcção do réu C..., o mesmo é dizer que não responde pelos danos que dela resultaram.


III

Com fundamento no atrás exposto julga-se procedente o recurso, pelo que se revoga a decisão recorrida na parte em que condenou a ré D... e absolve-se esta de todo o pedido que contra ela foi formulado pela autora.

Custas pela autora.

 António Beça Pereira (Relator)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida


[1] São deste código, na sua versão anterior ao Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto, todos os artigos adiante mencionado sem qualquer outra referência. Contrariamente ao defendido pela Meritíssima Juíza no seu despacho da folha 576, a este processo não se aplicam as normas introduzidas no Código de Processo Civil pela reforma operada pelo citado Decreto-Lei 303/2007, pois ele iniciou-se antes de 1 de Janeiro de 2008.
[2] Cfr. conclusão 1.ª.
[3] Cfr. conclusão 8.ª.
[4] Cfr. folha 565.
[5] Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 507 e 508.
[6] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª Edição, pág. 497 e 498.
[7] Cuius commoda eius incommoda ou ubi commoda ibi incommoda.
[8] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 7.ª Edição, pág. 369.
[9] Cfr. folha 309. Este facto tinha sido alegado pela autora no artigo 3.º da sua petição inicial.
[10] Cfr. folha 549.
[11] Menezes Leitão, obra citada, pág. 369.
[12] Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, I Vol., pág. 370.
[13] Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª Edição, pág. 59.
[14] Ana Prata, obra citada, pág. 385. Cfr. artigo 2.º do Decreto-Lei 239/2003 de 4 de Outubro.
[15] Cfr. resposta ao quesito 2.º, folha 549.