Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
565/09.1T2ILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE FACTO
TERCEIRO
LESADO
DIREITO DE REGRESSO
ACIDENTE DE TRABALHO
Data do Acordão: 05/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ÍLHAVO - JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INSTÂNCIA CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 495, 496 CC, 31 DA LEI Nº 100/97 DE 13/9
Sumário: 1. Não deve conhecer-se de impugnação da decisão da matéria de facto requerida pelo recorrente quando, à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito, o eventual deferimento da impugnação se apresenta claramente inócuo para a decisão final.

2. A entidade patronal que não demonstrou ter satisfeito qualquer indemnização ao seu trabalhador sinistrado que lhe facultasse o direito de regresso sobre o eventual responsável civil, ex vi artigo 31º, nº 4, da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, nem provou ter socorrido o lesado ou que tenha contribuído para o seu tratamento ou assistência (artigo 495º, nº 2, do Código Civil), não é titular de direito de regresso ou de indemnização contra o alegado responsável civil.

3. Está fora do projecto normativo do legislador civil a possibilidade de uma entidade patronal, enquanto lesada indirecta por um sinistro sofrido por um seu trabalhador, caber no leque dos lesados indirectos titulares de direito de indemnização pela prática de facto ilícito na pessoa de um seu trabalhador, pois não há qualquer analogia ou identidade de razão com os casos em que legalmente é conferido um direito de indemnização a lesados indirectos.

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório                                                                  

            A 29 de Outubro de 2009, no Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Ílhavo, da Comarca do Baixo Vouga, T (…) & Filhos, Lda. instaurou acção declarativa sob forma sumária contra E (…), SA pedindo a condenação da ré ao pagamento da quantia de € 26.992,85.

            A autora funda a sua pretensão na alegação, em síntese, de que um seu trabalhador foi vítima de um acidente de trabalho nas instalações da ré, provocado pela queda de um portão sobre o corpo do seu trabalhador, tendo a autora suportado o montante que peticiona da ré a título de despesas de tratamento do seu trabalhador, de pensão por acidente de trabalho e indemnização por incapacidade temporária, na qualidade de entidade responsável por acidente de trabalho.

            Efectuada a citação da ré, esta contestou imputando a ocorrência do sinistro a culpa exclusiva do trabalhador da autora, pugnando pela total improcedência da acção.

            E (…), SA requereu a intervenção acessória de Serralharia (…) Lda. por ter sido a construtora do portão que caiu sobre o corpo do trabalhador da autora e por ter procedido à sua montagem e a fim de acautelar um eventual direito de regresso contra a chamada.

            A autora pronunciou-se pela inadmissibilidade legal do incidente de intervenção acessória provocada.

            Proferiu-se despacho a admitir a intervenção acessória de Serralharia (…)Lda., tendo esta sido citada.

            Serralharia (…) Lda. contestou invocando a excepção peremptória de prescrição do direito accionado pela autora, bem como a culpa do lesado, requerendo a intervenção acessória da sua seguradora de responsabilidade civil, pugnando, a final, pela total improcedência da acção.

            A autora ofereceu articulado em que se pronunciou pela improcedência da excepção de prescrição invocada pela interveniente acessória.

            Indeferiu-se a intervenção acessória da seguradora da responsabilidade civil de Serralharia (…), Lda., fixou-se o valor da causa em € 26.992,85, proferiu-se despacho saneador, julgando-se improcedente a excepção peremptória de prescrição invocada pela interveniente acessória e procedeu-se à condensação da factualidade considerada relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes dos controvertidos, estes últimos a integrar a base instrutória.

            As partes ofereceram as suas provas, requerendo ambas a gravação da audiência final.

            Entretanto deu-se conhecimento da mudança da firma da ré que passou a denominar-se P (…), SA.

            Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e respondeu-se à matéria incluída na base instrutória, proferindo-se seguidamente sentença que julgou a acção totalmente improcedente.

            Inconformada com a decisão final, T (…) & Filhos, Lda. interpôs recurso de apelação terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

A ré ofereceu contra-alegações em que alega que não tendo a autora sequer provado o pagamento dos montantes reclamados nestes autos, não tem o direito de regresso que exerce nestes autos, o que por si só determina necessariamente a improcedência da acção, pugnando, além disso, pela improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto e pela oneração da autora com a prova de que a queda do portão que vitimou o seu trabalhador se deveu a defeito de conservação, concluindo pela total improcedência do recurso.

Proferiu-se despacho a convidar a Sra. Advogada da recorrente a juntar aos autos procuração forense e a ratificar o processado, despacho que foi acatado.

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da impugnação das respostas aos artigos 9º, 13º, 16º e 17º da base instrutória;

2.2 Do ónus da prova da deficiência de conservação do portão que vitimou o empregado da autora.

3. Fundamentos

3.1 Da impugnação das respostas aos artigos 9º, 13º, 16º e 17º da base instrutória

A autora insurge-se contra as respostas dadas aos artigos 9º, 13º, 16º e 17º da base instrutória, não impugnando qualquer outra das respostas dadas pelo tribunal a quo à matéria controvertida, nomeadamente as respostas que incidiram sobre os montantes alegadamente pagos por si[1].

Neste quadro factual, tendo em conta que a autora é uma lesada indirecta, importa ajuizar da “utilidade” da impugnação da decisão da matéria de facto requerida pela recorrente.

Tradicionalmente, com base no disposto nos artigos 495º e 496º, nº 2, ambos do Código Civil, sustenta-se que a titularidade do direito de indemnização com fundamento em facto ilícito só compete a terceiros nos casos expressamente previstos na lei[2], não sendo as normas em causa passíveis de aplicação analógica, dado serem excepcionais, nem sendo caso de interpretação extensiva por resultar dos trabalhos preparatórios do Código Civil que a intenção do legislador foi limitar a indemnização a terceiros aos casos como tal previstos[3]. Nesta orientação, o direito de indemnização competiria ao titular do direito subjectivo ou do interesse legítimo protegido atingido directamente por acção ou omissão geradora da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito.

Esta visão clássica foi desde cedo objecto de crítica, primeiramente a nível doutrinal e depois com cada vez maiores apoios doutrinais e jurisprudenciais, com fundamentações nem sempre coincidentes. Assim, logo em 1972, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Janeiro de 1970[4], o Professor Adriano Vaz Serra referia que “Mas, embora sejam excepcionais as disposições que reconhecem a certos parentes do lesado imediato um direito de indemnização elas são susceptíveis de interpretação extensiva (Cód. Civil, art. 11.º), e, por conseguinte, de extensão a outros casos compreendidos no espírito da lei.

De resto, pode ser que a lesão do lesado imediato seja acompanhada da lesão de um direito ou bem juridicamente protegido de um dos seus parentes, havendo então uma lesão imediata deste, e não já uma simples lesão mediata (isto é, um dano de terceiro), como se, por ex., uma mãe sofre uma depressão nervosa pelo facto de seu filho ser atropelado, ou um filho sofre um grave choque espiritual com consequentes perturbações nervosas por assistir à morte ou atropelamento de seu pai.

Nestes casos, o direito de indemnização da mãe ou do filho não é um direito de indemnização de terceiro, mas um direito de indemnização fundado na violação ilícita imediata de um direito deles (direito à saúde), e, portanto, independente, não lhe sendo aplicável o artigo 496.º, n.º 2, mas os artigos 483.º e 496.º, n.º 1 do Código Civil ou os artigos 503.º e 496.º, n.º 1, do mesmo Código (…)[5].

Esta posição doutrinal foi tendo acolhimento jurisprudencial de forma inicialmente tímida mas hoje com uma já significativa representatividade[6], tendo sido publicados estudos doutrinais que de uma ou outra forma seguem na peugada daquele Ilustre Professor[7].

Parece inequívoco que o nosso legislador civil teve o propósito de restringir o direito de indemnização com base em facto ilícito à pessoa directamente lesada com a acção ou omissão geradora da obrigação de indemnizar fundada em facto ilícito. Se não fosse esse o horizonte normativo do legislador civil, mal se perceberiam as previsões dos artigos 495º e 496º, nºs 2 e 3, ambas do Código Civil, que têm uma nítida vocação de ampliação do leque daqueles que têm direito a indemnização com fundamento na prática de acto ilícito[8]. Esta restrição, em regra, do direito de indemnização ao directamente prejudicado com a acção ou omissão ilícita é necessária a fim de que não haja um alargamento excessivo da obrigação de indemnizar, dada a multiplicidade e difícil previsibilidade das consequências da conduta humana. A ausência de uma limitação nos termos expostos afectaria a liberdade de actuação das pessoas em geral, por receio das possíveis consequências mediatas das suas condutas.

No projecto normativo do legislador civil, no que tange aos danos não patrimoniais, excepcionou-se a regra da compensabilidade apenas do lesado directo ou imediato, no caso de morte do directamente prejudicado, conferindo-se, nessa eventualidade, um direito de indemnização por danos não patrimoniais às pessoas indicadas no nº 2, do artigo 496º do Código Civil[9].

Pode questionar-se por que razão não foram acolhidas as propostas do Professor Vaz Serra que davam maior amplitude à compensabilidade do dano não patrimonial a pessoas diversas do directamente lesado, embora sejam escassos os elementos disponíveis para uma tomada de posição segura sobre tal matéria. Afigura-se-nos que terá pesado o receio de um alargamento excessivo da obrigação de indemnizar, numa economia ainda pouco desenvolvida, com os lesantes a responderem em regra directamente pelas consequências dos seus actos e com um leque de riscos sociais ainda diminuto, nomeadamente por força de um reduzido parque automóvel.

Volvidos mais de quarenta anos sobre a entrada em vigor do Código Civil vigente, no quadro de uma sociedade de risco, com variados casos de seguros obrigatórios de responsabilidade civil e com a melhoria das condições de assistência médica que permitem a sobrevivência de pessoas que anteriormente dificilmente sobreviveriam, há que questionar se o referido projecto normativo ainda se mostra adequado às novas realidades da vida, isto é, se não ocorre presentemente uma situação carecida de tutela jurídica e que não tem o necessário arrimo normativo expresso.

Na nossa perspectiva, os familiares de pessoas vítimas de lesões corporais graves que as afectam de forma permanente, de forma irreversível, acham-se numa situação em tudo equiparável do ponto de vista dos interesses em jogo à situação dos familiares de uma vítima que morre em consequência das lesões. Por vezes, o sofrimento de familiares de vítimas que sobrevivem fortemente incapacitadas, poderá até ser superior ao dos familiares de uma vítima que vem a falecer.

O que parece de todo fora do projecto normativo do legislador civil é a possibilidade de uma entidade patronal, enquanto lesada indirecta por um sinistro sofrido por um seu trabalhador, caber no leque dos lesados indirectos titulares de direito de indemnização pela prática de facto ilícito na pessoa de um seu trabalhador, pois não há qualquer analogia ou identidade de razão com os casos em que legalmente é conferido um direito de indemnização a lesados indirectos.

Assim, à luz das regras gerais sobre responsabilidade civil, no que respeita a indemnização por incapacidade temporária e o capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia devidas ao trabalhador sinistrado, a autora nunca seria titular de direito de indemnização por ser uma lesada indirecta não contemplada na lei. No que tange as despesas médicas, de transporte e exames complementares de diagnóstico, passíveis de se enquadrar no previsto no nº 2, do artigo 495º do Código Civil, a pretensão da autora não é viável por não ter demonstrado o dano, isto é, a efectivação de despesas para tratamento ou assistência da vítima.

Porém, no caso em apreço, a pretensão indemnizatória da autora tem arrimo normativo no disposto no artigo 31º, nº 4, da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro[10] que dispõe: “A entidade empregadora ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente tem o direito de regresso contra os responsáveis referidos no nº 1, se o sinistrado não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano, a contar da data do acidente”. Como se vê do normativo que se acaba de citar, o nascimento da pretensão indemnizatória da autora, na qualidade de entidade patronal responsável pelo acidente de trabalho sofrido por um seu trabalhador, depende da demonstração da efectivação do pagamento da indemnização devida ao sinistrado.

Ora, não sendo impugnadas as respostas negativas que o tribunal a quo deu relativamente aos pagamentos alegadamente efectuados pela autora e sendo esta uma lesada indirecta, que finalidade útil poderá resultar do conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto requerida pela recorrente?

A impugnação da decisão da matéria de facto é um instrumento conferido ao recorrente para tentar obter uma base fáctica juridicamente relevante para alguma ou algumas das pretensões que formulou. A vocação desta impugnação é meramente instrumental no sentido de que se impugna a decisão da matéria de facto para depois, em função da alteração pretendida e eventualmente obtida, se ter base factual para dar suporte a uma ou a várias das pretensões oportunamente deduzidas.

A fixação dos factos num processo judicial é sempre feita em função de um certo quadro de relevância jurídica. Não se cura num processo judicial da reconstituição, a todo o custo, da verdade histórica, mas tão-só da determinação dos factos necessários e suficientes para a resolução de um certo ou de certos problemas jurídicos[11]. Por isso, não importa o apuramento de factos juridicamente irrelevantes ou inócuos, constituindo essa actividade a prática de actos inúteis, legalmente proibidos (artigo 137º, do Código de Processo Civil) e atentatórios da celeridade que deve nortear o desenvolvimento de qualquer processo judicial (veja-se o artigo 2º, nº 1, do Código de Processo Civil).

No caso em apreço, mesmo que a resposta à impugnação da decisão da matéria de facto fosse integralmente favorável à recorrente, sempre faleceria a demonstração do pressuposto fulcral para o sucesso da sua pretensão indemnizatória: a efectivação dos pagamentos que nesta sede reclama.

Neste circunstancialismo, não deve proceder-se ao conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto por ser manifesto que desse conhecimento, qualquer que seja o seu resultado, à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito, nenhum efeito jurídico útil poderá advir para a recorrente.

Assim, pelos fundamentos expostos, não se conhece da impugnação da decisão da matéria de facto no que tange as respostas aos artigos 9º, 13º, 16º e 17º, todos da base instrutória.

3.2 Fundamentos de facto resultantes da decisão sob censura e que pelas razões antes expostas se mantêm inalterados


3.2.1

A autora T (…) & Filhos, Lda., dedica-se à actividade de transporte rodoviário de mercadorias em território nacional (alínea A dos factos assentes).

3.2.2

No exercício da sua actividade e a solicitação da ré “E (…)S.A.”, a autora procedeu ao transporte de materiais de alumínio para as instalações da ré sitas na Zona Industrial (...) , Ílhavo (alínea B dos factos assentes).

3.2.3

O transporte mencionado em 3.2.2 ocorreu no dia 03 de Novembro de 2006 e foi efectuado pelo motorista da autora (…), o qual chegou ao local da descarga cerca das 17 Horas (alínea C dos factos assentes).

3.2.4

Na altura e no local referidos em 3.2.2 e 3.2.3, e ao abrir o portão das instalações da ré, o motorista da autora foi atingido pelo mesmo que lhe caiu em cima do corpo (alínea D dos factos assentes).

3.2.5

A ré não fazia a manutenção do portão das suas instalações (alínea E dos factos assentes).

3.2.6

Em consequência do descrito em 3.2.4, (…) sofreu: - fractura da bacia; - fractura do ombro esquerdo; - fractura de 4 costelas; - fractura do pé direito; e - derrame pulmonar (resposta ao artigo 3º da base instrutória).

3.2.7

Na qualidade de entidade patronal a autora assumiu a responsabilidade pelo pagamento das despesas médicas, de transporte e de exames complementares de diagnóstico realizadas por (…) (resposta ao artigo 4º da base instrutória).

3.2.8

Em consequência das lesões descritas em 3.2.6, (…) esteve incapaz para o trabalho (resposta ao artigo 5º da base instrutória).

3.2.9

Desde 19.02.2008, (…) apresenta uma incapacidade permanente parcial de 13,52% (resposta ao artigo 6º da base instrutória).

3.2.10

O portão das instalações da ré tinha sido colocado nove meses antes da altura referida em 3.2.2 e 3.2.3 pela interveniente “Serralharia (…) Lda.” (resposta ao artigo 8º da base instrutória).

3.2.11

A ré contratou com a interveniente “Serralharia (…) Lda.” a colocação do portão, bem como de todos os seus mecanismos, incluindo batentes e calhas (resposta ao artigo 9º da base instrutória).

3.2.12

Na altura e local referidos em 3.2.2 e 3.2.3, (…) procedeu à abertura do portão por sua iniciativa, forçando o seu batente (resposta ao artigo 13º da base instrutória).

3.2.13

Trata-se de um portão em ferro, com cerca de 11 metros de largura e 1,90 metros de altura (resposta ao artigo 14º da base instrutória).

3.2.14

O portão movia-se em calhas onde circula, limitado pelo batente referido em 3.2.12 (resposta ao artigo 15º da base instrutória).

3.2.15

Ao forçar o batente, (…) partiu-o e provocou a queda do portão (resposta ao artigo 16º da base instrutória).

3.2.16

O portão era aberto por funcionários da ré diariamente (resposta ao artigo 17º da base instrutória).

3.2.18

O portão da ré não carecia de manutenção (resposta ao artigo 18º da base instrutória).

4. Fundamentos de direito

4.1 Do ónus da prova da deficiência de conservação do portão que vitimou o empregado da autora

A recorrente, além da impugnação da decisão da matéria de facto no que respeita os artigos 9º, 13º, 16º e 17º, todos da base instrutória, suscita a questão da determinação do onerado com a prova da deficiência de conservação do portão que veio a atingir o seu trabalhador (…). Esta questão jurídica, aliás não pacífica[12], teria todo o interesse em ser detalhadamente analisada se porventura a recorrente fosse lesada directa. Porém, não é esse o caso, pois a autora é uma lesada indirecta e não demonstrou ter satisfeito qualquer indemnização ao seu trabalhador que lhe facultasse o direito de regresso sobre o eventual responsável civil, ex vi artigo 31º, nº 4, da da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, nem provou ter socorrido o lesado ou que tenha contribuído para o seu tratamento ou assistência (veja-se o artigo 495º, nº 2, do Código Civil), não demonstrando a ocorrência do dano, pressuposto sem o qual não nasce a obrigação de indemnizar com base em facto ilícito. A simples responsabilização pelo pagamento das despesas médicas, de transporte e de exames complementares de diagnóstico realizadas por (…) não constitui a realização de quaisquer despesas com o tratamento ou assistência da vítima.

Neste enquadramento jurídico, o conhecimento da questão do ónus da prova suscitada pela recorrente apresenta-se destituída de qualquer relevo ou efeito útil, obstando sempre ao sucesso da sua pretensão a circunstância de ser lesada indirecta e de não ter demonstrado a efectivação dos pagamentos que alegou ter efectuado.

Assim, por tudo quanto precede, ainda que com fundamentos distintos, deve manter-se a sentença recorrida, improcedendo in totum o recurso de apelação.

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por T (…) & Filhos, Lda. e, em consequência, ainda que por fundamentos diversos, em confirmar a sentença recorrida proferida a 24 de Novembro de 2011; custas do recurso de apelação a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B da tabela I anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


Carlos Gil ( Relator )

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] Nos artigos 4º, 5º, 6º e 7º da base instrutória perguntava-se: “Na qualidade de entidade patronal a autora assumiu a responsabilidade pelo pagamento das despesas médicas, de transporte e de exames complementares de diagnóstico realizadas por (…) em consequência do descrito de 1) a 3), pagando o valor global de 10.657,02 € (artigo 5º da base instrutória); “Em consequência das lesões descritas em 3), (…) esteve incapaz para o trabalho?” (artigo 5º da base instrutória); “Desde 19.02.2008, (…)apresenta uma incapacidade permanente parcial de 13,52 %?” (artigo 6º da base instrutória); “Em consequência do referido em 5) e 6), a autora pagou a (…) as quantias de 6.262,04 € e de 10.073,79 €?” (artigo 7º da base instrutória). As respostas aos artigos 5º e 6º da base instrutória foram positivas, enquanto a resposta ao artigo 7º da base instrutória foi negativa. Por seu turno, a resposta ao artigo 4º da base instrutória foi restritiva e do seguinte teor: “Provado apenas que “Na qualidade de entidade patronal a autora assumiu a responsabilidade pelo pagamento das despesas médicas, de transporte e de exames complementares de diagnóstico realizadas por (…)”.
[2] Neste sentido vejam-se: Das Obrigações em Geral, Volume I, 6ª edição, Almedina 1989, João de Matos Antunes Varela, páginas 591 a 595; Direito das Obrigações, 7ª edição, Almedina, Mário Júlio Almeida e Costa, páginas 527 a 529. No domínio do direito anterior ao do actual Código Civil, em sentido coincidente, vejam-se o artigo publicado na Revista dos Tribunais, Anos 81 e 82, intitulado Responsabilidade Civil e Criminal por Acidente de Viação, especialmente no Ano 82, página 410 e o Tratado de Direito Civil, Volume XII, Coimbra Editora 1937, Luiz da Cunha Gonçalves, página 478.
[3] Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 2009, relatado pelo Sr. Conselheiro João Camilo, no processo nº 292/1999-S1, com dois votos de vencido dos Srs. Conselheiros Salreta Pereira e Salazar Casanova. No mesmo sentido vejam-se os seguintes acórdãos: de 13 de Janeiro de 1970, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 193, páginas 349 a 352, com anotação discordante do Professor Vaz Serra publicada na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 104, páginas 14 a 16; de 04 de Outubro de 1991, da Relação do Porto, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XVI, Tomo II, páginas 254 a 256; de 26 de Outubro de 1993, da Relação de Coimbra, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVIII, Tomo IV, páginas 69 a 73; de 02 de Novembro de 1995, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Ano III, Tomo III, páginas 220 a 226; de 21 de Março de 2000, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VIII, Tomo I, páginas 138 a 143; de 30 de Abril de 2003, do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo nº 4489/02, acessível no site da DGSI; de 26 de Junho de 2003, da Relação de Lisboa, proferido no processo nº 4554/2033-6, acessível no site da DGSI; de 26 de Fevereiro de 2004, do Supremo Tribunal de Justiça, proferido na revista nº 4298/03, da 2ª secção e acessível no site da DGSI; de 20 de Outubro de 2004, da Relação do Porto, proferido no processo nº 0414382 e acessível no site da DGSI.
[4] Publicada na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 104, página 16.

[5] A esta posição do Professor Vaz Serra aderiu o Professor Jorge Leite Areias Ribeiro de Faria in Direito das Obrigações, Volume I, Almedina 1990, página 491, nota 2.
[6] Por ordem cronológica, vejam-se os seguintes acórdãos: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Novembro de 1998, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 481, páginas 471 a 480; acórdão da Relação do Porto de 26 de Junho de 2003, Ano XXVIII, Tomo III, páginas 200 a 202; acórdão da Relação de Coimbra de 25 de Maio de 2004, proferido no processo nº 3480/03, acessível no site da DGSI; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Maio de 2009, proferido no processo nº 3413/03.2TBVCT.S1, acessível no site da DGSI; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de Setembro de 2009, proferido no processo nº 2733/06.9TBBCL.S1, acessível no site da DGSI.

[7] Assim, vejam-se, Ressarcibilidade dos Danos não Patrimoniais de Terceiros em Caso de Lesão Corporal, António Santos Abrantes Geraldes, in Estudos em Homenagem ao Professor Inocêncio Galvão Telles, IV, Almedina, Coimbra 2003, páginas 263 a 289; Ressarcibilidade dos Danos Não Patrimoniais a Familiares de Lesados Profundos, Rosa Maria Fernandes, 2004, trabalho a que acedemos pela Internet, via Google; O Núcleo Intangível da Comunhão Conjugal, Os Deveres Conjugais Sexuais, Almedina 2004, Jorge Alberto Caras Altas Duarte Pinheiro, páginas 733 a 739; Temas da Responsabilidade Civil, II Volume, Indemnização dos Danos Reflexos, Almedina 2005, António Santos Abrantes Geraldes; Direito das Obrigações, Volume I, 7ª edição, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, página 406, nota 846.
[8] O nº 3, do artigo 496º do Código Civil, na sua primitiva redacção, a que corresponde actualmente o nº 4, do mesmo artigo, na redacção introduzida pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, completa o nº 2 já citado, esclarecendo que estão em causa não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, mas também os danos não patrimoniais sofridos pelas pessoas antes elencadas.
[9] Refira-se que em sede de trabalhos preparatórios do Código Civil, o Professor Vaz Serra, ainda que de forma não peremptória, já se mostrava favorável à compensação dos danos não patrimoniais sofridos por certos familiares do lesado. Na verdade, a este propósito, escreveu o referido Professor: “Reconhecido este direito a certos familiares, não deveria igualmente reconhecer-se, no caso de lesão de outra natureza, um direito de satisfação a favor de determinados familiares (v.g., ao pai no caso da mutilação do filho)? Ver Carbonnier, Lug. Cit. (referência na nota 49).
                Este autor escreve que «a presença de uma vítima imediata parece excluir as mediatas».
                Mas não será razoável que o pai tenha, naquele exemplo, um direito de satisfação? Este direito poderia prejudicar o do filho, pois o responsável pode não estar em situação económica que lhe permita pagar a ambos. Se, porém, não o prejudicar, talvez devesse admitir-se, visto que o pai pode ter danos morais consideráveis. Além do pai, os outros familiares, que, segundo o critério proposto para o caso da morte, teriam direito pessoal de satisfação, parece deverem tê-lo aqui também” (citação extraída da nota 54-a, na página 96, do Boletim do Ministério da Justiça nº 83). Em consonância com esta posição, o Professor Vaz Serra viria a propor o nº 5, do artigo 759º do Direito das Obrigações (Parte Resumida), com a seguinte redacção: “No caso de dano que atinja uma pessoa de modo diferente do previsto no § 2.º [isto é, fora do caso de morte da vítima], têm os familiares dela direito de satisfação pelo dano a eles pessoalmente causado. Aplica-se a estes familiares o disposto nos parágrafos anteriores; mas o aludido direito não pode prejudicar o da vítima imediata” (citação extraída do Boletim do Ministério da Justiça nº 101, página 138).
[10] Uma vez que o sinistro ocorreu a 03 de Novembro de 2006, não lhe é aplicável a Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro, nomeadamente o seu artigo 17º que, no essencial, corresponde ao artigo 31º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro.
[11] Sobre esta problemática veja-se, com interesse, La Prueba de los Hechos, Editorial Trotta, cuarta edición 2011, Michele Taruffo, páginas 336 a 341.

[12] A questão do ónus da prova de que os danos causados pela derrocada do imóvel resultaram de vício de construção ou defeito de conservação suscitada pela recorrente tem dado origem a desencontros doutrinais e jurisprudenciais.

Assim, aparentemente no sentido de que incumbe ao lesado o ónus de provar que a ruína do edifício resultou de vício da construção ou de defeito de conservação, pronuncia-se o Professor Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Almedina 1989, Volume I, 6ª edição, página 562.

Em sentido radicalmente diverso, pronuncia-se o Professor Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (Veja-se Direito das Obrigações, Almedina 2008, 7ª edição, Volume I, página 327), escrevendo a este propósito: “A posição de alguma doutrina, seguida unanimemente pela jurisprudência é a de que a aplicação desta presunção de culpa depende da prova de que existia um vício de construção ou um defeito de conservação no edifício ou obra que ruiu, prova essa que, de acordo com as regras gerais, deveria ser realizada pelo lesado.

Discordamos, no entanto, salvo o devido respeito, dessa orientação, uma vez que fazer recair esta prova sobre o lesado equivale a retirar grande parte do alcance à presunção de culpa. Salvo no caso de fenómenos extraordinários, como os terramotos, a ruína de um edifício ou obra é um facto que indicia só por si o incumprimento dos deveres relativos à construção ou conservação dos edifícios, não se justificando por isso que recaia sobre o lesado o ónus suplementar de demonstrar a forma como ocorreu esse incumprimento. É antes o responsável pela construção ou conservação que deve genericamente demonstrar que não foi por sua culpa que ocorreu a ruína do edifício ou obra – nomeadamente pela prova de ausência de vícios de construção ou defeitos de conservação – ou que os danos continuariam a verificar-se, ainda que não houvesse culpa sua.
Já o Professor António Menezes Cordeiro se coloca aparentemente do lado da posição mais clássica e referida em primeiro lugar, embora refira a necessidade do recurso a presunções judiciais para alijar o ónus da prova a cargo dos lesados de que a ruína do imóvel causadora dos danos se deve a vício de concepção ou a defeito de manutenção (veja-se, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina 2010, página 582, VI).