Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1783/09.8T2AVR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 04/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.235, 238, 239 CIRE
Sumário: 1. O art.º 239°, n.º 3, b) - i), do CIRE, deve interpretar-se no sentido de que a exclusão aí prevista tem como limite mínimo o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar e como limite máximo o valor equivalente ao triplo do salário mínimo nacional (que poderá ser excedido em casos excepcionais).

2. No apuramento do montante tido por razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, o juiz ponderará as circunstâncias do caso decidendo no contexto dos interesses socialmente afirmados e socialmente conflituantes, em face do ordenamento jurídico vigente e da realidade social e económica.

3. Tendo o legislador erigido o salário mínimo nacional como o mínimo para salvaguardar uma vivência condigna, o rendimento disponível do devedor/insolvente poderá compreender todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título com exclusão do montante correspondente a um salário mínimo nacional para cada ano fixado.

4. O montante atribuído poderá ser alterado, a pedido do devedor, caso venham a ocorrer despesas relevantes e autonomamente atendíveis cujo valor seja razoável excluir da cessão.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            I. Nos autos de insolvência pendentes no Tribunal Judicial da Comarca do Baixo Vouga/Juízo de Comércio de Aveiro, referentes a J (…) veio a mesma requerer a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos art.ºs 235º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa/CIRE[1] (aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3).

Apreciando da respectiva admissibilidade nos termos do art.º 238º do mesmo diploma, o tribunal recorrido admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e considerando “o critério a que alude o art.º 239º, n.º 3 do CIRE, que exclui do rendimento disponível a afectar à satisfação dos créditos do insolvente o montante que constitua o sustento minimamente digno do devedor, entendendo o legislador ordinário como o mínimo para salvaguardar uma vivência condigna o salário mínimo nacional”, determinou “que o rendimento disponível da devedora/insolvente, objecto da cessão ora determinada, seja integrado por todos os rendimentos que à insolvente advenham a qualquer título, desde que em quantia superior ao salário mínimo nacional”.

Inconformada com esta decisão e visando a sua revogação (e substituição por outra que determine que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer titulo à recorrente, com exclusão do valor dos rendimentos directamente auferidos pela insolvente até ao montante de três vezes o salário mínimo nacional que em cada momento vigorar), a insolvente interpôs o presente recurso de apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:     

1ª - Atento o disposto no n.º 3, do art.º 239º, do CIRE, a intenção do legislador foi a de fixar um limite mínimo relativo ao rendimento que entende ser o razoável para o sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, determinando que esse “mínimo” corresponde a três vezes o salário mínimo nacional.

2ª - A lei apenas impõe ao juiz a necessidade de fundamentar a sua decisão quando o valor que considere minimamente digno para o sustento do devedor e do seu agregado familiar exceder aquele montante “mínimo”.

3ª - Está em causa não só o sustento do próprio devedor, como igualmente o sustento do seu agregado familiar.

4ª - Atendendo ao valor mensal do rendimento indisponível fixado à recorrente muito dificilmente conseguirá viver condignamente, tendo em conta que contribui para as despesas mensais que a sua mãe tem (com a qual reside) e vê-se obrigada a arcar com a despesa diária de €13 (treze euros) apenas em alimentação, já que é forçada a fazer refeições fora de casa - por trabalhar num estabelecimento comercial, dentro de um Centro Comercial, o que não raras vezes obriga a que o seu horário de trabalho seja rotativo -, despendendo, assim, a quantia aproximada de € 300, apenas nessas refeições[2].

5ª - O critério adoptado pelo legislador foi o do “sustento minimamente digno”, não se podendo considerar que alguém que aufere mensalmente valor equivalente ao fixado à recorrente vive dignamente - sustento minimamente digno não se pode confundir com mínimo de sobrevivência.

6ª - A corroborar a posição assumida pelo recorrente temos o disposto no art.º 824º, n.º 2, do C.P.C., na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 226/2008, de 20.11, que estabelece que “a impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão...”.

7ª - O legislador equiparou a legislação processual civil à legislação que regula a insolvência, pois caso assim não fosse teríamos situações diversas dentro do mesmo ordenamento, o que poderia levar a situações de manifesta injustiça.

8ª - A apresentação de pessoas singulares à insolvência constitui um incentivo aos próprios insolventes singulares, tendo em conta a possibilidade de se exonerarem do passivo que, eventualmente, permanecer por liquidar, evitando-se, ainda, a interposição de dezenas de milhares de execuções.

9ª - A Mm.ª Juíza a quo fez uma errada interpretação e aplicação do preceito contido na subalínea i), da alínea b), do n.º 3, do art.º 239º, do CIRE.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Com a concordância dos Exmos. Ajuntos, dispensaram-se os vistos.

            Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, com a redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8), coloca-se, sobretudo, a questão de saber se o Tribunal recorrido fixou montante adequado a título de rendimento disponível da devedora/insolvente e se o fez respeitando o respectivo quadro normativo.


*

            II. 1. Para além do que decorre do precedente “relatório”, releva ainda a seguinte factualidade:

            a) A recorrente apresentou-se à insolvência em 30.10.2009.

b) Alegou e/ou decorre dos documentos juntos aos autos, designadamente:

            - Iniciou a actividade de comércio a retalho de vestuário para adultos em Junho de 2003, através de loja aberta ao público, tendo cessado tal actividade em 31.12.2003;

            - De forma a instalar e iniciar a sua actividade, recorreu a diversos créditos pessoais junto de variadas entidades financeiras, gerando uma situação de endividamento a título pessoal;

            - A loja que manteve aberta ao público não prosperou;

            - Os cartões de crédito que usava foram utilizados para liquidar algumas das despesas provenientes da loja e para fazer face a diversas despesas do dia-a-dia da requerente;

            - Viu-se forçada a “contrair crédito” junto de instituições bancárias e financeiras para tentar resolver alguns incumprimentos, entrando numa “espiral de crédito” que não mais conseguiu resolver;

            - Durante todo o lapso de tempo que decorreu desde o encerramento da loja conseguiu, com bastantes dificuldades, liquidar a maioria das suas obrigações mas em Agosto de 2009 começou a incumprir de forma generalizada os compromissos assumidos junto dos seus credores, em razão do valor das prestações mensais que ficou obrigada a liquidar e que ascendia a € 1 807,97, superior ao rendimento mensal auferido;

            - Ascendendo a totalidade dos seus “débitos” ao montante de € 21 824,90;

            - Como trabalhadora por conta de outrem (“1ª caixeira”) aufere o rendimento mensal ilíquido de € 530[3];

            - Todos os seus credores são entidades bancárias e financeiras[4];

            - Nasceu a 02.4.1977;

            - Antes da propositura da acção de insolvência não foi citada de qualquer acção ou execução contra si interposta;

            - Predispõe-se a ceder o seu rendimento disponível no montante que se entender adequado;

            - Apenas possui um sofá no valor estimado de € 300;

            - É solteira e reside com a mãe em casa arrendada por esta[5];

            - Requereu em 23.9.2009, e foi-lhe concedido, o benefício do apoio judiciário para propor a acção de insolvência na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, tendo indicado no requerimento de protecção jurídica que “já possuía mandatário no processo”[6].

            c) A insolvência foi decretada por sentença de 05.11.2009.

            d) No respectivo “parecer”, o Sr. Administrador da Insolvência concluiu que “o processo poderá ser encerrado após a verificação e graduação dos créditos sobre a insolvente, a que se seguirá o mandato do fiduciário que exercerá todas as funções previstas no art.º 241º do CIRE”.

            e) A “lista provisória de credores” inclui cinco entidades bancárias e/ou financeiras, cujos créditos ascendiam ao montante global de € 20 133,98.

            f) No recibo de vencimento da insolvente correspondente a Novembro de 2009 consta que a mesma auferiu o vencimento base de € 530, subsídio de alimentação no montante de € 89,76 e remuneração por trabalho suplementar no montante global de € 74,91, tendo-lhe sido entregue uma importância líquida de € 616,03 (deduzida a taxa da Segurança Social/11 % e o IRS/2 %).

2. Tendo em consideração o descrito factualismo, o regime jurídico aplicável e a posição unânime que, a respeito desta matéria, vemos defendida na Jurisprudência, pensamos, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que a situação dos autos não reclama solução diversa da encontrada na decisão recorrida.

O regime da exoneração do passivo restante, instituído nos art.ºs 235º e seguintes, específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto novo, ‘tributário da ideia de fresh start’, sendo o seu objectivo final a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica[7].

Com a publicação do CIRE, o legislador explicitou qual o propósito de consagração do instituto de exoneração do passivo, referindo: O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».

O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos — designado período da cessão — ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.

A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.[8]

Assim, não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante[9], o juiz proferirá despacho inicial (art.º 239º, nºs 1 e 2) determinando que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (o período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para os fins do art.º 241º, entre os quais, a remuneração e despesas do fiduciário e a distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.

3. Preceitua-se no art.º 239º: Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial (…) (n.º 1). O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário (…) nos termos e para os efeitos do artigo seguinte (n.º 2). Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: (…) b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (n.º 3).

Tal como em outras situações (similares) já submetidos a reapreciação da 2ª instância, na dilucidação do caso vertente releva, principalmente, a interpretação a dar à citada subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do art.º 239º.

A recorrente, citando uma anotação a tal preceito legal, de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[10], propugna que não pode deixar de entender-se que a intenção do legislador foi a de fixar um limite mínimo relativo ao rendimento tido por razoável para o sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, determinando que esse mínimo corresponde a três vezes o salário mínimo nacional.

Pese embora a excelência dos referidos Autores, não cremos que deva ser acolhido a aludida interpretação, antes uma perspectiva que compreenda a lei como “uma solução valoradora de um conflito de interesses” e o direito na sua dimensão/função normativa de tutela e realização de interesses sociais; ou seja, também aqui se deverá partir de uma interpretação teleológica visando uma juridicamente correcta ponderação de interesses socialmente afirmados e socialmente conflituantes[11], no contexto do ordenamento jurídico vigente e da realidade social e económica do País.

Ademais, “o objecto problemático da interpretação jurídica não é a norma como objectivização cultural (…), mas o caso decidendo, o concreto problema prático que convoca normativo-interpretativamente a norma com seu critério judicativo (…), o que significa, evidentemente, que é o caso e não a norma o prius problemático-intencional e metódico”.[12]

Como se afirma em decisões já publicadas, o sentido da norma é o de que o valor correspondente ao "sustento minimamente digno" em determinado caso concreto será fixado, em regra, até 3 vezes o salário mínimo nacional.

Se a intenção do legislador fosse a de estabelecer o referido montante fixo (critério objectivo), tê-lo-ia dito de uma forma simples e directa, sendo que a expressão “do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno” (conceito aberto/indeterminado) aponta para a necessidade de efectuar uma ponderação das circunstâncias do caso e dos interesses em presença tendo em vista o montante a fixar.

Assim, há que concluir que na exclusão prevista na subalínea i) da al. b) do n.º 3 do art.º 239º o legislador estabeleceu, primeiro, um limite mínimo por referência a um critério geral e abstracto (o razoavelmente necessário ao sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar), a preencher pelo aplicador em cada caso concreto, conforme as circunstâncias peculiares do devedor; depois, estabeleceu um limite máximo por referência a um critério quantificável objectivamente (o equivalente a três salários mínimos nacionais), sendo certo que este limite máximo pode ser excedido em casos justificados, mas excepcionais.

Ademais, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, não nos parece, que possamos afirmar que o legislador, quando, anualmente, fixa o montante do salário mínimo nacional, considera e avalia o montante que fixa como 1/3 do montante necessário a um sustento minimamente digno (ilação necessária se fosse de perfilhar a perspectiva da recorrente e daqueles Ilustres Autores).

E, como é óbvio, “sustento minimamente digno” não se confunde com mínimo de sobrevivência, sendo que existe igualmente no ordenamento jurídico, num patamar inferior ao do salário mínimo, como critério orientador ou apontando para um tal limite mínimo de sobrevivência, o rendimento social de inserção[13].

4. A recorrente sustenta depois a sua perspectiva com o disposto no art.º 824º, n.º 2, do CPC, na redacção conferida pelo DL n.º 38/2003, de 08.3 (e diplomas ulteriores).

Porém, lido o referido artigo na sua integralidade, e considerado o aludido n.º 2 - que estabelece “a impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional[14] - dúvidas não restam de que aí se prevêem os limites à impenhorabilidade prevista no n.º 1 do mesmo art.º: quando os 2/3 excedam o valor de três salários mínimos nacionais, a impenhorabilidade limita-se a este valor, sendo penhorável, juntamente com o terço restante, a parte dos 2/3 que o exceda; quando os 2/3 sejam inferiores ao valor de um salário mínimo nacional, a parte impenhorável do rendimento eleva-se, coincidindo com o valor deste, desde que o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos.[15]

Decorre do exposto que não existe o risco de quaisquer incongruências ou discrepâncias no resultado da aplicação das duas mencionadas normas, “confrontadas” na alegação de recurso, antes a correcta leitura e interpretação do citado art.º da lei civil adjectiva torna claro que é correcta e razoável a interpretação aqui defendida da questionada norma do CIRE, sendo que ambas visam conferir justo e adequado equilíbrio entre os conflituantes interesses do credor e do devedor e têm o mesmo fundamento axiológico (garantir o sustento minimamente digno das pessoas e a defesa da dignidade humana).[16]

Acresce que o acolhimento da interpretação defendida pela recorrente brigaria com a ideia de unidade do sistema jurídico e os valores axiológicos que estão na base do estabelecimento da remuneração mínima mensal garantida, podendo constituir uma solução de favor injustificado do devedor insolvente que requer a exoneração do passivo restante relativamente aos demais insolventes que o não façam, os quais, como decorre do art.º 46º, n.ºs 1 e 2, só vêem excluídos da massa insolvente os bens isentos de penhora, e logo, os rendimentos do trabalho ou outras regalias, nos termos e limites definidos no art.º 824º do CPC.[17]

Deve, pois, interpretar-se o art.º 239º, n.º 3, b) - i) no sentido de que a exclusão aí prevista tem como limite mínimo o que seja razoavelmente necessário para garantir e salvaguardar o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar e como limite máximo o valor equivalente ao triplo do salário mínimo nacional (valor máximo que poderá ser excedido em casos excepcionais, devidamente fundamentados).

Reafirma-se, assim, que a exclusão prevista no art.º 239º, n.º 3, b) - i) do CIRE, também pode atingir montante equivalente a 3 vezes o salário mínimo nacional, limite máximo (só podendo ser excedido por decisão fundamentada), competindo ao juiz fixar, com razoabilidade, em princípio até esse limite, o montante que lhe pareça necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do respectivo agregado familiar.

Não vemos, por isso, motivo para a pretendida equiparação entre o sustento minimamente digno e o correspondente a três salários mínimos nacionais.[18]

5. O estabelecimento de um salário mínimo, bem como a sua actualização, é a expressão de que a retribuição do trabalho deve garantir uma existência condigna, um mínimo de existência socialmente adequado, ou seja, deve assegurar não apenas o mínimo vital mas também condições de vida, individuais e familiares, compatíveis com o nível de vida exigível em cada etapa do desenvolvimento económico e social (cf. art.º 59º, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a), da Constituição da República Portuguesa).[19]

O salário mínimo deverá assegurar o mínimo necessário a uma sobrevivência humanamente digna.[20]

6. No caso em análise, determinou-se que o rendimento disponível da devedora/insolvente, objecto da cessão (…), seja integrado por todos os rendimentos que à insolvente advenham a qualquer título, desde que em quantia superior ao salário mínimo nacional - o “sustento minimamente digno” da devedora ficou assim traduzido no montante do salário mínimo nacional que a cada momento vigorar.

Diz a recorrente que, atendendo ao valor mensal do rendimento indisponível que lhe foi fixado, muito dificilmente conseguirá viver condignamente, porque contribui para as despesas mensais que a sua mãe tem (com quem reside) e vê-se obrigada a uma despesa diária de treze euros apenas em alimentação, despendendo a quantia mensal aproximada de € 300, não sendo de considerar que alguém que aufere mensalmente valor equivalente ao fixado à recorrente possa viver dignamente.

Retomando o aduzido em II. 2., supra, a exoneração do passivo restante corresponde à concessão de benefício aos insolventes, pessoas singulares, traduzido num perdão de dívidas, exonerando-os dos seus débitos com a perda, para os credores, dos seus correspectivos créditos, pelo que o interesse destes credores interligar-se-á com o benefício que o devedor vai obter, salvaguardado um valor equilibrado para o devedor ter um sustento minimamente digno.

Como se referiu, a recorrente não comprovou as despesas que diz suportar[21], é solteira, vive com a mãe [e nada explicitou acerca das respectivas condições económico-financeiras, constando dos autos, apenas, que reside em casa arrendada, facto que, por si só, pouco adianta…; ademais, bem sabemos que, nas circunstâncias da vida actual, os jovens adultos, como é o caso da recorrente, são normalmente “ajudados” pelos seus progenitores, e não o contrário, e nada nos diz que o caso em apreço constitua excepção a essa “regra”...] e auferia, na data em que se apresentou à insolvência, o rendimento (declarado) atrás indicado [cf. II. 1. alíneas b), e) e f), supra].

Perante este quadro e na ponderação dos interesses em presença, e apelando ao referido critério do razoável, fixado na lei, o caso vertente será daqueles em que o salário mínimo nacional é suficiente para fazer face às despesas de uma forma digna, para que o devedor/insolvente tenha um sustento minimamente digno[22], sem olvidar que não findou a responsabilidade da recorrente para, na medida das suas possibilidades e no limitado período de cinco anos, continuar a pagar os débitos reconhecidos na insolvência, pois se as dívidas são perdoadas ao devedor isso constitui um sacrifício imposto pelo Estado aos credores, o que implica que a medida seja acompanhada da assumpção de um comportamento similar por parte do devedor, retribuindo este com outro sacrifício, proporcional às suas capacidades económicas; exigindo-se sacrifícios ao devedor, como contrapartida à medida da «exoneração do passivo restante», os sacrifícios têm de ser efectivos e os rendimentos indisponibilizáveis para o sustento tenderão a aproximar-se ou a coincidir com o salário mínimo nacional; só há justificação para se aceder a este benefício se houver uma contrapartida meritória, sendo esta constituída pela assumpção de uma vida pautada pela privação e poupança possíveis a favor dos credores durante cinco anos.[23]

O sacrifício financeiro dos credores legitima, assim, proporcional sacrifício do insolvente, tendo como limite a respectiva vivência minimamente condigna.

Concluindo, tendo o legislador erigido o salário mínimo nacional como o mínimo para salvaguardar uma vivência condigna e dadas as particularidades do caso em análise, afigura-se razoável que o rendimento disponível da devedora/insolvente compreenda todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título com exclusão do montante correspondente a um salário mínimo nacional para cada ano fixado [art.º 239°, n.° 3, alínea b)], montante que poderá ser alterado, a pedido do devedor, ponderadas que sejam eventuais despesas relevantes e autonomamente atendíveis.[24]

Assim, considerando os elementos disponíveis, entende-se como justa e equilibrada a decisão impugnada, porquanto o Tribunal a quo aplicou correctamente a “cláusula do razoável” pressuposta no art.º 239º, n.º 3, alínea b), subalínea i), soçobrando desta forma as “conclusões” da alegação de recurso.


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  III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

  Custas pela devedora/insolvente (cf. art.º 248º, do CIRE).


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Fonte Ramos ( Relator )
Carlos Querido
Pedro Martins


[1] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.
[2] Não foram juntos aos autos quaisquer documentos a corroborar o aduzido pela recorrente.

[3] Actividade profissional desenvolvida, nos últimos três anos, para a mesma entidade patronal (cf. o documento de fls. 27).
[4] Cf. o documento de fls. 26 (“relação de credores”).
[5] Cf. o documento de fls. 41.
  Teria interesse saber a idade de seus pais mas esses elementos deixaram de constar, pelo menos, das certidões de assentos de nascimento… (cf. documento de fls. 9).
[6] Na procuração forense reproduzida a fls. 38 consta a data de 22.9.2009.
[7] Vide Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, págs. 102 e seguinte.
[8] Cf. o ponto 45 do preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18.3.
[9] Que integra os créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento (art.º 235º).

[10] Afirmam os referidos Autores, designadamente, que na dita subalínea o legislador adoptou um critério objectivo na determinação do que deve entender-se por ´sustento minimamente digno´: 3 vezes o salário mínimo nacional.

    Consideram, ainda, que o valor assim calculado só pode ser excedido mediante decisão do juiz, devidamente fundamentada - Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris-Sociedade Editora, 2009, pág. 788.
[11] Vide A. Castanheira Neves, Introdução ao Estudo do Direito - Interpretação Jurídica, Coimbra, 1985/1986, págs. 51 e seguinte.
[12] Cf., do mesmo Autor, O Actual Problema da Interpretação Jurídica, in RLJ, ano 118, págs. 257 e seguinte.
[13] Criado pela Lei n.º 13/2003, de 21.5, e que consiste numa prestação que visa conferir apoios para a satisfação das necessidades básicas/essenciais da vida.
   Cf. a propósito de toda a referida problemática, de entre vários, os acórdãos da RP de 15.7.2009-processo 268/09.7TBOAZ-D.P1 e da RC de 20.4.2010-processo 1426/08.7TBILH-F.C1 e 25.5.2010-processo 469/09.8T2AVR-C.C1, publicados no “site” da dgsi.
   Vide, ainda, Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, in Themis, 2005, págs. 174 e seguintes.

[14] Conformando-se desta forma as normas do processo executivo (civil) com a doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/02, de 23.4.2002 (publicado no DR, 1ª Série-A, de 02.7.2002) que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, “da norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil [na sua redacção anterior], na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 59º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição”.

[15] Vide J. Lebre de Freitas, e outro, CPC Anotado, Volume 3º, Coimbra Editora, 2003, págs. 358; Carlos Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. II, 2ª edição, 2004, págs. 49 e seguintes e Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 11ª edição, pág. 214.
[16] Cf., de entre vários, os acórdãos da RL de 20.4.2010-processo 1621/09.1T2SNT.L1-1 e da RP de 25.5.2010-processo 1627/09.0TJPRT-D.P1, publicados no “site” da dgsi.
[17] Cf. o cit. acórdão da RP de 25.5.2010-processo 1627/09.0TJPRT-D.P1.
[18] Cf., neste sentido, entre outros, os acórdãos da RP de 15.7.2009-processo 268/09.7TBOAZ-D.P1, 27.10.2009-processo 304/09.7TBPVZ-B.P1, 02.02.2010-processo 1180/09.5TJPRT.P1 e 25.5.2010-processo 1627/09.0TJPRT-D.P1, da RC de 20.4.2010-processo 1426/08.7TBILH-F.C1 e de 25.5.2010-processo 469/09.8T2AVR-C.C1 e da RL de 17.11.2009-processo 1974/08.9TBCLD-A.L1-7, 20.4.2010-processo 1621/09.1T2SNT.L1-1 e 04.5.2010-processo 4989/09.6TBSXL-B.L1-1, publicados no “site” da dgsi.
[19] Vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, págs. 772 e 775.
[20] Cf. o acórdão da RP de 11.12.1997, in CJ, XXII, 5, 219.
[21] Cf. “nota 2”, supra.
[22] Cf., a propósito de uma situação com alguma similitude, o cit. acórdão da RC de 20.4.2010-processo 1426/08.7TBILH-F.C1.
[23] Cf., neste sentido, o acórdão desta Relação de 28.9.2010-processo 1826/09.5T2AVR-C.C1, publicado no “site” da dgsi.

[24] Será assim possível, nos termos do art.º 239º, n.º 3, al. b), subalínea iii), a requerimento da devedora, ressalvar determinadas e concretas despesas que entretanto venham a surgir e cujo valor seja razoável excluir da cessão.