Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1655/10.3TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: SENTENÇA
DECISÃO DE MÉRITO. DESNECESSIDADE
PRODUÇÃO DE PROVA
Data do Acordão: 09/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 595º, N.º 1, B), E 607º DO NOVO C. P. CIVIL.
Sumário: I - Nas decisões que conheçam do mérito da causa, proferidas em sede de despacho saneador, uma vez que ainda não houve lugar a um juízo sobre a demonstração da veracidade dos factos alegados que se encontram controvertidos, por não ter havido oportunidade de produzir prova sobre eles, não é possível indicar-se os factos que não se provaram.

II - A possibilidade de proferir uma decisão de mérito nessa fase baseia-se na circunstância da matéria de facto relevante para a decisão da causa já se encontrar definida ao findar a fase de apresentação de articulados, pelo que, nesses casos, para que a fundamentação de facto esteja completa, é suficiente indicar-se os factos que integram essa matéria.

III - Na altura do despacho saneador os factos que podem ser considerados na decisão de mérito, além dos factos notórios e daqueles que o juiz tem conhecimento em virtude das suas funções, são aqueles que resultam de confissão judicial, de acordo expresso ou tácito das partes nos articulados, do funcionamento de presunção legal inilidível, ou de documento com força probatória bastante.

IV – A demonstração desses factos não resulta do exercício da livre apreciação da prova pelo jul­gador, mas sim do funcionamento de disposições legais que constituem um justifi­cado resíduo do sistema da prova legal, pelo que nesta fase não tem lugar uma análise crítica das provas produzidas, nem a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, uma vez que a prova não resulta da formação de uma convicção, mas da aplicação de disposições legais, podendo apenas ser útil para a verificação da correcção da sua aplicação ao caso a indicação donde resultou a prova da matéria de facto que fundamentou a decisão de mérito.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A Autora intentou a presente acção declarativa sob a forma ordinária, pedindo a condenação do Réu a devolver-lhe a quantia de € 30.000,00, acrescida de juros de mora vencidos desde 29.02.2008 e vincendos até integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese:
- Autora e Réu celebraram um contrato de sociedade, em que acordaram associar-se para desenvolver um projecto imobiliário sobre uma parcela de um prédio.
- De acordo com tal contrato, por razões financeiras e de gestão dos pro­cessos inerentes aos projectos, a Autora adiantou ao Réu a quantia de € 30.000,00, que lhe seria restituída no prazo máximo de um mês após a aprovação pela Direcção Regional de Economia da superfície comercial a licenciar na parcela contígua ao tal prédio.
- A sociedade dissolveu-se por impossibilidade de realização do seu objecto social, concretamente por não se ter verificado o licenciamento previsto na cláusula 8.ª, o que deverá dar lugar à devolução e reembolso da entrada em dinheiro realizada pela Autora, a que acrescerão os juros devidos pelo Réu, por apropriação indevida de tal quantia; ou, se tal não se entender,
- Há enriquecimento sem causa por parte do réu, por não se ter verificado o licenciamento que está na origem da entrega da quantia de € 30.000,00.
O Réu contestou, invocando a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial e impugnou os factos invocados pelo Autor, alegando, em síntese, o seguinte:
 - O objecto ou fim a que se destinava a constituição da referida sociedade era a realização de um projecto de natureza imobiliária na mencionada parcela e não qualquer licenciamento de uma superfície comercial.
- Do contrato não se retira que o Réu se tenha obrigado a obter o licencia­mento da restante parcela do terreno.
- A sociedade não se dissolveu, nem sequer foram alegados factos que permitam concluir pela impossibilidade de realização do verdadeiro objecto da sociedade constituída entre as partes.
- Encontra-se ainda em curso o prazo estabelecido para devolução da quantia entregue ao Réu, porquanto ainda não foi aprovado pela DRE a superfície comercial a licenciar, pelo que não assiste à Autora qualquer direito de vir peticionar a devolução do valor de 30.000€.
- A quantia em causa não se destinou ao Réu, mas sim à sociedade E…, Lda., com vista à realização de todas as diligências necessárias à aprovação dos projectos a construir no terreno a adquirir pelo Réu, não tendo este integrado os € 30.000,00 no seu patrimó­nio e, em consequência, enriquecido à custa da Autora, pelo que não se verifica qualquer enriquecimento sem causa.
Na réplica, a Autora respondeu à matéria da excepção de ineptidão da petição inicial, pugnando pela sua improcedência.
No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção da ineptidão da p. inicial e proferida decisão sobre o mérito da causa que a julgou nos seguintes termos:
Por tudo o exposto, julgo a acção procedente, embora com outros funda­mentos, e, em consequência, decido:
a) declarar a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre a Autora T…, SA e o Réu A…, descrito nos pontos 3 e 4 dos factos provados;
b) condenar o Réu a pagar à Autora a quantia de 30.000€ (trinta mil euros), acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
O Réu inconformado com a decisão interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

A Autora apresentou resposta, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações do Recorrente, cumpre abordar as seguintes questões:
a) A decisão recorrida é nula porque condenou em objecto diverso do pedido?
b) A decisão recorrida é nula porque não indicou os factos não provados?
c) A decisão recorrida é nula porque não indicou os fundamentos pelos quais considerou provados os factos nela indicados?
d) A decisão recorrida é nula porque não se pronunciou sobre factos ale­gados pelo Réu na contestação?
e) O tribunal não podia ter considerado provados os factos constantes dos n.º 4 a 7 na decisão recorrida?
e) O tribunal não podia conhecer do mérito da causa nesta fase porque existiam factos alegados nos articulados que se encontravam controvertidos e cujo apuramento era relevante para a decisão da causa?
2. Da nulidade da decisão
O recorrente imputa à decisão recorrida o vício da nulidade, alegando que:
- condenou em objecto diverso do pedido e da causa de pedir invocados;
- não indicou os factos não provados;
- não fundamentou porque considerava provados determinados factos;
- não se pronunciou sobre factos alegados pelo Réu.
2.1. Da condenação em objecto diverso
O Recorrente defende que a sentença ao condená-lo a devolver à Autora a quantia de € 30.000,00 como consequência da nulidade de contrato de mútuo proferiu condenação em objecto diverso do pedido e da causa de pedir invocados, pois a Autora não fundamentou o seu pedido em qualquer contrato de mútuo.
Dispõe o art.º 615º, n.º 1, e), do Novo C. P. Civil:
É nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou objecto diverso do pedido.
Esta nulidade está prevista para os casos de violação do princípio dispo­si­tivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância, isto é para quando a sentença, não observando os limites impostos pelo n.º 1, do art.º 609º, do Novo C. P. Civil, condene em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso do mesmo.
Ao propor a acção, o demandante formula o pedido, determinado, formal­mente, pela providência requerida e, materialmente, pela afirmação duma situação jurídica, dum efeito querido ou dum facto jurídico e fundado numa causa de pedir, confor­mando desse modo o objecto do processo.
O juiz está na decisão limitado pelo objecto do processo, nos termos defi­nidos pelas partes, nomeadamente pelos pedidos formulados.
Assim, o objecto da sentença terá de coincidir com o objecto do processo, não podendo o juiz ficar aquém, nem ir além do que foi pedido ou pronun­ciar-se sobre coisa diversa daquela que lhe foi requerida.
O pedido formulado e a causa de pedir a ele inerente conformam o objecto da acção e condicionam-no.
Sendo a causa de pedir integrada pelos factos donde deriva a pretensão formulada pelo Autor, a sentença tem que se conter não só nos limites quantitativos e qualitativos do pedido, mas também nos limites do objecto da causa aferidos não só pelo pedido, mas também pela causa de pedir, limites esses que o juiz tem que respeitar, embora tenha uma ampla liberdade na indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art.º 5º do Novo C. P. Civil.
Da análise da petição inicial resulta claro que o pedido principal formulado pela Autora é de condenação do Réu a devolver-lhe € 30.000,00, com fundamento na obrigação deste restituir a quantia que a Autora lhe havia adiantado, face à dissolução da sociedade celebrada entre ambos ou, subsidiariamente, o de condenação do Réu a devolver-lhe aquela quantia por enriquecimento sem causa.
Na decisão recorrida entendeu-se que os factos provados integravam a celebração de um contrato de mútuo entre Autora e Réu, contrato esse que, não tendo sido reduzido a escrito, é nulo por falta de forma, concluindo pela condenação do Réu a devolver à Autora a quantia recebida.
Assim, perante o conhecimento oficioso da nulidade do contrato cele­brado, permitido pelo art.º 286º do C. Civil, deixou de relevar a invocação da dissolução da sociedade, a qual apenas fundamentava o vencimento da obrigação de restituir a quantia mutuada e cuja restituição era peticionada.
Assim, se é certo que a condenação proferida se alicerçou em fundamento jurídico diverso daquele que constitui a causa de pedir invocada, não é menos certo que a mesma radica numa interpretação jurídica distinta da realidade fáctica invo­cada, actividade essa que não está vedada ao tribunal, antes permitida conforme resulta do art.º 5º, n.º 3, do Novo C. P. Civil.
Quanto à condenação em objecto diverso a mesma não se verifica, pois o pedido formulado era o de devolução à Autora da quantia em causa, pedido este que coincide com a condenação proferida.
Assim, não se verifica esta causa de nulidade.
2.2. Da falta indicação dos factos não provados
A decisão recorrida conheceu do mérito da causa em fase de saneamento do processo.
Na verdade, há causas que reúnem condições para a decisão final do pro­cesso poder ser proferida, sem necessidade de produção de mais provas, logo no despacho saneador. Assim acontece nas acções em que a matéria de facto relevante já se encontra definida ao findar a fase de apresentação de articulados, faltando apenas proceder ao enquadramento jurídico respectivo.
Essa possibilidade de conhecimento do mérito da causa nesta fase encon­tra-se actualmente prevista no art.º 595º, n.º 1, b), do Novo C. P. Civil, dispondo o n.º 3, do mesmo artigo que uma decisão proferida nessas condições tem o valor de sentença.
O art.º 607º, n.º 4, do Novo C. P. Civil, que dispõe sobre a elaboração das sentenças, exige que estas devem declarar os factos que se julgam provados e os que se julgam não provados, sendo causa de nulidade a não especificação da fundamenta­ção de facto – art.º 615º, n.º 1, b), do C. P. Civil.
Contudo, nas decisões que conheçam do mérito da causa, proferidas em sede de despacho saneador, uma vez que ainda não houve lugar a um juízo sobre a demonstração da veracidade dos factos alegados que se encontram controvertidos, por não ter havido oportunidade de produzir prova sobre eles, não é possível indicar nessa decisão os factos que não se provaram.
A possibilidade de proferir uma decisão de mérito nessa fase baseia-se na circunstância da matéria de facto relevante para a decisão da causa já se encontrar definida ao findar a fase de apresentação de articulados, pelo que, nesses casos, para que a fundamentação de facto esteja completa, é suficiente indicar-se os factos que integram essa matéria.
Foi o que fez a decisão recorrida, pelo que também não se verifica esta causa de nulidade.
2.3. Da falta de fundamentação da indicação dos factos considerados provados
A Recorrente defende que a decisão recorrida não procedeu a uma análise crítica das provas, não indicando as razões pelas quais considerou provados os factos nela indicados como relevantes para a decisão da causa.
Relativamente às sentenças, o n.º 4 do artigo 607º do Novo C. P. Civil determina efectivamente que na fundamentação da sentença o juiz além de indicar quais são os factos provados e os não provados, deve analisar criticamente as provas produzidas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, podendo o tribunal de recurso determinar que, não estando devidamente fundamen­tada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal da 1.ª instância a fundamente – art.º 662º, n.º 2, d), do Novo C. P. Civil.
Assim, a não fundamentação da fixação da matéria de facto, não é causa de nulidade da sentença, mas sim motivo para o tribunal de recurso determinar ao tri­bunal recorrido que proceda à fundamentação em falta.
Na altura do despacho saneador os factos que podem ser considerados na decisão de mérito, além dos factos notórios e daqueles que o juiz tem conhecimento em virtude das suas funções – art.º 412º do Novo C. P. Civil –, são aqueles que resultam de confissão judicial – art.º 356º, n.º 1, Novo C. P. Civil –, de acordo expresso ou tácito das partes nos articulados – art.º 574º, n.º 2, do Novo C. P. Civil –, do funcionamento de presunção legal inilidível – art.º 350º, n.º 2, do C. Civil –, ou de documento com força probatória bastante – art.º 371º, 376º e 377.º, do C. Civil.
Esta prova não resulta do exercício da livre apreciação da prova pelo jul­gador, mas sim do funcionamento de disposições legais que constituem um justifi­cado resíduo do sistema da prova legal, pelo que aqui não tem lugar uma análise crítica das provas produzidas, nem a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, uma vez que a prova não resulta da formação de uma convicção, mas da aplicação de imposição legal, podendo apenas ser útil para a verificação da correcção da aplicação ao caso das referidas disposições legais a indicação donde resultou a prova da matéria de facto que fundamentou a decisão de mérito.
Por estas razões não se verifica a apontada causa de nulidade da decisão, nem se justifica que se determine que o tribunal recorrido proceda à fundamentação da prova de qualquer facto.
2.4. Da omissão de pronúncia
O Recorrente invoca que alegou factos na contestação que se encontram controvertidos e que não foram apreciados, apesar de serem relevantes para a decisão da causa.
O art.º 615º, n.º 1, d), do C. P. Civil, dispõe que a sentença é nula quando deixe de apreciar sobre questões que devesse apreciar.
É verdade que a decisão recorrida desconsiderou factos invocados pelo Réu na contestação que se encontravam controvertidos, tendo entendido implicita­mente que os mesmos não eram relevantes para a decisão da causa, pelo que não é possível dizer-se que se verifica uma omissão de pronúncia, por esses factos terem sido desconsiderados.
Contudo, como estamos perante um conhecimento de mérito proferido em sede de saneamento do processo, a ser verdade que tais factos tinham capacidade para influir na decisão da causa, estamos perante uma decisão prematuramente proferida, o que determina a sua anulação, devendo o processo prosseguir para o seu apuramento, questão que irá mais à frente ser apreciada.
3. Da matéria de facto considerada provada

4. Da prematuridade da decisão recorrida
A decisão recorrida, face ao conteúdo do contratado entre Autora e Réu e à prova de que a primeira, no cumprimento do disposto na cláusula 8.ª entregou ao Réu € 30.000,00, sem que este ainda os tenha devolvido, considerou que nos encontráva­mos perante um contrato de mútuo, nulo por falta de forma, pelo que, sem necessi­dade de produção de mais prova, ordenou a restituição da quantia entregue, acrescida de juros de mora desde a citação.
O Recorrente alega que essa decisão foi prematura, uma vez que na con­testação alegou que o adiantamento daquele montante se destinou a ser entregue pelo Réu a uma sociedade, com vista a que esta realizasse todas as diligências administra­tivas para obtenção da aprovação dos projectos a realizar no terreno a adquirir pelo Réu, tendo essa sociedade vindo a protelar indefinidamente a realização dos serviços para que foi contratada, pelo que, sendo este facto relevante para a decisão da causa, deveria a acção prosseguir para que o mesmo seja apurado.
Na cláusula 8.ª do referido contrato Autora e Réu acordaram no seguinte:
Por razões financeiras, e de gestão dos processos inerentes aos projectos, a segunda outorgante (a Autora) adianta ao primeiro (o Réu) a quantia de 30.000,00 Euros, quantia essa que será restituída à segunda outorgante no prazo máximo de um mês após a aprovação pela DRE (Direcção Regional de Economia), da superfície comercial a licenciar na parcela contígua, assinalada a amarelo na planta que se anexou ao presente contrato.
A circunstância desse dinheiro eventualmente se destinar a ser entregue pelo Réu a uma sociedade, com vista a que esta realizasse todas as diligências administrativas para obtenção da aprovação dos projectos a realizar no terreno a adquirir por este, não é susceptível de obstar à qualificação daquele adiantamento ser qualificado como um contrato de mútuo, uma vez que não deixamos de estar perante sempre perante o empréstimo de uma quantia pela Autora ao Ré, com a obrigação deste a restituir num determinado prazo – art.º 1142º do C. Civil –, sendo esse contrato nulo, por falta de forma, atento disposto no art.º 1143º do C. Civil.
Assim sendo, o tribunal recorrido já dispunha de todos os elementos para decidir como decidiu, não se justificando o prosseguimento do processo para apura­mento dos restantes factos invocados pelas partes, uma vez que eles eram insusceptí­veis de conduzir a uma alteração do decidido.
Por estas razões deve o recurso interposto ser julgado improcedente.
Decisão
Pelo exposto julga-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo Réu.

Relatora: Sílvia Pires
Adjuntos: Henrique Antunes
Artur Dias