Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
648/15.9T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
POSSE DE ESTADO
CADUCIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 09/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - LAMEGO - INST. CENTRAL - 2ª SEC. F. MEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.1816, 1817, 1871, 1873 CC, LEI Nº14/2009 DE 1/4
Sumário: 1. A acção de investigação de paternidade, fundada na posse de estado (art.ºs 1816º, n.º 2, alínea a) e 1871º, n.º 1, alínea a), do CC), está sujeita a prazo de caducidade - art.º 1817º do CC (aplicável por força da remissão prevista no art. 1873º do mesmo diploma): um prazo-regra de 10 anos (n.º 1) e dois prazos especiais de três anos, os constantes do n.º 2 e da alínea b) do n.º 3, e que se refere à cessação do tratamento como filho, pelo pretenso pai.

2. Não padece de qualquer inconstitucionalidade o prazo de caducidade de investigação da paternidade que permite o exercício desse direito em tempo útil, como sucede com os prazos previstos no n.º 1 e na alínea b), do n.º 3, do art.º 1817º, do CC, na redacção introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 01.4.

3. Para que o autor possa beneficiar do prazo de propositura da acção previsto na alínea b) do n.º 3 do art.º 1817º do CC, v. g., com base na posse de estado, tem de provar esta posse, consubstanciada pelos seus três requisitos cumulativos: a) A reputação como filho pelo pretenso pai; b) O tratamento como filho pelo pretenso pai; c) A reputação como filho pelo público.

4. Declarada e confirmada a caducidade do direito de investigar a paternidade baseado na relação de procriação (art.º 1817º, n.º 1, do CC) mas não fornecendo os autos os elementos necessários (elementos fácticos bastantes e assentes) para o conhecimento do pedido ou da dita excepção de caducidade do direito do autor a investigar a sua paternidade com base em posse de estado (art.º 595º, n.º 1, alínea b), do CPC), o processo deverá prosseguir.

Decisão Texto Integral:          




  
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:         
           

            I. J (…) intentou, em 03.6.2015, contra F (…), na comarca de Viseu, acção com processo comum de investigação de paternidade, onde pede que seja reconhecido e declarado que é filho do Réu, com as legais consequências, e que se ordene o correspondente averbamento no respectivo assento de nascimento.

            Alegou, em síntese:

            - Nasceu em 12.7.1962, tendo sido registado (na Conservatória do Registo Civil de Santa Marta de Penaguião) apenas como filho de G (…), entretanto falecida, sendo a paternidade omissa (documentos de fls. 12 e 14);

            - Entre o Réu e a mãe do A. não há laços de parentesco ou afinidade relevantes;

            - O A. sempre foi reputado e tratado como filho pelo Réu e reputado como filho daquele por quem os conhece: o A., por indicação da sua mãe, desde tenra idade identifica e trata o Réu como seu pai; o A. de forma continuada e ininterrupta saúda o Réu como pai, bem como, a filha do A., agora com 17 anos de idade, sempre tratou e saudou o Réu de avô, em particular e publicamente, sem que o Réu, em alguma vez contrariasse esse tratamento;

            - A mãe do A. e o pretenso pai/Réu mantiveram entre si relações sexuais de cópula completa (durante os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do A.) e foi na sequência de uma dessas relações sexuais que a mãe do A. engravidou, gravidez de que veio a nascer o A.;

            - Pelo que será de presumir a paternidade do Réu, nos termos das alíneas a) e e) do n.º 1, do art.º 1871º, do Código Civil (CC).

            O Réu contestou, alegando, designadamente: jamais tratou o A. como filho; não se recorda de ter mantido relações sexuais com a mãe do A.; esta manteve relações com diversos homens e teve sete filhos, nunca perfilhados. Concluiu pela improcedência da acção.

            Por decisão de 07.10.2015, a Mm.ª Juíza a quo absolveu o Réu do pedido e ordenou o oportuno arquivamento dos autos, com os seguintes fundamentos:

            «(…) Cumpre, antes de mais, apreciar da procedibilidade da acção, tal como a mesma vem interposta pelo A.

            Conforme decorre da p. i. e do assento de nascimento do A. (…), o mesmo nasceu a 12.7.1962, tendo, por conseguinte, atingido a maioridade a 12.7.1980.

            Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 1817º do Código Civil (aplicável por força da remissão operada pelo art. 1873º do mesmo Código), a acção de investigação da paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade.

            Tendo em conta o teor da p. i., verifica-se que não é ali invocada nenhuma das circunstâncias referidas nos n.ºs 2 e 3 do referido art. 1817º, que pudessem justificar a interposição da acção para além do prazo previsto no n.º 1.

            Verifica-se, por isso, que a presente acção foi interposta muito para além do prazo previsto na Lei, o que constitui excepção, extintiva do efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, de conhecimento oficioso, impeditivo da procedência do pedido

            Inconformado, o A. interpôs a presente apelação formulando as seguintes conclusões:

            1ª - O prazo estabelecido no art.º 1817º, n.º 1 do CC, por restringir a possibilidade de investigar a todo tempo a paternidade, viola direitos indisponíveis de natureza superior, sendo inconstitucional.

            2ª - A acção de investigação de paternidade assenta num imperativo constitucional que se baseia em vários direitos fundamentais expressamente previstos, tendencialmente ilimitados (art.º 18º, n.ºs 2 e 3, da CRP): o «direito de constituir família» (art.º 36º, n.º 1), o «direito à integridade pessoal» (art.º 25º), o «direito à identidade pessoal» e o «direito ao desenvolvimento da personalidade» (art.º 26º, CRP);

            3ª - Violaram-se na sentença os supra referidos normativos constitucionais.

            Remata pugnando pela revogação do decidido e consequente prosseguimento dos autos.

            O Réu respondeu à alegação concluindo pela improcedência do recurso.

     Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar se podemos dar por transcorridos os prazos de caduci­dade da presente acção de investigação da paternidade e a sua conformidade constitucional (maxime, a questão da constitucionalidade da previsão de limites temporais à proposi­tura da acção de investigação da paternidade).


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II. 1. Para a decisão do recurso releva apenas o que decorre do precedente “relatório”.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Dispõe o art.º 1817º do Código Civil[1] (sob a epígrafe “prazo para a proposição da acção”), na redacção conferida pela Lei n.º 14/2009 de 01.4: A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação (n.º 1). Se não for possível estabelecer a maternidade em consequência do disposto no art.º 1815º, a acção pode ser proposta nos três anos seguintes à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório (n.º 2). A acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: a) Ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade do investigante; b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe; c) Em caso de inexistência de maternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação (n.º 3). No caso referido na alínea b) do número anterior, incumbe ao réu a prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da acção (n.º 4).

            Nos termos do art.º 1871º, n.º 1 (na redacção introduzida pela Lei n.º 21/98, de 12.5), a paternidade presume-se, designadamente: a) Quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público; e) Quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de concepção.

            É aplicável à acção de investigação de paternidade, com as necessárias adaptações, o disposto nos art.ºs 1817º a 1819º e 1821 (art.º 1873º, na redacção do DL n.º 496/77, de 25.11).

            3. Atentos os termos em que o A./Recorrente configura a acção, esta tem como causa de pedir não só a paternidade biológica (relação de procriação/vínculo biológico), mas também os factos integradores de presunção de paternidade (posse de estado).

            Como se verá, esta circunstância releva sobremaneira no desfecho do presente recurso, dada a diversidade de prazos de caducidade, sendo que a Mm.ª Juíza a quo tomou posição, tão-somente, quanto à caducidade relativa àquele primeiro fundamento da acção.

            Por outro lado, haverá porventura que considerar a fase processual daquela pronúncia do Tribunal (findos os articulados) e, nomeadamente, as possibilidades que a lei prevê quanto à “gestão inicial do processo” (cf. o art.º 590º do Código de Processo Civil/CPC).

            4. Nas acções de investigação de paternidade baseadas em alguma das presunções taxativamente enunciadas no art.º 1871º, a lei dispensa o autor da prova da filiação biológica, onerando-o apenas com a prova dos factos base da presunção invocada.

            Cabe ao réu, por seu turno, ilidir a presunção, provando factos capazes de suscitar “dúvidas sérias” sobre a paternidade presumida (art.º 1871º, n.º 2).

            5. A caducidade enquanto figura extintiva de direitos, pelo seu não exercício em determinado prazo, procura satisfazer os interesses da certeza e estabilidade das rela­ções jurídicas, os quais exigem a sua rápida definição, impulsionando os titulares dos direitos em jogo a exercê-los num espaço de tempo considerado razoável, sob a comina­ção da sua extinção.

            6. Como se verá, tendo a acção sido proposta em 03.6.2015, e dada a factualidade invocada, o A. podia prevalecer-se do prazo de três anos nos termos n.º 3, alínea b) do art.º 1817º, sendo que nem sequer se alega que tenha cessado o tratamento de filho pelo pretenso pai.

            Na verdade, a acção de investigação de paternidade, fundada na posse de estado, está sujeita a prazo de caducidade (art.º 1817º) que contempla três prazos distintos: um prazo-regra de 10 anos (n.º 1) e dois prazos especiais de três anos, os constantes do n.º 2 e da alínea b) do n.º 3, aqui em causa, e que se refere à cessação do tratamento como filho, pelo pai, estabelecendo-se no n.º 4 do mesmo art.º, a um tempo, um ónus probatório e um prazo (cf. II. 2., supra).[2]

            In casu, releva, pois, a referida diversidade de prazos de caducidade, correspondentes a previsões fácticas diferentes - o prazo geral de caducidade de 10 anos a partir da maioridade ou da emancipação do investigante (n.º 1 do art.º 1817º), e a extensão temporal do exercício do direito nos termos que ficaram fixados nos n.ºs 2 a 4, designadamente para os casos em que haja conhecimento superveniente de factos ou de circunstâncias justificativas da propositura da acção de investigação.

            7. No invocado e descrito circunstancialismo, o autor não tem que fazer a prova da filiação biológica, impondo a lei que prove apenas os factos integradores da referida presunção, recaindo sobre o réu o ónus de alegar e provar factos de onde se possa concluir pela existência de “dúvidas sérias” sobre a paternidade invocada.

            E a acção com este fundamento não caducará se não for feita a prova sobre a cessação voluntária do tratamento como filho nos três anos anteriores à propositura da acção, ónus que incumbirá ao pretenso pai/Réu.[3]

            8. Relativamente à questão da constitucionalidade do disposto no art. 1817º, que estabelece prazos de caducidade para o exercício do direito de investigar a maternidade e que o art.º 1873º manda aplicar ao caso de investigação da paternidade, como é o caso dos autos, dir-se-á, apenas, que deixou de existir e/ou já não se justifica a controvérsia e a divisão da jurisprudência verificadas, pelo menos, ao longo da última década.

            Na verdade, o Tribunal Constitucional (TC) - instância especialmente vocacionada para dirimir, de forma definitiva, questões desta natureza - na sequência do acórdão tirado em 22.9.2011, pelo respectivo plenário, com o n.º 401/2011, entendeu que o estabelecimento do prazo de caducidade previsto no n.º 1 do art.º 1817º (na redacção conferida pela Lei n.º 14/2009 de 01.4[4]) não viola qualquer preceito constitucional[5], e, ao que nos é dado saber, esta foi a doutrina reafirmada em todos os acórdãos do TC que se lhe seguiram (em matéria de caducidade estabelecida pelo art.º 1817º), inclusive, nos que vieram a determinar a reformulação dos últimos arestos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferidos em sentido contrário[6], entendimento ou doutrina do TC que se crê agora pacifica e unanimemente acolhida pelo STJ.[7]

            Assim, no presente, é pacífico o entendimento de que nenhum obstáculo constitucional existe na fixação de prazos de caducidade para o exercício do direito de investigar a maternidade/paternidade, desde que estes sejam razoáveis, razoabilidade que tem sido unanimemente reconhecida ao prazo do n.º 1 do art. 1817º, aqui em causa.[8]

            E o actual prazo para propositura daquela acção, quando assente em posse de estado - três anos contados a partir da cessação desta -, é igualmente conforme à Constituição, sendo diversas as razões que subjazem aos regimes previstos nos n.ºs 1 e 3, alínea b), do artigo 1817º: enquanto o n.º 1 prevê o prazo geral durante o qual o investigante pode propor a acção de investigação de paternidade - 10 anos após a maioridade -, já o n.º 3 do mesmo artigo prevê situações que, pela sua particularidade, autorizam que aquele prazo geral seja ultrapassado, tratando-se, pois, de prazos especiais que apenas começam a contar a partir da data do conhecimento dos factos que possam constituir o fundamento da acção de investigação, previstos nas várias alíneas do n.º 3 do art.º 1817º.[9]

            Através da conciliação do prazo geral de dez anos com estes prazos especiais de três anos, o actual regime de prazos para a investigação da filiação mostra-se suficientemente alargado para conceder ao investigante uma real possibilidade de exercício do seu direito.[10]

            Ademais, o sistema normativo, designadamente o que regula a matéria da investigação de paternidade, é por natureza dinâmico, sofrendo modificações impulsionadas pela alteração das circunstâncias de ordem social, por via de meras opções de natureza legislativa ou, como ocorreu no caso, em função das regras de controlo da constitucionalidade, o que, naturalmente, releva na resolução de conflitos de interesses ou na apreciação de interesses juridicamente relevantes, estando os Tribunais obrigados a aplicar em cada momento as normas constitucionais e infraconstitucionais em vigor e que, de acordo com as regras, sejam aplicáveis a cada caso.[11]

     9. Porque os prazos de três anos referidos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 1817º contam-se para além do prazo fixado no n.º 1, do mesmo art.º, não caducando o direito de proposição da acção antes de esgotados todos eles - i. é, mesmo que já tenham decorrido dez anos a partir da maioridade ou emancipação, a acção é ainda exercitável dentro dos prazos previstos nos n.ºs 2 e 3[12] -, concluindo-se, pois, que o acolhimento de genéricos prazos de caducidade subjectivos salvaguarda, sem lacunas, a efectiva possibilidade de o interessado recorrer a juízo para ver reconhe­cido o vínculo de filiação com o seu progenitor - além de que, em face do teor das alíneas b) e c), do n.º 3, mesmo quando o investigante dispõe de elementos probatórios que lhe permitem sustentar, com viabilidade de sucesso, dentro do prazo fixado no n.º 1, a sua pretensão de reconhecimento como filho de determinada pessoa, relevam os factos ou circunstâncias que possam justificar que, só após o termo final de tal prazo, ele tome essa iniciativa -, é evidente que não é desde já possível concluir pela caducidade da acção à luz dos referidos prazos especiais.

            10. Concluindo-se que não padece de qualquer inconstitucionalidade o prazo de caducidade de investigação da paternidade que permite o exercício desse direito em tempo útil, como sucede com os prazos previstos no n.º 1 e na alínea b), do n.º 3, do art.º 1817º, do CC (aplicável por força da remissão prevista no art. 1873º do mesmo diploma), na redacção introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 01.4, nada se poderá objectar à decisão sob censura ao conhecer da caducidade do direito do A. de investigar a sua paternidade com base no disposto no art.º 1817º, n.º 1, caducidade ocorrida em 1990 [o A. nasceu a 12.7.1962 e, atenta a legislação então vigente (por força do disposto no art.º 122º), atingiu a maioridade a 12.7.1980; assim sendo, com fundamento no n.º 1, do art.º 1817º, o direito do A. investigar a sua paternidade está extinto por caducidade desde 12.7.1990].[13]

            No entanto, é patente que a decisão recorrida omitiu o conhecimento da excepção peremptória de caducidade à luz da alegada posse de estado, sendo notório que o A. alegou factos integradores, na sua perspectiva, da presunção legal de paternidade decorrente de posse de estado.

            E, retomando o atrás exposto, neste caso, conforme estabelece a alínea b), do n.º 3, do art.º 1817º, o prazo trienal de caducidade apenas se inicia com a cessação de tratamento como filho pelo pretenso pai.

            Impunha-se, assim, que o tribunal a quo apreciasse da verificação da caducidade do direito de investigar a paternidade à luz da figura da posse de estado ou, por falta de elementos, relegasse para final o conhecimento de tal excepção. Ao não proceder a esta necessária análise, é inquestionável que a decisão recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia, cabendo a este tribunal, ao abrigo do disposto no art.º 665º, n.º 1, do CPC, conhecer da questão cuja cognição foi omitida pelo tribunal a quo.

            11. A prova da paternidade pode efectuar-se de modo indirecto, mediante a prova de factos integradores de presunções legais de paternidade. Ainda assim, mesmo nestes casos, o facto jurídico donde emerge o direito do investigante é a relação de procriação, só que, porque o investigante beneficia de uma presunção legal, apenas carece de demonstrar os factos integradores da presunção, estando dispensado de provar o facto a que ela conduz: a procriação (cf. o art.º 350º, n.º 1).

            No caso em análise, concluiu-se já que o A. também firmou a sua pretensão de que seja reconhecido como filho do Réu, na alegação de factos que, em seu entender, preenchem a presunção legal de paternidade denominada posse de estado.

            A posse de estado, como resulta das previsões dos art.ºs 1816º, n.º 2, alínea a) e 1871º, n.º 1, alínea a), decompõe-se em três elementos distintos: o nome, o tratamento e a fama. Existe nome quando o filho chama o pretenso pai como pai e este, por sua vez, chama ao investigante filho. O tratamento consiste no comportamento do pretenso pai para com o investigante que, visto exteriormente, cria uma aparência reveladora de laços de filiação biológica. A fama é a reputação de que goza o investigante, junto da generalidade das pessoas que o conhecem ou que sabem da sua existência, de que o seu pai é o investigado.

            Para que o investigante goze da presunção baseada na posse de estado, é assim necessário que se verifiquem, cumulativamente, três requisitos: a) A reputação como filho pelo pretenso pai; b) O tratamento como filho pelo pretenso pai; c) A reputação como filho pelo público.

            E exige-se a verificação simultânea destes três elementos – não haverá posse de estado se faltar algum deles.[14]

            12. A concretização do conceito de posse de estado está sujeita a alguma flutuação doutrinária e jurisprudencial, surpreendendo-se desde posições de extremo rigorismo até posições dotadas de maior flexibilidade na caracterização dos respectivos elementos integradores[15], pelo que poder-se-á porventura admitir alguma insuficiência dos factos alegados para integrar adequadamente todos os supra referidos elementos (atentas as soluções plausíveis da questão de direito), ainda que de acordo com um entendimento mais flexível do conceito de posse de estado.

            13. Como vimos, a decisão sob censura foi proferida sem que se tenha iniciado a fase da “gestão inicial do processo e da audiência prévia” (art.ºs 590º e seguintes do CPC), pelo que, se assim for entendido, será ainda possível convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (art.º 590º, n.ºs 2, alínea b) e 4, do CPC).

            14. Naturalmente, no descrito enquadramento fáctico e adjectivo e atento o objecto do recurso, apenas podemos concluir que os autos não fornecem ainda os elementos necessários (elementos fácticos bastantes e assentes) para o conhecimento do pedido ou da dita excepção de caducidade do direito do A. a investigar a sua paternidade com base em posse de estado (cf. os art.ºs 595º, n.º 1, alínea b)[16] e 665º, n.º 2, a contrario, do CPC e 333º, n.º 1, do CC), devendo os autos prosseguir os seus termos, sem prejuízo de outro eventual obstáculo a tal prosseguimento que venha a ser identificado e que exorbite do objecto desta decisão.

            Porém, a declaração de caducidade do direito de investigar a paternidade, na parte em que o A. firmou o seu pedido simplesmente na relação de procriação, deve manter-se, pois que desde 12.7.1990 decorreram mais de dez anos sobre a sua maioridade (art.ºs 122º e 1817º, n.º 1).[17]

            15. Devendo a acção prosseguir para apreciação da paternidade apenas com base na posse de estado, a pretensão do recorrente fica parcialmente atendida.


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            III. Pelo exposto, julgando parcialmente procedente o recurso de apelação, revoga-se parcialmente a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos com base na factualidade aduzida para integrar a posse de estado, de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito (e atendendo-se ao demais referido em II. 12 a 14., supra), salvo se outro obstáculo a tal prosseguimento for identificado e que exorbite do objecto desta decisão e confirmando-se a decisão recorrida na parte em que declarou a caducidade do direito do A. investigar a sua paternidade com fundamento no n.º 1, do art.º 1817º, do CC.

            Custas a cargo do A. e do Réu, em partes iguais, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido a fls. 29 e 46.


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20.9.2016


Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Vítor Amaral


[1] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.

[2] Importa aqui lembrar o expendido no acórdão do TC n.º 401/2011, de 22.9.2011 (mencionado na “nota 5”, infra):

   - «Como resulta do advérbio “ainda” introduzido no corpo deste número, é manifesto que os prazos de três anos referidos nos n.º 2 e 3 se contam para além do prazo fixado no n.º 1, do art.º 1817º, não caducando o direito de proposição da acção antes de esgotados todos eles. Isto é, mesmo que já tenham decorrido dez anos a partir da maioridade ou emancipação, a acção é ainda exercitável dentro dos prazos previstos nos n.ºs 2 e 3; inversamente, a ultrapassagem destes prazos não obsta à instauração da acção, se ainda não tiver decorrido o prazo geral contado a partir da maioridade ou emancipação.»

   - «Em face do teor das alíneas b) e c), do n.º 3, mesmo quando o investigante dispõe de elementos probatórios que lhe permitem sustentar, com viabilidade de sucesso, dentro do prazo fixado no n.º 1, a sua pretensão de reconhecimento como filho de determinada pessoa, relevam os factos ou circunstâncias que possam justificar que, só após o termo final de tal prazo, ele tome essa iniciativa.»

[3] Cf., entre outros, o acórdão do STJ de 18.02.2015-processo 4293/10.7TBSTS.P1.S1, publicado no “site” da dgsi.

[4] Que estabeleceu novos prazos de caducidade no art.º 1817º, do CC, em termos mais longos, nomeadamente, mais dilatados do que o prazo do n.º 1 que o TC havia declarado inconstitucional com força obrigatória geral (acórdão n.º 23/06 de 10.01.2006).

[5] O acórdão, publicado no DR, II Série, de 03.11.2011, decidiu “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante.”

   Escreveu-se, na respectiva fundamentação, nomeadamente:

   - O direito ao estabelecimento do vínculo da filiação não é um direito absoluto que não possa ser harmonizado com outros valores conflituantes, incum­bindo ao legislador a escolha das formas de concretização do direito que, dentro das que se apresentem como respeitadoras da Constituição, se afigure mais adequada ao seu programa legislativo.

   - Ao ter optado por proteger simultaneamente outros valores relevantes da vida jurídica através da consagração de prazos de caducidade, o legislador não desrespeitou, as fronteiras da suficiência da tutela, uma vez que essa limitação não impede o titular do direito de o exercer, impondo-lhe apenas o ónus de o exercer num determi­nado prazo.

   - É legítimo que o legislador estabeleça prazos para a propositura da respectiva acção de investigação da paternidade, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada do investigante, não sendo injustificado nem excessivo fazer recair sobre o titular do direito um ónus de diligência quanto à iniciativa processual para apuramento definitivo da filiação, não fazendo prolongar, através de um regime de imprescritibilidade, uma situação de incer­teza indesejável.

   - Necessário é que esse prazo, pelas suas características, não impossibilite ou dificulte excessivamente o exercício maduro e ponderado do direito ao estabelecimento da paternidade biológica.

   - (…) o prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação previsto no n.º 1 do artigo 1817º do CC não funciona como um prazo cego, cujo decurso determine inexoravelmente a perda do direito ao estabelecimento da paternidade, mas sim como um marco terminal de um período durante o qual não opera qualquer prazo de caducidade.

   Verdadeiramente e apesar da formulação do preceito onde está inserido ele não é um autêntico prazo de caducidade, demarcando antes um período de tempo onde não permite que operem os verdadeiros prazos de caducidade consagrados nos n.ºs 2 e 3, do mesmo artigo.

[6] Cf., nomeadamente, os acórdãos do TC n.ºs 24/2012 de 17.01.2012 e 247/2012 de 22.5.2012, in DR, II Série, n.ºs 41 e 121, de 27.02.2012 e 25.6.2012, respectivamente e, ainda, entre outros, os acórdãos do TC n.ºs 547/2014, de 15.7.2014 [Que decidiu: “a) não julgar inconstitucional a norma, extraída do artigo 1817º, n.º 1, em conjugação com o artigo 1873º, ambos do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 01.4, na medida em que prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção de investigação da paternidade, contado da maioridade ou da emancipação do investigante; b) não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 1817º, n.º 3, alínea b), em conjugação com o artigo 1873º, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 01.4, na medida em que prevê um prazo suplementar de três anos para a propositura da acção de investigação da paternidade, contado do conhecimento, pelo investigante, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, nomeadamente a cessação do tratamento como filho pelo pretenso pai.”] e 704/2014, de 28.10.2014, publicados no “site” da dgsi.

   Relativamente à jurisprudência do STJ, cf., por exemplo, os arestos mencionados na “nota 7”, infra.]

[7] Cf., designadamente, os acórdãos do STJ de 28.5.2015-processo 2615/11.2TBBCL.G2.S1, 22.10.2015-processo 1292/09.5TBVVD.G1.S1 [Que menciona alguns dos acórdãos do STJ sujeitos a “reformulação”: o acórdão de 21.3.2013-Rev. n.º 1906/11.7T2AVR.P1.S1, invertido pelo TC, dando origem, a novo aresto do STJ de 15.10.2013; o acórdão de 14.01.2014-Rev. n.º 155/12.1TTBVLC-A.P1.S1, a que se seguiu novo aresto de 09.7.2014 em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade afirmado pelo TC; o acórdão de 27.5.2014-Rev. n.º 165/13.1TBVLR.P1.S1, a que se sucedeu novo aresto de 13.01.2015, depois de ter sido negada pelo TC a inconstitucionalidade], 17.11.2015-processo 30/14.5TBVCD.P1.S1 [que, reportando-se, entre outros, aos acórdãos do STJ de 29.11.2012-proc. 367/10.2TBCVC-A.G1.S1, 13.02.2013-proc. 214/12.OTBVVD.G1.S1, 15.10.2013-proc. 1906/11.7T2AVR.P1.S e de 24.02.2015-proc. 692/11.5TBPTG.E1.S1, em idêntico sentido, fixou o seguinte entendimento: “O estabelecimento do prazo de caducidade no n.º 1 do art.º 1817º do CC, para a investigação de paternidade - aplicável por força da remissão prevista no art. 1873º do mesmo diploma -, na redacção dada àquele pela Lei n.º 14/2009, de 01.4, não padece de qualquer inconstitucionalidade. ” ], publicados no “site” da dgsi.

[8] Cf., entre outros, por último, os citados acórdãos do STJ de 22.10.2015-processo 1292/09.5TBVVD.G1.S1 [ao concluir: “Não é inconstitucional a norma do art.º 1817º, nº 1, do CC, alterada pela Lei n.º 14/9, que fixou em 10 anos o prazo geral de caducidade para a instauração da acção de investigação da paternidade, na interpretação segundo a qual tal prazo também é de aplicar aos casos em que o investigante já tinha atingido a maioridade na data em que a alteração legal entrou em vigor.”] e de 17.11.2015-processo 30/14.5TBVCD.P1.S1.
[9] Cf., a propósito, a fundamentação do acórdão do TC n.º 401/2011 indicada na “nota 5”, supra.
[10] Cf., por exemplo, o citado acórdão do TC n.º 247/2012, de 22.5.2012, chamando-se também a atenção para o seguinte excerto do respectivo “voto de vencido”: «(…) existindo posse de estado, nenhuma surpresa pode advir do reconhecimento da paternidade. E aí reside mesmo a razão de ser do alargamento do respectivo prazo de caducidade
[11] Cf. o citado acórdão do STJ de 22.10.2015-processo 1292/09.5TBVVD.G1.S1.
[12] Veja-se, uma vez mais, a fundamentação do acórdão do TC n.º 401/2011 indicada na “nota 5”, supra.

[13] Cf., ainda, de entre vários, os acórdãos da RC de 21.9.2010-processo 445/09.0T2OBR.C1 (com intervenção do ora relator como 1º adjunto), 08.9.2015-processo 4704/14.2T8VIS.C1 e 12.01.2016-processo 268/13.2TBSCD.C1 (relatado pela aqui 1ª adjunta), publicados no “site” da dgsi.

[14] Sobre esta matéria, vide, entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1995, págs. 79 e seguinte; F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, Vol. II, Tomo I, Coimbra Editora, 2006, págs. 224 e seguinte e F. Brandão Ferreira Pinto, Filiação Natural, Almedina, 1983, páginas 331 e seguintes.

[15] Cf., entre outros, o citado acórdão do STJ de 18.02.2015-processo 4293/10.7TBSTS.P1.S1, bem como a doutrina referida na nota anterior.
[16] O conhecimento directo do pedido é viável sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
[17] Neste sentido e a respeito de situação com alguma similitude, cf. o citado acórdão da RC de 21.9.2010-processo 445/09.0T2OBR.C1, que aqui se segue de perto.