Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
59/14.3TASBG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: FALTA DE REQUISITOS DO REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
APERFEIÇOAMENTO DO RAI
CONSEQUÊNCIAS
Data do Acordão: 04/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (INSTÂNCIA LOCAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 287.º E 283.º, DO CPP
Sumário: I - O requerimento de abertura de instrução do assistente deve estruturar-se, substancialmente, como uma verdadeira acusação, como uma acusação alternativa à que, na perspectiva do requerente, foi, mas não devia ter sido, omitida pelo Ministério Público.

II - Do requerimento para abertura da instrução do assistente deve constar, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido e as normas legais aplicáveis.

III - Não deve haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, quando nele tenha sido omitida a indicação das disposições legais aplicáveis.

IV - Esse requerimento de abertura de instrução enferma de nulidade por ter omitido a indicação das disposições legais aplicáveis, e determina a inadmissibilidade legal ou a inexequibilidade da instrução por falta de objecto.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

No Processo nº 59/14.3TASBG que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Guarda – Instância Local – Secção Criminal – J1, em que é ofendido A... e arguido B..., a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu, em 13 de Maio de 2015, despacho de arquivamento dos autos.

Em 7 de Julho de 2015 o ofendido requereu a constituição como assistente e a abertura da instrução. Por despacho de 1 de Outubro de 2015 foi o ofendido admitido a intervir nos autos como assistente.

Ainda em 1 de Outubro de 2015 o Mmo Juiz de instrução proferiu despacho de rejeição do requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente, por inadmissibilidade legal da referida fase processual.


*

Inconformado com a decisão, recorreu o assistente, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            I O recorrente/assistente não se conforma com o douto despacho proferido pelo tribunal a quo que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por si formulado.

II O despacho recorrido fez uma interpretação restritiva das normas constantes do artigo 287º nº 2 do CP'P, sustentando que o requerimento de abertura de instrução deve conter todos os requisitos exigidos para a dedução da acusação.

            III Considerou o tribunal a quo que no requerimento aduzido o recorrente "não enumera os factos concretos e objetivos que considera terem sido praticados pelo denunciado, limitando-se a tirar conclusões do que, segundo a sua versão, aconteceu ao dinheiro", e que "não existe (…) qualquer referência ao crime que supostamente o denunciado terá praticado".

IV Porém, do requerimento de abertura de instrução, não dimanam as mencionadas omissões.

V Ao contrário do referido no douto despacho recorrido, do requerimento de abertura de instrução consta a concretização precisa c concisa dos factos – objctivos e subjetivos conformadores do ilícito penal de furto qualificado (artigos 30º a 47º).

VI Nos artigos 30º, 35º, 40º, 41º, 42º e 43º, o recorrente descreve os factos praticados pelo arguido, constitutivos do tipo objetivo do crime de furto qualificado

VII E, nos arts. 46º e 47º, conformou a imputação subjetiva desse mesmo ilícito penal.

VIII Efetivamente, o recorrente, quando formulou o seu pedido, não fez menção expressa do ilícito pelo qual pretendia ver o arguido pronunciado

IX Todavia, tendo o recorrente descrito – objetiva e subjetivamente – a conduta do arguido como integradora do tipo de crime de furto qualificado e tendo-se reportado sempre ao despacho de arquivamento onde a conduta sindicada é qualificada como configurando a prática do crime de furto qualificado, p e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203º. nº 1 e 204º, nº 1, al. a), por referência ao art. 202º. al. b), todos do Código Penal, é perfeitamente inteligível ser este o ilícito penal pelo qual o arguido deve ser pronunciado e que justifica a aplicação de urna pena.

X Assim. o requerimento de abertura de instrução do recorrente cumpre os requisitos previstos nas disposições conjugadas dos arts. 287º. nº 2 e 283º do CPP.

XI Assegurando a realização plena dos princípios enformadores do processo penal do acusatório, da vinculação temática do tribunal e do contraditório ou de defesa do arguido.

XII Razão pela qual se impunha que o tribunal a quo recebido o requerimento de abertura de instrução formulado pelo recorrente.

XIII Não o tendo feito, violou o disposto nos arts. 287º. n.º 2 e 283º do CPP.

XIV Assim, pelo exposto, conferindo o tribunal ad quem provimento ao presente recurso, deverá o douto despacho que rejeitou a abertura de instrução por inadmissibilidade legal da mesma ser revogado e substituído por outro que o receba determinando a abertura de instrução.

Porém, V. Exas, decidindo farão JUSTIÇA.


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            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, alegando que o recorrente, no rejeitado requerimento, procedeu à narração dos factos, objectivos e subjectivos, que fundamental a aplicação ao arguido de uma pena, mas omitiu a indicação expressa do tipo de crime imputado e respectivos preceitos legais e, apoiando-se no já decidido por esta Relação no acórdão de 26 de Outubro de 2011, concluiu pelo não provimento do recurso.

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            Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de que para abertura da instrução não identifica o crime pelo qual deveria o arguido ser pronunciado nem enumera os factos concretos que considera terem sido por ele praticados, e não pode ser objecto de convite a aperfeiçoamento, e concluiu pela improcedência do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que,a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se o requerimento para abertura da instrução padece de deficiência que determine a sua rejeição, como foi decidido, ou não. 


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Para a resolução da questão importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

“ (…).

O assistente A... veio requerer, a fls. 220 e seguintes, a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia do “arguido”, sem contudo indicar qual o crime pelo qual pretende ver o arguido pronunciado.

Nos termos do artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Se o juiz de instrução decidir que a causa deve ser submetida a julgamento, aceitando as razões apresentadas pelo assistente, isso significa que recebe a acusação implícita no requerimento para abertura da instrução, pronunciando o arguido em conformidade com ela.

Assim, o requerimento apresentado pelo assistente para abertura de instrução há-de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, como resulta desde logo do n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, que remete para as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do mesmo diploma legal.

Nos termos das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e ainda a indicação das disposições legais aplicáveis.

Como comenta Maia Gonçalves, o requerimento do assistente para abertura da instrução “deverá, a par dos requisitos do nº 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória” - in "Código de Processo Penal Anotado", 1999, 11ª Edição, pág. 552.

Neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra de 24 de Novembro de 1993, in CJ, T. IV, 61, ou seja, se no “requerimento de abertura de instrução em causa não se faz qualquer enumeração dos factos concretos que se pretende estarem indiciados nos autos, não se faz uma descrição da conduta do arguido. Não compete ao Juiz de instrução perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o Juiz o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes”.

Nesse mesmo sentido se pronunciou mais recentemente o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22/5/2013, no Processo n.º 22/10.3TACBR: “O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente há-de conter, necessariamente, a concretização precisa e concisa quer dos factos – objectivos e subjectivos conformadores do ilícito penal em causa – quer do direito, realidade não compatível com remissões, designadamente, para a “participação”.Não existindo presunções de dolo, os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa do arguido impõem ao assistente, requerente da abertura da instrução, entre outros, o dever de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico-penal lesado pela conduta proibida. Sendo o requerimento para abertura da instrução omisso em relação aos factos consubstanciadores do tipo objectivo e subjectivo de um determinado crime, tem de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do CPP”

Assim, o requerimento para abertura de instrução deverá respeitar os requisitos exigidos para a acusação pública, isto é, deve conter não só a identificação completa do arguido, mas também a narração dos factos que lhe são imputados e a subsunção dos mesmos aos preceitos legais que constituem os ilícitos criminais respectivos. Isto é um pressuposto da instrução, uma vez que, desta forma se fixam os poderes de cognição do juiz. Sem tais elementos não poderá o juiz abrir tal fase processual.

Com efeito, tendo o requerimento de abertura de instrução por parte da assistente de configurar uma acusação é esta que condicionará a actividade de investigação do Juiz e a decisão instrutória, tal como flui, claramente, do disposto nos artigos 303.º, n.º 1 e 309.º, n.º1 do Código de Processo Penal, sendo que a decisão instrutória que viesse a pronunciar o arguido por factos não constantes daquele requerimento, estaria ferida de nulidade.

Apreciemos, pois, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente.

O requerimento de abertura de instrução em causa contém os motivos de discordância do despacho de arquivamento, relata os factos conclusivos que levaram o assistente a apresentar a queixa, ou seja, recomeça a contar os factos ab initio, contudo não enumera os factos concretos e objectivos que considera terem sido praticados pelo denunciado, limitando-se a tirar conclusões do que, segundo a sua versão, aconteceu ao seu dinheiro.

Sendo o processo penal enformado pelo princípio do acusatório, do qual resulta a indisponibilidade do objecto e do conteúdo do processo (princípio este que encontra acolhimento no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa), constitui pressuposto processual da instrução, para além do mais e já supra referido, que haja uma imputação objectiva e subjectiva direta aos suspeitos da prática de qualquer facto que possa construir crime, ou tenha relevância penal, em última instância, não estando tal tarefa na disponibilidade do juiz de instrução, sob pena de incorrer na prática de uma nulidade caso se viesse a substituir à tarefa que incumbe à assistente.

Por outro lado, não existe no requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente qualquer referência ao crime que supostamente o denunciado terá praticado e há uma omissão completa relativamente aos factos que o mesmo terá praticado (local, dia, como ocorreram…), ou seja, uma narração clara, direta e concisa.

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2005, em situação análoga veio declarar que Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

Nos termos do n.º 3 do art. 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal.

In casu, entendemos que estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal, sendo que esta causa de rejeição é de conhecimento oficioso.

Na verdade, a realização da instrução constituiria um acto inútil, na medida em que, finda a mesma, sempre o tribunal ficaria sem saber quais os fatos pelos quais haveria de pronunciar o arguido e crime, pois tal incumbência não se encontra da esfera de disponibilidade do juiz, se não o for invocado pelo assistente.

Nestes termos, decide-se rejeitar o presente requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução.


*

Custas pelo assistente, com taxa de justiça reduzida ao mínimo.

(…)”.


  *

            1.Ainstrução é uma fase intermédia e facultativa do processo penal, nas sua forma comum, que tem como único objecto a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1, do C. Processo Penal).In casu, tendo sido requerida pelo assistente, visaria a comprovação judicial da decisão que ordenou o arquivamento do inquérito [por procedimento não dependente de acusação particular].

A referida comprovação judicial é realizada pela conjugação e ponderação dos meios de prova produzidos – em sede de inquérito e decurso da própria instrução – em ordem a ajuizar-se da existência ou não, de indícios suficientes de estarem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança sendo, a final, formalmente explicitada na decisão instrutória. Nesta decorrência, dispõe o art. 308º, nº 1 do C. Processo Penal – código a que pertencem todas as disposições legais citadas sem menção de origem – que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. E consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (nº 2 do art. 283º, aplicável ex vi, nº 2 do art. 308º).

Sucede que o presente recurso não tem por objecto a problemática da suficiência ou insuficiência dos indícios mas uma questão que lhe é prévia, que é a de saber quais são os requisitos essenciais que deve observar o requerimento para abertura de instrução e as consequências da sua inobservância.

Vejamos então.

2. Dispõe o art. 287º do C. Processo Penal, no seu nº 2:

O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º. Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.

Como se vê, não esteja sujeito a forma específica, o requerimento para abertura da instrução deve conter sempre, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância quanto à acusação ou não acusação. E no que especialmente respeita ao requerimento apresentado pelo assistente, a lei impõe ainda que dele constem as especificações previstas nas als. b) e c) do nº 2 do art. 283º.

Deste modo, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente – que se destina, como vimos, a obter a comprovação judicial da decisão do Ministério Público em se abster de acusar em procedimento por crime público ou semi-público – deve obrigatoriamente conter, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e ainda, a indicação das disposições legais aplicáveis

Vale isto dizer que nos segmentos da narração dos factos e da indicação das disposições legais aplicáveis, o requerimento de abertura de instrução do assistente deve estruturar-se, substancialmente, como uma verdadeira acusação, como uma acusação alternativa à que, na perspectiva do requerente, foi, mas não devia ter sido, omitida pelo Ministério Público.

A justificação desta exigência é fácil de fazer. O objecto do processo é definido, brevitatis causa, pela acusação, pública ou privada, que nele tenha sido deduzida e portanto, pelos concretos factos imputados ao arguido (cfr. art. 339º, nº 4). A estrutura acusatória do processo penal e a salvaguarda das garantias de defesa do arguido impõem a definição do themadecidendum e a sua tendencial imutabilidade. Por isso, se o Ministério Público se absteve de acusar por crime público ou semi-público e o assistente pretende, ao requerer a instrução, que o arguido seja levado a julgamento, será o respectivo requerimento a definir o objecto da instrução e portanto, a balizar não só o âmbito da investigação a levar a efeito pelo juiz de instrução como o da própria decisão instrutória. E tanto o juiz de instrução está subordinado à vinculação temática definida pelo requerimento de abertura de instrução, enquanto acusação alternativa, que a lei do processo determina a nulidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento (art. 309º, nº 1).

Temos pois por inquestionável que o requerimento para abertura da instrução do assistente se deve estruturar como uma acusação, dele tendo que constar, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido e as normas legais aplicáveis.

3. E quais as consequências de o requerimento para abertura da instrução do assistente não ser substancialmente uma acusação, por ter omitido a narração dos factos e a indicação das disposições legais aplicáveis?

Quando o requerimento não contém o quis, o quid, o ubi, o quibusauxiliis, o quomodo e o quando, definidores da indispensável narração – estando, consequentemente, ferido de nulidade –, a instrução carece de objecto, o que – independentemente de determinar ou não, a sua inexistência jurídica (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Verbo, 2000, pág. 151) – conduz à inadmissibilidade legal desta fase do processo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 737).

E como se sabe, a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento (art. 287º, nº 3).

Diferente não é o caminho quando o requerimento não contém a indicação das disposições legais aplicáveis e, portanto, não contempla a qualificação jurídica dos factos narrados. É que, como vimos, a definição do objecto da instrução abrange a narração dos factos fundamentadores da aplicação da pena, mas também abrange, numa outra perspectiva, a indicação das disposições legais aplicáveis, pois só deste modo se permite a efectiva e plena organização da defesa e assegura o respeito pela estrutura acusatória do processo.

Aliás, para além da inegável similitude existente entre a acusação do Ministério Público e o requerimento para abertura da instrução do assistente, a exigência a este feita aquando da elaboração do requerimento para abertura de instrução não é maior nem menor que a exigência feita ao Ministério Público naelaboração do despacho acusatório, sendo certo que, como resulta das disposições conjugadas do art. 311º. nºs2, a) e 3, c), há lugar à rejeição da acusação, por manifestamente infundada, quando não indique as disposições legais aplicáveis.

4. Revertendo para o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e ora recorrente, podemos dizer que nos seus arts. 1º a 29º discute os indícios existentes colhidos no inquérito e rebate algumas das explicações e argumentos adiantados pelo arguido ou seja, expõe as razões de facto e de direito da sua discordância quanto à decisão de não acusar assumida pelo Ministério Público, sem nunca mencionar um qualquer tipo legal de crime ou norma a ele referente.  

Depois, nos arts. 30º a 47º do mesmo requerimento, o assistente indica os factos que considera suficientemente indiciados e que são os que passamos a transcrever:

“ (…).

30º O denunciante ofendido era, até final do mês de Setembro de 2013, titular único e universal das seguintes contas bancárias, sediadas na agência do Sabugal do Banco Espírito Santo (BES):

- conta à ordem – BES 100% 55+ DO nº (...) ;

- conta a prazo/poupança – BES 100% 55+ Pp nº (...) ;

- conta a prazo/poupança – Conta Rendimento Cr nº (...) .

31º O denunciante/ofendido tem 87 anos de idade e, por inerência à sua idade avançada, o seu estado de saúde é bastante periclitante.

32º Tanto assim é que, no pretérito mês de Setembro de 2013, o denunciante/ofendido sentiu-se mal tendo necessidade de ser medicamente assistido no Hospital (...) na Guarda.

33º Aí, ficou internado alguns dias, onde recebeu cuidados de saúde do denunciado (seu genro) que exerce as funções de enfermeiro no referido estabelecimento de saúde público.

34º Ora, aproveitando-se da confiança e influência de que era merecedor e detinha até então, e que fortaleceu inclusive durante o período da hospitalização do denunciante/ofendido, o denunciado aliciou por diversas vezes o denunciante a investi-lo na qualidade de cotitular das contas bancárias supra identificadas, sob o falso pretexto de, por essa via, no caso de falecimento súbito daquele, se contam ar o bloqueio das contas bancárias aquando da comunicação do óbito, mantendo o acesso dos seus familiares/herdeiros aos montantes que compunham os respetivos saldos.

35º Desiderato a que o denunciante/ofendido veio a aceder no início do mês de Outubro de 2013.

36º Note-se que, para o efeito, o denunciado, no dia em que o denunciante teve alta hospitalar, ofereceu-se para o transportar até à sua residência e, aproveitando-se da sua fragilidade física e psíquica, convenceu-o a deslocar-se ao balcão do BES, sito no Sabugal, e ali o inscrever como cotitular das contas bancárias em questão.

37º Assim, em momento não concretamente apurado, uma vez investido de tais poderes, sem que tivesse dado prévio conhecimento ao denunciante, o denunciado diligenciou junto do BES pela alteração do titular destinatário da receção por via postal dos extratos integrados remetidos pela instituição bancária, fazendo com que estes fossem rececionados por si, na sua residência.

38º Dessa forma, visou e logrou o denunciado afastar do domínio do denunciante o conhecimento e, por conseguinte, o controlo e fiscalização das suas contas bancárias, designadamente das movimentações que eram efetuadas e das subtrações de que eram objeto os respetivos saldos.

39º Mais requereu junto do BES todos os elementos para que, através da plataforma "BESnet", pudesse movimentar, a partir de qualquer ponto, e à completa revelia do denunciante, as contas bancárias, dando destino, como bem lhe aprouvesse, às quantias monetárias próprias que compunham os seus saldos, o que veio a suceder, nos moldes que infra se explanarão.

40º Assim, como mencionado, sem que o denunciante tivesse prestado o seu consentimento, autorização ou tivesse doado/cedido qualquer quantia, no dia 26/12/2013, o denunciado procedeu a uma transferência interna, no montante de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), efetuada através do sistema "BesNet", para a conta do seu filho menor – C....

41º E, no dia 11/05/2014. o denunciado procedeu a uma transferência interna, no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros), efetuada também através do sistema "BesNet", tendo tal montante sido levantado em caixa, no dia 12/05/2014, no balcão do BES, Solum, na cidade de Coimbra.

42º Com as condutas supra descritas, o denunciado, subtraiu ao denunciante o montante total de € 40.000,00 (quarenta mil euros), o que,

43º Usou para fins pessoais e/ou em beneficio de terceiros, ambos estranhos ao denunciado e, até ao momento não o devolveu.

44º O denunciante só teve conhecimento destes factos, no mês de Maio de 2014, e da pior forma possível.

45º Com efeito, o denunciante adquiriu um prédio urbano em Santo Estêvão, Sabugal, tendo emitido um cheque para pagamento do correspondente preço, o qual veio a ser devolvido por falta de provisão, com as legais consequências.

46º Assim, o denunciado agiu de forma livre ao comportar-se da maneira descrita em relação ao denunciante, com o propósito de fazer suas as quantias monetárias em causa e dando-lhes os destinos referidos em 14º, resultado que representou, bem sabendo que tais quantias não lhe pertenciam, que atuava contra a vontade do respetivo proprietário e/ou que tinha a obrigação de as entregar ao denunciante/ofendido.

47º Sabia, ainda, o denunciado, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

(…)”.

É pois evidente que, contrariamente ao afirmado no despacho recorrido, o assistente verteu no requerimento a narração dos factos, objectivos e subjectivos, que imputa ao arguido, fundamentadores da aplicação de uma sanção penal.

O assistente termina o requerimento [esquecendo a prova a final, requerida] da seguinte forma:

“ (…).

Pelo exposto, requer:

- que seja declarada aberta instrução;

- que seja ouvido o arguido;

- que sejam ouvidas por V. Exa. a testemunhas indicadas, e

- que a fim, seja proferido despacho de pronúncia.

(…)”.

Ou seja, o assistente em lado algum do requerimento para abertura da instrução fez a indicação das disposições legais aplicáveis, como lhe era exigido pelos arts. 283º, nº 3, c) e 287º, nº 2, omissãoesta que, aliás, expressamente reconhece na conclusão VIII.

E de pouco vale argumentar, como faz na conclusão IX, com a inteligibilidade do ilícito típico em causa, como sendo o furto qualificado previsto nos arts. 203º, nº 1 e 204º, nº 1, a) do C. Penal, com a afirmação de que os factos narrados a ele conduzem e à por si afirmada referência ao despacho de arquivamento onde a conduta assim aparece qualificada.

Em primeiro lugar porque os únicos locais do requerimento para abertura da instrução onde se pode admitir uma vaga referência ao despacho de arquivamento são os arts. 1º e 2º da mencionada peça processual, mas onde o assistente apenas aborda os meios de prova produzidos no inquérito e a conclusão que deles retirou a Digna Magistrada do Ministério Público. Ou seja, aqui não é feita qualquer menção ao crime de furto qualificado ou às disposições legais que o prevêem.

Em segundo lugar porque, ao contrário do entendimento ora afirmado pelo recorrente, não é completamente líquido que o facto subjectivo levado ao art. 46º do requerimento verse o tipo subjectivo do crime de furto, atenta a sua parte final, aliás, em plena consonância com o nº 17 da participação por si apresentada e dos tipos legais que aí são imputados ou seja, o furto qualificado e o abuso de confiança agravado (cfr. fls. 3).

Em terceiro lugar porque, se a lei se bastasse com a mera dedução, através dos factos objectivos e subjectivos narrados, da qualificação jurídica dos mesmos, omitida pelo recorrente, teríamos então que concluir que a norma da alínea c) do nº 3 do art. 283º era absolutamente inútil.

Aliás, como se pode ler no Acórdão n.º 358/2004 do Tribunal Constitucional, (DR, II, de 28 de Junho de 2004), «Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.».

5. E poderá o requerimento do assistente, face à omitida indicação das disposições legais aplicáveis, ser objecto de convite ao aperfeiçoamento? Cremos que não.

Como é sabido, às divergências surgidas quanto à possibilidade de convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução deficiente apresentado pelo assistente, pôs termo o Acórdão n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005 (DR, I-A, de 4 de Novembro de 2005) que fixou a seguinte jurisprudência: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Embora a jurisprudência uniformizada verse a omissão, no requerimento, da narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, lê-se na fundamentação do Acórdão, «A falta de narração de factos na acusação conduzem à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, nºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP. A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequência sendo processuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada: o ser manifestamente infundada igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.». Daqui decorre que, para o nosso mais Alto Tribunal, também não deve haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, quando nele tenha sido omitida a indicação das disposições legais aplicáveis.


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Em síntese conclusiva:

- O requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e ora recorrente enferma de nulidade por ter omitido a indicação das disposições legais aplicáveis, e determina a inadmissibilidade legal ou a inexequibilidade da instrução por falta de objecto;  

- Embora o Acórdão nº 7/2005 tenha por objecto o requerimento para abertura da instrução do assistente que omitiu a narração dos factos fundamentadores da aplicação de uma sanção penal, a jurisprudência fixada deve estender-se também à deficiência daquele requerimento traduzida na omissão da indicação das normas legais aplicáveis, não havendo por isso lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento quando ocorra esta deficiência;

- Assim, não merece censura o despacho recorrido que, por isso, é de manter.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs (arts. 515º, nº 1, b) do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 27 de Abril de 2016


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)