Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1012/12.7TBPMS-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
DIREITO DE DEFESA
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 120º, 121º E 127º DO CIRE E 20º DA CRP
Sumário: 1. O administrador da insolvência não tem legitimidade para propor uma acção de impugnação pauliana.

2. A decisão que declara a massa insolvente ilegítima para a propositura da acção de impugnação pauliana não viola o art.20º da CRP que consagra o direito de acesso aos tribunais e o direito de defesa dos interesses e direitos.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

            A Massa Insolvente de A..., representada pelo Administrador de Insolvência, Dr. B..., intentou a presente acção de impugnação pauliana contra C..., D... e E... , estes, todos menores e representados por seus pais F... e G... e ainda contra A..., já todos identificados nos autos, peticionando que deve ser julgada procedente a Impugnação Pauliana, declarando-se a ineficácia, em relação à ora autora, do acto consubstanciado na Escritura Pública denominada de “Doação”, lavrada em 13.10.2008, a fls. 15 a 16, do Livro 135 B, do Cartório Notarial da Batalha, a cargo da Dr.ª H..., por via do qual a insolvente e o aqui quarto réu declararam, por via da mesma escritura, doar aos filhos de ambos, os aqui primeira, segunda e terceiro réus, o imóvel supra melhor identificado em 11º, nos termos supra melhor explicitados, designadamente, que o mesmo era o único bem de que dispunha a insolvente e que esta só praticou tal acto com a intenção de se eximir ao pagamento das quantias de que bem sabia ser devedora e que originaram a sua situação de insolvência, devendo, na expressão legal, reconhecer-se à ora autora o “(…)direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.”

Os Réus C... e F..., contestaram, invocando, no que a este recurso interessa, a ilegitimidade da autora para intentar a presente acção, com o fundamento em que, resulta do disposto nos artigos 125.º e 127.º do CIRE, que o Sr. Administrador não tem legitimidade para, em nome e representação da massa insolvente, intentar acção de impugnação pauliana.

 

A Autora, regularmente notificada, não se pronunciou relativamente à predita excepção.

            Após o que foi proferido despacho saneador, em que se julgou procedente a excepção de ilegitimidade da autora, com a consequente absolvição dos réus da instância, ficando as custas a cargo da autora.

            Inconformada com a mesma, interpôs a autora, Massa Insolvente, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 157), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

I. Face aos critérios gerais enunciados pelo art.º 30º do CPC, a ilegitimidade ad causam ou processual de qualquer das partes só se verificará quando, em juízo, se não encontrar(em) o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação.

II. Mal andou o Tribunal a quo ao entender, no âmbito da prolação da Sentença aqui colocada em crise, julgar procedente a excepção de ilegitimidade activa e, consequentemente, absolver “(…) os Réus C..., F..., D...E E..., da instância, em consonância com o preceituado nos art.º 493º/1 e 2, 494º, al. e) e 495º do Código de Processo Civil. “, porquanto, segundo aí se afirma “(…) falece a norma legal que outorgue à Massa Insolvente a legitimidade activa para intentar acções de impugnação pauliana, i.e, no que se refere aos negócios jurídicos exarados pelo devedor, indexa-se ao administrador da insolvência apenas o direito de acção resolutiva, nos termos dos arts. 82º/2 e 3, 123º a 126º e 127º do CIRE, incumbindo aos credores a eventual exercitação dos demais meios processuais que tutelam os seus direitos creditícios. Em decorrência, infere-se que a Autora carece de legitimidade ad causam para a acção de impugnação pauliana (…)”.

III. Ao decidir nos termos em que o fez, violou o Tribunal a quo, as disposições constantes do art.º 20º da CRP; dos art.º 2º/2 e 30º do CPC, aplicáveis ex vi art.º 17º do CIRE, do art.º 82º/2 e 3 e 120º e ss deste diploma, e, bem assim, dos art.º 9º; 610º a 616º, todos do CC.

IV. De acordo com o art.º 9º do CC, deverá privilegiar-se, como critério de hermenêutica legal, a reconstituição do pensamento legislativo tendo, designadamente, em conta a unidade do sistema jurídico, em detrimento da mera literalidade em que, salvo o devido respeito, a decisão recorrida incorre.

V. Historicamente, e no que, em concreto, respeita ao processo insolvimentar, a possibilidade de recurso, pelo liquidatário judicial e em benefício da Massa Falida, ao Instituto da Impugnação Pauliana – configurado como Impugnação Pauliana colectiva – encontrava-se expressamente prevista no art.º 157º do CPEREF, com sujeição ao regime civilístico próprio deste remédio geral de conservação da garantia patrimonial, muito embora com observância de algumas especificidades, designadamente quanto aos seus efeitos, dado o afastamento da disciplina própria do art.º 616º do CC.

VI. A reforma do regime insolvimentar levada a cabo em 2004 veio introduzir modificações substanciais nesta matéria, com o objectivo declarado de facultar, ao Administrador da Insolvência, os meios necessários à efectiva concretização da finalidade precípua de tal regime – a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores da insolvência. (Cf. preâmbulo do DL 53/2004 de 18 de Março, ponto 41)

VII. Com um tal propósito e reconhecendo a ineficiência generalizada do regime até então vigente – atento o conjunto restrito de actos susceptíveis de resolução em benefício da massa falida e a possibilidade de perseguição dos demais nos termos apenas da impugnação pauliana – entendeu o legislador por imperioso o reforço da possibilidade de perseguição dos actos de dissipação de património em prejuízo dos credores e de obtenção da “(…) reintegração dos bens e valores em causa na massa insolvente (…)” designadamente através da redefinição dos contornos do Instituto da Resolução em benefício da Massa Insolvente e da sua maior diferenciação face ao Instituto da Impugnação Pauliana. (Cf. Preâmbulo do DL 53/2004 de 18 de Março, ponto 41).

VIII. Face a um tal intuito, não se configura como defensável o entendimento de acordo com o qual o Administrador da Insolvência se encontra impedido de, em representação da Massa Insolvente, logo, em defesa dos interesses de todos os credores, lançar mão do Instituto civilístico geral da Impugnação Pauliana, apesar da ausência de previsão expressa, tal como sucedia anteriormente, da designada Impugnação Pauliana colectiva.

IX. Limitar a actuação de uma qualquer Massa Insolvente apenas à acção de resolução e (por via do decurso do tempo decorrido desde a prática do acto prejudicial até à data de entrada em juízo da petição de insolvência, v.g. através da utilização de mecanismos processuais como o PER) impedir o acesso da mesma à acção de Impugnação Pauliana, seria, em última análise, obstar ao fim último do processo de execução universal que é o processo de insolvência: a apreensão da totalidade dos bens, a respectiva venda e a repartição do respectivo produto por todos os credores.

X. Limitar a actuação de uma qualquer Massa Insolvente apenas à acção de resolução e (por via do decurso do tempo decorrido desde a prática do acto prejudicial até à data de entrada em juízo da petição de insolvência) impedir o acesso da mesma à acção de Impugnação Pauliana, determinaria, em última análise e em face da notória divergência quanto aos períodos temporais relevantes para o funcionamento de ambos os Institutos, uma evidente beneficiação do credor individual em detrimento da Massa Insolvente e, logo, dos demais credores, em clara violação do princípio basilar par conditio creditorum.

XI. A redução do período geral de suspeição previsto no art.º 120º do CIRE de 4 para 2 anos introduzida por via da Lei 16/2012 de 20/04 foi determinada não por qualquer intenção de eximir ao escrutínio dos credores os actos praticados pelo devedor em prejuízo destes mas, apenas e tão-somente, pelo incorrecto entendimento de que da manutenção de um tal período de suspeição alargado derivariam obstáculos insustentáveis ao almejado objectivo de máxima celeridade processual.

XII. Do teor do art.º 127º do CIRE apenas decorre o condicionamento do acesso, por parte dos credores, à Impugnação Pauliana de actos relativamente aos quais o Administrador da Insolvência exerceu o direito potestativo à resolução não podendo, todavia, daí inferir-se qualquer proibição de recurso a tal mecanismo pelo próprio, designadamente aquando da impossibilidade de exercício de um tal direito potestativo por se encontrar excedido o período de suspeição legalmente estabelecido nos termos supra indicados.

XIII. Do teor do art.º 82º do CIRE não poderá extrair-se qualquer impedimento ao recurso, por parte do Administrador da Insolvência, ao Instituto da Impugnação Pauliana em defesa dos interesses dos credores, uma vez que o referido normativo, imbuído do objectivo geral de redução dos riscos de insuficiente satisfação dos credores do insolvente, apenas pretende limitar o recurso, por parte do Administrador da Insolvência, às acções que aproveitem à generalidade dos credores.

XIV. Do teor do art.º 46º do CIRE, resulta, expressamente, que a Massa Insolvente constitui um património autónomo com personalidade e capacidade judiciárias destinado à satisfação dos credores da respectiva Insolvência, pelo que, nessa medida e considerando a posição processual que ocupa, representa todos os credores da insolvência, devendo, por esta via e para este efeito, ser considerada – ainda que por recurso a uma fictio juris – como efectiva titular de um direito próprio.

XV. Considerando o princípio fundamental decorrente do nº 2 do art.º 2º do CPC, uma tal proibição de acesso a juízo nos termos previstos pela decisão recorrida, no contexto aduzido, encontrar-se-ia, necessariamente, ferida de inconstitucionalidade, por expressa violação do art.º 20º da CRP, representando uma denegação injustificada do acesso aos Tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos.

XVI. Longe de representar uma limitação ou condicionamento, o Instituto da resolução em benefício da Massa, tal como perspectivado pelo legislador de 2004, representa um reforço da protecção dos interesses dos credores através da redefinição do seu âmbito, do concreto elenco de actos resolúveis e dos prazos para o efeito, alcançando autonomia face ao Instituto da Impugnação Pauliana mas sem o substituir ou excluir.

Termos em que, e nos melhores de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deverá:

a) Ser revogada a decisão do Tribunal a quo, na parte que julgou procedente a excepção de ilegitimidade activa da ora Recorrente e, consequentemente, determinou a absolvição os Réus C..., F..., D...E E..., da instância, em consonância com o preceituado nos art.º 493º/1 e 2, 494º, al. e) e 495º do Código de Processo Civil.

b) Ser tal decisão substituída por outra que determine e declare a plena legitimidade da ora Recorrente para a acção de impugnação pauliana, com as legais consequências.

            Contra-alegando, os réus F... e C..., pugnam pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que o CIRE dá prevalência à figura da resolução em detrimento da impugnação pauliana, conferindo ao administrador da insolvência a legitimidade para lançar mão da primeira, tendo-se abandonado no CIRE a figura da “impugnação colectiva” prevista no CPEREF, estando, actualmente, vedado ao administrador de insolvência lançar mão da acção de impugnação pauliana.

           

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.  

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado no artigo 635, n.º 4 do nCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se se verifica a ilegitimidade da autora para a propositura da presente acção e;

B. Se a decisão recorrida viola o disposto no artigo 20.º da CRP.

            A matéria de facto a considerar para a decisão das questões ora elencadas é a que consta do relatório que antecede.

            A. Se se verifica a ilegitimidade da autora para a propositura da presente acção.

            Alegam os réus, ora recorrentes, que o Administrador de Insolvência não se encontra impedido de lançar mão da acção de impugnação pauliana, apesar de inexistência de previsão expressa que lhe conceda tal faculdade, contrariamente ao que sucedia no regime anterior, em que se previa a figura da “impugnação pauliana colectiva”, sob pena de se obstar ao fim último da insolvência: a apreensão da totalidade dos bens em benefício de todos os credores e não apenas de um ou alguns, não se podendo limitar as prerrogativas da Massa apenas à acção de resolução.

Acrescentado que do artigo 127.º do CIRE apenas se pode tirar a conclusão de que os credores estão impedidos de recorrer à impugnação pauliana de actos relativamente aos quais o administrador da insolvência exerceu o direito à resolução, mas não que o próprio administrador o não possa fazer, o que, também, não resulta do artigo 82.º do CIRE, no qual apenas se limita o recurso a acções que aproveitem à generalidade dos credores, desiderato que é alcançado com o recurso à impugnação pauliana.

            Ao invés, na sentença recorrida, considerou-se que o administrador de insolvência carece de legitimidade para a propositura da acção de impugnação pauliana, com os seguintes fundamentos:

“Ademais, num segundo plano de análise, em sede das funções como órgão executivo da insolvência, adjudica-se ao administrador de insolvência a legitimidade para propor certas acções (artigos 82.º/2 e 3, 123.º a 126.º e 127.º do CIRE): (a) as acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros de órgãos de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros; (b) as acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência; (c) as acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente; (d) intentar as acções necessárias para exigir aos sócios, associados ou membros do devedor das entradas de capital diferidas e das prestações acessórias em dívida; (e) resolução de negócios celebrados pelo insolvente antes da declaração da insolvência.

Equacionando o quadro normativo sobredito, conclui-se que o administrador de insolvência, na qualidade de órgão executivo da insolvência tem legitimidade passiva para intervir em acções intentadas contra o devedor e, a título excepcional, titula legitimidade activa para a propositura de determinadas acções.

No que tange concretamente à legitimidade activa, efectivando-se uma interpretação teleológica e sistemática dos descritos preceitos, cura-se de uma tipologia taxativa de fattispecies, em função dos desideratos inerentes à acção de insolvência, maxime, a tutela dos direitos de credores, i.e., relativamente aos negócios jurídicos preteritamente celebrados pelo devedor, imputa-se ao administrador de insolvência, tão-só, o direito potestativo de promover a resolução extra-judicial dos mesmos, ou, em alternativa, o direito de acção resolutiva (vd. Luís Menezes Leitão, op. cit., p. 213 e ss. e Luís Carvalho Fernandes/João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris, 2.ª edição, p. 426 e ss.).

Na verdade, relativamente aos meios processuais de tutela dos direitos creditícios, v.g., a impugnação pauliana e o pedido de declaração de nulidade de negócios nos termos dos artigos 605.º e 610.º e ss. do Código Civil, a legitimidade activa é outorgada, inerentemente, aos credores do insolvente, sublinhando-se a limitação decorrente do estatuído no art.º 127.º/1 do CIRE, segundo o qual é vedada a instauração de novas acções de impugnação pauliana de actos praticados pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador de insolvência (vd. Luís Carvalho Fernandes/João Labareda, op. cit., p. 444-445).

Concomitantemente, há uma delimitação ostensiva e intransmissível entre as posições do administrador de insolvência, como mero órgão executivo da mesma, e os credores do devedor, i.e., o administrador de insolvência adstringe-se ao exercício estrito das competências especialmente tipificadas no CIRE, incumbindo aos credores a apologia dos seus direitos, quer na acção de insolvência, quer noutras acções pertinentes.

*

Subsumindo os enunciados supra à situação concreta, conclui-se de forma linear que falece a norma legal que outorgue à Massa Insolvente a legitimidade activa para intentar acções de impugnação pauliana, i.e., no que se refere aos negócios jurídicos exarados pelo devedor, indexa-se ao administrador de insolvência, exclusivamente, o direito de acção resolutiva, nos termos dos arts. 82.º/2 e 3, 123.º a 126.º e 127.º do CIRE, incumbindo aos credores a eventual exercitação dos demais meios processuais que tutelam os seus direitos creditícios, nomeadamente, a impugnação pauliana, com a delimitação contemplada no art.º 127.º, do CIRE.

Em decorrência, infere-se que a Autora carece de legitimidade ad causam para a vertente acção de impugnação pauliana.”.

            Desde já adiantando a solução, cremos, ser de manter a decisão recorrida.

            Efectivamente, a alteração legislativa que a este propósito se operou com a publicação do CIRE por contraponto com o regime que era o previsto no CPEREF, manifesta a ideia de que o legislador não confere, no actual regime, legitimidade ao administrador da insolvência para intentar acção de impugnação pauliana em representação dos credores da massa falida, contrariamente ao que se verificava no pretérito regime.

            Se não vejamos!

            Ao abrigo do disposto nos artigos 160.º e 159.º, n.º 1, do CPEREF, a acção de impugnação pauliana, bem como as restantes acções determinadas pela resolução dos actos do falido podiam ser propostas tanto pelo liquidatário judicial como por qualquer credor cujo crédito se encontrasse já reconhecido e resolvido o negócio jurídico ou julgada improcedente a impugnação pauliana, os bens ou valores correspondentes revertiam para a massa falida, consagrando-se, como regra, a impugnabilidade em benefício da massa falida de todos os actos susceptíveis de impugnação pauliana nos termos da lei civil – cf. artigo 157.º do CPEREF.

            Daqui decorre, pois, que a acção de impugnação pauliana podia ser promovida tanto pelo liquidatário como pelos credores mas, mesmo quando instaurada apenas por algum ou alguns destes, a sua procedência aproveitava a todos e não apenas ao proponente, como resultava do já citado artigo 159.º, n.º 1.

            Para além desta possibilidade de recurso à impugnação pauliana consagrava-se no artigo 156.º do CPEREF o regime de resolução em benefício da massa falida, desde que verificados os requisitos previstos no seu n.º 1 e no qual se previam condições menos apertadas relativamente ao condicionalismo exigido para a procedência da impugnação pauliana.

            Com a publicação do CIRE, como resulta do Parágrafo 41.º do Preâmbulo do DL 53/2004, que o aprovou, considerou-se, dada a ineficácia, em muitos casos, do mecanismo da impugnação pauliana, dada a maior dificuldade em, designadamente, provar os requisitos da má fé do terceiro adquirente, que era necessário ir mais além do que anteriormente previsto e alargar os casos em que seria possível recorrer, desde logo, à resolução de negócios em benefício da massa insolvente em detrimento da acção de impugnação pauliana.

            Como se lê em tal preâmbulo, ali se refere o seguinte:

            “A finalidade precípua do processo de insolvência – o pagamento, na maior medida possível, dos credores da insolvência – poderia ser facilmente frustrada através da prática pelo devedor, anteriormente ao processo ou no decurso deste, de actos de dissipação da garantia comum dos credores: o património do devedor ou, uma vez declarada a insolvência, a massa insolvente. Importa, portanto, apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham ainda na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostram prejudiciais para a massa.

            A possibilidade de perseguir esses actos e obter a reintegração dos bens e valores em causa na massa insolvente é significativamente reforçada no presente diploma.

            No actual sistema, prevê-se a possibilidade de resolução de um conjunto restrito de actos, e a perseguição dos demais nos termos apenas da impugnação pauliana, tão frequentemente ineficaz, ainda que se presuma a má fé do terceiro quanto a alguns deles. No novo Código, o recurso dos credores à impugnação pauliana é impedida, sempre que o administrador entenda resolver o acto em benefício da massa. Prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – a «resolução em benefício da massa insolvente» -, que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património.”.

            Concomitantemente, consagrou-se no CIRE um regime muito mais amplo ao direito de resolução por iniciativa do administrador da insolvência, como resulta dos artigos 120.º e 121.º do CIRE e limitou-se o recurso à impugnação pauliana aos casos previstos no artigo 127.º do CIRE, em que se consagra como regra a impossibilidade de os credores a ela recorrerem relativamente a actos praticados pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador da insolvência e mesmo em caso de existência de acções de impugnação pauliana pendentes à data da resolução, prevalece esta, ficando aquelas suspensas e só poderão prosseguir se a resolução vier a ser julgada ineficaz, como decorre do n.º 2 deste preceito.

            Do que urge concluir que o regime consagrado no CIRE confere prevalência à actuação do administrador da insolvência na resolução de actos do insolvente sobre a impugnação pauliana a exercer pelos credores, retirando-se a estes a possibilidade de, a título individual, recorrer a esta no caso de prévia resolução do acto, radicando o fundamento da prevalência da resolução em benefício da massa insolvente, no benefício em favor de todos os credores, em que esta se traduz, por contraste com a impugnação pauliana, que apenas aproveita ao credor que dela lança mão, ficando no regime consagrado no CIRE, a impugnação pauliana confinada aos casos especiais referidos no seu artigo 127.º, podendo, assim, concluir-se que o recurso à impugnação pauliana foi quase vedado – mais não é do que uma possibilidade residual – dando-se prevalência à resolução em benefício da massa insolvente que, assim, sai reforçada no regime adoptado no CIRE – neste sentido, vejam-se Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE, Anotado, (Reimpressão), Vol. I, Quid Juris, 2006, a pág. 450; Fernando de Gravato Morais, Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Almedina, 2008, a pág. 205 e Catarina Serra, O Novo Regime Português Da Insolvência, 4.ª Edição, Almedina, 2010, a pág.s 96 e 97.

           

            Aqui chegados, uma outra conclusão importa retirar de toda esta diferente filosofia que está inerente ao CIRE no concernente à prevalência da resolução em benefício da massa insolvente sobre a impugnação pauliana, qual seja a de que esta apenas está à disposição de um credor e não do administrador e que foi suprimida a anterior “impugnação pauliana colectiva”, ou seja, a que era permitida pelos artigos 159.º, n.º 1 e 160.º do CPEREF, em benefício da massa falida.

            Como refere F. Gravato Morais, ob. cit., a pág.s 196 e 197 “… foi suprimida a impugnação pauliana colectiva, ou seja, em benefício da massa insolvente.

            Por outro lado, os actos presumidamente celebrados de má fé pelos seus participantes, para efeito da impugnação pauliana colectiva – pois era nesse domínio que eles relevavam (art.º 158.º do CPEREF) -, são agora incluídos no leque de actos resolúveis incondicionalmente (art.º 121.º do CIRE). Ganha-se com isso em eficácia e em celeridade, embora a perseguição dos actos em causa esteja dependente da actuação diligente e não temerária do administrador da insolvência.

            Portanto, admite-se apenas a impugnação pauliana singular, sendo que os seus efeitos aproveitam ao respectivo credor que se socorreu dessa via. Decorre do exposto que o administrador da insolvência não tem legitimidade para propor uma acção de impugnação pauliana.”.

            O mesmo defende Catarina Serra, ob. cit., a pág. 99, quando ali afirma que “a impugnação pauliana está na exclusiva disponibilidade dos credores”, ficando reservada para o administrador a actuação a nível da resolução a favor da massa insolvente.

            Opinião que é, igualmente, a sustentada, por Cura Mariano, in Impugnação Pauliana, Almedina, 2004, pág.s 273 e 274, que ali conclui:

“Actualmente, após a entrada em vigôr do C.I.R.E., aproveitando a procedência da acção pauliana somente ao credor impugnante, o administrador da insolvência carece de legitimidade para deduzir este tipo de acções ou para nelas intervir.”.

            Assim sendo, não merece censura a decisão recorrida ao defender a ilegitimidade da autora para a propositura da presente acção de impugnação pauliana, a qual, assim, é de manter, o que acarreta a improcedência desta questão do recurso.

           

B. Se a decisão recorrida viola o disposto no artigo 20.º da CRP.

No que a esta questão respeita, alega a recorrente que a decisão recorrida viola o preceito constitucional em referência, por configurar uma denegação injustificada de acesso aos tribunais, para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos.

Dispõe-se no artigo 20.º da CRP, o seguinte:

“1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”.

Salvo o devido respeito, a decisão recorrida em nada contende com os direitos conferidos no comando constitucional em análise.

O que ali se consagra é o direito de acesso aos tribunais e ao direito para defesa dos seus interesses, mediante a prolação de uma decisão em prazo razoável e através de um processo equitativo, o “due process”, consistindo, como o referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, a pág, 414 e seg.s no “ o direito de acção no direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento do órgão judicial, solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão sobre ele se pronunciar mediante decisão fundamentada (direito à decisão) e, consoante o sentido da decisão, exigir, se for o caso disso, a execução da decisão do tribunal proferida no caso.”.

            Através de um processo equitativo, no sentido de conformado a uma forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva, em posição de igualdade de armas, na proibição da indefesa, com sujeição a prazos razoáveis de acção ou de recurso, direito à fundamentação das decisões, decisão em tempo razoável, direito ao conhecimento dos dados processuais, direito à prova e um processo orientado à justiça material.

À recorrente foi reconhecido o direito de acesso aos tribunais e ao direito com vista à defesa/protecção do direito a que se arroga.

            Como consabido o direito corporiza-se num conjunto de regras que regula os conflitos de interesses entre os litigantes, tanto do ponto de vista objectivo como adjectivo, de molde ao normal e igualitário tratamento de ambas as partes no decurso de um processo judicial.

            Tais interesses e fundamentos em nada saem beliscados com o facto de se decidir que a autora é parte ilegítima para a presente acção, por se considerar que o meio de tutela efectiva era outro (a resolução em benefício da massa insolvente) que não o usado pela parte (impugnação pauliana).

            É ao legislador ordinário que incumbe definir os termos em que o direito de acção, tendente à apreciação dos mais variados direitos, deve ser tramitado e conhecido.

            In casu, através do CIRE acham-se definidos os meios aos quais as partes interessadas devem lançar mão para atacar os actos praticados pelo insolvente em prejuízo da massa insolvente, tendo estas de se conformar com os termos ali estabelecidos para verem reconhecidos os seus direitos.

            E para tal, consagrou o legislador ordinário a solução de que a resolução é atribuída ao administrador da insolvência e a impugnação pauliana aos credores, nos termos acima referidos, em nada ficando prejudicados os interesses/direitos dos credores da massa insolvente, desde que, em conformidade com o legislativamente consagrado se actue em conformidade.

            Pelo que, não padece a decisão recorrida da invocada inconstitucionalidade.

            Consequentemente, também, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:       

Julgar improcedente o presente recurso de apelação e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pela massa insolvente.

            Coimbra, 10 de Julho de 2014.

Arlindo Oliveira (Relator)

Emídio Francisco Santos

Catarina Gonçalves