Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3620/10.1TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO
CRÉDITO
CONTA CORRENTE
Data do Acordão: 03/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TONDELA 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 46º DO CPC
Sumário: O mero clausulado geral duma proposta de contrato de crédito em conta corrente que a executada, como proponente indeterminada, subscreveu, de que não resulta a aceitação de tal proposta, a concessão de crédito nem a disposição “real” de quaisquer montantes, não constitui um título executivo.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A..., residente no ..., Tondela, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhe moveu a “B..., S.A.”, com sede em Lisboa – para haver dela a quantia global de € 12.171,90 (sendo € 9.584,17 de capital e € 2.587,73 de juros vencidos) e juros vincendos – veio deduzir oposição à execução, invocando, entre outras coisas e para o que aqui releva, a falta de título executivo, uma vez que a exequente juntou como “título” um documento denominado “proposta/contrato de crédito condições particulares 70060434”, datado de 23 de Maio de 2006, documento que, analisado, não permite concluir se chegou ou não a ser concedido crédito, bem como qual a data em que o mesmo foi concedido, que montante foi concedido e por que prazo; não resultando, assim, de tal documento/título a constituição ou o reconhecimento da obrigação que a exequente pretende ver satisfeita.

Contestou a exequente, sustentando, em resumo e no que aqui interessa, que o documento oferecido é conforme ao artigo 46º/c) do CPC, sendo o mesmo probatório do reconhecimento da dívida pela executada; que, “em virtude da utilização do crédito, eram emitidos e enviados à executada extractos em conta corrente”, a que esta nunca manifestou discordância, “reconhecendo a exequibilidade das dívidas decorrentes da utilização do crédito em conta corrente e a sua responsabilidade pelo respectivo pagamento”.

Conclusos os autos, a Ex.ma Juíza entendeu estar em condições, sem mais, de decidir do “mérito” e passou a proferir saneador/sentença em que julgou procedente a oposição, absolvendo a executada/oponente da instância executiva.

Inconformada com tal decisão, a exequente interpôs recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a oposição, na parte decidida, improcedente.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento executivo que deu origem aos presentes autos, com fundamento na ocorrência da manifesta falta ou insuficiência de titulo executivo.

2. O Tribunal a quo afirma que do documento junto como titulo executivo não se afere que a obrigação seja certa, líquida e exigível.

3. Salvo devido respeito, não assiste, todavia, razão ao douto tribunal a quo.

4. A Exequente, ora apelante, intentou execução comum para pagamento da quantia de certa, no valor de 12,171,90 €.

5. Para tanto apresentou um Contrato de Crédito em Conta Corrente, assinado pela devedora/executada em 05/2006.

6. Entendeu o Tribunal a quo não reconhecer força executiva ao contrato de crédito de conta corrente, considerando que do mesmo não resulta a demonstração da existência da obrigação exequenda, nem o pagamento da quantia devida.

7. O documento não só comprova, como integra, a constituição da obrigação de reembolso, uma vez que o Executado assumiu a obrigação de pagamento dessa quantia pecuniária, ainda que diluída num dado período temporal, mediante a oposição da sua assinatura no local destinado à assinatura do mutuário.

8. A propositura da acção executiva implica que o pretenso Exequente disponha de título executivo, por um lado, e que a obrigação exequenda seja certa, líquida e exigível, por outro.

9. A obrigação é certa, está liquidada (por cálculo aritmético) e é exigível, já que decorre do disposto no art. 781º do CC e da cláusula nº 10.

10.Assim, pelo requerimento pretende-se obter o pagamento da quantia em dívida, atinente ao reembolso do crédito concedido. Tal reembolso constitui obrigação assumida expressa e pessoalmente pelo devedor no contrato que titula a execução.

11. Pelo que, cumprindo o contrato de crédito de conta corrente apresentado à execução os três requisitos legais para valer enquanto título executivo nos termos do art. 46 nº1 c) do CPC: assinatura do devedor, reconhecimento de uma obrigação pecuniária, aritmeticamente determinável, não pode concluir-se pela falta de título executivo na execução subjacente aos presentes autos.

12. Nos termos do art.º 46.º, al. c) do Código de Processo Civil, constituem títulos executivos os documentos particulares assinados pela devedora, que importam constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético. Deste modo, o título executivo é um documento sujeito a determinados requisitos formais, que devem incorporar uma determinada relação jurídica substancial, na medida em que aquilo que não se encontre plasmado no documento ou no título não pode ser objecto de execução.

13.Não há dúvida que os contratos de crédito de conta corrente são documentos particulares e que estes vinculam por via da assinatura do cliente bancário, que assim reconhece a obrigação neles inscrita. O contrato é dinamizado sobretudo mediante a convenção de cheques que permite ao titular da conta requisitar cheques, com os quais emite ordens de pagamento dos fundos que existam na sua conta, até ao limite dos mesmos ou até ao plafond (abertura de crédito) associado ou acordado e que consubstancia um crédito. Também sucede algumas vezes que por via da relação de confiança estabelecida entre a entidade bancária e o titular da conta, aquela paga fundos inexistentes ou não contratados, confiando na sua posterior reposição.

14.O objecto da obrigação garantida é uma obrigação pecuniária concreta, de montante limitado e pré-fixado (nos créditos em conta-corrente o que se fixa é o montante máximo, por o montante concreto poder ser variável), conhecido o seu limite máximo e origem. O objecto não é portanto indeterminável: ele é determinado no seu montante máximo e na sua origem. Como todos os anotadores do CC exigem para que a obrigação se considere determinável, no quadro do art. 280, nº1 do CC.

Respondeu a executada, sustentando, em síntese, que a sentença recorrida não violou qualquer norma, designadamente, as referidas pelos exequente/recorrente, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

*

*


III – Fundamentação de Facto

São os seguintes os factos com relevo para a apreciação do recurso:

1 -Foi instaurada execução comum, para pagamento de quantia certa, com base em proposta/contrato de crédito, com condições particulares e gerais, sendo que, das condições particulares constam todos os elementos identificativos da executada, bem como a assinatura desta e a data aposta de 23/05/2006.

2 – Não consta, das condições particulares do aludido documento, o valor do crédito proposto nem as condições do mesmo (início e termo, montante da prestação e número das mesmas, e respectivas datas de vencimento etc.).

3 – Da clausula 1.1. das condições gerais do documento consta:

“ O serviço Crédito Pessoal Capital Mais oferecido pela B ... (…) consiste na concessão de crédito em conta corrente, permitindo assim que o subscritor movimente fundos até ao montante máximo autorizado (…)”.

4 – Da cláusula 2.2 consta:

“Após a recepção do exemplar do contrato enviado pelo subscritor a B ...reserva-se o direito de analisar e comprovar as informações prestadas por aquele, podendo em resultado de tal análise recusar a concessão de crédito”.

5 – Alegou a exequente, no requerimento executivo, o seguinte:

“Por documento particular outorgado foi celebrado em 24/03/2006, pela B ... Finance com o executado um contrato no valor e condições que constam do titulo executivo, conforme documento 1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

O executado comprometeu-se ao pagamento em prestações mensais e sucessivas.

O executado nunca denunciou o contrato nos termos das cláusulas do contrato.

No entanto, desde 01/09/2008 o executado nada pagou.

Data em que o referido contrato de crédito foi resolvido.

Nos termos das cláusulas do contrato, em caso de resolução devido ao incumprimento do executado, existirá um acréscimo de 4% sobre o capital em dívida, a título de cláusula penal.

Assim sendo, o valor em divida é de € 9.584,17.

Aquela quantia vence juros legais desde a data atrás referida até à data da propositura da presente execução.

Os quais são, neste momento no valor de € 2.587,73.

Pelo que, é pois a quantia exequenda de € 12.171,90 (…)”.

6 – Em 25/11/2009, a B ... Finance, SA, cedeu o crédito que detinha sobre a executado à exequente através de contrato de cessão de créditos.


*

III – Fundamentação de Direito

A questão do recurso é relativamente simples e pacífica; sendo evidente, a nosso ver, o acerto da decisão recorrida.

A questão – sublinha-se – não está em saber se a executada/oponente deve a quantia peticionada; a questão está antes, ainda no momento processual, em saber se a exequente demonstrou possuir título executivo contra a executada oponente.

Vejamos:

Ao contrário da acção declarativa, a acção executiva não tem lugar perante a mera invocação da violação dum direito; antes pressupõe uma prévia solução sobre a existência e configuração do direito exequendo.

Daí o dizer-se que o “acertamento” é o ponto de partida da acção executiva, uma vez que a realização coactiva da prestação pressupõe a anterior definição dos elementos (subjectivos e objectivos) da relação jurídica.

Daí o dizer-se que o título – onde há-de constar tal “acertamento” – constitui a base da execução, sendo por ele que se determina o “fim e os limites da acção executiva” – cfr. 45.º/1 do CPC.

“Título executivo” que corresponde ao meio legal de demonstração da existência do direito do exequente; que é um documento escrito que, mais do que um meio de prova do facto constitutivo do direito, é a materialização ou corporalização do direito exequível; que é um documento a que, com base na aparência ou na probabilidade do direito nele documentado, o ordenamento jurídico assinala um suficiente grau de certeza e de idoneidade para constituir uma condição de exequibilidade extrínseca da pretensão.

Efectivamente, como correctamente se refere na sentença recorrida, a acção executiva – além de exigir a verificação dos pressupostos gerais do processo civil – exige a verificação de condições/pressupostos processuais específicas.

Condições/pressupostos processais específicos que são requisitos de admissibilidade da acção executiva, sem os quais não têm lugar as providências executivas que o tribunal deverá realizar com vista à satisfação da pretensão do exequente.

É o caso da existência dum título executivo – condição processual de exequibilidade extrínseca da pretensão – dum documento revestido de determinada força, dum “invólucro” em que a lei presuma contido o direito violado.

É o caso da certeza, exigibilidade e liquidez da obrigação exequenda – condições processuais de exequibilidade intrínseca da pretensão – constante do título executivo

Daí o dizer-se ser o “título” condição/pressuposto necessário da acção executiva; título que tem obrigatoriamente que ser um dos referidos no art. 46.º do CPC.

Sendo que, no caso, a exequente/apelante invoca ter apresentado um documento particular assinado pela devedora que importa a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, isto é, invoca que o “título” que apresentou preenche o artigo 46º/1, c), do CPC, em que se diz que podem servir de base à execução “ (…) c) os documentos particulares assinados pelo devedor que importa a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples calculo aritmético (…)”.

Não é, porém, o caso.

O documento apresentado – como se extrai dos factos antes alinhados – é o mero clausulado geral duma proposta de contrato de crédito em conta corrente que a executada, como proponente indeterminada, subscreveu; documento de que não resulta, por não ter sido junto qualquer documento em tal sentido, a aceitação de tal proposta de contrato de crédito em conta corrente, a concessão de crédito e a disponibilização “real” de quaisquer montantes.

Que assim é, resulta à saciedade das conclusões 7.ª e 10.ª da alegação recursiva da exequente, em que esta nem sequer logra concretizar, sintomaticamente, o exacto montante/crédito que resulta como concedido da simples leitura do único documento apresentado como título executivo[1].

Enfim, o documento apresentado, com título executivo, não espelha a constituição e o reconhecimento de qualquer obrigação pela executada.

Ao que se acrescenta, ainda, que as condições/pressupostos processais específicos supra referidos têm de se verificar antes de serem ordenadas as providências executivas; e se resultarem de ocorrências anteriores à propositura da acção executiva, há que nesta provar que tais ocorrências anteriores aconteceram.

A esta actividade de prova (prova complementar do título) se refere o art. 804.º do CPC que tem alcance geral[2], pelo que se aplica, para além dos casos neles expressamente previstos (obrigação dependente de condição suspensiva ou duma prestação por parte do credor ou de terceiro), a todos aqueles casos em que os pressupostos processuais específicos, supra referidos, não resultem na íntegra dos documentos apresentados como título executivo.

É também por isto que se vem entendendo que “uma mera proposta para concessão de crédito dirigida a uma instituição bancária, sem estar acompanhada de qualquer prova de que o crédito tenha sido concedido, qual o montante eventualmente concedido e em que condições, não pode ser entendida como constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação pecuniária e, consequentemente não é titulo executivo [3]; o que, significa, a contrario, que estaremos por certo perante um título executivo, se o exequente tiver apresentado, além da proposta de contrato de crédito, o documento em que concedeu o crédito e os documentos (extracto de conta bancária) reveladores da utilização do crédito.

É que, lembra-se, o contrato de abertura de crédito – nomeado, entre outras operações bancárias, no art. 362.º do C. Comercial – é o contrato consensual[4] em que a instituição financeira se obriga a disponibilizar ao cliente a utilização de determinada quantia em dinheiro durante certo período de tempo, obrigando-se este a, para além das comissões e dos juros, a reembolsar os montantes que efectivamente foram colocados à sua disposição; isto é, a obrigação de reembolso só nasce se e na medida da disponibilização/utilização efectiva do crédito, pelo que, como é evidente, para a instituição de crédito dar à execução tal obrigação, tem de provar, não só o contrato de abertura de crédito, mas também as concretas disponibilizações/utilizações efectivas do crédito.

Ora, é esta prova que, claramente, não foi sequer tentada.

É certo que, em tal hipótese – se não for imediatamente oferecida e efectuada a prova complementar do título – o juiz deve proferir despacho de aperfeiçoamento (cfr. 812.º/4 e 5 do CPC) e só no caso do exequente não aperfeiçoar a petição é que se procede a indeferimento liminar; porém, tal aperfeiçoamento só pode acontecer na fase introdutória, uma vez que, prosseguindo a execução (como é o caso) e sendo deduzida oposição, cumpre – tanto mais que a exequente não procurou sequer sanar a falta dos pressupostos específicos, juntando a pertinente “prova complementar” em falta – reconhecê-lo e absolver a executada/oponente da instância executiva.


*


IV - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se totalmente a sentença recorrida.

Custas, em ambas as instâncias, pela exequente/apelante.


Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] Diz-se, na conclusão 7.ª, “que o Executado assumiu a obrigação de pagamento dessa quantia pecuniária”; e, na conclusão 10.ª, “pelo requerimento pretende-se obter o pagamento da quantia em dívida, atinente ao reembolso do crédito concedido”; sem nunca – é significativo – se concretizar qual é a “quantia monetária” e/ou o “crédito concedido” que resultam do “título”.
[2] Em linha, aliás, com o que também se dispõe no art. 50.º do CPC.
[3] Conforme Ac. da Relação de Évora, de 18/10/2007, citado na sentença recorrida.
[4] Por contraponto a “real”, de que o mútuo ainda costuma ser dado como exemplo.