Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5149/19.3YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: REQUERIMENTO DE INJUNÇÃO
CAUSA DE PEDIR
FACTOS
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.147, 186, 552 CPC, DL Nº 269/98 DE 1/9, PORTARIA Nº 220-A/2008 DE 4/3
Sumário: I – Nos termos do artigo 186.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, a causa de pedir é constituída pelo facto ou factos concretos que preenchem a norma jurídica da qual o Autor faz derivar os direitos que, segundo ele, conduzirão à procedência do pedido.

II – O facto deve ser identificado com referência a um lugar geográfico, a uma data, eventualmente aos sujeitos intervenientes (como o Autor ou o Réu) e a uma configuração da realidade histórica (acontecimento) com um certo sentido, compreensível, significativo.

II – Não satisfaz estes requisitos a petição que utilizando o modelo pré-preenchido, previsto na Portaria n.º 220-A/2008, de 4 de Março, contém no campo impresso identificado como «Contrato»: «Fornecimento de bens ou serviços»; no campo relativo à «Data do contrato»: «14-10-2010»; no campo identificado como «Exposição dos factos que fundamentam a pretensão»: «Notas de débito no valor de 7 708,72 € + juros entre 14/10/2010 e 21/01/2019…».

Decisão Texto Integral:







I. Relatório

a) O presente recurso insere-se numa ação declarativa, com processo especial, para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, e respeita à decisão que a seguir se exara, a qual concluiu pela ineptidão da petição.

A decisão tem o seguinte teor:

«(…) Importa atentar no conteúdo do requerimento inicial e, complementarmente, no teor da oposição, aqui dados por integralmente reproduzidos.

Diz-se inepta a petição inicial quando, além do mais, falte ou seja ininteligível a indicação da causa de pedir – cf. CPC, art. 186.º, 2, a).

É nos articulados, enquanto “peças processuais em que as partes expõem os fundamentos da acção e da defesa e formulam os pedidos correspondentes” que as partes definem as suas pretensões jurisdicionais – cf. CPC, art.º 147º.

Para que o tribunal possa dirimir um concreto litígio submetido à sua apreciação, necessário é que as partes fixem com precisão os termos exactos da lide.

É esta a função dos articulados e é no período dos mesmos que se instaura o pleito e se definem os seus termos, em que se traduz o ciclo de deduções ou afirmações das pretensões e razões das partes, sendo estas últimas, essencialmente, de facto.

A petição inicial, como articulado onde o demandante propõe a acção, deduzindo certa pretensão de tutela jurisdicional, com a menção do direito a tutelar e dos fundamentos respectivos - e que é levada ao conhecimento do réu - é a base do processo sem o qual ele não pode existir.

O conteúdo da petição inicial é relevantemente determinado por esta função e natureza, dela devendo constar, além dos requisitos gerais – cf. CPC, art.º 552º -, a narração dos factos que servem de fundamento à acção (a causa de pedir) e o meio de tutela pretendido (o pedido), exigências que se aplicam aos requerimentos de injunção: depreende-se do teor do diploma aplicável – cf. DL n.º 269/98, de 01-09, art.º 10º - ao disciplinar a forma e o conteúdo que o requerimento de injunção deve observar e respeitar, a saber, a exposição sucinta dos factos que fundamentam a pretensão - cf. art.º 10º-2-d).

O legislador, ao fazer expressa menção e exigência de tal exposição de factos que suportem a pretensão em causa, visa significar, claramente, que o requerente da injunção não está, de modo algum, dispensado de invocar em tal requerimento os factos jurídicos concretos que integram a respectiva causa de pedir.

Todavia, a lei só flexibiliza a sua narração em moldes sintéticos e breves.

No caso dos autos, é o seguinte o conteúdo da petição inicial (primitivamente um requerimento de injunção):

(i) alude-se a um contrato de “fornecimento de bens ou serviços”;

(ii) contrato esse celebrado na data de “14-10-2010”;

(iii) indica o capital em dívida no montante de “€15.417,44” e a quantia de juros de mora já vencidos de “€9.435,45”;

(iv) no campo da exposição dos factos indica: “notas de débito no valor de 7.708,72 € + juros ()” e “notas de débito no valor de 7.708,72 € + juros ()”.

(v) Posteriormente, por requerimento enviado aos autos, em resposta à alegação da ré de nulidade por ineptidão, a autora juntou um conjunto de 36 documentos (fls. 13 a 30) visando provar a “causa de pedir que sustenta o pedido” (fls. 11 v.º), denominados “notas de débito”, contendo, no campo “designação”, os seguintes dizeres: “encargos do título de dívida n.º 49 () reforma de 2.555,32€ para 2.235,91€, isento de IVA ()” (fls. 14), “falta de amortização C/ reforma V/ Aceite ()”, dizeres estes repetidos, com indicação de diversas quantias, ao longo dos mencionados 36 documentos.

Nada mais é dito ou alegado no requerimento de injunção ou em requerimentos posteriores.

Quando uma petição contém todos os elementos necessários à decisão de uma causa do ponto de vista da aplicação do direito substantivo, mas alegados de forma incompleta, estaremos perante uma petição que se situa no patamar da deficiência que não já pelo da ineptidão – vd., sobre a distinção entre uma petição deficiente e uma petição inepta, inter alia, Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. II, C.ª Ed., 1945, p. 372; Ac. da RC de 02.11.1999 (António Geraldes), www.dgsi.pt/jtrc; e Ac. da RC de 04.05.2004 (Rui Barreiros), www.dgsi.pt/jtrc.

Mas já estaremos perante um caso de ineptidão quando há falta absoluta de narração dos factos que integram a respectiva causa de pedir – o conjunto de factos concretos da vida real de que depende a apreciação e procedência do pedido que nela entronca -, tratando-se de um caso em que o conjunto de factos essenciais não se mostra alegado ou recortado, por forma a individualizar a acção e a permitir a formação de caso julgado – vd. Antunes Varela, Bezerra, Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Ed.,C.ª Ed.ª, 1985, p. 245; cf. neste sentido, reconhecendo uma situação de ineptidão, o Ac. da RC de 18.10.2016, rel. Desemb. Manuel Capelo, proc. n.º 203848/14.2YIPRT.C1, www.dgsi.pt/jtrc.

Não basta, pois, para o preenchimento da exigência legal, a indicação vaga ou genérica dos factos em que o autor fundamenta a sua pretensão. A lei comina com a nulidade absoluta – o que vai afectar todo o processo, conduzindo à absolvição da instância – a petição inicial inepta, salvo se o réu interpreta convenientemente a p.i. - cf. CPC, art.º 186º-3.

Da petição inicial verifica-se que a autora reclama o pagamento de um crédito de que se arroga titular, mas não alega qualquer facto que o concretize, sendo certo que “fornecimento de bens ou serviços” é um mero conceito ou designação genérica e abstracta pré-mencionada, por defeito, no formulário injuntivo, limitando-se a autora a indicar que a dívida se funda em “notas de débito” cujos números indica, sem se saber a que respeitam as asserções “encargos do título de dívida”, “reforma de 2.555,32€ para 2.235,91€, isento de IVA” ou “falta de amortização C/ reforma V/ Aceite”, sendo certo que, por um lado, os documentos consubstanciam meios de prova e não factos ou ocorrências da vida real e, por outro, não se extraindo, sequer, das aludidas “notas de débito”, a origem da dívida ou a que fornecimento de bens ou serviços se reporta (note-se que as notas de débito são documentos rectificativos de facturas, sendo por vezes emitidas quando há necessidade de corrigir ou rectificar a não aplicação do IVA na factura ou a aplicação de uma taxa de IVA inferior à que devia ter sido aplicada, tratando-se de mero documento contabilístico, reportado a determinadas facturas, pelo que nem sequer exterioriza, suporta ou exprime a ocorrência de qualquer compra e venda, fornecimento de bens ou prestação de serviço).

Ou seja, verifica-se uma completa omissão da causa de pedir, desconhecendo-se por completo, qual a ocorrência real que esteve na origem do invocado crédito, não se concretizando, minimamente, em que consistiu o fornecimento de bens, quais os bens fornecidos ou que serviços foram prestados, individualizando a causa de pedir, sendo certo que as facturas, notas de débito e outros escritos são documentos, alguns de cunho estritamente contabilístico, que não se confundem com factos – ocorrências da vida real – mas simples meios de prova, razão por que se entende que, no campo reservado à “exposição dos factos que fundamentam a pretensão”, disponível no formulário da injunção, a autora nada alegou.

Verifica-se, portanto, que a autora não circunscreve a causa de pedir na presente acção, inscrevendo-se a petição injuntiva em torno de uma discussão de um contrato ou negócio jurídico abstractamente considerado e seu suposto incumprimento, sem que o tribunal e a própria ré, como decorre da sua oposição perceba ou alcance, com certeza jurídica, de que realidade se está a falar ou a individualizar e, consequentemente, a decidir (note-se que a ré não discutiu o conteúdo da relação jurídica que supostamente desconhece, limitando-se a negar ser devedora, o que não permite integrar a defesa no âmbito de aplicação normativa previsto no referido art.º 186º-3 do CPC; vd. fls. 6 v.º).

Assim, é de concluir que a presente petição inicial injuntiva padece do vício da ineptidão, por falta de causa de pedir, o que conduz à nulidade de todo o processado, com a consequente absolvição da ré da instância – cf. CPC, 186º-1-2-a), 196º, 200º-2, 201º, 576º-2, 577º-b); cf. DL n.º 269/98, de 01-09, art.ºs 3º-1 e 17º-1.

As custas devem ser suportadas pela autora e requerente, no mínimo legal, por a elas haver dado causa – cf. CPC, art.º 527º-1-2; e RCP, art.º 7º-4 e Tabela II Anexa.

Atento o exposto, e em consequência, decide-se:

I - Julgar inepta, por falta de causa de pedir, a petição inicial injuntiva apresentada por Massa Insolvente de A (…), S.A., e, em consequência, julgar nulo todo o processo, absolvendo-se L (…), Lda. da instância.

II – Custas a cargo da autora, com taxa de justiça no mínimo legal.

III – Valor da acção: €24.892,89 – cf. DL n.º 269/98, de 01-07, art.º 18º.

IV – Notifique e registe».

B) É desta decisão, como se disse, que vem interposto o presente recurso, cujas conclusões são as seguintes:

As questões fulcrais a decidir reconduzem-se a saber se a petição inicial (requerimento de injunção) é inepta, por falta de causa de pedir, se, nessa hipótese, deveria o Tribunal recorrido, ter proferido despacho a convidar o A. a suprir as irregularidades, insuficiências ou imprecisões da petição, e se, a ausência desse convite constitui nulidade.

Assim, argui-se e conclui-se que:

a) Não se verifica a falta do pedido ou da causa de pedir, nem os mesmos são ininteligíveis.

b) O A., no requerimento de injunção apresentado e no posterior requerimento, indica o pedido (pagamento de determinada quantia) e a origem do mesmo (contrato de fornecimento de bens e serviços) e faz referência às nota de débito (36 documentos juntos) e ao valor das mesmas.

c) Estão, pois, preenchidos os requisitos exigidos pelo artº 10º, nº 2, do DL nº 269/98, nomeadamente os constantes das alíneas d) e e).

d) Atento o disposto no artº 3º, nº 3, do DL nº 269/98, as provas são juntas em audiência de julgamento, mas, não obstante tal disposição, a Requerente e A. já teve o cuidado de juntas os ditos documentos.

e) A petição inicial (requerimento inicial) não é ininteligível, porquanto a Requerida/R. na sua oposição/contestação demonstrou que compreendeu o pedido formulado pela Requerente/A..

f) Mesmo que se entendesse que a indicação da causa de pedir era deficiente também não levaria à ineptidão pois ela foi perfeitamente entendida pela outra parte – cfr. Acórdão do TRP de 01/02/96, processo 9431068, e acórdão do TRP de 25/03/96, processo 9551104.

g) O Mmº Juiz a quo, não notificou a Requerente/A. para se pronunciar contra uma eventual ineptidão, pelo que não houve convite ao aperfeiçoamento da petição, o que configura uma nulidade.

h) A correcção da petição inicial não só é admissível como também é obrigatória nos termos do artº 590º do NCPCivil, em conjugação com o at.º 6.º do NCPC. Com efeito, com a revogação do artº 477º do antigo Código de Processo Civil findou a clássica distinção entre petição irregular e petição deficiente e impôs-se ao juiz, o poder-dever de convidar o autor e ré a suprir todas as irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados.

i) Se for decidido absolver o réu da instância devido a ineptidão da petição inicial, sem prévio convite ao aperfeiçoamento do mesmo articulado, daí derivando o fracasso da acção, a omissão constitui nulidade prevista no artº 195º, nº 1, do Código de Processo Civil.

j) O Mmº Juiz “a quo” deveria ter ordenado de forma clara e inequívoca as correcções que entendesse necessárias e não decidir sobre a ineptidão da petição inicial sem convite às partes para se pronunciar.

k) A omissão do Mmº Juiz, ao não convidar o Autor a suprir todas as irregularidades, insuficiências ou imprecisões do requerimento inicial, constitui nulidade prevista no artº 195º, nº 1, do Código de Processo Civil, porque influiu na decisão da causa.

l) Quer no procedimento de injunção quer na consequente transmutação em acção declarativa houve menção fáctica à causa de pedir que foi minimamente alegada e inteligível, não podendo concluir-se, como fez o tribunal recorrido, pela inexistência de causa de pedir e consequente ineptidão da petição.

Pelo exposto,

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Ex.ªs doutamente suprirão,

Deve concede-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrido, que deve ser substituída por outra em que, não julgando inepta a petição, ordene o prosseguimento dos autos.

Como é de elementar JUSTIÇA!».

c) A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.

Sustenta que a petição ostenta uma ausência absoluta de narração de quaisquer factos – não se tratando de uma petição imprecisa ou deficiente –, razão pela qual não se podia equacionar o aperfeiçoamento de uma causa de pedir quando esta é simplesmente omitida, sendo certo que a recorrida não percebeu a que relações jurídicas a Autora se estava a referir.

Por isso, nada tendo sido alegado, nada podia ser aperfeiçoado ou concretizado.

II. Objeto do recurso

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o recurso coloca apenas uma questão, que é a seguinte:

Verificar se a petição inicial enferma ou não de ineptidão.

III. Fundamentação

A) Factos a considerar

1 - Consta da petição inicial o seguinte:

«O(s) requerentes(s) solicita(m) que seja(m) notificado(s) o(s) requeridos, no sentido de lhe(s) ser paga a quantia de € 24.852,89 conforme discriminação e pela causa a seguir indicada:

Capital: € 15.417,44 Juros de mora: € 9.435,45 à taxa de: 0,00%, desde….até à presente data; Outras quantias: € 0,00. Taxa de Justiça paga: € 0,00.

Contrato de: Fornecimento de bens ou serviços. Contrato nº:….

Data do contrato: 14-10-2010. Período a que se refere:….a….

Notas de débito no valor de 7 708,72 € + juros entre 14/10/2010 e 21/01/2019 (133,48 € (79 dias a 8,00%) + 305,81 € (181 dias a 8,00%) + 320,60 € (184 dias a 8,25%) + 307,50 € (182 dias a 8,00%) + 310,88 € (184 dias a 8,00%) + 296,26 € (181 dias a 7,75%) + 291,45 € (184 dias a 7,50%) + 277,14 € (181 dias a 7,25%) + 277,85 €(184 dias a 7,15%) + 269,50 € (181 dias a 7,05%) + 273,97 € (184 dias a 7,05%) + 270,99 € (182 dias a 7,05%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 267,59 € (181 dias a 7,00%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 267,59 € (181 dias a 7,00%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 31,05 € (21 dias a 7,00%))

Notas de débito no valor de 7 708,72 € + juros entre 14/10/2010 e 21/01/2019 (133,48 € (79 dias a 8,00%) + 305,81 € (181 dias a 8,00%) + 320,60 € (184 dias a 8,25%) + 307,50 € (182 dias a 8,00%) + 310,88 € (184 dias a 8,00%) + 296,26 € (181 dias a 7,75%) + 291,45 € (184 dias a 7,50%) + 277,14 € (181 dias a 7,25%) + 277,85 € (184 dias a 7,15%) + 269,50 € (181 dias a 7,05%) + 273,97 € (184 dias a 7,05%) + 270,99 € (182 dias a 7,05%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 267,59 € (181 dias a 7,00%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 267,59 € (181 dias a 7,00%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 31,05 € (21 dias a 7,00%))

Capital Inicial: 15 417,44 €

Total de Juro: 9 435,45 €

Capital Acumulado: 24 852,89 €».

2 – Após a contestação da Ré, a Autora juntou aos autos cópias de 36 «notas de débito», constando da primeira, que tem o n.º 30100053, a título de exemplo, o seguinte:

«Encargos com o título de dívida n.º 49 – 57058097170»

«Reforma de 2.555,32 € para 2235,91 €»

Bem como o montante de «73,50», data de vencimento, NIF e identificação do devedor.

B) Vejamos então se a petição é inepta por carecer de causa de pedir

Nos termos do artigo 186.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, a petição é inepta «Quando falte ou seja ininteligível a indicação (…) da causa de pedir».

Como referiram Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, «A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido» ([1]).

Acrescentam que «Não basta, para o preenchimento da exigência legal, a indicação vaga ou genérica dos factos em que o autor fundamenta a sua pretensão (dizendo, p. ex., na acção possessória de manutenção, que o réu tem praticado actos de perturbação do seu direito; na acção de divórcio, que o réu tem violado os seus deveres conjugais, sem mais precisão; na acção de reivindicação, não indicando todos os factos concretos que interessam à aquisição do domínio…» ([2]).

Ainda no que respeita ao facto, Miguel Teixeira de Sousa explicita que, «Um facto é um elemento de uma cadeia temporal com todos os componentes que o demarcam dos demais. Porém, muito raramente os factos se acham isoladamente presentes na causa de pedir. O mais frequente é a formação desta por um composto fáctico que esgota um acontecimento ou deste é uma parcela» ([3]).

No caso dos autos, verifica-se que a Autora utilizou o modelo pré-preenchido, previsto na Portaria n. º 220-A/2008, de 4 de Março.

No campo impresso identificado como «Contrato», a Autora escreveu:

«Fornecimento de bens ou serviços»;

No campo relativo à «Data do contrato», a Autora colocou:

«14-10-2010».

E no campo identificado como «Exposição dos factos que fundamentam a pretensão», a Autora escreveu:

«Notas de débito no valor de 7 708,72 € + juros entre 14/10/2010 e 21/01/2019 (133,48 € (79 dias a 8,00%) + 305,81 € (181 dias a 8,00%) + 320,60 € (184 dias a 8,25%) + 307,50 € (182 dias a 8,00%) + 310,88 € (184 dias a 8,00%) + 296,26 € (181 dias a 7,75%) + 291,45 € (184 dias a 7,50%) + 277,14 € (181 dias a 7,25%) + 277,85 €(184 dias a 7,15%) + 269,50 € (181 dias a 7,05%) + 273,97 € (184 dias a 7,05%) + 270,99 € (182 dias a 7,05%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 267,59 € (181 dias a 7,00%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 267,59 € (181 dias a 7,00%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 31,05 € (21 dias a 7,00%))

Notas de débito no valor de 7 708,72 € + juros entre 14/10/2010 e 21/01/2019 (133,48 € (79 dias a 8,00%) + 305,81 € (181 dias a 8,00%) + 320,60 € (184 dias a 8,25%) + 307,50 € (182 dias a 8,00%) + 310,88 € (184 dias a 8,00%) + 296,26 € (181 dias a 7,75%) + 291,45 € (184 dias a 7,50%) + 277,14 € (181 dias a 7,25%) + 277,85 € (184 dias a 7,15%) + 269,50 € (181 dias a 7,05%) + 273,97 € (184 dias a 7,05%) + 270,99 € (182 dias a 7,05%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 267,59 € (181 dias a 7,00%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 267,59 € (181 dias a 7,00%) + 272,02 € (184 dias a 7,00%) + 31,05 € (21 dias a 7,00%))

Sendo a causa de pedir constituída pelo facto ou factos concretos que preenchem a norma jurídica da qual o Autor faz derivar os direitos que, segundo ele, conduzirão à procedência do pedido, então o facto há de ser identificado com referência a um lugar geográfico, a uma data, eventualmente a sujeitos intervenientes (como o Autor ou o Réu), se os houver, e a uma configuração da realidade histórica com um certo sentido, compreensível, significativo, isto é, um acontecimento.

O local e a data poderão ser considerados secundários se a narração do acontecimento factual for suficiente para a compreensão do facto.

Já não assim, quanto aos traços históricos que permitem individualizar o acontecimento em relação a outros acontecimentos.

Se este não for descrito de modo a ter um sentido, a ser compreensível por terceiros, então, não sabemos do que se trata.

E se não sabemos do que se trata isso é sinal de que falta de todo a informação necessária para identificar o acontecimento e no caso da petição inicial falta a causa de pedir.

Afigura-se que no caso dos autos existe esta falta de informação acerca do acontecimento histórico a partir do qual a Autora deduz a sua pretensão.

A referência a «notas de débito» sem qualquer identificação dos negócios a que se referem, não permitem identificar o facto histórico do qual serão uma consequência.

Do mesmo modo, a indicação do seu montante não permite saber, compreender, alcançar intelectualmente o acontecimento histórico que deu origem a essa nota de crédito.

É certo que a Autora veio, após a contestação, juntar documentos que corporizam essas notas de crédito, mas nesta altura a petição já se encontra nos autos e ou é inepta ou não é.

Admitindo-se que as referidas notas de crédito poderiam desempenhar a função de aperfeiçoamento da petição, mesmo assim tem de se concluir que tais documentos não desempenham tal função porque continuam a deixar na opacidade os factos históricos que lhe servirão de fundamento factual.

Com efeito, constando de uma nota de débito «Encargos com o título de dívida n.º 49 – 57058097170» e «Reforma de 2.555,32 € para 2235,91 €» nada de concreto ficamos a saber.

Faltando este conhecimento (exposição) do concreto histórico a petição é inapropriada para desempenhar as funções em razão das quais existe, que são, desde logo, permitir delimitar com eficácia a causa de pedir necessária à operacionalidade do instituto da litispendência e do caso julgado e permitir o exercício do contraditório por parte do Réu.

Só assim não seria de, apesar da ineptidão, o réu, certamente fazendo uso dos conhecimentos exteriores aos fornecidos pelo processo, tivesse «interpretado convenientemente a petição», como se ressalva no n.º 2 do artigo 186.º do Código de Processo Civil. 

Concluindo-se como se conclui que a petição e os documentos juntos não permitem formar uma compreensão da factualidade histórica que deve servir de base ao pedido, então a petição é inapropriada à sua função, ou seja, padece de ineptidão.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.


*

Coimbra, 10 de julho de 2019

Alberto Ruço ( Relator )

Vitor Amaral

Luis Cravo



[1] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 245.
[2] Ob. Cit., pág. 245, nota 2.

[3] Sobre a Teoria do Processo Declarativo. Coimbra Editora, 1980, pág. 159.