Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45/11.5TTCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
REGRAS DE SEGURANÇA E DE SAÚDE NO TRABALHO
RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA
DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Data do Acordão: 11/30/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DO TRABALHO DAS CALDAS DA RAINHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 14º, 18º, Nº1, E 79º, Nº1, DA LAT.
Sumário: I – Da conjugação entre o disposto no nº 1 do artº 18º e no nº 3 do artº 79º, nº 1 da LAT resulta que quando o acidente resultar da falta de observância pelo empregador das regras sobre segurança e saúde no trabalho a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso.

II – Ou seja, nestes casos o acidente não deixa de ser reparável.

III – Mas para que a eclosão do acidente possa ser atribuído à violação de regras de segurança é necessário que: a) ocorra a violação de uma regra ou norma concreta sobre segurança no trabalho; b) se possa estabelecer um nexo de causalidade entre essa violação ou inobservância e o acidente; c) se demonstre que a violação das regras de segurança que emergirem de condutas dolosas ou negligentes das entidades empregadoras, ou seja, em relação às quais possa afirmar-se, no mínimo, que tal violação emergiu, em concreto e face às circunstâncias do caso, da violação de deveres objectivos de cuidado interno e/ou externo que constitui o pressuposto mínimo de afirmação da negligência.

IV – Nos termos do artº 14º, nº 1, al. a) e nº 2 da LAT o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que provier de acto ou omissão do sinistrado, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.

V – A negligência grosseira definida no artº 14º, nº 3 da Lei nº 98/09, de 04/09, implica a violação das mais elementares regras de precaução em que a culpa é elevada pelo elevado teor de imprevisão ou de falta de cuidados elementares.

Decisão Texto Integral:










Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – A... , residente na Rua (...) , instaurou a presente acção emergente de acidente de trabalho, sob a forma de processo especial, contra “B... , LDA.”, com sede na (...) , e “Companhia de Seguro C... , S.A.”, actualmente denominada “ CC... .”, com sede no (...) , pedindo a condenação das RR. da seguinte forma:

«Pela 1ª Ré entidade empregadora:

«a) Pensão anual e vitalícia agravada no valor de € 7 527,75, desde 28.04.2012.

«b) Indemnização por incapacidades temporárias no montante de € 4.594,40.

«c) A quantia de € 5 240,07 a título de subsídio de elevada incapacidade.

«d) A quantia de € 461,14 euros mensais a título de prestação suplementar para assistência a 3ª pessoa.

«e) a quantia de € 40,00 a título de despesas efetuadas em deslocações obrigatórias.

«Pela 2ª Ré Companhia de Seguros a título subsidiário:

«a) uma pensão anual e vitalícia de € 5.283,49 desde 28.04.2012.

«b) A quantia de € 5 240,00 a título de subsídio de elevada incapacidade

«c) A quantia de € 461,14 euros mensais a título de prestação suplementar para assistência a 3ª pessoa.

«d) A quantia de € 40,00 a título de despesas efetuadas em deslocações obrigatórias.»

Para tanto, alegou, em síntese, e após aperfeiçoamento, no dia 17/2/2010, foi vítima de um acidente de trabalho, que descreve, e que entende ser originado em violação de regras de segurança por parte da entidade patronal, do qual resultaram os prejuízos que descreve na petição inicial e cujo ressarcimento peticiona.


+

Regularmente citadas, as RR. apresentaram contestação:

 - a R. “ C... ” alega que as duas versões do acidente excluem a sua responsabilidade, pois, na versão do A., o acidente ficou a dever-se a violação por parte da entidade patronal de regras sobre segurança no trabalho e, na versão da R. “ B... ”, o acidente ocorreu por negligência grosseira do A..

 - a R. “ B... ”, impugna que tenha incorrido em violação de normas de segurança, higiene e saúde no trabalho, antes atribuindo a causa do acidente ao comportamento do A. que violou regras de segurança no trabalho e actuou com negligência grosseira.

A R. “ B... ” respondeu à contestação da R. “ C... ” em termos essencialmente idênticos à contestação por si apresentada.


+

O A. respondeu à contestação de cada uma das RR., impugnando que o acidente tenha ficado a dever-se a comportamento seu.

***

II – Organizou-se apenso para fixação da incapacidade, foi proferido despacho saneador e, após selecção da matéria de facto assente e da matéria controvertida, prosseguiram os autos a sua normal tramitação com prolação de sentença na qual se julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu as RR., “ B... , Lda.” e “ C... - Companhia de Seguros, S.A.”, dos pedidos contra si formulados pelo A., A... .

***

III – Inconformado, veio o autor/sinistrado apelar, alegando e concluindo:

[…]

                                                           +

Contra alegaram as rés, alegando em síntese conclusiva:
A) A seguradora:
[…]
B) A empregadora:
[…]


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O Exmº PGA emitiu parecer no sentido de que o comportamento do sinistrado ser susceptível de se enquadrar na parte final do nº3 do artº 14º da LAT (habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão), pelo que não haverá lugar á descaracterização.

+

A empregadora respondeu a este parecer.

***

IV – Da 1ª instância vem assente a seguinte matéria de facto:

[…]

                                                                                   ****

V - Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas respectivas conclusões a questão a decidir passa por saber se o acidente se encontra ou não descaracterizado.

A 1ª instância entendeu que o acidente se encontra descaracterizado não dando lugar à reparação infortunística em virtude da sua eclosão se ter ficado a dever a negligência grosseira do sinistrado.

Este no recurso entende que o acidente ocorreu por a sua entidade não ter observado regras ou normas legais sobre segurança no trabalho e não por ter tido um comportamento temerário em alto e relevante grau, ou seja, por ter agido com negligência grosseira

Em primeiro lugar cumpre decidir se o acidente resultou da inobservância de normas de segurança por parte do empregador ou se proveio de acto ou omissão do sinistrado que importe, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador [al. a) do astº 14ºda LAT] pois, decidindo-se pela afirmativa, ficará prejudicada a apreciação da questão atinente à negligência grosseira na medida em que esta deixará de ser causa exclusiva da ocorrência do acidente e, portanto, não constituirá, nos termos da al. b) do nº 1 do artº 14º da LAT, causa de descaracterização.

Da conjugação entre o disposto no nº 1 do artº 18º e no nº 3 artº 79º nº 1 da LAT  resulta que, quando o acidente resultar da falta de observância pelo empregador das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso.

Ou seja, nestes casos o acidente não deixa de ser reparável. O que se passa é que, ao contrário do que acontecia na antiga LAT, a seguradora em vez de responder apenas subsidiariamente pela reparação, responde directamente por esta ficando, no entanto, com direito de regresso obre o empregador.

Mas para que a eclosão do acidente possa ser atribuído à violação de regras de segurança é necessário que:

a) ocorra a violação de uma regra ou norma concreta sobre segurança no trabalho (não bastando a violação de regras genéricas ou programáticas sobre esta segurança para que se dê como preenchida a previsão do nº 1 do artº 18º da LAT.

b) se possa estabelecer um nexo de causalidade entre essa violação ou inobservância e o acidente.

c) se demonstre que a violação das regras de segurança que emergirem de condutas dolosas ou negligentes das entidades empregadoras, ou seja, em relação às quais possa afirmar-se, no mínimo, que tal violação emergiu, em concreto e face às circunstâncias do caso, da violação de deveres objectivos de cuidado interno e/ou externo que constitui o pressuposto mínimo de afirmação da negligência.

No caso em análise, (facto 7) o eixo ou veio de transmissão não possuía qualquer protecção que impedisse o contacto com o elemento mecânico e, por isso, apanhou as calças do trabalhador originando que a perna do sinistrado ficasse esmagada entre o eixo e os rolos.

Assim a norma concreta sobre segurança eventualmente inobservada pela empregadora será a do artº 16º do DL 50/2005 de 25/02 (relativo às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho) que sob a epígrafe “Riscos de contacto mecânico”, prescreve “Os elementos móveis de um equipamento de trabalho que possam causar acidentes por contacto mecânico devem dispor de protectores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas”.

Conforme resulta da literalidade da norma nem todos os elementos móveis estão obrigados a dispor de protectores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento dos elementos móveis antes do acesso a essas zonas.

Apenas estão obrigados a dispor desses dispositivos os equipamentos móveis que possam causar acidentes, ou seja, equipamentos que sejam ou estejam acessíveis a pessoas ou aos respectivos operadores.

Não se compreende que um equipamento colocado numa zona remota, de difícil acesso, ao qual apenas se pode aceder através de meios de utilização não comum (como o trepamento ou o arrombamento etc.) deva dispor de protectores nos seus elementos móveis. A não ser assim todos os equipamentos deviam estar protegidos independentemente do local onde se encontrem, solução que se revela absurda e que, estamos em crer, o legislador não pretendeu.

Por isso a expressão “que possam causar acidentes por contacto mecânico” deve ser entendida num contexto de uma normal utilização e acesso por parte dos operadores dos equipamentos ou de outras pessoas com acesso ao local.

No caso que nos ocupa, o veio ou eixo de transmissão onde ocorreu o acidente fica a um nível superior ao da guarita existente na parte inferior do funil, em local recôndito, inacessível ao trabalhadores, no interior da casa da crivagem das britas, local ao qual os trabalhadores e gerentes da ré não têm acesso pois só trepando para cima do moinho é possível entrar em contacto com o veio de transmissão.

Assim atenta a localização do veio e ao modo como ao mesmo se pode aceder entendemos que, na interpretação que fazemos do citado artº 16º, não estava a empregadora obrigada a proteger o veio de transmissão pelo que, desde logo, não se mostra preenchida a previsão do artº 18º da LAT.

Na sentença concluiu-se que “o A. violou regras de segurança impostas pela R. “ B... ” (as mencionadas nos factos provados números 26 e 33), regras de simples compreensão e que o A. conhecia, e nenhuma justificação existe para que oA. procedesse da forma como o fez, e, adicionalmente, constata-se que tal violação foi a causa do sinistro”.

Nos termos do artº 14º nº1 al.a) e nº2 da LAT o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que provier de acto ou omissão do sinistrado, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; considerando-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.

Resulta dos pontos 29º a 33º dos factos descritos como provados que o autor violou conscientemente determinadas condições de segurança estabelecidas pela empregadora, que conhecia e para a observância das quais foi alertado pela sua entidade empregadora.

Ainda assim, não opera a causa de descaracterização de acidente de trabalho que se analisa.

Com efeito, as condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal só relevam para os efeitos em apreço se constarem de regulamento interno da empresa, de ordem de serviço ou de aviso afixado em local apropriado na empresa – Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 3ª edição, p.851, acórdão do STJ de 03/06/09, proferido no processo 1321/05.1TBAGH.S1, consultável em www.dgsi.pt, e acórdãos deste Tribunal da Relação de 22/09/2017, proferido no processo 6530/15.2T8CBR.C1 e de 11.10.2017, proferido no processo 481/14.5TTLRA.C1.

Ora, a matéria de facto dada como provada é, no nosso entender, insuficiente para se ter por verificado esse pressuposto de relevância das condições de segurança estabelecidas pela empregadora, pois que essa matéria é omissa quanto à forma pela qual o sinistrado foi alertado para a necessidade de cumprir aquelas instruções de trabalho, dela não resultando inequivocamente, como era necessário para os efeitos em análise, que a observância das instruções de trabalho tivesse sido imposta por regulamento interno, ordem de serviço ou aviso afixado em local próprio e de que o sinistrado tivesse conhecimento.

Resta, assim, apurar se o acidente se ficou a dever a negligência grosseira do sinistrado

A questão da descaracterização do acidente de trabalho com base na negligência grosseira é tema recorrente nos nossos tribunais e objecto de vastíssima produção jurisprudencial.

Por isso, e desde logo, nada de novo há a adiantar sobre o conceito deste tipo de negligência, não passando o que a seguir se irá dizer mais do que uma simples repetição de um conceito inúmeras vezes repetido nos arestos que amiúde têm de se pronunciar sobre a temática.

Assim, sem pretendermos ser exaustivos, dir-se-á:

- a negligência grosseira[1] definida no artigo 14º nº 3 da Lei 98/09 de 04/09 implica a violação das mais elementares regras de precaução em que a culpa é elevada pelo elevado teor de imprevisão ou de falta de cuidados elementares. Traduz-se numa conduta temerária em alto e relevante grau, fortemente indesculpável por violar as cautelas mais elementares.

- a apreciação deve ser feita em concreto em face do próprio sinistrado e não em função de um padrão geral e abstracto de conduta.

- compete à ré provar os factos que possam conduzir à descaracterização

- a negligência grosseira deve ser causa exclusiva da eclosão do acidente (alínea b) do nºs 1 do citado artigo 14º).

- para que ocorra a descaracterização haverá que ser possível estabelecer um nexo de causalidade (adequada, na sua formulação negativa[2]) entre a conduta negligente e o evento infortunístico.

Do que ficou dito, a lei não se basta, pois, para a descaracterização do acidente, com uma simples imprudência, uma mera negligência ou com uma distracção. É necessário um comportamento temerário em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, reprovado por um elementar sentido de prudência [que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão], e que constitua a única causa do acidente.

A imprevidência está indissoluvelmente integrada na própria essência da prestação de trabalho, pelo que não devem ser descaracterizados os acidentes de trabalho devidos a negligências ou imprevidências resultantes do longo hábito ou de rotinas e que usualmente se praticam.

No caso dos autos provou-se que desconhecendo a razão pela qual o moinho havia parado, o A. dirigiu-se à secção de crivo para ver o que tinha acontecido; aí chegado, constatou que o mesmo se encontrava parado devido ao facto de estar encravado com uma pedra de grande dimensão, que impedia a execução do trabalho; de seguida, o A. subiu para o moinho e retirou a pedra; o veio de transmissão começou a trabalhar e apanhou as calças que o A. tinha envergadas e puxou-lhe a perna esquerda que ficou esmagada entre o eixo e os rolos; o moinho deve ser desencravado através de uma guarita existente na parte inferior do funil, cujo acesso se faz por um corredor, sem haver necessidade de subir para cima do moinho; o veio (ou eixo) de transmissão fica a um nível superior àquela guarita, em local em local recôndito, no interior da casa de crivagem de britas, inacessível aos trabalhadores; só trepando para cima do moinho é possível entrar em contacto com o veio de transmissão; o acesso à casa de crivagem de britas (onde se localiza o moinho) é feito, unicamente, através de uma escadaria exterior que conduz à única porta de acesso a esse espaço; a R. deu instruções expressas aos trabalhadores de que não podiam entrar na casa de crivagem de brita sem desligar, previamente, as máquinas, incluindo o moinho; procedimento que é feito no exterior dessa casa; instruções de que o A. tinha conhecimento; o A. não desligou previamente o moinho, nem a corrente eléctrica que alimenta as restantes máquinas da casa de crivagem; o A. sabia que o procedimento correcto e seguro para desencravar o moinho era através da referida guarita; a R. ministrou aos seus trabalhadores, incluindo o A., formação designada "Marcação CE", que inclui procedimentos de segurança no trabalho relativos ao funcionamento do moinho referido e; após subir para o moinho o A. foi colocar-se precisamente sobre o veio de transmissão onde se deu o acidente.

Neste quadro factual entendemos que o comportamento do sinistrado deve ser caracterizado como grosseiramente negligente.

Com efeito, alguém que tem conhecimento do modo como, em segurança, o moinho deve ser desencravado mas, sem desligar o moinho ou a corrente eléctrica que o faz mover (quando tinha expressa instruções nesse sentido), trepa para cima daquele e se coloca precisamente sobre o veio de transmissão em tensão, que se encontra em lugar inacessível e, retira a pedra que estava a encravar o equipamento, não pode deixar de ser objecto um fortíssimo juízo de censura pois o seu comportamento não pode ser entendido como uma simples imprudência, mas antes como audacioso e inútil, reprovado por um elementar sentido de prudência.

Daí que, tal como a 1ª instância, entendamos que o comportamento do sinistrado, por não ter observado os mais elementares cuidados, pode e deve ser caracterizado como grosseiramente negligente.

Por outro lado, foi este comportamento que exclusivamente contribuiu para a eclosão do acidente.

Na verdade, se o sinistrado não tivesse subido para cima do veio de transmissão e não tivesse retirado a pedra, jamais este eixo entraria em movimento; e não entrando em movimento também as calças do sinistrado não seriam apanhadas por esse movimento e, consequentemente, o esmagamento da perna não teria ocorrido. Ou seja, foi o comportamento altamente temerário do sinistrado que despoletou todo o processo causal que levou a que aquele viesse a sofrer as lesões e sequelas de que, infelizmente, veio a sofrer.

Suscita-se, no entanto, a questão de saber se este comportamento temerário em alto e relevante grau se consubstanciou em acto resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado ou da confiança na experiência profissional (nº 3 do artº 14º da LAT). A concluir-se por esta habitualidade e confiança inexistirá negligência grosseira e, como tal, o acidente não estará descaracterizado.

Sabe-se que a habitualidade ao perigo e o excesso de confiança na experiência profissional podem determinar, da parte dos trabalhadores, um aligeiramento das condições de segurança e levar à prática de actos imprudentes no decurso da execução de certos trabalhos.

Por exemplo, a rotina ou cansaço podem levar a um certo relaxamento no respeito de regras de prudência por parte do trabalhador, admitindo-se que este, por ter demasiada confiança na sua experiência, possa legitimamente negligenciar quanto ao cumprimento de certas regras de prudência.

Nestes casos, entende a lei não se justificar afastar o direito à reparação infortunística.

No nosso caso provou-se, com interesse para análise desta questão, que embora nas funções do A. não se incluísse o desencravamento do moinho, em datas anteriores, por várias vezes, o A. havia desencravado o moinho (facto 8).

Ora, este facto, sem mais, é insuficiente para dele se concluir que o comportamento do sinistrado se ficou a dever à habitualidade ao perigo ou ao excesso de confiança na experiência profissional porquanto, como se refere na sentença, “não se apurou que o A. tenha antes actuado da forma como agora actuou”, ou seja, que os procedimentos efectuados anteriormente pelo sinistrado para desencravar o moinho tenham sido iguais ao utilizado aquando do acidente.

Daí que que factualidade provada seja insuficiente para se dar como verificado o circunstancialismo aludido no nº 3 do artº 14º da LAT. (que o acidente se tenha ficado a dever à habitualidade ao perigo ou ao excesso de confiança).

À semelhança da 1ª instância, também esta Relação, não ignora as consequências graves emergentes do acidente de trabalho de que o sinistrado é portador

Mas isto não impede de considerar, como considerou o tribunal a quo, que a decisão do sinistrado, nas concretas circunstâncias apuradas, é absolutamente incompreensível, à luz de toda e qualquer possível justificação.

Citando a sentença recorrida “poderia ser, como sucede muitas vezes em situações similares de acidentes de trabalho, que o A. tivesse adoptado a forma mais fácil para a execução da tarefa.

Porém, tal não é o caso. O método usado pelo A. – trepar para o moinho – é, para além de tudo o mais, a forma mais difícil de desencravar o moinho e revela a mais absoluta e completa falta de cautela por parte do A., por ser uma forma perigosa que coloca em risco a integridade física de quem o faça, sobretudo, quando, como sucedeu, o A. não desligou a energia eléctrica que alimenta o moinho e a restante maquinaria.

Nenhuma alternativa – eventual – à forma certa (desencravamento pela guarita, à qual se acede com os pés perfeitamente assentes no chão da casa de crivagem) se afigura como menos custosa ou mais fácil para o trabalhador.

Nas circunstâncias concretas do caso em análise, perante os conhecimentos que o A. dispunha, trepar para cima do moinho e colocar-se no veio (ou eixo) de transmissão revela a mais absoluta inobservância de todas as precauções que ao A. se exigia.

(...) O lugar em que se situa o eixo não é acessível aos trabalhadores, por estar colocado em lugar superior ao da guarita, sendo que só trepando para o moinho é possível aceder ao eixo. E não é suposto que os trabalhadores trepem para cima do moinho. Nem ficou demonstrado que esta fosse a forma que o A. conhecia para efectuar o desencravamento.

(…) Também não é suposto – até porque isso contraria ordens da R. “ B... ” – que o A. tenha entrado na casa de crivagem sem desligar as máquinas. Toda a conduta adoptada pelo A. impressiona, por ser injustificada não apenas à luz das mais elementares regras de segurança, mas também da lógica”.

Em conclusão diremos que o acidente se deveu a negligência grosseira do sinistrado, encontrando-se descaracterizado, não dando lugar à reparação infortunística.


***

IV Termos em que se delibera julgar totalmente improcedente a apelação com integral confirmação da sentença impugnada

*

Custas a cargo do apelante (sem prejuízo do apoio judiciário concedido ( fls. 550).

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Considerando os elementos disponíveis nos autos, ao abrigo do disposto no nº 3 do artº 120º do CPT fixo à acção o valor de € 59.620,15[3]

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Coimbra, 30 de Novembro de 2017

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(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)


(Jorge Manuel da Silva Loureiro- Vencido: Acompanho a decisão no segmento em que considerou registar-se negligência grosseira do sinistrado.

Porém, considero que a inexistência de meio de protecção do veio de transmissão que impedisse o contacto mecânico do mesmo com o sinistrado, mesmo que não obrigatória do ponto de vista legal e segundo a interpretação sustentada no acórdão em termos que não são absolutamente isentos de controvérsia, também contribuiu causalmente, do ponto de vista físico-mecânico, para o acidente a que os autos se reportam, pois, se bem vislumbramos, a existência desse meio de protecção teria impedido o contacto mecânico e o acidente que dele adveio.

Por isso, considero que não existe a causalidade exclusiva entre a negligência grosseira do sinistrado e o acidente em causa que é exigida legalmente, com a consequente inverificação da causa de descaracterização do acidente de trabalho afirmada no acórdão)


[1] Entre muitos outros veja-se a título meramente exemplificativo o Ac. do STJ de 24.02.2010 (Procº 747/04.2TTCBR.C1.S1) que, embora tirado no domínio da Lei 100/97 continua em face da nova LAT a ter plena actualidade, consultável em www.dgsi.pt/jstj, do qual se destaca a seguinte parte do respectivo sumário:
I - A descaracterização do acidente de trabalho, nos termos previstos no art. 7.º, al. a), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, exige a verificação cumulativa das seguintes condições: que se evidencie uma conduta do sinistrado, por acção ou omissão, suportada por uma vontade dolosa ou intencional na sua adopção; que existam condições de segurança, impostas por lei ou pelo empregador, e que as mesmas tenham sido desprezadas pelo acidentado sem causa justificativa. II - A descaracterização do acidente de trabalho com esteio no disposto no art. 7.º, al. b), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, exige a adopção, pelo sinistrado, de um comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou nos usos e costumes da profissão (art. 8.º, n.º 2, do DL n.º 143/99, de 30 de Abril).III - A negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo, mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente).IV - A negligência pode também assumir diferentes graus: será levíssima quando o agente tenha omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado; será leve quando o padrão atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa excepcionalmente descuidada e incauta teria também incorrido. V - A negligência grosseira, correspondendo a uma culpa grave, pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum. VI - A culpa grave deve ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio acidentado – e não com referência a um padrão abstracto de conduta. VII - A descaracterização do sinistro constitui um facto impeditivo do direito reclamado na acção, competindo ao demandado, por via disso, a prova da materialidade integradora dessa descaracterização (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil).

[2] Artigo 563º do Cód. Civil. Haverá nexo de causalidade sempre que à pergunta sobre se o acidente não teria ocorrido se o sinistrado tivesse observado os cuidados, as cautelas ou precauções exigidas deva ser dada uma resposta afirmativa.

[3] € 5.283,49 [valor da pensão] x 11,264 [reserva matemática prevista na tabela para sinistrado com 60 anos de idade à data da alta] + € 40 de despesas com transportes.