Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO | ||
Descritores: | ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL E NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO OU NA PRONÚNCIA COMUNICAÇÃO DA ALTERAÇÃO DOS FACTOS RECURSO DA COMUNICAÇÃO ACTO DECISÓRIO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO QUE CONTRARIA POSIÇÃO ANTERIORMENTE ASSUMIDA VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM PRINCÍPIO DA LEALDADE PROCESSUAL INVOCAÇÃO DE NULIDADE PERANTE O TRIBUNAL RECORRIDO INVOCAÇÃO DE NULIDADE NO RECURSO INTERPOSTO PODERES DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL COLECTIVO COMPETÊNCIA PARA A COMUNICAÇÃO DAS ALTERAÇÕES DOS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO E PRONÚNCIA ESTRUTURA DO CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES PERDÃO DE PENA | ||
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Data do Acordão: | 09/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | REJEITADO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO REFERENTE À COMUNICAÇÃO DA ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS E NEGADO PROVIMENTO QUANTO AO MAIS E NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS INTERPOSTOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO E PELOS ARGUIDOS DO ACÓRDÃO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 14.º, 322.º, 323.º, 358.º, 359.º, 365.º, 379.º, N.º 2, E 401.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ARTIGO 2.º, N.º 1, DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2 DE AGOSTO | ||
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Sumário: | I - Tendo o Magistrado do Ministério Público declarado nada ter a opor a todas as alterações factuais comunicadas, incluindo as consideradas substanciais, o recurso que, depois, interponha dessa comunicação deve ser rejeitado, ao abrigo do n.º 2 do artigo 401.º do C.P.P., pois não é admissível que o Ministério Público actue de forma discordante com a posição anteriormente assumida, em violação do princípio da lealdade processual.
II - Os factos que o tribunal entenda integrarem uma alteração substancial dos factos descritos na acusação não podem ser tidos em consideração no processo, a nenhum título, nem para efeito de enquadramento jurídico da conduta do(s) arguido(s) neles mencionados, nem para a determinação da(s) pena(s), ainda que à luz do vector da conduta anterior. III - Independentemente desta questão, os artigos 358.º e 359.º do C.P.P. consagram, apenas, um dever de comunicação de hipotética alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. IV - Face ao teor do artigo 97.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P., não constituindo essa comunicação um acto decisório ela é irrecorrível. V - Salvo os casos de nulidade da sentença, que são susceptíveis de, por si só, serem fundamento de recurso, todas as nulidades, mesmo insanáveis, e, também, as irregularidades cometidas noutro acto processual devem ser previamente suscitadas perante o tribunal que as cometeu, só havendo recurso da decisão que delas conhecer. VI - Atento o disposto no n.º 1 do artigo 358.º do C.P.P., aplicável aos casos de alteração substancial dos factos, é da competência do presidente do tribunal colectivo proceder à comunicação da alteração não substancial e substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. VII - No crime de tráfico de estupefacientes o resultado típico é obtido pela realização inicial da conduta ilícita mas o conjunto das múltiplas atuações reconduz-se à comissão do mesmo tipo de crime e é, normalmente, tratada unificadamente pela lei como correspondente a um só crime. VIII - Se alguns dos actos integradores do crime de tráfico de estupefacientes ocorreu depois da data referida no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, está liminarmente afastada a aplicabilidade do perdão de pena nela estabelecido. | ||
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Decisão Texto Integral: | *
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. - RELATÓRIO 1. - No âmbito do processo comum que, sob o n.º 470/22.6T9CBR, corre termos pelo Juízo Central Criminal de Coimbra - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, no decurso da audiência de julgamento, na sessão de 04.02.2025, foi proferido despacho mediante o qual foi comunicada a alteração não substancial e substancial dos factos descritos na acusação, nos termos previstos, respetivamente, nos artigo 358º, n.º 1, e 359º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
2. - O Ministério Público veio recorrer de tal despacho em 11.03.2025, extraindo da motivação que apresentou as seguintes conclusões [transcrição[1]]: «1.ª - Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido no dia 4 de Fevereiro de 2025 (Ref.ª Citius n.º 96342876) que procedeu à comunicação de alteração substancial dos factos descritos no despacho de pronúncia proferido nos presentes autos (Ref.ª Citius n.º 94163520, de 15 de Maio de 2024), de acordo com o previsto no artigo 359.º, do Código de Processo Penal. 2.ª - Compete ao Tribunal Colectivo apreciar a prova no seu conjunto e julgar a causa que foi submetida à sua apreciação, pelo que, nessa competência, também se insere a deliberação acerca de uma alteração substancial dos factos descritos no despacho de pronúncia proferido nos presentes autos. 3.ª - Assim, o despacho recorrido é nulo de acordo com o previsto no artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, na medida em que o mesmo versa sobre matéria que integra o âmbito da competência do Tribunal Colectivo e que, por isso, devia ter sido decidido por meio de deliberação. 4.ª - Dispõe o artigo 1.º, alínea f), do Código de Processo Penal que a “Alteração substancial dos factos” é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. 5.ª - A existência de testemunhas que confirmam ter adquirido ou recebido produtos estupefacientes dos arguidos, em momentos temporais diferentes do que estão mencionados no despacho de pronúncia proferido nos presentes autos, reconduzem-se ao mesmo núcleo substancial do facto objecto do processo e não se traduzem na imputação de um quadro factual diverso e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. 6.ª - Nessa medida, os factos que o Meretíssimo Juiz Presidente do Tribunal Colectivo considerou integrarem uma alteração substancial dos factos descritos no despacho de pronúncia proferido nos presentes autos (Ref.ª Citius n.º 94163520, de 15 de Maio de 2024), de acordo com o previsto no artigo 359.º, do Código de Processo Penal, devem antes integrar uma alteração não substancial dos factos descritos no aludido despacho de pronúncia, de acordo com o previsto no artigo 358.º, do Código de Processo Penal. 7.ª - Pelo que o douto despacho recorrido violou o disposto nos artigos 1.º, alínea f), 358.º e 359.º, todos do Código de Processo Penal. …»
3. - Por despacho de 21.03.2025, foi tal recurso rejeitado pelas razões ali exaradas.
4. - O Ministério Público reclamou para este Tribunal da Relação, tendo o Ex.mo Vice-Presidente, por decisão datada de 30.04.2025, julgado procedente a reclamação, admitindo o recurso, a subir nos próprios autos – artigo 406º, n.º 1 –, com o recurso que puser termo à causa – artigo 407º, n.º 3 –, com efeito não suspensivo – artigo 408º, a contrario, todos do Código de Processo Penal.
5. - Nessa sequência, cumprido o preceituado no artigo 411º, n.º 6, do Código de Processo Penal, apenas a arguida … apresentou resposta, pugnando «pela ausência de efeitos relevantes do recurso apresentado».
6. - Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
7. - Em 08.02.2024, foi proferido acórdão que culminou com o seguinte dispositivo [que se transcreve apenas na parte que ora interessa, relativa aos arguidos infra identificados]: «Por todo o exposto, este Tribunal Colectivo, em conformidade com as razões e preceitos citados, a) Absolve o arguido AA da prática, em co-autoria material, de um crime de Tráfico de estupefacientes agravado para efeitos do disposto nos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas b) e c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; b) Condena o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de Tráfico de estupefacientes para efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 4 anos e 9 meses de prisão; c) Suspende a pena de prisão em que o arguido AA vai condenado por igual período, sujeitando-se o arguido, nesse período, a regime de prova, conforme o previsto no artigo 53.º do Código Penal e que assentará em plano individual de readaptação a elaborar pelos Serviços de Reinserção Social e que deverá conter, entre as demais regras de conduta e obrigações divisadas pertinentes, a obrigação de aquele se sujeitar ao acompanhamento especializado da problemática aditiva que lhe venha a ser indicado, mantendo-se disponível para os testes que forem considerados necessários;
d) Absolve o arguido BB da prática, em co-autoria material, de um crime de Tráfico de estupefacientes agravado para efeitos do disposto nos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas b) e c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; e) Condena o arguido BB pela prática, em autoria material, de um crime de Tráfico de menor gravidade para efeitos do disposto nos artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão; (…)
l) Absolve o arguido CC da prática, em autoria material, de um crime de Tráfico de estupefacientes agravado para efeitos do disposto nos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas b) e c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; m) Condena o arguido CC pela prática, em autoria material, de um crime de Tráfico de estupefacientes para efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
n) Absolve o arguido DD da prática, em co-autoria material, de um crime de Tráfico de estupefacientes agravado para efeitos do disposto nos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas b) e c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; o) Absolve o arguido DD da prática, em autoria material, de três crimes de Condução sem habilitação legal [alíneas ft), fu) e fy) da factualidade provada] para efeitos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro; p) Condena o arguido DD, como reincidente [artigos 75.º e 76.º do Código Penal] pela prática, em co-autoria material e em autoria material, de um crime de Tráfico de estupefacientes para efeitos do disposto no artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 6 anos e 2 meses de prisão; q) Condena o arguido DD, como reincidente [artigos 75.º e 76.º do Código Penal] pela prática, em autoria material, de seis crimes de Condução sem habilitação legal [alíneas fr), fs), fv), fw), fx) e fz) da factualidade provada] para efeitos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, nas penas unitárias de 10 meses de prisão; r) Condena o arguido DD pela prática, em autoria material, de um crime de Detenção de arma proibida para efeitos do disposto no artigo 86.º, n.º 1, alínea e) do Regime Jurídico das Armas e Munições na pena de 3 meses de prisão; s) Em sede de cúmulo jurídico e em conformidade com o artigo 77.º do Código Penal, condena o arguido DD na pena única de 8 anos de prisão; (…)».
8. - Inconformados com o decidido, os arguidos DD e BB e o Ex.mo Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância interpuseram recursos, que foram admitidos nos termos constantes do despacho proferido em 21.03.2025. Transcrevem-se, de seguida, as conclusões formuladas em cada um dos preditos recursos: a - Recurso do arguido BB: «1. O recorrente BB foi condenado pela prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes de menor gravidade, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão efectiva.
2. A actividade delituosa do arguido desenrolou-se no período compreendido entre 13 de Maio e 13 de Setembro de 2023.
3. O primeiro momento descrito no acórdão, no sector da matéria dada como assente, reporta-se a 25 de Novembro de 2022, data em que no âmbito de uma acção de fiscalização rodoviária, foi encontrada na posse do arguido uma quantidade de cannabis, concretamente23, 39g.
4. Face à natureza do crime praticado, pelo qual foi condenado o arguido BB, é nossa opinião que o mesmo deverá beneficiar da aplicação da lei do perdão.
5. Pese embora o artigo 2ºdesta lei estabeleça que o seu âmbito de aplicação se cinge aos crimes praticados até às 0:00h de 19 de Junho de 2023, atento o facto de grande parte da actividade ter ocorrido antes deste marco temporal e, principalmente atenta a natureza do ilícito em questão (crime exaurido), é nossa convicção que o arguido deve beneficiar do perdão alí previsto.
6. Ao deixar de se pronunciar sobre a aplicação da lei o acórdão proferido encontra-se ferido de nulidade por omissão de pronuncia –artigo 379º n.º 1 alínea c) do CPP- -o que aqui expressamente se invoca.
7. Sem prescindir de todo o supra exposto, e ainda que os nossos argumentos não tenham acolhimento junto de V. Exc., sempre se dirá que a pena de 2 anos e 3meses se revela excessiva.
8. Esta desadequação da pena cominada resulta precisamente da matéria julgada provada: transacções que envolvem 4 compradores, durante 4 meses, num total de 21 transacções (de pequenas quantidades) de cannabis.
9. Uma pena de dois anos de prisão seria adequada e proporcional à culpa do arguido.
10. O que permitiria uma ponderação sobre a forma de cumprimento desta pena, uma vez que atentos os sobejamente conhecidos efeitos nefastos do cumprimento de curtas penas de prisão, seria de ponderar a possibilidade de o cumprimento ou execução da pena de prisão poder ocorrer a partir da residência do arguido nos termos e moldes do art. 43º do CP.
…» b - Recurso do arguido DD:
c – Recurso do Ministério Público: 9. - Apenas o Magistrado do Ministério Público em primeira instância apresentou resposta aos recursos, …
10. - Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer no sentido de os recursos interpostos pelos arguidos DD e BB deverem ser julgados improcedentes e o recurso interposto pelo Ministério Público procedente.
11. - Não houve respostas ao sobredito parecer.
12. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
Questão prévia Conforme assinalado em I.1, na sessão da audiência de julgamento datada de 04.02.2025, o Ex.mo Juiz Presidente do tribunal coletivo efetuou uma comunicação que assim ficou exarada em ata [transcrição parcial]: «a) Da produção probatória realizada em sede de audiência de discussão e julgamento, constata-se a necessidade de proceder à mutação e aditamento de circunstancialismo ao objecto factual do processo. Efectivamente, a prova produzida em julgamento permite densificar com maior precisão as quantidades e valores de venda dos estupefacientes imputados no libelo acusatório por reporte a cada consumir. Desta forma, temos que o correspondente objecto temático carece de conhecer outra factualidade que permite contextualizar de forma plena e adequada a ilicitude da conduta que se acha a ser imputada ao arguido. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Dezembro de 2006 [Processo n.º 06P3059] (…) II - Constitui jurisprudência corrente deste STJ a orientação interpretativa dos arts. 1.º, al. f), e 358.º, n.º 1, ambos do CPP, segundo a qual inexiste alteração substancial dos factos da acusação ou da pronúncia quando na sentença melhor se concretizam os factos ali descritos, ou seja, quando os factos aditados se traduzem em meros factos concretizantes da actividade imputada sem repercussões agravativas ou diminuição das garantias de defesa do arguido. III - Assim, numa situação em que: - na audiência, a juiz presidente comunicou aos arguidos que para além dos factos descritos na acusação, tendo por referência o período temporal na mesma considerado, ir-se-iam considerar outros que, todavia, constituem a mera concretização da actividade delituosa imputada na acusação, procedendo-se à identificação das pessoas que adquiriram os estupefacientes e à indicação das quantidades fornecidas/vendidas/adquiridas/cedidas; - mais foi comunicado que a alteração daí decorrente, embora representasse uma modificação dos factos, não tinha por efeito a imputação de crimes diversos, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pelo que não configurava uma alteração substancial, apenas uma alteração não substancial; - na sequência desta comunicação, foi concedido aos arguidos prazo para defesa ao abrigo do disposto no art. 358.º, n.º 1, do CPP; - a alteração efectivamente operada no acórdão recorrido relativamente aos factos descritos na acusação pública deduzida se circunscreveu à concretização de algumas das operações de tráfico imputadas aos arguidos, com indicação das respectivas datas, quantidades e preços; não ocorreu a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP. Ou seja, estando em causa uma mera densificação de actos já inscritos na acusação, temos que os factos a aditar não traduzem a imputação de um crime distinto ou uma agravação daquele que se acha já assacado. Com o que se determina uma alteração não substancial dos factos nos termos e para os efeitos do artigo 358.º do Código de Processo Penal por forma a fazer integrar no circunstancialismo constante do despacho de acusação a seguinte factualidade: … b) Para além da mutação factual supra concretizada, uma outra, bastante mais gravosa para os arguidos, se impõe. Efectivamente, o depoimento das testemunhas ouvidas em conjugação com outros meios de prova permite concluir que a actividade delituosa poderá ser assacada não apenas por referência ao período temporal da acusação mas antes se projectar a momentos muito anteriores e por reporte a outros consumidores distintos. No que haverá que impulsionar a integração de tais factos no objecto temático do processo… Mas tratamos, ainda assim, da imputação de um crime materialmente diverso! Efectivamente, mesmo a manter-se a incriminação pelo mesmo tipo incriminatório, não podemos deixar de considerar que a indexação da conduta delituosa a vários anos antes e a outro universo de consumidores não traduz, em substância, o mesmo ilícito que se achava originariamente imputado. Louvamo-nos, aliás e nesta vertente, da argumentação acolhida, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5 de Novembro de 2024 [Processo n.º 9/21.0GAABF.E1] ao estabelecer que A enumeração nos factos provados da sentença de afirmações genéricas e imprecisas, insusceptíveis de concretização factual, entendida esta como uma sequência de acontecimentos da vida real que constituem o evento histórico que integra o crime, nas suas circunstâncias de modo tempo e lugar, deve ter-se por não escrita. Se o arguido estava acusado de oferecer produto estupefaciente num certo período e não de a vender e se na sentença deu como provado apenas que vendeu esse produto e num período diferente, a omissão de enumeração precisa do que se não provou e a indicação da respectiva motivação integra a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. A sentença em que se dá como provado que o arguido praticou o crime de tráfico de estupefacientes num ano diferente do imputado na acusação, sem que tivesse sido feita a comunicação do artigo 359º do CPP, é nula por condenar por factos que representam alteração substancial. (…) A questão que temos de resolver é, portanto, a de saber se os referidos factos novos – dar como provado que o crime ocorreu num ano diferente do imputado na acusação –constituem alteração substancial ou não substancial. O critério definidor está no artigo 1º al. f) do CPP: alteração substancial dos factos é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso (não referimos a outra modalidade que consiste na agravação da pena por não ser aplicável ao caso). A expressão “crime diverso” não significa “diferente tipo legal de crime”. Crime diverso pode ser um modo diferente de praticar o mesmo tipo de crime. Uma interpretação redutora que equiparasse o conceito de “crime diverso” ao de “tipo de crime”, levaria a que o julgamento pudesse terminar numa condenação pelo mesmo crime, mas baseada num quadro factual completamente modificado. Seria, por absurdo, condenar o arguido acusado roubar dinheiro a uma vítima ameaçada com uma pistola, por se ter apurado em julgamento que, afinal, tinha roubado o relógio a outra vítima ameaçando-a com uma faca. É evidente que aqui o tipo de crime é o mesmo, mas a alteração radical dos factos não poderia deixar de ser tida como imputação de um crime diverso. O que seja “crime diverso” para o efeito de se dizer que há uma alteração substancial dos factos sujeita ao regime do artigo 359º do CPP não é matéria consensual. Parece, no entanto, evidente que aquele conceito há-de estar referenciado ao princípio da vinculação temática do julgamento ao objecto do processo definido pela acusação. O que está em causa na proibição de condenação do arguido por factos substancialmente diferentes daqueles que lhe foram imputados na acusação decorre directamente da estrutura acusatória do processo penal e do direito a uma defesa efectiva, com protecção constitucional no artigo 32º da CRP. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 2014 (DR nº 18, I Série, 27JAN2018), que uniformizou a jurisprudência sobre os casos em que a acusação é omissa na descrição dos elementos subjectivos do crime, escreveu-se a propósito da definição do objecto do processo o seguinte, com interesse para o caso em apreço: «Tal noção há-de partir de uma ideia de acontecimento histórico, tendo por base uma percepção social unitária, com uma determinada valoração que, não sendo exclusivamente jurídica, não prescinde de uma referência normativa, de carácter jurídico-criminal e mesmo, em último termo, de uma referência ao bem jurídico e a outros elementos da acção. É que “crime” não pode deixar de ter, na sua base conceptiva, um acontecimento da vida real concreta, o tal pedaço de vida histórico-social onde se recorta o facto, mas com relevância jurídico-criminal, já que, da multiplicidade de factos da vida real, só interessam os que podem concretizar ou dar expressão a uma conduta desvaliosa, em termos criminais, embora formulada, durante o inquérito e na acusação, como hipótese. Daí que a lei fale em factos que dão origem a “crime diverso”, não podendo referir-se a crime com outra acepção, que não a que lhe advém da qualificação de determinadas condutas como crime pelo direito substantivo. Isto, muito embora não ocorra coincidência entre unidade do objecto do processo e unidade de crime no direito substantivo Crime também não é sinónimo de tipo legal de crime, pois, se o fosse, a lei não formularia, como alternativa para a alteração substancial dos factos, a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (caso, por exemplo, das agravantes típicas modificativas). Isto não significa, todavia, que não possa haver alteração substancial dos factos, quando a modificação acarretar imputação de um crime menos grave (cf. FREDERICO ISASCA, Ob. cit.,p. 145). Por outro lado, a noção de bem jurídico também haverá de entrar, em muitos casos, para estabelecer a diferença entre identidade e alteridade dos factos. Uma mudança de bem jurídico, que substitua o inicial, em princípio, acarretará alteração substancial, mas pode não ser assim, quando se trate, por exemplo, de concurso aparente de infracções, como o que decorre entre homicídio e ofensas corporais, ambos voluntários ou ambos negligentes, entre homicídio qualificado e homicídio simples, (mas, no caso de se tratar de alteração de factos de homicídio simples para qualificado, a agravação da sanção máxima aplicável implicaria a consideração de alteração substancial), entre roubo e ofensas à integridade física ou furto. Quanto a outros elementos, mencione-se a identidade do sujeito da acção, implicando fatalmente a alteração substancial dos factos, desde logo por força da subjectivação do acontecimento histórico, e o juízo base da ilicitude, como o que intercede entre crime tentado e consumado, cumplicidade e autoria, negligência e dolo, dando origem a alteração substancial dos factos, se não por força da alteridade do crime, pela consequência de a mudança acarretar agravação das sanções máximas aplicáveis». A alteração substancial de factos há-de pois ser aquela em que o objecto do processo levado ao julgamento se modifique em tal extensão que leve a que o seu prosseguimento, contra a vontade do arguido, represente uma violação da sua estrutura acusatória e dos direitos de defesa. Mais do que procurar uma definição abstracta, exacta e válida para todas as hipóteses do que seja crime diverso, parece-nos que importa verificar em cada caso se o novo facto surgido no julgamento constitui um factor essencial diferenciador dos elementos típicos do crime e se a condenação por esse novo facto, sem o acordo do arguido, diminui intoleravelmente as suas garantias de defesa. Se o comportamento humano no contexto do acontecimento real descrito na acusação como hipótese a comprovar para a subsunção na norma penal incriminadora é ainda, na sua unidade e essencialidade, o mesmo, ou se, por virtude da modificação, esse comportamento é outro. Na correcta interpretação da lei, uma modificação radical das circunstânmcias de tempo da acção típica traduz-se na alteração de um dos elementos típicos dos crimes. Crimes de tráfico praticados em 2018, 2019 ou 2020 ou praticados em 2021, aqui já até na pendência do processo crime, não são os mesmos crimes. No plano das garantias de defesa, sujeitar a julgamento acções ocorridas entre 2018 e a data da detenção do arguido para depois se dar como provado que elas ocorreram algures no tempo em 2021, inclusivamente depois da detenção, e condenar o arguido em conformidade, constitui uma grave violação do princípio do contraditório. Para aferir se os direitos de defesa ficaram intoleravelmente limitados não interessa saber que defesa teria o arguido para apresentar em relação ao facto novo pelo qual veio a ser condenado. O que releva é que esse facto não fazia parte do objecto do processo levado ao julgamento e que o arguido acabou por ser condenado pelo mesmo tipo de crime, é certo, mas praticado num período temporal radicalmente diferente. Tal alteração, não comunicada ao arguido no julgamento, origina uma modificação essencial dos crimes imputados. Em conclusão, os factos novos não comunicados ao arguido correspondem a uma alteração substancial da acusação, pelo que teria de ter sido dado cumprimento ao disposto no referido artigo 359º. Não tendo isso sido feito e tendo o tribunal tomado em conta tais factos para condenar o arguido, a sentença está inquinada com a nulidade prevista no artigo 379º nº 1 al. b) do CPP. Também esta é a nossa perspectiva… No que o Tribunal só poderá atender aos factos que infra se descriminarão sob concordância da totalidade dos sujeitos processuais [a que a correspondente factualidade respeite]: … Vão, assim, os sujeitos processuais notificados da alteração não substancial e substancial concretizada, indagando-se os arguidos se, quanto à primeira, carecem de prazo de defesa ou desejam concretizar alegações adicionais! Já quanto à alteração substancial, questiona-se os sujeitos processuais se manifestam alguma oposição à prossecução do julgamento pelos novos factos.»
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público veio interpor recurso, referido em I.2, ancorando-se em dois fundamentos autónomos e distintos: o primeiro, radica na nulidade do que denominou como “despacho”, nos termos do disposto no artigo 119º, al. e), do Código de Processo Penal em virtude de, alegadamente, a alteração factual comunicada pelo Juiz Presidente do Tribunal Coletivo versar sobre matéria da competência do tribunal coletivo e a comunicação efetuada, vertida na ata da audiência de julgamento, apenas se mostrar assinada pelo primeiro e de não resultar do seu texto que tenha sido resultado de deliberação tomada pelo tribunal coletivo; o segundo prende-se com a discordância quanto à qualificação como alteração substancial de factos, nos termos do artigo 359º do Código de Processo Penal, dos assim considerados, por entender que integram, antes, uma alteração não substancial dos factos descritos no despacho de pronúncia, nos termos preconizados no artigo 358º, n.º 1, do mesmo diploma. O recurso não foi inicialmente admitido em virtude de o Ex.mo Juiz titular do processo ter entendido, pelas razões profusamente aduzidas no despacho de 31.03.2015, respaldadas na doutrina e jurisprudência ali indicadas, que o “despacho” que materializou a comunicação efetuada não constitui um ato decisório e, como tal, não era passível de recurso para efeito do disposto no artigo 400º, n.º 1, al, f), do Código de Processo Penal. Diversamente, o Ex.mo Vice-Presidente deste Tribunal da Relação considerou que o “despacho” objeto de recurso, ao qualificar os factos como constituindo uma alteração substancial dos factos descritos na pronúncia, decidiu sobre esta matéria e, por conseguinte, é recorrível, nos termos do disposto no artigo 399º, tendo admitido o recurso. Tal decisão não vincula, porém, este tribunal de recurso, atento o disposto no artigo 414º, n.º 3, do Código de Processo Penal, afigurando-se-nos, desde logo, que o Ministério Público carece de interesse em agir para interpor recurso quanto à comunicação de alteração de factos e à qualificação de parte da mesma como substancial [pois só quanto a esta se insurge, e não relativamente à não substancial], sendo certo que em momento algum refere que recorreu no exclusivo interesse dos arguidos pela mesma visados. Com efeito, a própria expressão normativa aponta nesse sentido, pois o artigo 358º, n.º 1, do Código de Processo Penal estatui: “Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa” e, por seu turno, o artigo 359º – que versa sobre a alteração substancial – estipula, nos seus n.ºs 2, 3 e 4: “2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. 3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal. 4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário” [negritos nossos]. Como sobressai com nitidez, o mecanismo de comunicação de alteração dos factos descritos na acusação ou no despacho de pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido e apenas a este, atenta a estrutura essencialmente acusatória do nosso processo penal, ainda que mitigada pelo princípio da investigação material. Na verdade, o legislador ordinário acolheu o comando constitucional consagrado no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP) – “[o] processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”] –, explicitando-o nos termos que constam do preâmbulo do Código de Processo Penal, aprovado pelo DL n.º 78/87, de 17.02: «[p]or apego deliberado a uma das conquistas mais marcantes do progresso civilizacional democrático, e por obediência ao mandato constitucional, o Código perspetivou um processo de estrutura basicamente acusatória. Contudo – e sem a mínima transigência no que às autênticas exigências do acusatório respeita –, procurou temperar o empenho na maximização da acusatoriedade com um princípio de investigação oficial, válido tanto para efeito de acusação como de julgamento.» Figueiredo Dias[2] considera o princípio da acusação como «a pedra angular de um efetivo e consistente direito de defesa do arguido – (…) – que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da atividade cognitória e decisória do tribunal e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência”, ensinando que «deve (…) firmar-se que objeto do processo penal é o objeto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (atividade cognitória…) e a extensão do caso julgado (atividade decisória…). É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consumpção do objeto do processo penal; os princípios, isto é, segundo os quais o objeto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar-se irrepetivelmente decidido». Mais sustenta que «a imparcialidade e objetividade que, conjuntamente com a independência, são condições indispensáveis de uma autêntica decisão judicial só estarão asseguradas quando a entidade julgadora não tenha também funções de investigação preliminar e acusação das infrações, mas antes possa apenas investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado (em regra o MP ou um juiz de instrução).» Por conseguinte, decorre da estrutura acusatória do processo penal o princípio basilar da vinculação temática, ou seja, a subordinação do juiz do julgamento (descuramos, por não interessar para aqui, a fase de instrução) ao objeto definido pela acusação ou pronúncia, fixando o âmbito da prova (thema probandum) e estabelecendo os limites da decisão (thema decidendum). Concomitantemente, a acusação ou o despacho de pronúncia delimitam, igualmente, o âmbito do exercício do contraditório e das garantias de defesa do arguido, princípio com igual consagração constitucional [cfr. artigo 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa]. Apenas a observância rigorosa de tais princípios propiciará o respeito de outros, também nucleares e constitucionalmente consagrados, como sejam o da presunção de inocência [artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa] e o do direito a um processo justo e equitativo [artigo 20º, n.º 4, do mesmo diploma]. Porém, mercê do princípio da investigação oficiosa, não se pode em circunstância alguma, deixar por indagar factos essenciais postulados pelo objeto do processo e cruciais para o correto julgamento da causa, devendo sempre aquele esgotar-se, quer quanto ao thema probandum, quer quanto ao thema decidendum, visando alcançar a almejada verdade material. Como claro afloramento do sobredito princípio da investigação, dispõe o artigo 339º, n.º 4, do Código de Processo Penal que “[s]em prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º” – que se debruçam sobre a questão da culpabilidade e a questão da determinação da sanção, respetivamente [negrito nosso]. Como bem assinala Germano Marques da Silva[3], «por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo». Assim, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o tribunal pode deles conhecer desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunique tal alteração ao arguido e lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, salvo se a alteração em causa tiver derivado de factos alegados pelo próprio arguido [artigo 358.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal]. Se, porém, a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia for substancial – em face da definição contida no artigo 1.º, al. f), do Código de Processo Penal, com a densificação que vem sendo efetuada pela doutrina e pela jurisprudência – já o tribunal só poderá deles conhecer se, feita a sua comunicação, o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos e a alteração não determinar a incompetência do tribunal, devendo, ainda, ser concedido ao arguido, caso este o requeira, prazo para a defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário [artigo 359.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Código de Processo Penal]. Nesse caso, como observa Frederico Isasca[4], dá-se uma reformulação do objeto do processo, operada pelo acordo dos sujeitos processuais com vista à rápida resolução do litígio, tudo sem a menor intervenção do julgador e, portanto, sem trair o princípio do acusatório. Não se verificando tal acordo, a regra é que tal alteração não pode ser tida em conta pelo tribunal para efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância, só valendo como denúncia [ao Ministério Público] para procedimento por novos factos se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo, no sentido de implicarem «“uma variação dos que constituem o objecto daquele processo em concreto” (…), ou, dito de outro modo, devem ainda incluir-se no âmbito do mesmo “facto histórico”»[5] [artigo 359.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal]. Se os factos não forem autonomizáveis não há qualquer procedimento, uma vez que o legislador, com a alteração ao n.º 1 do artigo 359º introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, optou claramente pelo afastamento da suspensão ou extinção da instância. Subjacente ao regime da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia previsto nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal está, pois, fundamentalmente, o desiderato de propiciar ao arguido o exercício cabal do direito de defesa perante factos diferentes dos que lhe foram imputados na acusação/despacho de pronúncia. A este respeito, veja-se a expressivo segmento do acórdão n.º 216/2019 do Tribunal Constitucional: «(…) a disciplina constante dos artigos 358.º e 359.º, do CPP dirige-se a expressar os limites da alteração temática do processo penal, constitucionalmente admissíveis à face dos princípios do asseguramento de todas as garantias de defesa, da estrutura acusatória do processo e do contraditório, distinguindo as situações de alteração não substancial dos factos e as situações de alteração substancial, e, ainda, enunciando os instrumentos jurídicos aptos a concretizar a normatividade constitucional decorrente de tais princípios, em cada uma dessas diferentes situações. Os preceitos referidos surgem, então, como disposições referentes ao estatuto substantivo do arguido em processo penal, na fase de julgamento, demandando o enquadramento da situação, em um ou em outro desses preceitos, por parte do tribunal, a satisfação de diferentes exigências cuja configuração está informada diretamente pela axiologia transportada pelos analisados princípios constitucionais e o exercício de diferentes direitos de defesa. Porque são muito diferentes a extensão e intensidade com que esses princípios podem ser afetados, nas duas situações de alteração temática do processo configuradas nos artigos 358.º e 359.º, bem diferentes são as exigências da sua admissibilidade. Em síntese, poderemos dizer que a diferença de regimes, estabelecida na lei, é necessariamente determinada pela medida da suscetibilidade de afetação daqueles princípios com relevo constitucional.»
Volvendo ao caso dos autos, verifica-se que, na sequência da comunicação efetuada pelo Ex.mo Juiz Presidente do tribunal coletivo supra transcrita, o Ex.mo Magistrado do Ministério Público presente na audiência de julgamento afirmou “nada ter a opor a todas as alterações deduzidas e prescindido de alegações complementares” [cfr. ata da sessão de 04.02.2025]. Já pelos Ex.mos Advogados dos arguidos afetados pelas alterações comunicadas foi dito nada terem a opor às alterações não substanciais dos factos, prescindindo de prazo de defesa e de alegações complementares e, quanto às alterações substanciais, oporem-se ao comunicado. Nessa sequência, o Ex.mo Juiz Presidente do tribunal coletivo determinou que fosse extraída certidão para ser entregue ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes, tendo em perspetiva, naturalmente, o disposto no artigo 359º, n.º 2, in fine, do Código de Processo Penal. Com efeito, em face da falta de acordo dos arguidos relativamente à continuação do processo pela alteração substancial dos factos, não podia esta ser tida em consideração pelo tribunal a quo [cfr. n.º 1 do artigo 359º], valendo a comunicação como denúncia ao Ministério Público [cfr. n.º 2], que poderá proceder, em processo autónomo, pelos factos em causa. Logo, o interesse punitivo prosseguido pelo Ministério Público em nada foi prejudicado, e não foi preterida qualquer formalidade ou violado qualquer normativo legal que justificasse a intervenção pela via recursiva do Ministério Público, ainda que em benefício exclusivo dos arguidos, para defesa da legalidade, no âmbito das suas atribuições. Efetivamente, nos termos do estatuído no artigo 219º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, ao Ministério Público compete representar o Estado e, além do mais, defender os interesses que a lei determinar, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática. Como decorrência, o Ministério Público tem legitimidade, entre o mais, para promover o processo penal, com as exceções previstas na lei [cfr. artigo 48º], e para interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa [cfr. artigos 53º, n.º 2, al. d), e 401º, n.º 1, al. a), todos do Código de Processo Penal]. Assim, o interesse em agir daquela entidade verifica-se sempre que na tramitação processual ou na decisão judicial ocorra inobservância ou violação das normas legais impostas. Todavia, tal não ocorreu na situação em apreço no que à alteração substancial de factos diz respeito. Aliás, o Magistrado do Ministério Público declarou nada ter a opor a todas as alterações factuais comunicadas, incluindo as consideradas substanciais, pelo que o recurso que, entretanto, interpôs, nessa parte, traduz-se em venire contra factum proprium. A doutrina e a jurisprudência convergem no sentido de não ser admissível que o Ministério Público possa atuar de forma discordante com a posição anteriormente assumida, designadamente, por violação do princípio da lealdade processual[6]. Destarte, e atento o disposto no n.º 2, do artigo 401º, do Código de Processo Penal, afigura-se-nos que, por falta de interesse em agir, o Ministério Público não tem legitimidade para recorrer quanto à alteração substancial de factos que foi comunicada.
Mas, ainda que assim se não entendesse, propendemos a considerar – tal como o Ex.mo Juiz titular do processo –, na esteira da jurisprudência maioritária, que a comunicação de alteração dos factos, quer não substancial, quer substancial, não constitui um ato decisório, sendo, por isso, irrecorrível. Como decorre do que supra aduzimos, os artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal consagram apenas um dever de comunicação de hipotética alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia que se perspetiva em face da prova produzida, não configurando a sua materialização um despacho em face da definição deste contida no artigo 97º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal. Neste sentido, veja-se a vasta jurisprudência citada no despacho que não admitiu o recurso, datado de 21.03.2025, e que aqui reproduzimos: - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.01.2016 [Processo n.º 8/12.3JALRA.C1]: «(…) … Advém dos art.ºs 358.º e 359.º, do CPP, apenas um dever de comunicação da hipotética alteração dos termos iniciais da acusação ou pronúncia, com acolhimento definitivo ou não na sentença; aquele normativismo basta-se com a declaração durante a audiência dessa realidade, comunicada pessoalmente ao arguido, sua defensora, em forma legal, estando absolutamente fora de questão a indicação pelo julgador das provas em que o tribunal se funda para enxertar o incidente porque se não trata de nova acusação ou pronúncia. (…) … O juiz ao desencadear e accionar o mecanismo em alusão cinge-se à constatação de uma realidade e declara-a, mas não enuncia a solução de facto e de direito consequente, pendente da verificação a final dos factos surgidos no horizonte decisório, não se estando, assim, em presença de uma verdadeira decisão nos moldes em que o legislador descreve; a fundamentação acaba por ser, ao fim e ao cabo, a exposição dos termos em que aquela realidade se contém, um “ tertium genus“». [sublinhado nosso]; - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.05.2024 [Processo n.º 1399/18.8T9PBL.C1]: «3.1. Nos termos do art. 358.º/1/3, do CPP, o tribunal, verificando uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, ou alterando a qualificação jurídica destes, comunica-o ao arguido e concede-lhe, caso o requeira, prazo para a preparação da sua defesa. Neste regime, o legislador equilibra as exigências da estrutura acusatória do processo, segundo imposta pela CR (art. 32.º/5), designadamente o princípio da acusação (assegurar a heteronomia de proposição, na acusação, da matéria a investigar e conhecer judicialmente) e o princípio da vinculação temática (cingir a investigação e cognição judicial aos limites do objecto assim heteronomamente proposto), com as de economia e eficiência processual, definindo em que hipóteses e sob que condições podem em nome destas ter lugar desvios à identidade de factos e sua qualificação entre a acusação e a sentença (princípio da identidade), mas sem descaracterização daquela estrutura acusatória – incluindo nas suas refracções sobre o direito de defesa, em especial salvaguardando o impedimento de decisões-surpresa (sobre isto, cfr. Pedro Soares de Albergaria, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, T. IV, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 630-631). Comunicada nas hipóteses e com as condições previstas, o arguido fica ciente dos novos termos do que lhe é imputado e pode em face deles adaptar a sua defesa, como pode o tribunal vir a considerá-los em sentença. O regime do art. 359.º, do CPP, versa em paralelo sobre alterações substanciais de factos e, compreensivelmente, vista essa diversidade de objecto e respectivo potencial, com limites muito mais estreitos (ou, o que é dizer o mesmo, estipulando condições de consideração da alteração que são muito mais exigentes). 3.2. Em qualquer dos casos, a comunicação, em si mesma, não é em boa verdade um acto decisório, mas antes uma advertência, ao arguido (e aos mais sujeitos processuais), da eventualidade de ulterior consideração dos novos factos ou da diversa qualificação jurídica, a fim de permitir-lhe preparar a sua defesa tendo-o em vista, ou até, no caso das alterações substanciais de factos, decidir se consente ou não o prosseguimento do julgamento por eles. Se o tribunal, fora das hipóteses e condições prevenidas, ou sem integralmente observar estas últimas, ainda assim tomar em conta a alteração na eventual condenação subsequente do arguido, então a consequência processual é a de fazer-se nessa medida nula a correspondente sentença condenatória, como explicitamente prevê o art. 379.º/1-b, do CPP, simplesmente não se lobrigando que vício pudesse afectar aquela comunicação em si mesma. Seguindo ainda o autor antes citado (op. cit., p. 638), “a comunicação que o juiz faz à defesa, respeita a factos (novos) indiciados, mas não já definitivamente qualificados como provados. Pressupor assim, equivaleria, em termos circulares, a adiantar precisamente aquilo que só se pode demonstrar na sentença (…) e, por isso, tornaria em mera formalidade o momento de defesa do arguido que o preceito regula. Assim, o sentido da comunicação regulada no n.º 1 é o de levar ao conhecimento da defesa mero projecto ou hipótese de alteração dos factos constantes da peça de imputação e que poderá, ou não, também diante da defesa apresentada pelo arguido, ser concretizada na sentença (cf. o Ac. TC 237/2007, que se refere a um mero ‘juízo provisório e condicional’)”. 3.3. Esgotando-se o sentido da comunicação no dito efeito de advertência, isto é, sem que o acto encerre um valor decisório contrário aos interesses do arguido (bem ao invés abrindo-lhe uma faculdade processual defensiva), bem se vê que o correspondente despacho assume a natureza de um acto de mero expediente ou, talvez com mais propriedade, de determinação de um acto dependente da livre resolução do tribunal, que se limita a salvaguardar a possibilidade processual de um certo rumo decisório ulterior e admitir que a defesa se adapte a essa eventualidade – e como tal nem sequer e em bom rigor recorrível (art. 400.º/1-a-b, do CPP), com o que até já mal cabe referir que, fosse como fosse e por não ser proferido contra o arguido, nem este para esse hipotético recurso teria legitimidade (art. 401.º/1-b, do CPP). … - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.05.2024 [Processo n.º 1107/19.6T9SNT]: «… O artigo 359º rege para a alteração substancial, determinando que uma tal alteração da factualidade descrita na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal, para efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância (n.º 1). Tratando-se de novos factos autonomizáveis em relação ao objecto do processo e não existindo acordo entre o Ministério Público, arguido e o assistente na continuação do julgamento a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia (n.ºs 2 e 3). No caso dos autos, e em obediência ao Acórdão da Relação de Lisboa, já proferidos nestes autos, foi feita tal comunicação ao MP, dos factos novos apurados em audiência de julgamento nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 359 do CPP. Ora, tal comunicação não afecta nenhum direito do arguido que seja merecedor de tutela jurisdicional. Trata-se da comunicação de uma convicção pessoal do julgador sobre factos que podem ter relevo jurídico-penal, comunicação essa que vale como denúncia e que será investigada em processo penal autónomo, no qual o arguido - aqui recorrente e visado pelos despacho - poderá exercer todos os seus direitos processuais. Não afetou, pois, nenhum direito do recorrente, não tendo sido tomada qualquer decisão “contra” o aqui recorrente, pelo que este carece de legitimidade para recorrer (artigo 401.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal) e não tem qualquer interesse em impugnar o despacho recorrido, que é inócuo para com os seus direitos (401º n.º 2 do CPP). (…)» [sublinhado nosso] - Acórdão do Tribunal Relação de Lisboa de 09.07. 2014 [CJ, Tomo III, 2014, página 69], por reporte a recurso interposto pelo Ministério Público, como sucede in casu: «I. É irrecorrível o despacho do juiz presidente do Tribunal Coletivo que comunica uma alteração substancial dos factos descritos na pronúncia. II. Tal comunicação não é vinculativa para o Tribunal Coletivo e não consubstancia uma decisão. III. Recorrível é o acordão que vier a tomar em conta factos novos relevantes para a decisão da causa sem ter cumprido o disposto nos arts. 358º e 359º do CPP. (…) … Vejam-se, ainda, os seguintes: - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10.07.2023 [Processo 2257/21.4JABRG.G1]: «As comunicações previstas nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal não consubstanciam qualquer decisão, constituindo meras advertências para que o direito de defesa possa ser exercido e, consequentemente, o tribunal possa, caso venha a considerar esses factos como provados ou a alterar a qualificação jurídica nos termos anunciados, tomá-los em conta no acórdão que vier a proferir. (…) A comunicação a que alude o n.º 1 do artigo 358.º do CPP não incorpora um juízo, positivo ou negativo, sobre a comprovação dos factos a que se refere. Apenas exterioriza que, no estado da prova produzida em julgamento, o princípio da descoberta da verdade obriga a que o tribunal se debruce sobre uma realidade não comportada na acusação ou na pronúncia, podendo tais factos vir a ser dados como provados ou não, em função da prova que for ulteriormente produzida ou examinada. Tratam-se, pois, de factos meramente sinalizados aos sujeitos processuais, de índole precária e indiciária, porque ainda sujeitos a eventual contraprova e ao crivo da discussão contraditória em audiência. (…)»; - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.03.2023 [Processo 791/16.7PBLRA.C1]: «I - O artigo 358.º do Código de Processo Penal consagra uma comunicação que incumbe ao tribunal fazer, que transmite um juízo necessariamente provisório, que, depois de sujeito ao contraditório prescrito no preceito, terá ou não projecção na decisão da matéria de facto fixada na sentença ou acórdão que vier a ser proferido. II - Dada a sua natureza provisória, a comunicação em causa não afecta, em si mesma, os direitos do arguido, razão pela qual a lei não estabelece qualquer sanção para a sua omissão em momento anterior ao da prolação da sentença. III - O tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação ou pela pronúncia, que deve manter-se inalterado até ao trânsito em julgado da condenação, como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem de defender-se dos factos acusados e não de outros e que apenas por esses factos poderá ser condenado, mas tal não impede que o tribunal, na sua actividade cognoscitiva e decisória, atenda a factos que não foram objecto da acusação, sejam quais forem as circunstâncias. IV - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração substancial ou não substancial dos factos descritos na acusação, o tribunal pode deles conhecer desde que ocorrida nos casos e condições previstos nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal. V - Em cada caso há que determinar se ocorre uma alteração de factos, ocorrendo há que verificar, depois, se ela é substancial ou não substancial e, perante essa definição, desencadear os mecanismos legais previstos para assegurar o exercício dos direitos de defesa. (…)»; - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.11.2024 [Processo 838/21.5JACBR.C1]: «Trata-se, como é bom de ver, de uma comunicação que ao Tribunal incumbe efectuar e não de um despacho – acto decisório previsto no art. 97.º do CPP. Essa comunicação transmite um juízo necessariamente provisório que, depois de sujeito ao contraditório, por força do formalismo prescrito no mesmo preceito, terá ou não projecção na decisão da matéria de facto fixada na sentença ou acórdão que vier a ser proferido. Dada a sua natureza provisória, a comunicação em causa não afecta, em si mesma, os direitos do arguido, pelo que bem se compreende que a lei não estabeleça qualquer sanção para a sua omissão (quer no caso do art. 358.º quer no do art. 359.º) em momento anterior ao da prolação da sentença. Antes da decisão final, ao arguido apenas assiste o direito de se defender dos “novos factos” ou da “nova qualificação jurídica”. Só uma vez proferida a decisão final, na qual o Tribunal fixa definitivamente a matéria de facto, poderá verificar-se se o arguido foi efectivamente condenado por esses “novos factos” ou essa “nova qualificação jurídica” e se ocorreu a violação do preceituado nos arts. 358.º e 359.º, que a lei processual penal considera constituir nulidade da sentença (cf. art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP). Em suma, anteriormente a esse momento, não existe um acto decisório mas apenas uma comunicação, necessariamente provisória, que, em si, não afecta qualquer direito de defesa, sendo, por isso, irrecorrível»; - Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 216/19, de 02.04.2019[7]: «(…) a comunicação a que alude o n.º 1 do artigo 358.º do CPP não incorpora um juízo, positivo ou negativo, sobre a comprovação dos factos a que se refere. Apenas exterioriza que, no estado da prova produzida em julgamento, o princípio da descoberta da verdade obriga a que o tribunal se debruce sobre uma realidade não comportada na acusação ou na pronúncia, podendo tais factos vir a ser dados como provados ou não, em função da prova que for ulteriormente produzida ou examinada. Tratam-se, pois, de factos meramente sinalizados aos sujeitos processuais, de índole precária e indiciária, porque ainda sujeitos a eventual contraprova e ao crivo da discussão contraditória em audiência. … Ante todo o exposto, e atento o preceituado nos artigos 401º, n.º 2, 414º, n.º 2, e 420º, n.º 1, al. b), todos do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar o recurso interposto pelo Ministério Público na parte que se refere à alteração substancial dos factos.
* II. – FUNDAMENTAÇÃO 1. - Decorre do preceituado no artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida. Se as conclusões ficam aquém da motivação, a parte desta que não é ali resumida torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões; se vão além da motivação também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente. Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[8]]. O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente, e, outras, de conhecimento oficioso[9]. No caso vertente, são as seguintes as questões a decidir:
A – Recurso interlocutório Nulidade da comunicação efetuada em 04.02.2025 por violação das regras da competência do tribunal
B – Recursos do acórdão B.1 - Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à aplicabilidade da Lei n.º 38-A/23, de 02.08 [conclusões 1 a 6 do recurso do arguido BB];
B.2 – Medida e espécie das penas a) – Relativamente ao arguido AA [conclusões 1.ª a 6.ª do recurso do Ministério Público]; b) – Relativamente ao arguido BB [conclusões 7.ª a 9.ª do recurso do Ministério Público e 7 a 12 do recurso do próprio]; c) – Relativamente ao arguido CC [conclusões 10.ª a 14.ª do recurso do Ministério Público]; d) – Relativamente ao arguido DD [conclusões 3 a 44 do recurso do próprio].
2.1 – A comunicação efetuada em 04.02.2025, objeto do recurso interlocutório, é a supra transcrita.
2.2 – Do acórdão apenas se transcreve de seguida o que releva para a apreciação dos recursos dele interpostos: 2.2 – No que concerne aos factos considerados provados: «A. Dos Crimes de Tráfico de Estupefacientes … B. Dos Crimes de Condução sem Habilitação Legal … § Dos objectos … § Das Condições Pessoais Reportadas ao arguido AA … § Das Condições Pessoais Reportadas ao arguido BB … § Das Condições Pessoais Reportadas ao arguido CC … § Das Condições Pessoais Reportadas ao arguido DD …
2.2.2 – Quanto à determinação concreta das penas:
«IV. ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA 1. Logrado que está o enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos AA, BB, EE, FF, GG, CC, HH, DD, II, JJ e KK, importa agora determinar a medida das sanções a aplicar. E para desempenhar tal tarefa fornece o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 a moldura penal de punição em pena de prisão de 4 a 12 anos. Já o tipo privilegiado deste ilícito tal como previsto na alínea a) do artigo 25.º do mesmo diploma legal contempla limiares indexados entre 1 e 5 anos. Temos, por seu turno, que a Condução sem habilitação legal se mostra punível com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias! E os crimes de Detenção de arma proibida conhecem sancionamento com pena de prisão até 4 anos ou multa até 480 dias [boxer] e pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias [munições].
…[10].
…
…[11].
…[14].
…
Desta forma, tendo em conta as delineadas molduras de prevenção geral positiva e especial para a determinação da sanção concreta e em cômputo global dos factores atrás explanados – nomeadamente a conduta típica de Tráfico desenvolvida por cada arguido e as distintas exigências de prevenção –, cremos estarmos em condições de fixar as penas adequadas e necessárias para fazer face aos diversos ilícitos praticados por cada arguido. Efectivamente, tendo em conta os factos aludidos, consideramos ser de aplicar: a) Pena de 4 anos e 9 meses de prisão ao arguido AA pela prática do crime de Tráfico de estupefacientes; b) Pena de 2 anos e 3 meses de prisão ao arguido BB pela prática do crime de Tráfico de estupefacientes de menor gravidade; c) Pena de 5 anos e 6 meses de prisão ao arguido EE pela prática do crime de Tráfico de estupefacientes; d) Pena de 1 ano e 3 meses de prisão à arguida FF pela prática do crime de Tráfico de estupefacientes de menor gravidade; e) Pena de 2 anos de prisão ao arguido GG pela prática do crime de Tráfico de estupefacientes de menor gravidade; f) Pena de 1 anos e 9 meses de prisão ao arguido HH pela prática do crime de Tráfico de estupefacientes de menor gravidade; g) Pena de 4 anos e 6 meses de prisão ao arguido CC pela prática do crime de Tráfico de estupefaciente; h) Pena de 1 anos e 9 meses de prisão ao arguido II pela prática do crime de Tráfico de estupefacientes de menor gravidade; i) Pena de 7 meses de prisão ao arguido II pela prática de cada um dos crimes de Condução sem habilitação legal; j) Pena de 3 anos e 6 meses de prisão ao arguido JJ pela prática do crime de Tráfico de estupefacientes de menor gravidade; k) Pena de 1 ano de prisão ao arguido JJ pela prática do crime de Detenção de arma proibida; l) Pena de 2 anos de prisão ao arguido KK pela prática do crime de Tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
5. Determina ainda o n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. E para a determinação daquela pena determina o n.º 2 do mesmo preceito que a moldura do concurso terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevadas das penas parcelares.
Tal significa que deveremos encontrar uma pena única capacitada a sancionar os arguidos II e JJ. E a punição do concurso formado no caso sub judice por referência ao primeiro terá que se achar em função de uma moldura penal de 1 ano e 9 meses a 3 anos e 6 meses enquanto limiar máximo contemplado nos artigos 41.º, n.º 2 e 77.º, n.º 2 do Código Penal. Já quanto ao arguido JJ, os limites do quadro sancionatório dão-se entre 3 anos e 6 meses e 4 anos e 6 meses.
Além do mais, e como resulta do n.º 1 já transcrito, na medida da pena do concurso entra agora um novo factor, o qual se traduz na consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente. Em comentário a regra semelhante plasmada no ordenamento jurídico alemão, refere Jescheck que Ao valorar-se a personalidade do agente deverá atender-se sobretudo à questão de saber se os factos constituem expressão de uma tendência criminosa ou, pelo contrário, delitos ocasionais carentes de conexão. A autoria em série deve considerar-se em princípio num sentido agravante (BGH, 24, 268 [270]). (...) A valoração conjunta dos factos particulares está chamada em especial a permitir a apreciação da gravidade global do conteúdo da ilicitude e da questão da relação interna existente entre os distintos actos[15].
…
IV.1 Da Suspensão da Penas de Prisão a) Determina o artigo 45.º do Código Penal que o Tribunal, quando aplique pena de prisão não superior a um ano, substitui a mesma por multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável excepto se “a execução da pena de prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes”.
Já o artigo 43.º do mesmo diploma legal admite a substituição da pena de prisão em medida não superior a 2 anos por regime de permanência na habitação. Isto enquanto o subsequente artigo 58.º tolera identicamente essa mesma substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade quando estejamos em face de pena de prisão até 2 anos.
Também o artigo 50.º do Código Penal acautela que o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, “atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Refere Figueiredo Dias[16] em anotação à este último preceito que A finalidade que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correcção, melhora ou – ainda menos – metanoia das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como se exprime Zipf, uma questão de legalidade e não de moralidade que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência.
Significa o exposto que é por referência às expectativas de reinserção social do arguido que se afere da pertinência da suspensão da execução da pena de prisão. E a conclusão que se lograr nesta sede será, pois, determinante na decisão que a final vier a ser proferida, só se devendo declinar então a suspensão se um juízo de prevenção geral assim o impor. Efectivamente, e como refere Anabela Rodrigues[17], é um “orientamento de prevenção – e esse é o de prevenção especial – que deve estar na base da escolha da pena pelo juiz; sendo igualmente um orientamento de prevenção – agora de prevenção geral, no seu grau mínimo – o único que pode (deve) fazer afastar a conclusão a que se chegou em termos de prevenção especial”.
b) Importa assim fundamentar porque razão o caso sub judicio obriga à mobilização da suspensão da execução da pena por referência ao arguido AA, FF, GG, HH, II, JJ e KK.
Ressalvando os arguidos AA e JJ que colherão uma análise própria, podemos, no imediato, dizer que os demais arguidos referenciados não revelam uma carência de socialização a reclamar a aplicação definitiva de pena privativa da liberdade. É certo que tratamos, nalguns casos, de penas de prisão já elevadas e aplicadas por reporte a ilícitos de substancial gravidade e a originar alarme social. Mas mesmo uma censura mais severa que se queira fazer de tais tipos incriminatórios tem que ser materializada com a noção que os ilícitos praticados pelos arguidos assumem, ainda assim e em cotejo com outras modalidades de Tráfico, contornos concretos mais débeis.
Acresce que o exposto também não pode fazer olvidar que o sistema judicial ainda não concretizou uma qualquer actuação correctiva sobre a pessoa daqueles arguidos em virtude da ausência de antecedentes criminais. Pelo menos no concreto domínio do Tráfico de estupefacientes… Com o que é de expectar que a suspensão da pena de prisão possa ainda operar a ressocialização desejada de arguidos com, aparentemente, algum grau de enquadramento no plano familiar, social e laboral [mais conseguido para FF, GG, HH e num plano mais fraco, mas ainda assim existente, quanto aos arguidos II e KK]..
Cremos, pois, que a censura do facto e a ameaça de prisão realizam ainda de forma adequada as finalidades da punição da totalidade dos arguidos, afigurando-se adequado suspender a execução da pena de prisão em que aqueles arguidos vão condenados, à luz do disposto no número 1 do artigo 50.º do Código Penal, por idêntico período ao da condenação.
O mesmo se pode renovar quanto ao arguido JJ! É certo que o mesmo evidencia uma condenação pela prática de crime de Tráfico de menor gravidade nos seus antecedentes criminais. Sucede que os nossos ilícitos findaram em momento prévio à condenação imposta no processo n.º 162/23....! No que não se pode dizer que a pena ali aplicada tinha já logrado influir qualquer efeito na sua pessoa ou no seu trilho de reinserção! Acresce que o mesmo está a tentar debelar a sua problemática aditiva com esforços que importa não contrariar… Evidenciando, também ele, enquadramento bastante para que se considere que a comunidade ainda compreenderá uma privação não efectiva da liberdade!
Admitimos ser mais discutível a resposta à indagação se o arguido AA revela exigências de reinserção comunitária a reclamar a aplicação definitiva de pena privativa da liberdade. Admitimos que a resposta poderia afigurar-se, num primeiro momento, positiva… Pela própria gravidade do ilícito encetado quando se considere as quantidades apreendidas e o número de consumidores a quem foi cedido estupefaciente. Ao ponto de as exigências de prevenção geral positiva se inclinarem para a imposição de uma concreta privação da liberdade.
Estamos, no entanto, convictos que essa mesma inclinação poderá não se mostrar definitiva quando se considere que o arguido é jovem, mostra-se primário e ostenta inequívoco enquadramento familiar, laboral e social. Estando a empenhar esforços para superar a sua adição enquanto primacial factor criminógeno… E mesmo os sentimentos comunitários não olvidarão que tratamos, em exclusivo, de Cannabis resina! Enquanto narcótico que, não obstante os efeitos inegavelmente adversos, não ostenta a mesma danosidade social que outras drogas reputadas mais duras. E que não proporciona, certamente, os mesmos lucros ou vantagens!
c) Temos, como tal, que os arguidos AA, FF, GG, HH, II, JJ e KK justificam que se indague da sua actual capacidade de reinserção com uma pena substitutiva! Que permita, aliás e quanto a parte deles, trabalhar a problemática da sua adição. Enquanto um dos fenómenos que os conduziram à conduta delinquente. Mantemos, ademais, que não sobressai qualquer razão excepcional que leve a pensar que a aplicação de tal suspensão resulte, aos olhos da comunidade, insuportável. Pelo que se considera adequado suspender a pena de prisão em que os arguidos AA, FF, GG, HH, II, JJ e KK vão condenados, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 50.º, por período idêntico à própria duração da sanção.
Essa suspensão será imposta sem quaisquer condições ou regras quanto à arguida FF quando se atente ao carácter isolado da conduta delituosa e ao seu pleno enquadramento comunitário. Já quanto aos arguidos AA, GG, HH, II, JJ e KK, porque os mesmos demonstraram uma inclinação para o crime em face do seu contexto de adição, consideramos não ser de aplicar a referida suspensão sem mais. Antes se afigura conveniente e adequado recorrer ao mecanismo do regime de prova do artigo 53.º do Código Penal por forma a facilitar a reintegração dos condenados na sociedade. Sucede, todavia, que o Tribunal não se encontra, neste momento, habilitado a organizar os Planos Individuais de Readaptação Social a que o artigo 53.º, n.º 2 do Código Penal faz referência. não podendo, por conseguinte, dar provimento ao disposto no n.º 1 do artigo 494.º do Código de Processo Penal. Desta forma, deverá esta decisão ser comunicada, uma vez transitada em julgado, à DGRSP para que esta proceda à elaboração dos mesmos planos e os submeta a este Tribunal para homologação. Planos que, entre os demais deveres e regras divisados pertinentes, deverão conter, à luz da anuência manifestada em julgamento, a obrigação de os arguidos AA, HH, II, JJ e KK se sujeitarem ao acompanhamento especializado da problemática aditiva que lhes venha a ser indicado e mantendo-se disponíveis para os testes que forem considerados necessários.
d) Já no que se refere aos arguidos BB e CC, fica evidente que o caso sub judicio não permite a mobilização de uma pena substitutiva e, mormente, da suspensão de execução da pena de prisão.
Efectivamente, o arguido BB averba os antecedentes criminais já oportunamente postos em relevo. Onde sobressai, nos termos do exposto, o sucessivo cometimento de crimes análogos ao aqui objecto de condenação. O que bem evidencia que o mesmo ostenta uma personalidade criminógena neste domínio com manifestas carências de ressocialização. Até porque foi condenado em anteriores penas suspensas sem que tal o tenha demovido da presente renovação da conduta delituosa. Materializada, aliás, em puro período probatório dos processos n.º 55/20.... e 17/22.....
…
Já no que se refere ao arguido CC, temos que este se mostra primário… No que o primacial obstáculo à suspensão deriva das exigências de prevenção geral positiva! Isto à luz das quantidades de estupefacientes de que o mesmo se fazia acompanhar… Não olvidamos que não o número de doses ostentadas por CC não apresenta uma diferença de particular significado quando em confronto com as que se mostravam detidas pelo arguido AA. Tanto assim é que, note-se, a medida da pena aplicada a este se mostrou ligeiramente superior em função, designadamente, do maior número de vendas apurado. Mas intercede, nessa análise, uma relevante diferença que obriga a indexar o alarme social a patamares necessariamente distintos! Isto pois que grande parte dos narcóticos titulados pelo arguido CC se traduziam em Cocaína… E esta, à luz da sua superior perniciosidade, obriga a uma valoração necessariamente distinta dos clamores comunitários! Já não compatível, quando em face de 712 doses [acompanhadas de 2469 doses de Cannabis e de 148 doses de MDMA], com discursos de suspensão!
Acresce que as condições pessoais do arguido CC não são particularmente favoráveis [nomeadamente quando em cotejo com o arguido AA]! Evidenciando, é certo, enquadramento familiar. Mas não ostentando, mesmo quando em liberdade, posicionamento laboral estável. Não curando, ademais, por obter acompanhamento para a superação da problemática de adição que, no passado, figurou como um dos factores despoletadores do ilícito materializado. Efectivamente, se o mesmo apregoa uma abstinência, encontra-se, ainda assim, em meio contentor. Que, pela sua natureza, conhece maiores limitações ou obstáculos à concretização de consumos. Não sendo, pois, certo que, sem a devida sedimentação, se possa confiar na superação dos problemas aditivos.
Com o que juízo de prognose efectuado por este Tribunal é, deste modo, desfavorável no que respeita à aludida substituição ou suspensão por referência aos arguidos BB e CC. Isto no sentido de que, tendo em vista uma adequada satisfação das exigências de prevenção geral e especial, se mostra necessária a execução da pena de prisão para prevenir o cumprimento de futuros crimes. Assim, e por essencialidade para a consecução das finalidades da punição e para que aqueles interiorizem o valor da sua conduta como reprovável e não voltem a cometer novos crimes, o Tribunal decide determinar o cumprimento efectivo da pena de prisão.
IV.2 Do Arguido DD e da sua Reincidência a) O arguido DD encontra-se acusado como reincidente. Determina, para tanto, o artigo 75.º do Código Penal sob a epígrafe «Reincidência» que 1. É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a seis meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a seis meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenação anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. 2. O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
A reincidência configura um dos casos especiais de determinação da pena previstos na lei. A sua consagração decorre da consideração da existência de fundamentos factuais indiciadores de uma maior culpa [consubstanciada em uma atitude pessoal de desconsideração pela solene advertência contida na condenação anterior] e de uma maior perigosidade do agente, a reclamarem exigências acrescidas de prevenção[18].
E também os demais pressupostos plasmados no artigo 75.º do Código Penal se mostram plenamente verificados no caso concreto. Efectivamente, estamos em face de crimes dolosos, objecto de condenações em pena de prisão efectiva superior a 6 meses [isto, quanto aos ilícitos dos presentes autos, pelo menos quanto ao crime de Tráfico de estupefacientes, cabendo, infra, aferir se os crimes de Condução sem habilitação legal e de Detenção de arma proibida atingem tal exigência], entre cuja prática medeia um lapso temporal inferior a 5 anos e no âmbito dos quais a reincidiva no crime patenteia que as condenações anteriores não serviram de advertência suficiente para o arguido. Note-se que esta última exigência fundamenta a ideia de que não chega uma mera verificação dos pressupostos formais atrás referidos para a existência «automática» da reincidência. Isto pois que a perigosidade do agente não pode presumir-se juris et de jure e o fundamento último da agravação da pena não poderá ser outro que a culpa (acrescida) do agente[19].
Esta conclusão acha-se, aliás, imediata por reporte ao caso sub judicio quando se atente que o arguido DD renova o preciso crime objecto de sancionamento prévio com pena de prisão em dosimetria considerável. Considere-se, para tanto, que o arguido DD cumpriu penas sucessivas a ascenderem a um total de 6 anos e 5 meses [a que acresceu ainda uma pena residual] pela prática de um crime de Furto e de um crime de Tráfico de estupefacientes. Que motivaram a sua privação ininterrupta da liberdade entre 20 de Agosto de 2014 e 29 de Agosto de 2020. No que a constatação que as anteriores condenações não lograram operar a ressocialização do arguido DD surge como forçosa da pura e simples circunstância de este vir a praticar novo crime de Tráfico de estupefacientes [ou seja, apesar de a nossa disciplina da reincidência abranger tanto a homótropa ou específica como a reincidência polítropa ou genérica, de natureza equivalente ou similar aos anteriormente cometidos]. Isto quando o mesmo persistiu na via delituosa quando não se achavam volvidos 5 anos sobre a sua libertação... Com ose refere no Acórdão do Tribuna da Relação de Coimbra de 21 de Fevereiro de 2024 [Processo n.º 656/04.5JACBR.C1], I- A renovação da atividade criminosa infringindo norma que tutela os mesmos bens jurídicos (reincidência homótropa) permite a lógica constatação de que ao arguido foi indiferente a advertência resultante da anterior condenação. II- Na reincidência polítropa ou heterogénea importa considerar uma base factual alargada, demonstrativa da relação entre a sucessão de crimes de natureza diversa e da possibilidade de a imputar a uma especial propensão criminosa ou, pelo menos, a circunstâncias que evidenciem uma maior culpa referida ao facto, justificativa da agravação da pena.
Encontra-se, pois, verificado o critério material da reincidência… É certo que tal constatação não basta para que se possa já afirmar a premência da punição como tal. Isto pois que, como se disse, se apresenta como pressuposto da intervenção do instituto em apreço a punição com prisão efectiva superior a seis meses. No que cumpre, desde já, indagar da admissibilidade de suspensão ou substituição da sanção em que o arguido DD venha a ser condenado.
É certo que nem se afirma plausível a punição com pena única inferior a 5 anos quando se tome em consideração os crimes em concurso e as respectivas molduras sancionatórias. Mas, por mero exercício de raciocínio, admita-se tal possibilidade…
Determina o artigo 50.º do Código Penal que o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, “atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
E temos, neste sentido, como óbvio que o caso sub judicio não permite a mobilização do preceito posto em epígrafe. Efectivamente, o arguido DD averba, em matéria de antecedentes criminais, um total de 13 condenações… Respeitando 5 das mesmas à precisa prática de crimes conexionados com estupefacientes! Numa via claramente progressiva com a aplicação de sanções sucessivamente mais gravosas. Ostentando, outrotanto, crimes de carácter patrimonial que apresentam também danosidade considerável… O que bem evidencia que o mesmo apresenta uma personalidade criminógena com manifestas carências de ressocialização. Até porque foi condenado em sanções traduzidas em privação efectiva de liberdade de considerável amplitude sem que tal o tenha demovido de uma renovação da conduta delituosa. Cabendo, para tanto, recordar que o mesmo cumpriu recentemente duas penas sucessivas a ascenderem a 1 ano e 7 meses de prisão pela prática de um crime de Furto e a 4 anos e 10 meses de prisão pelo crime de Tráfico de estupefacientes. E que já antes havia observado prisões efectivas de 3 anos e 4 meses [Furto qualificado, Falsificação de documentos, burla e Introdução em lugar vedado ao público], de 5 anos [Tráfico de estupefacientes] e de 7 anos [Tráfico de estupefacientes] de prisão. Acresce que os esforços de ressocialização encetados com a liberdade condicional concedida não lograram identicamente conduzir o arguido DD a uma postura de reinserção comunitária. Como o demonstram os presentes autos… E mesmo os ilícitos estradais que tradicionalmente se inscrevem numa categoria criminológica associada a uma menor gravidade evidenciam, nesta vertente, um claro desprezo pela proibição criminal quando se considere que o arguido DD foi, no prazo de 2 anos, surpreendido a renovar por 4 vezes o crime de Condução sem habilitação legal. Quedando, pois, indiferente às sucessivas penas suspensas ali aplicadas
Com o que as penas anteriores não constituíram censura adequada e suficiente para o arguido DD por forma a recomendar à sua substituição ou suspensão por outro tipo de punição sob pena de não se dar cumprimento às necessárias exigências de prevenção. Nesse sentido, temos que o arguido uma vez mais revela a sua indiferença para com os valores comunitários e para com a actuação judicial sobre si previamente concretizada. Com o que documenta uma particular insensibilidade para os esforços de ressocialização que foram e vêem a ser desenvolvidos sobre a sua pessoa.
Acresce que o arguido DD não ostenta enquadramento laboral estável. Não logrou, ademais, obviar em meio livre à problemática de adição que, no passado, figurou como factor despoletador de parte dos ilícitos materializados. Não sendo, pois, certo que, sem a devida consolidação, se possa confiar na superação dos problemas aditivos. E, mesmo em contexto prisional, apresenta já um sancionamento disciplinar…
Com o que, mesmo que a pena única a aplicar se inscrevesse num patamar inferior a 5 anos de prisão, sempre o juízo de prognose a efectuar por este Tribunal seria, deste modo, desfavorável no que respeita à aludida suspensão. Isto no sentido de que, tendo em vista uma adequada satisfação das exigências de prevenção geral e especial, se mostra necessária a execução da pena de prisão para prevenir o cumprimento de futuros crimes. Na verdade, tudo leva a crer que, a aplicar-se sanção não detentiva, o arguido virá, no imediato ou num futuro próximo, a retomar a actividade ilícita. Assim, e por essencialidade para a consecução das finalidades da punição e para que o arguido interiorize o valor da sua conduta como reprovável e não volte a cometer novos crimes, o Tribunal decide determinar o cumprimento efectivo da pena única de prisão a aplicar nesta sede.
Importa agora se as penas parcelares aqui a aplicar se mostrariam superiores a 6 meses a não ser o arguido DD reincidente… Enquanto segunda exigência formal necessária à mobilização do instituto! E também porque só assim se poderá controlar cabalmente o limite imposto pela parte final do n.º 1 do artigo 76.º do Código Penal.
Atente-se agora que a punição, como reincidente, obedece a um iter metódico próprio. Como escreve Figueiredo Dias[20], o Tribunal “(...) tem de determinar a pena que concretamente deveria caber ao agente se ele não fosse reincidente, para tanto seguindo o procedimento normal de determinação da pena (...)”, pois só assim se percebe “(...) se se verifica um dos pressupostos formais da reincidência, qual é o de o crime reiterado ser punido com prisão efectiva; e para tornar possível a última operação, imposta pela segunda parte do art. 77º/n.º 1”..
Alcançada a pena concreta cabida ao caso [isto é, abstraindo até então de qualquer consideração sobre a eventual existência da reincidência], construirá o julgador a moldura penal da reincidência nos termos do n.º 1 do artigo 76.º do Código Penal. E dentro da moldura penal da reincidência será então determinada a medida concreta da pena a aplicar ao facto. No entanto, e como também ensina Figueiredo Dias[21], “isso será feito, ainda aqui, com total observância dos critérios gerais de medida da pena, contidos no art. 72º C.P.”. É, no entanto, de realçar que “(...) o limite máximo de pena concreta consentido pela culpa poderá ser mais alto, devido à intensidade da censura ao agente de se não ter deixado motivar pela advertência resultante da condenação ou condenações anteriores; finalmente, que as exigências de prevenção se encontrarão muito provavelmente acrescidas – e, na verdade, não só as de prevenção especial, em função de uma maior perigosidade, como as de prevenção geral positiva, em virtude de a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada se revelar mais difícil de alcançar”.
Saliente-se, por último, que não pode deixar o julgador de comparar a medida da pena que encontrou sem levar em linha de conta a reincidência com aquela a que chegou dentro da moldura da reincidência. Isto pois que só assim se garante aquilo que a lei exige: que o agravamento definido pela reincidência não exceda a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.
Vejamos, assim, quais as penas parcelares a mobilizar a inexistir reincidência. Teríamos, para tanto, que § Quanto ao Crime de Tráfico de Estupefacientes Praticado pelo arguido DD Importa referir, pressupostas as diferentes configurações que o crime de Tráfico de estupefacientes assume e a dilatada moldura penal que o legislador lhe associa, a gravidade média-baixa do ilícito praticado pelo arguido DD. 1…
§ Quanto aos Crimes de Condução sem Habilitação Legal praticado pelo arguido DD Importa referir, pressupostas as diferentes configurações que o crime de Condução sem habilitação legal assume e a moldura penal que o legislador lhe associa, a gravidade baixa dos ilícitos praticados pelo arguido DD. 1…
§ Quanto ao Crime de Detenção de Arma Proibida Praticado pelo arguido DD Importa referir, pressupostas as diferentes configurações que o crime de Detenção de arma proibida assume e a moldura penal que o legislador lhe associa, a gravidade baixa do ilícito praticado pelo arguido DD. …
Desta forma, tendo em conta as delineadas molduras de prevenção geral positiva e especial para a determinação da sanção concreta e em cômputo global dos factores atrás explanados, cremos estar em condições de fixar as penas adequadas e necessárias para fazer face aos ilícitos praticados pelo arguido. E, sem a reincidência, entenderia o Tribunal serem ajustadas as penas de 5 anos e 5 meses para o crime de Tráfico de estupefacientes, de 9 meses a cada um dos crimes de Condução sem habilitação legal e de 3 meses ao crime de Detenção de arma proibida. No que o sancionamento de este último ilícito não atinge o limiar mínimo de punição necessário para operar a reincidência. A qual apenas intercede, como tal, em face dos crimes de Tráfico de estupefacientes e de Condução sem habilitação legal. A potenciar as correspondentes molduras penais para, respectivamente, 5 anos e 4 meses de prisão a 12 anos de prisão e 1 mês e 10 dias de prisão até 2 anos de prisão.
Socorrendo-nos dos ensinamentos necessários à mobilização da figura da reincidência, e de acordo com os critérios e regras contidos nos artigos 75º e 76º do Código Penal, afiguram-se-nos adequadas, justas e ponderadas [perante a evidente e recalcitrante postura de desprezo por aquilo que para si deveria ter significado, ao longo dos anos, o cumprimento de outras penas de prisão] as penas, decorrentes do funcionamento daquele instituto, de 6 anos e 2 meses de prisão para o crime de Tráfico de estupefacientes e de 10 meses de prisão para cada um dos crimes de Condução sem habilitação legal.
Temos, nesta sequência, que a moldura do concurso mobilizável em face do arguido DD se passa a cifrar em 6 anos e 2 meses a 11 anos e 5 meses [6 anos e 2 meses + (10 meses x 6) + 3 meses].
Desta forma, no que toca à apreciação conjunta dos factos é importante salientar que a visão unitária dos mesmos não potencia particularmente a aferição da gravidade global dos ilícitos. É certo que releva o curto lapso temporal [4 meses] que mediaram a prática dos 8 crimes em relevo [1 crime de Tráfico, 6 crimes de Condução sem habilitação legal e 1 crime de Detenção de arma proibida]. A significar que o arguido DD continua a não erigir qualquer barreira interior à ilicitude. O que, naturalmente, potencia o alarme social decorrente da sua actuação e incrementa os quantos de pena necessário para a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na vigência das normas violadas. A exigir um incremento da sanção única… Mas também não podemos permitir que o sancionamento das Conduções sem habilitação legal leve a uma desproporcional sobrelevação daquela mesma pena. Pois que estamos ali em face de condutas homogéneas que se absorvem reciprocamente em matéria de gravidade global!
…
Desta forma, tomando em consideração a totalidade dos vectores supra expostos, julga-se justificada e adequada a fixação da pena do concurso em 8 anos de prisão.»
3. – APRECIAÇÃO DOS RECURSOS A – Recurso interlocutório Nulidade da comunicação efetuada em 04.02.2025 por violação das regras das regras da competência do tribunal O Ministério Público invocou, ainda, a nulidade do “despacho” prolatado em 04.02.2025, por violação das regras das regras da competência do tribunal, nos termos do disposto no artigo 119º, al. e), do Código de Processo Penal. Alega, para tanto, em síntese, que é ao tribunal coletivo que compete apreciar a prova e julgar a causa que foi submetida à sua apreciação e, por via disso, deliberar sobre a comunicação de alteração dos factos descritos no despacho de pronúncia e que, analisado o “despacho” recorrido, constata-se que o mesmo apenas é assinado pelo Juiz Presidente do Tribunal Coletivo e não resulta do seu texto que o mesmo tenha resultado de deliberação tomada pelo tribunal coletivo. Conclui que tal “despacho” é nulo na medida em versa sobre matéria que integra o âmbito de competência do tribunal coletivo e que, por isso, devia ter sido decidido por meio de deliberação. Todavia, o Ministério Público - que na sequência da comunicação efetuada pelo Juiz Presidente do Tribunal Coletivo declarou nada ter a opor a todas as alterações, conforme consta da ata - não invocou tal nulidade perante o tribunal recorrido, nem no momento da comunicação, nem posteriormente, limitando-se a suscitar tal invalidade no recurso. Ora, como é consabido, salvo os casos de nulidade da sentença, que são suscetíveis de, por si só, serem fundamento de recurso (artigo 379º, n.º 2, do Código de Processo Penal), todas as demais nulidades e, também, as irregularidades devem ser previamente suscitadas perante o tribunal que as cometeu, que as apreciará em primeira instância, só havendo recurso da decisão que delas conhecer, sob pena de frustração da garantia constitucional do duplo grau de jurisdição [cfr. artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa]. Não tendo assim procedido, não pode agora o Ministério Público, em sede de recurso, vir suscitar a invalidade do despacho. Com efeito, reportando-se a ato processual distinto da sentença, ainda que esteja em causa nulidade insanável, invocável a todo o tempo [cfr. artigo 119º, al. e), do Código de Processo Penal], tinha que ser arguida perante o tribunal em que, alegadamente, se verificou, o qual apreciaria e decidiria – caso reconhecesse a sua existência, poderia supri-la, ainda que com repetição do ato e dos demais afetados [cfr. 122º, n.ºs 2 e 3]; caso contrário, poderia, então, o recorrente recorrer e discutir os fundamentos do indeferimento da arguição do vício. Decorre, assim, do exposto que o recurso interposto pelo Ministério Público nessa parte carece de objeto e não deveria ser admitido. Ainda que assim se não entendesse, emerge dos autos que não assiste razão ao Ministério Público. Vejamos. É inquestionável que, nos julgamentos com intervenção do tribunal coletivo, compete a este, mediante deliberação e votação dos membros que o compõem, a apreciação da prova produzida em audiência de julgamento e as respetivas repercussões processuais e substantivas [cfr. artigos 14º e 365º do Código de Processo Penal]. A disciplina e direção dos trabalhos da audiência de julgamento compete, porém, ao presidente do tribunal coletivo, nos moldes previstos nos artigos 322º e 323º do mesmo diploma, sem prejuízo de outros poderes e deveres que por lei lhe forem atribuídos, entre os quais a comunicação da alteração dos factos descritos na acusação ou despacho de pronúncia e da alteração da qualificação jurídica nestas peças processuais efetuada. Com efeito, como expressamente refere o n.º 1 do artigo 358º, reportando-se à alteração não substancial dos factos, “(…) o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa” e o n.º 4 acrescenta que “[d]isposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”. Por seu turno, o artigo 359º, referindo-se à alteração substancial dos factos, não menciona especificamente quem procede à comunicação, mas disciplina os seus moldes e efeitos e, havendo acordo quanto à continuação do julgamento pelos novos factos, reitera, no seu n.º 4, que “o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa” [negritos nossos]. Como sobressai da própria expressão normativa que assinalámos, o paradigma, em matéria de competência para a comunicação de alteração factual não substancial e da qualificação jurídica e a concessão de prazo para defesa, estabelecido no artigo 358º mantém-se para os casos de alteração substancial dos factos. Isso mesmo preconiza Paulo Pinto Albuquerque[22] quando sustenta que «[p]ertence à competência exclusiva do juiz presidente (…) comunicar oficiosamente, deferir ou indeferir o requerimento para comunicação da alteração substancial ou não substancial dos factos e da qualificação jurídica dos factos e concessão de prazo para preparação de defesa (artigo 358.º, n.º 1 e 359.º, n.º 3)».
Aqui chegados, forçoso é concluir que as comunicações a que se reportam os artigos 358 e 359º podem e devem ser efetuadas pelo presidente do tribunal coletivo, como sucedeu no caso concreto. Acresce que, ao contrário do sustentado pelo Ministério Público, pese embora tal não conste expressamente da ata da audiência de julgamento, extrai-se do teor da comunicação verbalizada pelo presidente do tribunal coletivo que resultou de deliberação colegial. Com efeito, a audiência de julgamento é pautada pelo princípio da oralidade, sendo os atos aí praticados documentados nos moldes estipulados nos artigos 363º e 364º do Código de Processo Penal e, concretamente, as intervenções orais gravadas na aplicação informática Citius Media Studio, procedendo a secretaria à transcrição de requerimentos e respetivas respostas, despachos e decisões que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, determine, por despacho irrecorrível. Tendo-se reproduzido a gravação da sobredita comunicação efetuada pelo presidente do tribunal coletivo, com início às 14:26:57, constata-se que ali se faz referência, por diversas vezes, ao tribunal [coletivo] e, a dado passo, até é feita a seguinte menção: “Senhores Doutores, fizemos já a deliberação no pressuposto expectável que se iam opor à alteração substancial (…) Quanto à alteração substancial, aí já era expectável que os Senhores Doutores não admitissem e, por isso, (…) já há a noção do que as minhas Colegas e eu temos mais ou menos definido (…)” [cfr. o segmento entre os 16m23s e os 17m45s]. É, pois, evidente que os membros do tribunal coletivo reuniram e deliberaram, concluindo que se impunha efetuar a comunicação das alterações factuais em causa, tendo-se o presidente, no âmbito das suas atribuições legais, limitado a veicular o resultado dessa deliberação colegial na sessão de julgamento de 04.02.2025. Naturalmente, a ata da sessão da audiência de julgamento foi assinada pela entidade que a ela presidiu, ou seja, o presidente do tribunal coletivo, em conformidade com o prescrito nos artigos 95º, n.º 1, e 99º, n.º 2, do Código de Processo Penal. A comunicação de alterações factuais foi, pois, comunicada por quem tinha competência para tanto e com observância das pertinentes formalidades, não tendo sido violado qualquer normativo legal. Não ocorre, pois, a invocada nulidade. Improcede, pois, o recurso nessa parte.
B – Recursos do acórdão B.1 - Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à aplicabilidade da Lei n.º 38-A/23, de 02.08 [conclusões 1 a 6 do recurso do arguido BB] O arguido BB começou por invocar a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos previstos no artigo 379º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, que praticou os atos de tráfico de estupefacientes julgados provados no período compreendido entre 13 de Maio de 2023 e 13 de setembro de 2023, tendo a grande maioria deles ocorrido em datas anteriores a 19 de junho de 2023, e tinha, então e ainda agora, menos de 30 anos, pelo que, e atenta a natureza do ilícito em questão (crime exaurido), deveria beneficiar do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08. Vejamos. Resulta do artigo 379º, n.º 1, al. c), que é nula a sentença [q]uando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” [negrito nosso]. Em causa está a violação dos poderes/deveres de cognição do tribunal, ou seja, quando omite pronúncia ou a excede sobre «questão ou questões que a lei impõe que o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – artigo 608º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º, do CPP»[23]. A Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, veio estabelecer perdão de penas e amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, relativamente a sanções penais referentes a ilícitos praticados até às 00h00 do dia 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (cfr. artigos 1.º e 2.º, n.º 1, do referido diploma legal). Em caso de condenação em pena de prisão, reunidos aqueles pressupostos, poderá haver lugar – salvaguardadas as exceções que se imponham, designadamente as contempladas no artigo 7.º – ao perdão de penas previsto no artigo 3.º da citada Lei, nomeadamente 1 ano de prisão nas penas de prisão aplicadas, a título principal, em medida inferior ou igual a 8 anos, sendo que, nos termos do n.º 4, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única, questão, indubitavelmente, de conhecimento oficioso. No caso vertente, no acórdão recorrido, prolatado em 07.02.2025, nada se refere quanto à (in)aplicabilidade do perdão decorrente da Lei n.º 38-A/2023, que se encontrava em vigor desde 01.09.2023 (cfr. artigo 15.º daquela lei), nomeadamente, quanto ao arguido, ora recorrente, BB, tendo em perspetiva o crime e a pena em causa, a data da prática dos factos, a idade do arguido, a temporalidade daqueles e o estatuído a esse respeito no citado diploma legal. Todavia, não tinha o tribunal a quo que se pronunciar a esse respeito porquanto estando em causa diversos e sucessivos atos praticados pelo arguido, que vão desde a detenção à venda de produto estupefaciente, no período temporal de 25.11.2022 a 13.09.2023, está-se, indiscutivelmente, perante um único crime de tráfico de estupefacientes, que apenas cessou após a data limite estabelecida no sobredito diploma que estabeleceu medidas de clemência – 19 de Junho de 2023. Com efeito, no crime de tráfico de estupefacientes o resultado típico é obtido pela realização inicial da conduta ilícita, de modo que a sua continuação, mesmo com propósitos diversos do originário, não se traduz necessariamente na comissão de novas violações do respetivo tipo legal. Cada atuação do agente traduz-se na comissão do tipo criminal, mas o conjunto das múltiplas atuações reconduz-se à comissão do mesmo tipo de crime e é normalmente tratada unificadamente pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência como correspondente a um só crime. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência n.º 9/2023[24] efetuou-se uma profunda análise da estrutura e natureza do tráfico de estupefacientes, tendo-se, após detalhado excurso sobre o crime de perigo, o crime de empreendimento e crime exaurido, o crime de trato sucessivo e o crime habitual e o crime de múltiplos atos, formulado a seguinte síntese: «(f). Nota conclusiva — o crime de tráfico de estupefacientes como crime único ou unitário. 33 — Acaba, então, de se ver que o crime de tráfico vem sendo rotulado — num casos mais incontestadamente; noutros, com divergências mais ou menos extremadas —, como crime de perigo, abstrato e comum; como crime de empreendimento; como crime exaurido; como crime de trato sucessivo; e como crime habitual e, ou, de múltiplos atos. Como resultará — pensa-se — do que a propósito se foi dizendo, mais do que pré-compreensões incompatíveis e mutuamente excludentes, traduzem esses nomina conceitos funcionais-analíticos que, cada um no seu enfoque, isola e valoriza determinada face ou conjunto de faces do tipo de ilícito que, complementando-se nas suas múltiplas, e multiformes, concretizações na realidade da vida, convergem na figuração dele como um todo ou uma unidade: que isso é assim relativamente aos rótulos de crime de perigo (abstrato e comum), de empreendimento, exaurido ou de trato sucessivo é algo que o próprio encadeamento expositivo dos n.ºs 19. a 26. supra seguramente evidenciará; que isso é, também, assim mesmo na, suposta, divergência das ideias do crime de trato sucessivo e do crime habitual e, ou, de múltiplos atos, é algo em que os próprios doutrinadores convergem, como é o caso de Lobo Moutinho — que, depois de arrolar o crime de tráfico entre os habituais e de afirmar a correspondência destes «a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar -se mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de atos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo mediando intervalos entre eles», afiança que «[é], no fundo, isso que significa a qualificação do crime como crime de trato sucessivo» e que, a par da antecipação da tutela penal, «[é] também esse um dos aspetos que está na base da qualificação do tráfico de estupefacientes como crime exaurido pela jurisprudência»92 —, ou de Helena Moniz — que, ao preferir a denominação de crime de múltiplos atos, sublinha ter sido, precisamente, a constatação de que «a realização de um e qualquer deles já permite integrar o tipo, determinando uma unidade típica de ação relativamente a todos os atos que o integram», que, na procura de uma resposta que superasse a ideia, inadequada, do crime continuado, acabou por impulsionar a jurisprudência para a solução do crime de trato sucessivo93. E é esta conceção do crime de tráfico de estupefacientes como realidade jurídica única ou unitária — e não simplesmente unificada como, v. g., é próprio do crime continuado na aceção do artigo 30.º n.º 2 do CP — no estrito sentido que se colhe, a contrario, no artigo 30.º n.º 1 do CP que neste momento e lugar se quer especialmente sublinhar, e assim seja qual for o entendimento doutrinário que na norma que se queira ver acolhido ou com que se queira compatibilizá-la, v. g., o de Eduardo Correia, como ainda hoje é opinião mais comum na jurisprudência — sendo, na hipótese, a unidade criminosa gerada pela resolução única ou, no enfoque do crime de trato sucessivo, pela unidade de resolução, que preside à reiteração de todos e cada um dos atos típicos —, ou o de Figueiredo Dias — sendo a unidade realizada pela unidade de sentidos sociais da ilicitude que o comportamento global do agente revela94 — ou, até, o de Lobo Moutinho — sendo a mesma unidade realizada pela estrita continuidade da realização típica que persiste ao longo do tempo em todos os seus elementos, repetindo-se na forma de vários actos95. E tudo assim no sentido de que, independentemente da sua maior ou menor complexidade organizativa — isto é, trate -se de um vulgar tráfico de rua, a envolver um agente, uns gramas de produto estupefaciente e um telefone para o estabelecimento de contactos entre o agente e os consumidores, ou trate-se de uma grande rede transcontinental de narcotráfico, tentacular, com elevado número de cooperantes rigidamente escalonados e com papéis minuciosamente determinados, a movimentar toneladas de droga e apoiada em sofisticados equipamentos (aviões, barcos, automóveis, evoluidíssimos sistemas de telecomunicações, etc.) —, do maior ou menor número ou da maior ou menor diversidade dos atos do catálogo do artigo 21.º n.º 1 do Decreto -Lei n.º 15/93 em que se desagregue — desde uma simples detenção de droga não destinada ao autoconsumo, até incontáveis atos de todas e, ou, da cada uma das espécies enumeradas na norma — e do maior ou menor período de tempo por que perdure — suposta, aqui, como se observa no AcSTJ de 20.2.2019, a continuidade da conduta típica96, que a existência de hiatos prolongados, por iniciativa do agente ou ação de terceiros, mormente, a intervenção das autoridades pode significar, afinal, a terminação de uma realização típica (unitária) e o início de outra —, independentemente de tudo isso, dizia -se, e ainda que, vistos isoladamente, cada um dos atos protagonizados pelo agente pudesse consubstanciar a prática de um crime consumado independente, a atividade em causa constitui, sempre, uma realidade jurídica unitária, o mesmo é dizer, um, e só um, crime97, em si mesmo uno e indivisível». Assim, como assinala o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, apesar de a conduta ilícita do arguido/recorrente BB ter começado antes da 00:00 horas do dia 19.06.2023 (limite temporal estabelecido pelo artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023), o que é certo é que a mesma se prolongou até 13.09.2023, com múltiplos atos de venda de produto estupefaciente a diversos consumidores. Todos esses atos típicos integram, juridicamente, um só crime de tráfico (in casu, de menor gravidade), cuja execução perdurou até 13.09.2023, ou seja, mais de três meses após a sobredita data limite. Em consequência, está liminarmente afastada a aplicabilidade do perdão de pena pretendida pelo ora recorrente, independentemente da verificação de outros requisitos, designadamente, a invocada idade inferior a 30 anos. Ademais, o ora recorrente não suscitou a questão, nem na contestação, nem em requerimento posterior. Destarte, não era exigível que o tribunal a quo expressamente abordasse tal questão, tal como não o fez relativamente a outras questões jurídicas que em abstrato se poderiam colocar, mas que em concreto resultam prejudicadas pelas circunstâncias do caso. Conclui-se, assim, que não se verifica a convocada nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.
B.2 – Medida e espécie das penas O Ministério Público interpôs recurso do acórdão restrito à parte respeitante às penas aplicadas aos arguidos AA, BB e CC e, por seu turno, os arguidos BB e DD também interpuseram recursos da decisão quanto às penas que lhes foram irrogadas, pelas razões que aduzem e que infra analisaremos detalhadamente. Importa, porém, antes de mais, fazer notar que a doutrina[25] mais representativa e a jurisprudência, incluindo do Supremo Tribunal de Justiça[26], têm sufragado o entendimento de que a sindicabilidade da medida da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respetivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores de medida da pena, mas não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. Assim, o tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar. A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E, como tal, esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato da pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.[27]
Num estado de direito democrático como o nosso, o legislador tem uma ampla margem de liberdade na fixação das sanções correspondentes aos comportamentos que decidiu tipificar como crimes[28], embora respeitando os princípios constitucionais, entre os quais se destacam o da necessidade das penas, o da proporcionalidade e o da igualdade. O princípio da proporcionalidade em sentido lato – também denominado princípio da proibição do excesso –, consagrado no artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, tem inscrita uma função de controlo que emerge sempre que a proteção de interesses públicos possa entrar em conflito com os direitos fundamentais e liberdades públicas dos cidadãos, o que no âmbito penal ocorre com frequência. Nele se integram uma série de postulados que são uma evidente derivação do respeito do bem liberdade e da assunção de um critério democrático de conformação do direito que apresentam a matriz de outros princípios como o de exclusiva proteção de bens jurídicos ou de mínima intervenção[29]. Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira[30], sob o prisma do princípio da proporcionalidade importa distinguir os requisitos da idoneidade, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, pressupostos intrínsecos de toda a medida processual restritiva de direitos fundamentais e exigíveis, tanto no momento da sua previsão pelo legislador, como na sua aplicação prática. Concretizando, o respeito pelo princípio da idoneidade exige que as limitações dos direitos fundamentais antecipadas pela lei estejam adaptadas aos fins legítimos a que se dirigem e que as mesmas sejam adequadas à prossecução das finalidades em função da sua adequação quantitativa e qualitativa e de seu espaço de aplicação subjetivo. O juízo sobre a idoneidade não se esgota na comprovação da aptidão abstrata de uma medida determinada para conseguir determinado objetivo, nem na adequação objetiva da mesma, tendo em consideração as circunstâncias concretas, mas também requer o respeito pelo princípio da idoneidade a forma concreta e ajustada como é aplicada a medida para que não se persiga uma finalidade diferente da antecipada pela lei. Como decorrência do princípio da necessidade, a entidade vocacionada para aplicar a medida conformada pelo mesmo princípio deve eleger, entre aquelas medidas que são igualmente aptas para o objetivo pretendido, aquela que é menos prejudicial para os direitos dos cidadãos. O princípio da proporcionalidade em sentido estrito implica que se verifique se o sacrifício dos direitos individuais sujeitos à sua aplicação consagra uma relação razoável ou proporcional com a importância do objetivo que se pretende atingir. O processo penal é, por excelência, o campo de exercitação de tais princípios e, nessa sequência, as medidas restritivas de direitos, ou seja, a limitação ao jus libertatis de cada cidadão terá a sua justificação numa tarefa que é exercida em nome de toda a comunidade na prossecução de um jus puniendi, que não é mais do que uma defesa de bens jurídicos indispensáveis à vida em sociedade. O mesmo princípio da proporcionalidade constitui, assim, conjuntamente com os pressupostos materiais de previsão constitucional expressa, fundamento de restrições ao exercício de direitos, liberdades e garantias com foro constitucional. Sempre respeitando os princípios constitucionais, cabe ao legislador a escolha da pena ou penas aplicáveis aos diferentes crimes, quer na sua identidade e regime, quer na sua medida abstrata (penalidade, pena aplicável ou moldura penal). E, sem prejuízo da intervenção, nos termos gerais, de institutos que permitam atenuar a responsabilidade do agente (atenuação especial, dispensa de pena), é dentro da penalidade prevista e dos limites mínimo e máximo da moldura penal fornecidas pelo legislador que o julgador há de determinar a pena concreta a aplicar e a justa medida da mesma, com respeito pelos princípios constitucionais estruturantes nesta matéria densificados no Código Penal. A respeito do iter a seguir para determinar a pena concreta a aplicar, esclarece Figueiredo Dias que “a determinação definitiva da pena é alcançada pelo juiz da causa através de um procedimento que decorre em três fases distintas: na primeira o juiz investiga e determina a moldura penal (dita também medida legal ou abstrata da pena) aplicável ao caso; na segunda o juiz investiga e determina, dentro da moldura penal, a medida concreta (dita também judicial ou individual) da pena que vai aplicar; na terceira – como veremos, não necessariamente posterior, de um ponto de vista cronológico, à segunda –, o juiz escolhe (dentre as penas postas à sua disposição no caso, através dos mecanismos das «penas alternativas» ou das «penas de substituição») a espécie de pena que efetivamente deve ser cumprida”[31]. De acordo com o disposto no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas e de medidas de segurança tem como finalidade a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. As finalidades da aplicação de uma pena residem, assim, primordialmente na tutela de bens jurídicos e na reinserção do agente na comunidade, prevenindo-se a prática de futuros crimes. A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu regresso à comunidade lesada pela sua atuação, se reporta à denominada prevenção especial. No âmbito dos fins das penas predomina, segundo Figueiredo Dias, «a ideia de que só finalidades relativas de prevenção geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. Num contexto em que a prevenção geral assume o primeiro lugar, como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação, do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida»[32]. São, assim, as necessidades de prevenção – geral positiva [tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada] e especial de socialização – que relevam para a decisão de optar pela pena não privativa da liberdade – pena alternativa ou pena de substituição – como resulta dos critérios estabelecidos nos artigos 40º, n.º 1, e 70º do Código Penal, não se divisando qualquer finalidade de compensação da culpa, uma vez que esta, constituindo o limite da pena (cfr. art. 40º, n.º 2, do Código Penal), apenas funciona ao nível da determinação da sua medida concreta. Destarte, a medida da pena «há de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, proteção que assume um significado prospetivo que se traduz na tutela das expetativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena»[33]. A pena não pode, porém, em caso algum ultrapassar a medida da culpa, conforme resulta do disposto no n.º 2 do citado artigo 40º. A este propósito, salienta Figueiredo Dias[34] que dentro do binómio culpa/prevenção há que ter em conta que a medida da pena não poderá ultrapassar a medida da culpa; a verdadeira função desta na teoria da medida da pena reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso, pois a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer questões preventivas, sejam de prevenção a nível geral positiva ou negativa, de integração ou intimidação, sejam de prevenção, neutralização ou pura defesa social. A culpa não concorre, portanto, para a definição da medida da pena, mas indica o limite máximo desta. Segundo Anabela Rodrigues[35], este é «o único entendimento consentâneo com as finalidades de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade. E não compensar ou retribuir a culpa – esta é, todavia, o pressuposto e limite daquela aplicação, diretamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente». Se as finalidades da aplicação de uma pena residem, primacialmente, na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então o processo de determinação da pena concreta a aplicar refletirá, de um modo geral, a seguinte lógica: «a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual ´já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem por irremediavelmente em causa a sua função tutelar´; será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão atuar os pontos de vista de reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar»[36]. Daí que, quando o artigo 71º, n.º 1, do Código Penal estabelece que a “determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar do preceituado no artigo 40º do mesmo diploma. Em suma, as exigências de prevenção geral definirão o limite mínimo da pena e a culpa o limite máximo, criando, assim, a moldura dentro da qual se hão de fazer sentir as exigências de prevenção especial ou de ressocialização. A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto este, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez. Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta do agente. O grau de consciência que o agente tem da positividade ou negatividade da sua atuação determina o grau de culpa que lhe é imputável, na medida da sua capacidade e vontade de atingir aquele fim proibido. A prevenção geral, também denominada de integração, prende-se com as exigências comunitárias da contenção da criminalidade e da defesa da sociedade, decorrentes da necessidade de reafirmar as expectativas da comunidade na validade e vigência de uma norma, bem como da tutela do bem jurídico por ela defendido. Atende, fundamentalmente, ao sentimento que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, designadamente a frequência e o espaço onde ocorre e o alarme que esteja a provocar na comunidade. Neste âmbito, importa determinar o mínimo da pena, aquele limite absoluto e intransponível que satisfará a consciência coletiva. A prevenção especial ou de ressocialização, por seu lado, serve, essencialmente, o escopo de reintegração do agente na comunidade, tentando evitar a quebra da sua inserção nessa mesma comunidade, o que se traduz, em última análise, na ideia base da ressocialização. Na tarefa de determinação das exigências de prevenção especial, atende-se a diversas variáveis atinentes à conduta do agente, idade, vida familiar e profissional, entre outras. Em consonância com o preceituado no n.º 2 do citado artigo 71º do Código Penal, na determinação da medida concreta da pena deverão considerar-se, ainda, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime[37] – sob pena de ocorrer dupla valoração –, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as ali elencadas de forma exemplificativa: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente [alínea a)]; a intensidade do dolo ou da negligência [alínea b)]; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [alínea c)]; as condições pessoais do agente e a sua situação económica [alínea d)]; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime [alínea e)]; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena [alínea f)]. Em resumo, os fatores descritos nas alíneas a), b), c) e e), parte final, referem-se à execução do facto, os referidos nas alíneas d) e f) à personalidade do agente e o referido na alínea e) à conduta anterior e posterior ao facto. Não se pode, porém, olvidar o cuidado «(…) com que têm de ser manipulados estes fatores, dada a particularíssima ambivalência de que são dotados: só em concreto se pode determinar o papel, agravante ou atenuante, que desempenham circunstâncias como as da condição económica e social do agente, a sua idade e sexo, a sua educação, inteligência, situação familiar e profissional, etc., quando conexionadas com o círculo de deveres especiais que ao agente incumbiam»[38].
Posto isto, importa apreciar a pretensão e a argumentação esgrimida por cada um dos recorrentes supra identificados, assinalando-se que estando a questão da medida da pena e, nalguns casos, a questão da espécie da pena – suspensão da execução da prisão, no caso do arguido AA e cumprimento da prisão em regime de permanência na habitação no caso do arguido BB – interligadas entre si, ou melhor, esta dependente daquela, após a decisão sobre a primeira, apreciar-se-á a segunda. Analisemos as pretensões recursivas no que tange a cada um dos arguidos individualizadamente: - Arguido AA O Ministério Público não se conforma com a pena aplicada ao arguido AA, argumentando, em síntese, que tendo em atenção a globalidade dos factos considerados como provados relativamente àquele, nomeadamente, a grande quantidade de produtos estupefacientes que foi apreendida na sua posse, o número já considerável de consumidores que se lhe dirigiram com vista a adquirir-lhe produto estupefaciente e, bem assim, o facto de o mesmo se ter dedicado por um período de tempo superior a 7 (sete) meses ao tráfico de estupefacientes. Alude, ainda, a outros atos de venda de produtos estupefacientes durante um período temporal mais alargado que o tribunal a quo considerou integrarem uma alteração substancial dos factos, mas que, na sua perspetiva, devem ser tidos em consideração no âmbito da conduta anterior aos factos, constatando que o arguido “se dedicou, largos anos, ao tráfico de estupefacientes”, circunstância que deve ser apreciada na determinação da medida da pena. Em face do que sustenta que a condenação na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses peca por defeito, considerando, antes, adequada, justa e proporcional a pena de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão. Começaremos por esclarecer que os factos que o tribunal a quo entendeu integrarem uma alteração substancial dos factos descritos na acusação – o que comunicou nos termos legais, com as repercussões processuais que supra analisámos – não podem ser tidos em consideração neste processo a qualquer título, nem para efeito de enquadramento jurídico da conduta do(s) arguido(s) neles mencionados, nem para a determinação da(s) pena(s), ainda que à luz do vetor da conduta anterior [previsto na al. e), do n.º 2, do artigo 71º do Código Penal]. Com efeito, apenas podem ser considerados os factos que resultaram provados e elencados como tal no acórdão e os sobreditos factos que o tribunal a quo entendeu consubstanciarem alteração substancial dali não constam, nem podiam constar, pelas razões supra explicitadas. Isto posto, se atentarmos na fundamentação do exercício de determinação das penas levado a cabo pelo tribunal a quo, que supra transcrevemos quase na íntegra, verificamos que, no que tange ao arguido AA, foram devidamente ponderados todos os factos relevantes, com pendor negativo e positivo, em observância dos critérios e normativos legais que presidem a tal tarefa, maxime o binómio culpa/prevenção, afigurando-se-nos correta a dosimetria da pena encontrada. Como deflui da motivação do recurso, a divergência do Ministério Público relativamente à pena aplicada resulta, fundamentalmente, de perspetivar o âmbito da atividade desenvolvida pelo arguido AA e a culpa com que este atuou tendo em conta os anteditos factos suscetíveis de integrarem alteração substancial e que não podem ser considerados. Não se vê, pois, motivo para alterar o concreto quantum da pena aplicada ao arguido AA. Subsidiariamente, prevenindo a eventualidade de ser mantida a pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses, o Ministério Público pugna pela não suspensão da execução da mesma. Alega, em resumo, que apesar de o arguido não ter antecedentes criminais as exigências de prevenção geral são particularmente elevadas neste tipo de crime, dada a elevada danosidade social a ele associada, sendo certo que aquele não deixou de recorrer ao tráfico de droga como forma de auferir proveitos económicos, pelo que a efetiva execução da pena de prisão mostra-se indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias, pois razões de prevenção geral e, sobretudo, de prevenção especial afastam a aplicabilidade da suspensão da execução da pena, por mais favorável que pudesse ser o juízo de prognose a formular. Ora, como ressuma da fundamentação do acórdão neste conspecto, o tribunal a quo revela estar bem ciente da filosofia político criminal subjacente ao instituto da suspensão da execução da pena de prisão previsto no artigo 50º e seguintes do Código Penal enquanto pena de substituição da pena de prisão efetiva, tal como dos seus pressupostos, formais e materiais, e, bem assim, que à opção pela suspensão da execução da pena de prisão presidem as exigências postas pelas finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização. Outrossim, demonstra o tribunal a quo ter perfeita noção do peso que as exigências de prevenção geral assumem na equação estando em causa crime de tráfico de estupefacientes, o que demandou especial ponderação relativamente ao arguido AA. …
Como sobressai com clareza do extrato transcrito, o tribunal a quo, sopesando as concretas circunstâncias do caso que descriminou – nomeadamente, o arguido ser jovem, não ter antecedentes criminais registados, mostrar-se integrado em termos familiares, laborais e sociais e estar a encetar esforços para combater a sua problemática aditiva, que subjaz à sua atuação delituosa –, entendeu que as exigências de prevenção especial se mostram esbatidas e as exigências de prevenção geral mitigadas em face da circunstância de estar em causa, exclusivamente, canábis, substância estupefaciente com efeitos menos nefastos que outras, como é consabido. E, ainda assim, decidiu o tribunal a quo condicionar a suspensão da execução da prisão a regime de prova, impondo, além do mais, a obrigação de o arguido se sujeitar a acompanhamento especializado da problemática aditiva que lhe venha a ser indicado e manter-se disponível para os testes que forem considerados necessários. Acompanhando-se a ponderação assim efetuada, cremos que se justifica a suspensão da execução da pena de prisão nos moldes decididos. Convém assinalar que a decisão de suspensão da execução da pena, porque assente num juízo de prognose sobre o comportamento futuro do arguido, baseia-se, incontornavelmente, num risco prudencial, que o tribunal deverá assumir, afastando a aplicação da suspensão apenas quando existem sérias dúvidas sobre a capacidade daquele para compreender a oportunidade de ressocialização em liberdade. No caso vertente, o tribunal a quo evidencia claramente ter efetuado esse exercício crítico de ponderação do risco, decidindo de forma que se afigura fundada e prudente. Improcede, pois, a pretensão do Ministério Público de afastamento da suspensão da execução da pena de prisão. Mantém-se, assim, incólume, a pena irrogada ao arguido AA.
- Arguido BB O Ministério Público pretende, igualmente, o agravamento da pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão aplicada ao arguido BB, sustentando, em resumo, que este sofreu já duas condenações em penas de prisão pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes, as quais não tiveram qualquer efeito dissuasor sobre o seu comportamento, uma vez que depois dessas condenações voltou a praticar factos criminais graves, aludindo, novamente, aos factos que o tribunal a quo considerou emergirem da audiência de julgamento quanto àquele arguido e integrarem alteração substancial dos factos, pelo que, considerando a conduta anterior e posterior, entende que a pena de prisão deveria ser fixada em de 3 (três) anos e 6 (seis) meses. Por seu turno, o arguido BB também se insurge, no recurso que interpôs, quanto ao quantum da pena fixado, mas visando a sua redução. Alega, neste particular, que a droga transacionada é considerada uma droga leve, foi distribuída por quatro consumidores daquela substância, o número de transações dadas como provadas não ultrapassa as 21 vendas no total dos quatro consumidores e que a atividade de tráfico desenrolou-se durante 4 meses, pelo que, atenta a moldura penal do ilícito, a pena fixada além dos dois anos de prisão ultrapassa a sua culpa, violando o disposto no artigo 40º do Código Penal. Vejamos. É aqui aplicável o esclarecimento supra efetuado a respeito da inadmissibilidade de consideração de factos que não foram dados como provados, o que prejudica, desde logo, a pretensão do Ministério Público nos mesmos ancorada. … Como se vê, com exceção das preditas alegações factuais que não podem ser consideradas, foram devidamente ponderadas todas as circunstâncias invocadas, quer pelo Ministério Público, quer pelo arguido/recorrente BB, ainda que atribuindo-lhes o tribunal a quo, de forma assertiva, pendor e peso distinto do preconizado por aqueles. Assim, concordando-se com a ponderação efetuada pelo tribunal a quo, atenta a equação culpa/prevenção, pese embora a fixação da pena de prisão em 2 (dois) anos e 3 (três) meses se afigure algo benevolente, cremos que não se justifica, in casu, a intervenção corretiva deste tribunal ad quem, por se mostrar incipiente e se dever reconhecer a margem de discricionariedade de que goza o tribunal de primeira instância nesta matéria. Como decorrência, improcedem as pretensões de ambos os recorrentes de modificação da concreta medida da pena. Mostra-se, assim, prejudicada a apreciação da questão do cumprimento de tal pena de prisão em regime de permanência na habitação, nos termos previstos no artigo 43º do Código Penal, que o recorrente BB aventou para o caso de aquela ser fixada em dois anos. Com efeito, constitui pressuposto material incontornável da aplicabilidade daquela pena de substituição a circunstância de a mesma não ser superior a dois anos [cfr. al. a), do n.º 1], o que no caso concreto não se verifica. Mantém-se, assim, inalterada a pena irrogada ao arguido BB.
- Arguido CC Finalmente, o Ministério Público insurge-se contra a pena aplicada ao arguido CC, argumentando, em suma, que apesar de nada ter a apontar aos fatores elencados e ponderados pelo tribunal a quo quanto àquele, ficaram ainda provados outros atos de venda de produto estupefaciente e durante período temporal mais alargado, que foi considerado integrarem alteração substancial, que devem ser tidos em consideração porquanto a conduta anterior e posterior aos factos também deve ser apreciada na determinação da medida concreta da pena, sendo que as grandes quantidades de produtos estupefacientes que lhe foram apreendidas, a diversidade dos produtos estupefacientes alienados, dos quais se destaca a cocaína, uma das chamadas “drogas duras”, e a circunstância de apresentar uma persistente falta de enquadramento laboral, fazem com que a pena de prisão que lhe foi imposta, de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses, seja demasiadamente benevolente, devendo, antes, ser fixada em 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses. Replica-se aqui, mais uma vez, o supra aduzido a respeito da impossibilidade de ponderação de factos que extravasem os que constam do elenco dos dados como provados no acórdão. Feita esta ressalva, constata-se que as circunstâncias ora destacadas pelo Ministério Público foram devidamente sopesadas pelo tribunal a quo, … Tendo sido ponderados – e bem, refira-se – todos os fatores relevantes para a determinação da concreta medida da pena, a fixação desta em 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses mostra-se surge como adequada e proporcionada, não reclamando qualquer correção agravante. Mantém-se, pois, inalterada a pena aplicada ao arguido CC.
Por último, o arguido DD também discorda da pena que lhe foi irrogada, tendo apresentado recurso circunscrito a esta matéria, mediante extensa motivação, que se mostra prolixa e, por vezes, repetitiva, transposta praticamente na íntegra para as conclusões. Apesar da extensão da motivação e das conclusões, delas apenas é possível retirar que o arguido/recorrente visa a redução da pena única [de 8 (oito) anos] em que foi condenado para 5 (cinco) anos, pois em momento algum o arguido/recorrente refere que discorda das penas parcelares fixadas ou de algumas delas, nomeadamente, tendo em conta a reincidência. O arguido/recorrente também não põe em causa a moldura penal do cúmulo jurídico de penas que o tribunal a quo alcançou e com base na qual fixou a pena única. Outrossim, não discute o arguido/recorrente os critérios avançados pelo tribunal a quo para determinar a pena única. Na verdade, deflui da motivação recursiva que o arguido/recorrente convoca, além de factos que foram considerados como provados pelo tribunal a quo, alegações que não constam do elenco da facticidade provada, alegando que aquele os desconsiderou ou, pelo menos, não considerou devidamente e que constituem importância nuclear e que deveriam ter pesado em seu benefício no momento da determinação da medida concreta da pena. Assim, em síntese, defende o recorrente que «é sexagenário, tem doença celíaca, com muitas queixas gastrointestinal, tem gastrite e asma crónica, crises de ansiedades e insónias, conforme informações clínicas junto ao processo», «nunca foi totalmente ocioso, no plano laboral exerceu atividades na área de imobiliário e venda de veículos pelo qual beneficiava de gratificação económica. (…) ostenta posicionamento laboral ativo em ambiente de reclusão, trabalhando como faxina da lavandaria, frequentando, ademais, o Programa Estrada Segura na decorrência de obrigação judicial imposta num outro processo» e que a valoração dessas circunstâncias não foi feita nos termos em que o deveria. Mais sustenta que por muito que o tribunal faça referência aos seus antecedentes criminais e se esforce em traçar-lhe um perfil criminógeno, «a verdade é que (…) foi vítima de uma vida sofrida, sem meios de subsistência, onde a fome era um fator normal no seu dia a dia, e com uma família sem perspetivas de dias melhores. No passado foi uma criança com uma vida cheia de tribulações e dificuldades financeiras, … O arguido/recorrente transcreve, ainda, parte da fundamentação do acórdão no segmento referente à determinação das penas parcelares correspondentes ao crime de tráfico de estupefacientes, aos crimes de condução sem habilitação legal e ao crime de detenção de arma proibida para, de seguida, concluir que o tribunal a quo «não considerou algumas dessas situações, e não se veio a traduzir numa efetiva valoração posterior, em sede de determinação da medida concreta da pena». De seguida, o recorrente discorre sobre os normativos legais e critérios de determinação concreta das penas, nomeadamente, decorrentes dos artigos 40º, 70º e 71º, todos do Código Penal. … E é com base nessa amálgama argumentativa que o recorrente defende a redução da pena [única] em que foi condenado para 5 (cinco) anos. Ora, como já se foi adiantando, grande parte da alegação do recorrente referente às circunstâncias em que se desenvolveu e em que praticou os factos ilícitos em causa nos autos e às suas condições de saúde não têm respaldo na factualidade provada e, como tal, não podem ser consideradas. Por outro lado, o arguido/recorrente transcreve apenas excertos da fundamentação exarada no acórdão. Porém, dada a especificidade da sua situação, o tribunal a quo optou por uma análise autónoma quanto a ele [cfr. IV.2 Do Arguido DD e da sua Reincidência], que detalhou, ponderando a verificação dos pressupostos da reincidência, efetuando as operações de determinação das penas sem e com a reincidência, e sopesando os critérios de fixação da pena única em face do concurso de crimes. Naquele último conspecto, que mais releva por no recurso apenas ser posta em causa a pena única, anota-se que a determinação da concreta medida da pena de concurso faz-se considerando “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, conforme prescreve o n.º 1 do artigo 77º do Código Penal, assumindo-se este como um critério especial, relativamente aos critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71º, n.º 1, do Código Penal. Porém, estes servem apenas de guia para a operação de fixação da pena conjunta, não podendo ser valorados novamente, sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais fatores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes[39]. Assim, a pena única do concurso – formada no sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes (sistema de acumulação) – deve ser fixada tendo em conta os factos e a personalidade do agente de tal modo que: - Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta, entre outros, as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso; e - Na consideração da personalidade (que como tal se manifesta na totalidade dos factos em concurso) devem ser avaliados e determinados os termos em que ela se projeta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa ou antes se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente. Não podem, porém, ser postergadas as exigências de prevenção geral e, no que diz especialmente respeito à pena do concurso, os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento do agente. …
Acrescentamos nós que o arguido/recorrente DD praticou os factos em causa nos presentes autos durante o período de liberdade condicional de que beneficiou entre 29.08.2020 e 08.09.2024, o que bem evidencia a sua personalidade com propensão criminógena e indiferente aos valores normativos vigentes e à intervenção do sistema de administração da justiça. Ante todo o exposto, considerando a gravidade do conjunto dos factos perpetrados pelo arguido/recorrente DD e a personalidade por este evidenciada, a pena única de 8 (oito) anos de prisão surge como necessária e proporcional. * Aqui chegados, conclui-se pela total improcedência de todos os recursos interpostos do acórdão.
* III. – DISPOSITIVO Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em:
A) – Rejeitar o recurso interposto pelo Ministério Público da comunicação efetuada em 04.02.2025, na parte que se refere à alteração substancial dos factos, e julga-lo improcedente na parte restante;
B) – Julgar totalmente improcedentes os recursos interpostos pelo Ministério Público, pelo arguido BB e DD do acórdão e, em consequência, confirmar o decidido.
* Atenta a isenção de que goza o Ministério Público [artigo 4º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais], custas pelos recorrentes BB e DD, fixando-se a taxa de justiça, individualmente, na quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta [artigos 513º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma]. * Cumpra-se o disposto no artigo 425º, n.º 6, do Código de Processo Penal. * (Elaborado pela relatora, sendo revistos e assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal) *
Isabel Gaio Ferreira de Castro [Relatora] Maria José Guerra [1.ª Adjunta] Helena Lamas [2.ª Adjunta]
[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora. [4] In «Alteração Substancial dos factos e sua relevância no processo penal português» Coimbra, Livraria Almadina, pág. 200 [15] H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Tradução de Mir Puig e Muñoz Conde, Volumen Segundo, Bosch, 1981, página 1029 |