Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
444/21.4T8CLD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
COMPOSIÇÃO DO PATRIMÓNIO COMUM
ADMINISTRAÇÃO DE BENS POR UM DOS CÔNJUGES NA PENDÊNCIA DO CASAMENTO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DAS CALDAS DA RAINHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 1678.º, 3; 1681.º, 1; 1688.º; 1689.º, 1 E 1789.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha dos bens do casal (cf. art. 1689º, nº 1 do Código Civil).
II – Cada cônjuge receberá na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo previamente o que dever a esse património (art. 1689º, nº 1 do C.Civil).

III – A composição do património comum é, portanto, aquela que existia na data da proposição da ação e não em momento anterior, designadamente à data da separação de facto e só os bens existentes nesse momento - mas todos esses bens - devem ser objeto de partilha.

IV – Na constância do casamento, a Lei não prevê que o cônjuge que exerça a administração de facto preste contas da mesma ao outro cônjuge, conforme decorre do nº 1 do art. 1681.º do C.Civil, salvo nos casos especificamente previstos nos nos 2 e 3 do mesmo artigo, sem prejuízo de poder responder pelos atos praticados em prejuízo daquele, no âmbito de “ação de indemnização por perdas e danos” a instaurar, sendo disso caso [cf. parte final do nº 1 do mesmo citado artigo].

Decisão Texto Integral: *

          Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1] *

            1 - RELATÓRIO

           AA, em 25 de Março de 2021, junto do Tribunal Judicial ..., requereu inventário para partilha dos bens do casal, entretanto extinto por divórcio por mútuo consentimento da sua ex-mulher BB, por decisão já transitada em julgado,  proferida pela Conservatória de Registo Civil ..., em .../.../2020, no Processo de divórcio por mútuo consentimento nº 343/2020 que aí foi tramitado.

O processo seguiu os seus regulares termos, com declarações dele Requerente/cabeça de casal, e bem assim com a apresentação da relação de bens e do passivo por parte deste, sendo que ulteriormente esta última veio a figurar com o seguinte concreto teor:

«RELAÇÃO DE BENS

           DIREITOS DE CRÉDITO

         VERBA Nº 1

----------Crédito do requerente à requerida, respeitante a benfeitorias realizadas no imóvel sito na Rua ..., ... ..., que fazem parte integrante do imóvel e não podem ser levantadas, sem detrimento e inutilização, bem próprio da cônjuge mulher e custeadas pelo cônjuge marido com o produto da venda de dois Imóveis, sitos em Travessa ...., em ... e Rua ...., em ..., bens próprios deste:

- Substituição de todas as caixilharias exteriores de correr, em alumínio lacado com vidro duplo, por caixilharias em PVC de abrir, com vidro duplo e corte térmico;

- Construção e criação de uma lavandaria fechada no anexo do logradouro, com aproveitamento de uma das “portadas” substituídas da caixilharia;

- Criação de uma zona, área de armários na parede de fundo do anexo, com portas metálicas opacas de correr;

- Execução de uma pérgola no logradouro posterior;

- Forro parcial de paredes interiores do telheiro com tijoleira de betão leve.

- Elevação da cércea da moradia para aproveitamento do sótão, com um espaço de atelier, biblioteca e escritório, incluindo também a execução de acesso à escada a partir do 1º andar, abertura de novos vãos de janela, sendo 2 horizontais e 3 verticais (tipo clarabóias), o forro do teto a gesso cartonado (“pladur”), com iluminação LED embutida e regulável, piso revestido a soalho flutuante assente sob camadas de isolamento térmico e de betonilha, instalação de estantes em placas de aglomerado de madeira prensada OSB, ao longo das paredes, incluindo também 3 móveis tipo secretária, um móvel com um cofre (que adquiriram) embutido e um com lavatório também embutido, do mesmo material e ampliação das redes internas de águas, esgotos e electricidade.

- A supressão parcial de uma parede no r/c, entre o hall e sala de estar e respectivos arranjos e reparações, nas ombreiras da abertura deste vão interno, nos tetos e no piso;

- Pinturas interiores em todas as zonas afectadas pelas obras e pintura exterior geral.

- Revestimento dos muros exteriores com pedra.

- Aquisição de caldeira de aquecimento central da casa.

Tais benfeitorias importaram no valor de sessenta mil euros------------------------------60.000,00€

Bens Móveis

VERBA Nº 1

----------Um veículo automóvel, marca ..., modelo ..., matrícula ..-RX-.., que foi comprado e pago com o produto da venda dos dois imóveis bens próprios do requerente supra referidos e com o valor do anterior veículo do dissolvido casal. ------------------------------------------------ 20.000,00 €

  PASSIVO

              VERBA Nº 1

----------Deve a requerida ao requerente o valor da venda das acções da B... SAD de que se apoderou, tituladas pelo requerente e a este pertencentes, no valor de duzentos e vinte euros e oitenta cêntimos---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------220,80€

VERBA Nº 2

----------Deve a requerida ao requerente a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros), que este a seu pedido lhe emprestou, para aquela financiar a aquisição de um veículo automóvel para o seu filho (daquela) CC.----------------------------------------------------------------------------------------------10.000,00€

A numeração da presente relação de bens obedece ao disposto no nº 3 do Artº 1098 do C.P.C.»

                                                           *

A Requerida reclamou contra esta relação de bens, em concretos termos que aqui se dão por reproduzidos, mais requerendo a produção de prova.

                                                           *

O Requerente, por sua vez, respondeu a tal reclamação e requereu diligências de prova, sendo mais concretamente e para o que ora releva no sentido de que:

«Se oficie ao Banco 1... no sentido de remeter para os autos todos os extractos das contas  ...33 e  ...89, de que eram titulares os então cônjuges, desde a data da primeira venda dos imóveis do cabeça de casal datada de 28/07/16 inclusive, até à data 02/09/19 quando este deixou de ser titular, a fim de se saber o destino dado ao valor da venda dos dois imóveis, que é bem próprio do cabeça de casal e que lhe deverá ser entregue.»

                                                           *

O Banco em causa satisfez o pedido de informação que lhe foi feito.

Sucede que o Requerente, notificado do envio feito, através de requerimento de 16.02.2023 teceu sobre ele os considerandos que teve por convenientes e, por entender que mais informações deviam ser prestadas, finalizou nos seguintes termos:

«Nestes termos requer a V.Exa. se oficie ao Banco 1..., no sentido de esclarecer o seguinte:

1 - Identificação do titular ou titulares das Poupanças que a interessada fez nesse Banco em 04/08/16 - dos valores de 25.000,00€, 10.000,00€, 10.000,00€ e 50.000,00€ que constam do extracto de conta remetido a Tribunal, bem como, qual foi o destino de tais poupanças.

2 - À ordem de quem foram emitidos e por quem foram recebidos os seguintes cheques:

- ...40 no valor de 1.775,00 €

- ...45 no valor de 503,40 €

- ...46 no valor de 28.340,00€

- ...73 no valor de 10.400,00 €

- ...50 no valor de 1.150,00 €

- ...54 no valor de 1.000,00 €

- ...69 no valor de 5.000,00 €

- ...55 no valor de 1.000,00 €

- ...70 no valor de 6.642,00 €

- ...86 no valor de 1.275,67 €

- ...87 no valor de 1.200,00 €

- ...89 no valor de 4.000,00 €

3 - Os levantamentos de 20.000,00€, 20.000,00€ e 5.000,00€ feitos dessa conta, no dia 12/12/17 e o dos 17.100,00€ efectuado em 13/12/17 e onde foram aplicados.

4 - -A Cob. Rec. nº ...74/211-...- ...99;

-A Cob. Rec. nº ...80/196-...- ...99;

-A Cob. Rec. nº ...98/196-...- ...99;

-A Cob. Rec. nº ...61/186-...- ...99;

-A Cob. Rec. nº ...74/210-...- ...99;

-A Cob. Rec. nº ...61/185-...- ...99

que mensalmente eram descontadas na referida conta, referem-se a empréstimos contraídos em que datas e por quem, destinando-se a que fim.

5 – A que se referem os “cancelamentos antecipados”, efectuados em 30/04/19, mencionados nas pág. 34 e 70 do extracto remetido ao Tribunal, nºs:

- ...21-...21, no valor de 11.610,60€;

- ...98-...98, no valor de 28.070,20€;

- ...74-...74, no valor de 6.252,00€;

- ...80-...80, no valor de 11.038,30€;

- ...61-...61, no valor de 9.512,15€;

bem como a que fim se destinavam, nomeadamente a pagamento de que empréstimos ou outros encargos da interessada?

6 – Como, quando e com que verbas foram constituídos os 5 seguros que foram transferidos para esta conta em 29.03.2019, pág. 33 e 69 do extracto remetido para o Tribunal, e quem eram os seus titulares ou co-titulares;

7 - De onde provieram os 5.000,00€ e 14.000,00€ que deram entrada na conta em causa em 02/09/19 e nessa data levantados ou transferidos para outra conta.

8 – A quem foi entregue o cartão de crédito desta conta e quem o utilizava?»

                                                           *

Tal requerimento veio a ser objeto de despacho apenas no dia designado para a produção de prova, sendo que foi inferido nos seguintes termos:

«DESPACHO

Por lapso o tribunal aquando da marcação de produção de prova não atentou no requerimento junto pelo CC a 16/02/2023, cumpre assim proferir despacho sobre o mesmo.

O requerimento apresentado vem na sequência da informação junta pelo Banco 1... a solicitação do tribunal. Neste seguimento o CC veio requerer um conjunto de informações relacionadas com as informações constantes naqueles extratos.

O que se pretende dirimir/decidir nesta diligência é o que vem alegado no requerimento da reclamação apresentado na relação de bens e também na resposta subsequente.

Assim, o que se pretende compreender, para além das questões relacionadas com os valores atribuídos às verbas constantes na relação de bens, que poderá sempre ser apurado através da avaliação, é sobretudo compreender e apurar o passivo do casal uma vez que não se encontra contravertido que as obras tenham sido realizadas, não sendo necessário apurar quaisquer questões relacionadas com as poupanças, nem o banco irá identificar os destinatários dos valores que eventualmente terão sido transferidos daquelas contas.

Compreende-se que o CC pretenda demonstrar que os valores utilizados para a construção das benfeitorias no imóvel propriedade da interessada foram realizadas com recurso a bens próprios seus, mas entende o tribunal que a informação requerida não será suficiente para tal conclusão apenas levando a um aglomerar de informações bancárias que só irá protelar e tornar mais morosa a análise dos autos.

Por todo o exposto indefere-se o requerido pelo Cabeça Casal.

Notifique.»

                                                           *

Inconformado, o Requerente/cabeça-de-casal interpôs recurso de apelação, admitido com subida imediata e efeito meramente devolutivo, cujas alegações rematou com as seguintes conclusões:

«O requerimento do cabeça de casal a pronunciar-se sobre os extractos bancários juntos aos autos pelo Banco 1... não foi objecto de pronúncia por parte do M. Juiz a quo, até esta omissão ser suscitada na audiência de 30-05-23.

1-Entendeu o Sr. Juiz “a quo” indeferir o requerido pelo cabeça de casal em 16 de fevereiro de 2023 e sobre o qual se pronunciou na audiência de 30 de maio de 2023.

2-No entender do despacho então proferido, a informação requerida pelo cabeça de casal não teria utilidade para a decisão da questão controvertida.

3-No entanto, não tem razão, como a seguir se demonstrará.

É que,

4-Como resulta do requerimento de 16 de fevereiro de 2023, o cabeça de casal pretendia que o tribunal oficiasse ao Banco 1... para prestar algumas informações sobre movimentos bancários ínsitos nos extratos que por aquele banco haviam sido juntos aos autos.

5- Sublinhe-se que o cabeça de casal só teve conhecimento desses extratos em inícios de fevereiro de 2023, apesar de ter vindo a fazer sucessivas insistências junto daquela instituição bancária para que os mesmos lhe fossem entregues.

6-O que aconteceu primeiro diretamente uma vez que é titular da conta, e depois através dos presentes autos, sendo que o primeiro extrato enviado por aquele banco nada tinha a ver com o que havia sido requerido.

7-Quer isto dizer que só em fevereiro teve o cabeça de casal possibilidades de analisar a conta corrente e pedir os esclarecimentos aqui em causa.

8-O cabeça de casal não ignora o que está presentemente em causa no processo, ou seja, decidir quais os bens que constituem o património do casal, qual o passivo, nomeadamente as dividas da requerida para com o cabeça de casal.

9-É certo que, como refere o d. despacho recorrido, já se encontra provado nos autos que foram efetuadas obras na casa da requerida e que o valor das mesmas serão detetadas através de uma peritagem que o Sr. Juiz já referiu que ira requerer.

10-Mas esquece-se o d. despacho recorrido que importa saber quem pagou as aludidas obras e, nomeadamente, se tais obras foram pagas com dinheiro próprio do cabeça de casal.

11-Importa também saber se as poupanças que aparecem constituídas no extrato bancário o foram com dinheiro próprio do cabeça de casal.

12-A título exemplificativo, refira-se que no dia 28 de julho de 2016 (cfr pag. 1 da conta corrente do Banco 1...) foi depositado €77.500,00, provenientes da venda de um imóvel sito em ..., bem próprio do cabeça de casal, vendido nesse mesmo dia, conforme resulta da escritura junta com o requerimento inicial do processo de inventario como doc. n.º2.

13- Analisando a pág. n.º 1 do extrato bancário junto aos autos, esses €77.500,00, foram “transformados”, no dia 4 de agosto de 2016, em poupanças que, posteriormente foram sendo levantadas e aplicadas, nomeadamente, em obras efetuadas na casa da requerida.

14-Assim, no movimento de 7 de fevereiro de 2017, constata-se uma liquidação antecipada de um deposito a prazo no valor de 45.000,00 que depois num outro movimento é utilizado para despesas de “sótão”.

15-O mesmo se poderá dizer relativamente à venda efetuada pelo cabeça de casal em 7 de dezembro de 2017 pelo preço de 63.000,00 (cfr. doc. n.º 3 junto com o requerimento de inventário) de uma fração sita em ...- bem próprio dele- cujo valor foi depositado no mesmo dia na conta de que era titular juntamente com a sua então mulher (cfr pag. 19 da conta corrente).

16-Também este dinheiro “desapareceu” logo no dia 11 e 12 de dezembro, sendo referido na página 55 do extrato que esses levantamentos se destinaram a “casa”.

17-Quer isto dizer que, as questões relacionadas com as poupanças e com os movimentos bancários, são os únicos elementos de que dispõe o cabeça de casal para poder provar com exatidão que os seus bens próprios foram gastos em proveito da requerida, não só no pagamento das obras feitas na sua casa mas também na compra de veículos não só para ela mas também para o seu filho.

18-É que, pela análise do extrato da conta corrente, constata-se que o único quantitativo em dinheiro de montante elevado depositado naquela conta, teve origem na venda das casas do recorrente. (€140.500,00)

19-Pelo que, todos os movimentos de montante elevado tiveram forçosamente de ser feitos com dinheiro próprio daquele.

20-Aliás, como se referiu no requerimento de fevereiro de 2023, a conta corrente apresentou um saldo de €75.116,51, que desapareceu com a indicação de cancelamento antecipado.

21-Este movimento, como todos outros, foram feitos unicamente pela requerida, que era funcionaria bancária, sendo que o cabeça de casal que é ator e pintor, vivia perfeitamente à margem de qualquer interesse de carácter material.

22-Importa, pois já que o casamento se dissolveu e estamos em fase de partilhas, saber o destino daquele montante que, ao que tudo indica, provém de dinheiro próprio do cabeça de casal.

23-Dir-se-á ainda que a 30 de setembro de 2016 foram utilizados €26.000,00, provenientes da poupança, para aquisição de um veículo marca ... que é utilizado pela requerida.

24-É necessário saber quem recebeu esse cheque de €26.000,00 para assim se poder comprovar que se destinou ao pagamento do veículo.

25-O mesmo se diga relativamente a todos os outros movimentos bancários que vêm referidos no requerimento do cabeça de casal.

26-Sendo que, reitera-se que as informações a prestar pelo banco se mostram imprescindíveis para que se possa apurar o destino dos €140.500,00 (bem próprio do recorrente) e que foi gasto totalmente em proveito da requerida.

27- Ao indeferir o requerimento do cabeça de casal fez o Mmº Juiz “a quo” incorreta interpretação dos factos tendo violado, além do mais, os artigos 410º e 411º, pelo que não deverá manter-se.

É o que se espera e pede desse alto tribunal assim se fazendo JUSTIÇA!

(…)

Nestes termos e nos melhores de direito R. a V. Exª

seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se o d. despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que defira o requerido pelo cabeça de casal.»    

                                                                       *

            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

           Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

           2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

          - desacerto da decisão que indeferiu o pedido formulado pelo Requerente/cabeça-de-casal no sentido da solicitação de informações/esclarecimentos complementares junto do Banco 1...?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é a que consta do relatório que antecede.

                                                                       *                    

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O Requerente/recorrente pugna pelo desacerto da decisão que indeferiu o pedido formulado pelo Requerente/cabeça-de-casal no sentido da solicitação de informações/esclarecimentos complementares junto do Banco 1....

Será assim?

De referir que, como flui do explicitado no Relatório supra, o divórcio do casal que o mesmo formou com a Requerida/recorrida teve lugar em .../.../2020.

Sucede que, se bem se atentar no requerimento em análise, estão em causa movimentos bancários que teriam ocorrido todos eles em data anterior a esse divórcio, isto é, em período em que as partes ainda se encontravam casadas.

Ora é por assim ser que esta pretensão se encontra, à partida, inviabilizada.

Na verdade, é consabido que conforme decorre do art. 1688º do Código Civil, as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução do casamento, sendo que não obstante os efeitos do divórcio se produzirem a partir do trânsito em julgado da sentença que o decreta, a verdade é que, conforme decorre do art. 1789º do Código Civil, os referidos efeitos patrimoniais retrotraem-se à data da proposição da ação de divórcio.

Sendo certo que cada cônjuge receberá na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo previamente o que dever a esse património (cf. art. 1689º, nº 1 do mesmo C.Civil).

Daqui decorre, para efeitos de partilha por divórcio, que o património comum dos ex-cônjuges corresponde àquele que existia na data em que foi proposta a ação de divórcio.

No caso vertente estava em causa uma decisão de divórcio proferida por Conservatória de Registo Civil, em processo de divórcio por mútuo consentimento que aí foi tramitado.

E ainda que se desconheça a data em que tal processo se iniciou, é certo e seguro que foi no início do ano de 2020, já que o processo tem o nº 343/2020, e a decisão foi proferida em .../.../2020.

Assim sendo, apenas os bens que compõem o património comum do ex-casal nesse início do ano de 2020 é que relevam para efeitos de partilha.

 Por exemplo, apenas relevará, para efeitos de partilha, o saldo das contas bancárias nesse início do ano de 2020, significando tal que, quer os movimentos anteriores, quer os movimentos posteriores a essa data não assumem relevância para efeitos da partilha a realizar.

Atente-se que se um dos ex-cônjuges tiver levantado dinheiro de uma conta bancária comum antes da data de propositura da ação de divórcio, tal montante não poderá ser levado à partilha do acervo comum, pois o levantamento de um montante nestes moldes integra um ato de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal conforme resulta do nº 3 do art. 1678º do mesmo Código Civil.

Por outro lado, nos termos do disposto no art. 1681º, nº 1 do Código Civil, o cônjuge que administra bens comuns está isento de “prestar contas” da administração que faz, apenas tendo que responder pelos «atos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge» conforme resulta da parte final do normativo por último citado.[2]

De referir que a ação que a tal corresponderá será uma “acção de indemnização por perdas e danos”.[3]

Obviamente que tal matéria nada tem que ver com a partilha por divórcio!

Tal é inequívoco e insofismável.

O que tudo serve para dizer que a partilha em causa nos autos ajuizados abrangerá apenas os bens que compõem o acervo comum à data da propositura da ação de divórcio [leia-se, à data do início do processo na Conservatória do Registo Civil, in casu, no início do ano de 2020]…

Donde, revertendo mais uma vez ao caso presente, na medida em que o que o Requerente/recorrente pretendia – através do requerimento que lhe foi indeferido pela decisão ora em recurso! – era obter informações/esclarecimentos complementares junto duma instituição bancária relativamente a movimentos bancários que teriam ocorrido todos eles em data anterior a esse divórcio, tal é perfeitamente irrelevante para a definição dos bens que hão-de compor a relação de bens na circunstância [bem assim para a definição dos respetivos valores, incluindo os do passivo igualmente relacionado].

Nesta linha de entendimento se sustentou ab initio que a pretensão do Requerente ora recorrente [por reportada a data anterior ao divórcio do casal] se encontrava, à partida, inviabilizada.

Não obstante o vindo de dizer, consegue-se ressalvar dessa conclusão [cf. “à partida”] uma situação: é ela a que contende com o pedido de esclarecimento relativo a “Poupanças que a interessada fez nesse Banco em 04/08/16” – trata-se do ponto “1-” do requerimento formulado.

É que, s.m.j., às ditas “Poupanças” terá correspondido um número de operação bancária/aforro distinto do das contas relativamente às quais o Banco 1... enviou os extratos bancários [contas  ...33 e  ...89].

Sendo certo que a terem sido constituídas em nome/titularidade de ambos os então membros do casal, e a ainda subsistirem no todo ou em parte, constituirão um ativo/direito de crédito do casal.

Nessa medida podendo e devendo integrar a relação de bens dos autos, por os mesmos se encontrarem numa fase em que em tempo útil o podem ser, sendo disso caso.

Procedem assim apenas nestes termos mais limitados e restritos as alegações recursivas e o recurso. 

                                                           *

(…)

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, decide-se a final julgar parcialmente procedente o recurso, com a revogação da decisão recorrida na parte em que não deferiu a solicitação de informações bancárias ao Banco 1... concernente ao pedido de “Identificação do titular ou titulares das Poupanças que a interessada fez nesse Banco em 04/08/16 - dos valores de 25.000,00€, 10.000,00€, 10.000,00€ e 50.000,00€ que constam do extracto de conta remetido a Tribunal, bem como, qual foi o destino de tais poupanças”, determinando a sua substituição por outra decisão que ordena a tal instituição bancária que preste essa concreta informação.

Custas pela parte vencida a final e na proporção em que o for (art. 527º, nº 1, do n.C.P.Civil).

                                                      Coimbra, 9 de Janeiro de 2024


Luís Filipe Cravo

João Moreira do Carmo

Alberto Ruço



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. João Moreira do Carmo
  2º Adjunto: Des. Alberto Ruço

[2] «Na constância do casamento, a Lei não prevê que o cônjuge que exerça a administração de facto preste contas da mesma ao outro cônjuge, conforme decorre do n.º 1 do art. 1681.º do C.C., salvo nos casos especificamente previstos nos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo, sem prejuízo de poder responder pelos atos praticados em prejuízo daquele.» - assim no acórdão do TRL de 05/06/2018, proferido no proc. nº 503/14.0TMFUN-D.L1-7, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[3] Neste sentido o acórdão do STJ de 02/05/2012, proferido no proc. nº 238/06.7TCGMR-B.G1.S1, acessível e www.dgsi.pt/jstj, onde se concluiu, inter alia, que «Tendo o cabeça da casal levantado aplicações financeiras (bem comum), antes da propositura da acção de divórcio, não tem que relacionar metade do seu valor, podendo o ex-cônjuge, se se sentir prejudicado, propor acção de indemnização de perdas e danos, nos termos do art. 1681, nº1, parte final, do C.C.»