Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
630/10.2PBFIG-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: MANDADO DE DESLIGAMENTO/LIGAMENTO
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS
Data do Acordão: 10/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 470.º DO CPP; ART. 138.º, N.ºS 2 E 4, DO CEPMPL; ART. 9.º, N.º 1, DO C.C.
Sumário: Com a entrada em vigor da Lei n.º 115/2009, de 12-09-2009, que criou o CEPMPL (Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade), a competência, material, para a emissão de mandados de desligamento/ligamento de condenado, pertence ao TEP (Tribunal da Execução das Penas), e não ao tribunal da condenação.
Decisão Texto Integral: Em conferência na 2.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

1- No 2.º juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, no processo comum singular acima referido, tendo sido o arguido A... condenado na pena de 1 ano e 4 meses de prisão efectiva pela prática de um crime de roubo, foi, por despacho judicial de fls 40 sgs declarada a incompetência material daquele tribunal para emitir mandados de desligamento/ligamento do arguido, entendendo-se ser tal competência do TEP de Coimbra.

2- Inconformado, recorreu o Ministério Público, tendo concluído a sua motivação pela forma seguinte:
Conforme a Ordem de Serviço n.º 9/14, acima referida de onde se extraem as seguintes conclusões:
No art.° 17.° da Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro, distingue-se de forma expressa o ingresso do recluso em estabelecimento prisional por mandado do tribunal que determine a execução da pena ou medida privativa da liberdade, das demais situações.
O Tribunal competente para determinar a execução da pena ou medida privativa da liberdade, a que alude o art.° 17.° da Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro, é o da condenação, aquele que aplica a pena ou medida privativa da liberdade, atento o disposto no art.° 470.° do Código de Processo Penal (cf. a respetiva epígrafe).
O ponto 15 da exposição de motivos da proposta de lei 252/X, que esteve subjacente à aprovação do CEPMPL, não tem valor interpretativo, pois não foi reproduzido como preâmbulo do diploma publicado, importando, isso sim, ainda que com valor muito limitado, saber o que das discussões parlamentares resultou precisamente a esse respeito.
Assim, toda a decisão que atribua ao TEP a competência para a emissão dos aludidos mandados viola o disposto nas disposições conjugadas dos art.°s 17.° da Lei n.°115/2009, de 12 de outubro, e 470.° do Cód. Proc. Penal.

3- Nesta Relação, o Exmo PGA, acompanhando o MP da 1.ª instância, conclui pela procedência do recurso.

4- Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência

5- O despacho recorrido tem, no essencial, o seguinte teor :
« (…) Resultando do despacho que antecede que o TEP considera não ser competente para emitir mandados de ligamento-desligamento, desde já, se consigna que entendemos não ser competentes para o efeito.
O art. 470° n.º 1 do CPP estabelece que "A execução corre nos próprios autos perante o presidente do tribunal de 1.ª instância em que o processo tiver corrido, sem prejuízo do disposto no art. 138° do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade." Ora, prevê expressamente o art. 138.° do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, na alínea t) do n.º 4, que compete ao Tribunal de Execução de Penas emitir mandados de detenção, não se distinguindo aí qual o tipo de mandados de detenção que está em causa, se para cumprimento inicial, se para cumprimento na sequência de revogação de liberdade condicional.
Por outro lado, o n.º 2 do mesmo normativo refere que a intervenção do tribunal de execução das penas ocorre logo após o trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade.
Nesse sentido, o art. 477° n.º 1 do C.P.P. passou a prever que o Ministério Público envia ao Tribunal de Execução das Penas e aos serviços prisionais e de reinserção social, no prazo de cinco dias após o trânsito em julgado, cópia da sentença que aplicar pena privativa da liberdade.
Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27-11-2013, Proc. 188/06.7PAVFR.P3, in www.dgsi.pt, "Ou seja, com a redação introduzida pela Lei n.° 115/2009 de 12.10, ao acrescentar aquela parte final, pretendeu o legislador, no nosso entender, reafirmar a competência material do Tribunal de Execução de Penas para os atos indicados no artigo 138.º, mantendo-se a competência do Tribunal de 1.ª instância para os demais.
Tal conclusão é suportada pela exposição de motivos da proposta de lei n.° 252/X (4a) que esteve na sua génese e onde se pode ler: "e no que se refere à delimitação de competências entre o tribunal que aplicou a medida de efectiva privação da liberdade e o Tribunal de Execução das Penas, a presente proposta de lei atribui exclusivamente ao Tribunal de Execução das Penas a competência para acompanhar e fiscalizar a execução de medidas privativas da liberdade, após o trânsito em julgado da sentença que as aplicou.
Consequentemente, a intervenção do tribunal da condenação cessa com o trânsito em julgado da sentença que decretou o ingresso do agente do crime num estabelecimento prisional, a fim de cumprir medida privativa da liberdade. Este um critério simples, inequívoco e operativo de delimitação de competências, que põe termo ao panorama, actualmente existente, de incerteza quanto à repartição de funções entre os dois tribunais e, até, de sobreposição prática das mesmas. Incerteza e sobreposição que em nada favorecem a eficácia do sistema." (DAR, II Série-A, n.° 79, p. 18, acessível in http://app.parlamento.pt/)."
No mesmo sentido, encontramos o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12­06-2013, Proc. 102/06.0PFPDL-B.L1-5, in www.dgsi.pt, onde se conclui que "Está evidenciada, em termos que se crêem claros e se subscrevem, a circunstância de os elementos de interpretação da lei, literal, histórico (nomeadamente dos trabalhos preparatórios) e sistemático não deixarem margem para dúvida de que no regime agora em vigor, instituído pela Lei n.° 115/2009, a competência para declarar extinta a pena é do tribunal de execução das penas. E que a intenção do legislador é a de fazer cessar a intervenção do tribunal da condenação após o trânsito em julgado da decisão condenatória."
Ora, os mandados de desligamento/ligamento têm a mesma natureza dos mandados de detenção/libertação, pelo que se entende ser de aplicar, à situação sub judice, os. normativos legais supra referidos.
Sobre esta matéria já se pronunciou o Exmo. Sr. Presidente da 3a Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em decisão de 28 de Abril de 2014, no âmbito do Proc. 268/11.7GBFIG (…)».
A única questão a decidir traduz-se em saber qual o tribunal competente para a realização de actos processuais relativos à execução da pena de prisão em causa nestes autos, se ao Tribunal de Execução de Penas (TEP), se ao tribunal da condenação, entendendo o despacho recorrido que tal competência é atribuída por lei ao TEP.
O art. 470.º do Código de Processo Penal estabelece, sob a epígrafe Tribunal competente para a execução: «1 - A execução corre nos próprios autos perante o presidente do tribunal de 1.ª instância em que o processo tiver corrido, sem prejuízo do disposto no artigo 138.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (…)», estabelecendo aquele art. 138.º no seu n.º 2, sob a epígrafe ”competência material”, que «(…) Após o trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade, compete ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a respectiva execução e decidir da sua modificação, substituição e extinção, sem prejuízo do disposto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal».
Depois, o n.º 4 do mesmo dispositivo enumera o que são as demais competências e atribuições dos TEP.
O despacho recorrido convoca ainda para o seu campo hermenêutico a exposição de motivos da proposta de lei n.° 252/X (4a), que esteve na génese do Código de Execução de Penas, aí se dizendo, além do mais, «e no que se refere à delimitação de competências entre o tribunal que aplicou a medida de efectiva privação da liberdade e o Tribunal de Execução das Penas, a presente proposta de lei atribui exclusivamente ao Tribunal de Execução das Penas a competência para acompanhar e fiscalizar a execução de medidas privativas da liberdade, após o trânsito em julgado da sentença que as aplicou. Consequentemente, a intervenção do tribunal da condenação cessa com o trânsito em julgado da sentença que decretou o ingresso do agente do crime num estabelecimento prisional, a fim de cumprir medida privativa da liberdade. Este um critério simples, inequívoco e operativo de delimitação de competências, que põe termo ao panorama, actualmente existente, de incerteza quanto à repartição de funções entre os dois tribunais e, até, de sobreposição prática das mesmas. Incerteza e sobreposição que em nada favorecem a eficácia do sistema».
O texto ou letra da lei é o suporte ou veículo do pensamento legislativo, e por isso há-de constituir o ponto de partida do trabalho de interpretação. De resto, o artigo 9.°, n.° 1, do código Civil, estabelece exactamente que a interpretação deve reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos (sublinhado nosso). E, por outro lado, o resultado da interpretação nunca pode valer se não encontrar no texto da lei um mínimo da correspondência. Por isso se poderá dizer que o texto da lei é não só ponto de partida como também ponto de chegada da interpretação.
Ora, a letra da lei parece ser inequívoca no sentido de pretender atribuir aos TEP a competência para acompanhar e executar as medidas relacionadas com a execução da pena. E se é duvidoso que algumas dessas medidas seja verdadeiramente de “execução”, o que parece evidente é que o legislador atribui menos a competência segundo esse critério e mais segundo o critério de essas medidas estarem relacionadas com a execução, isto é, caberem formalmente no campo da execução da pena. O que aliás bem se compreende pela dificuldade e até impossibilidade de enumerar casuisticamente tais medidas, ou pelo inconveniente de deixar à jurisprudência a definição dessas atribuições. Por isso se compreende que a exposição de motivos atrás referida - que não deixa de ser um elemento histórico, por isso com valor interpretativo, como adiante referiremos - fale na necessidade de «um critério simples, inequívoco e operativo de delimitação de competências, que põe termo ao panorama, actualmente existente de incerteza quanto à repartição de funções entre os dois tribunais e, até, de sobreposição prática das mesmas. Incerteza e sobreposição que em nada favorecem a eficácia do sistema».
O elemento racional ou teleológico concerne à finalidade ou razão de ser da lei, perspectiva-se a norma pelo seu lado funcional ou instrumental. E se é certo que, como acentua o prof. Antunes Varela (Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 119, pág.), o cerne dela não está propriamente no fim que serve mas no complexo normativo que cria para o atingir, certo é também que a finalidade que o legislador prosseguiu é manifestamente relevante para compreender o sentido da via usada para o efeito. Tanto mais que o artigo 9.º do Código Civil nos aponta a presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, o que não pode deixar de sugerir uma ligação coerente entre o meio e o fim.
Ora, os dispositivos acima referidos prescrevem essa coerência no campo semântico e real da “execução” da pena ao atribuir ao TEP a competência (“exclusivamente”, como refere a dita exposição de motivos) para os actos relacionados com tal execução.
O elemento sistemático radica na ideia de que um ordenamento jurídico é um conjunto de normas que coerentemente se ligam entre si, de modo a formarem um todo lógico. Por isso a consideração do preceito na perspectiva da constelação normativa em que se insere e dos princípios de que é expressão pode fornecer achegas importantes para a determinação do seu sentido.
È essa precisamente a necessidade de coerência a que fizemos referência.
Finalmente, o elemento histórico tem a ver com todos os dados relacionados com a história do preceito, sejam eles a história do próprio instituto em que ele se insere, as chamadas fontes legais ou doutrinárias que inspiraram o legislador ou os trabalhos preparatórios.
Neste particular já aludimos àquela exposição de motivos como subsídio indispensável à aclaração do sentido e utilidade prática da lei.
Assim, será ao TEP de Coimbra que cabe emitir o despacho de desligamento em causa neste recurso.

6- Pelos fundamentos expostos:
I- Nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
II- Sem custas.

Tribunal da Relação de Coimbra, 8 de Outubro de 2014

(PauloValério - relator)


(Frederico Cebola - adjunto)