Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
205/08.6TBVGS-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
SOCIEDADE COMERCIAL
GERENTE
INQUISITÓRIO
Data do Acordão: 01/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE BAIXO VOUGA – JUÍZO DO COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART.ºS 11º E 189º Nº 2 DO CIRE
Sumário: I - A qualificação da insolvência duma sociedade por quotas como culposa afecta e reflecte-se sobre as pessoas que conceberam e praticaram os actos de administração e de disposição que conduziram à situação de insolvência culposa, responsabilizando tanto os administradores/gerentes de direito ou formais, designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios, como os administradores de facto (em sentido amplo) que, sem título bastante, exercem na prática, directa ou indirectamente e de modo autónomo, não subordinadamente, funções próprias da administração/gerência de direito.

II - No processo de insolvência vigora o princípio do inquisitório que permite ao juiz fundar a decisão em factos não alegados e contém, implícita, a faculdade do juiz, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem com, recolher as provas e informações que entender convenientes.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório

Por apenso à acção especial de insolvência – em que foi declarada em tal situação A..., Lda. – veio a respectiva Administradora (nos termos do art. 188.º, n.º 2, do CIRE) propor, no parecer que apresentou, que a insolvência seja qualificada como culposa; e que sejam afectados pela qualificação o sócio-gerente B... e a sócia C....

Para o que, em síntese, invocou a existência de indícios de ocultação deliberada de património, de empolamento dos custos e/ou prejuízos, de descapitalização, de utilização de bens em proveito próprio e dos sócios, da existência do exercício de actividades concorrenciais com a devedora e o incumprimento dos deveres de manutenção da contabilidade organizada, de apresentação à insolvência e de colaboração.

O Ministério Público apresentou o seu parecer, pronunciando-se no mesmo sentido.

Citados, vieram o B .... e a C .... apresentar oposições autónomas.

A C .... alegou, em resumo, que nunca foi gerente de direito ou de facto da devedora, nunca praticou actos de gestão corrente ou outros, razão porque não pode ser afectada pela decisão da qualificação da insolvência.

O B .... alegou, em síntese, que os factos invocados no parecer da Administradora não integram matéria fáctica suficiente para declarar a insolvência como culposa, antes se tratando de considerações conclusivas ou vagas; matéria fáctica que negou enquanto ocultação, descapitalização e utilização de bens da devedora.

Concluiu pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita.

A Administradora da Insolvência e o Ministério Público não responderam.

Foi proferido despacho saneador – que considerou a instância totalmente regular (julgando improcedente a ilegitimidade suscitada pela requerida C...), estado em que se mantém – organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa, instruído o processo e realizada a audiência, após o que o Exmo. Juiz proferiu a seguinte sentença:

“ (…)

I) Qualifico a insolvência da A ...., Lda. como culposa;

II) Declaro afectados pela qualificação os requeridos, B .... e C .... decretando-os inibidos para o exercício do comércio pelo período de 3 anos;

III) Determino a perda de quaisquer créditos dos requeridos sobre a massa insolvente.

 (…) ”

Inconformada com tal decisão, apenas a C .... – também afectada pela qualificação da insolvência como culposa – interpôs recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que a não declare afectada pela qualificação da insolvência como culposa.

Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. A douta sentença proferida qualificou a insolvência de A ...., Lda, como culposa e declarou afectados pela qualificação não só o requerido B ...., mas também a ora recorrente C...;

2. Porém, a recorrente nunca foi gerente de direito da insolvente, mas apenas sócia desta;

3. E a gerência de facto e a medida da contribuição da recorrente para a criação ou o agravamento da situação de insolvência teriam de resultar inequivocamente de factos provados, não sendo quer uma, quer outra susceptível de ser provada por presunção a partir da qualidade de sócia ou pelas regras da experiência comum;

4. Ora, salvo o devido respeito por posição diversa, não constam na sentença quaisquer factos donde se conclua que a recorrente desempenhou funções de administração ou gerência na insolvente;

5. Sendo certo que igualmente se não produziu qualquer prova sobre a participação concreta da recorrente na administração ou gerência da insolvente – cfr. depoimentos dos peritos Dr. D... de 11.06.50 a 11.07.07, 11.09.08 a 11.14.02, 11.14.57 a 11.16.16 e 11.19.57 a 11.53.09, e E... , de 11.07.09 a 11.09.06, 11.14.04 a 11.14.54, 11.16.18 a 11.19.15, e das testemunhas F... , de 11.53.11 a 12.06.24, e G..., de 12.06.26 a 13.11.49;

6. Também o facto 22) da Fundamentação de Facto foi incorrectamente julgado, já que o mesmo não assenta em qualquer prova produzida em audiência de julgamento, sendo mesmo certo durante esta nenhuma testemunha, ou sequer perito ouvido, se ter referido alguma vez à recorrente, para que efeito fosse – como se demonstra pelo registo dos depoimentos dos peritos Dr. D .... de 11.06.50 a 11.07.07, 11.09.08 a 11.14.02, 11.14.57 a 11.16.16 e 11.19.57 a 11.53.09, e E...., de 11.07.09 a 11.09.06, 11.14.04 a 11.14.54, 11.16.18 a 11.19.15, e das testemunhas F...., de 11.53.11 a 12.06.24, e G...., de 12.06.26 a 13.11.49;

7. Pelo que a recorrente não poderia ser afectada pelas consequências da qualificação da insolvência como culposa;

8. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo cometeu erro de julgamento e violou as disposições dos artigos 6º e 186º do CIRE e ainda dos artigos 192º e 252º, nº 1, do CSC.

O Ministério Público respondeu, sustentando, em resumo, a manutenção do decidido.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação de Facto

Foi dado como provado o seguinte factualismo:

1) Na sequência de pedido deduzido por H..., Lda., sem oposição da devedora, foi declarada a insolvência de A ...., Lda., por sentença de 5/5/2008 (fls. 86ss do processo principal).

2) O processo de insolvência foi instaurado em Abril de 2008 (I).

3) A insolvente não se apresentou à insolvência (al. I).

4) A insolvente ( A ...., Lda.) foi constituída em 15/5/1998 (al. A).

5) E tinha como objecto social, além do mais, a actividade de rega de jardins, execução de jardins e sua manutenção, viveiro de plantas e seu comércio.

6) Desde 2/10/2006 que os sócios da insolvente são os requeridos, B .... e C .... (al. B).

7) Desde 20/2/2001 que a gerência da insolvente cabia ao requerido e a F..., tendo este último a ela renunciado a 30/9/2006 (al. C).

8) No final de 2006, a insolvente apresentava já resultados líquidos negativos, excedendo o capital social, e tornando também os capitais próprios negativos, passando a evidenciar uma situação de falência técnica, com um passivo de € 276.846,00, que no final de 2007 se agravou para € 377.411,00, agravamento que teve como principal causa o aumento do valor devido a fornecedores e o aumento do prazo médio de pagamento a tais fornecedores (IV).

9) Quando adquiriu a quota a F... (10/2006), o sócio gerente da insolvente acreditava na viabilidade da empresa (BI/6).

10) Desconhecia qual a real situação financeira da sociedade (BI/7).

11) Desde que adquiriu a quota e até data não determinada, mas anterior a Janeiro de 2008, o requerido procurou diversificar e aumentar a carteira de clientes e serviços prestados (BI/8).

12) Em 18/1/2008, foi criada a sociedade comercial por quotas “I..., Lda.”, NIPC ...., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Vagos sob o nº ...., com sede na ...., em Vagos, dotada do capital social de € 5.000,00 e com o objecto social destinado à plantação, construção e manutenção de jardins e relvados, comercialização de plantas, sementes, máquinas e equipamentos para rega e jardinagem e aluguer de máquinas e equipamentos para jardinagem (al. D).

13) São sócios desta empresa os requeridos, cada um com uma quota no igual valor de € 2.500,00, sendo que a gerência se encontra a cargo da requerida (al. E).

14) Pelas facturas nº2/2008 e 3/2008, ambas datadas de 28/1/2008, a insolvente transmitiu para a citada I...., Lda. os bens nelas descriminados, designadamente, os seus stocks, pelo valor de € 25.730,12, e a sua maquinaria para venda e veículos de serviço, nomeadamente, das marcas Ford, Renault e Mitsubishi, com as matrículas OI...., OQ...., LL.... e SE...., pelo valor global de € 16.145,52 (al. F).

15) A respeito dos valores referidos nas facturas nº2/2008 e 3/2008, constam na contabilidade da insolvente transferências da I...., Lda. no montante de € 29.800,00 (do qual, o valor de € 24.000,00 foi imediatamente transferido para a conta pessoal do requerido), e pagamentos por conta a credores da insolvente, por parte da I...., Lda., na importância de € 10.067,51, nessa parte sem documentos comprovativos, tendo ficado por pagar a quantia de € 1.721,71 (BI/1,1-A).

16) No final de 2007, a insolvente, nos seus elementos contabilísticos, apresentava, de sua propriedade, o valor global de existências de € 100.023,00 e de veículos € 38.352,00 (II).

17) Porém, após as vendas referidas em 14, não restou à insolvente património imobilizado susceptível de apreensão (III).

18) A nível da contabilidade da insolvente, verifica-se o seguinte:

             Documento                              Data        Valor

Nota Pagamento 16/1 I.... 13/5/2008 € 6000,00

Nota Recebimento 61/1 A .... 15/5/2008 € 6000,00

Nota Pagamento 15/1 I.... 8/5/2008 € 6000,00

Nota Recebimento 60/1 A .... 8/5/2008 € 6000,00

Nota Pagamento 14/1 I.... 8/5/2008 € 6000,00

Nota Recebimento 59/1 A .... 8/5/2008 € 6000,00

Nota Pagamento 13/2 I.... 6/5/2008 € 6000,00

Nota Recebimento 55/1 A .... 6/5/2008 € 6000,00

Nota Pagamento 10/1 I.... 30/4/2008 € 1500,00

Nota Recebimento 54/1 A .... 6/5/2008 € 1500,00

Nota Pagamento 6/1 I.... 16/4/2008 € 2000,00

Nota Recebimento 53/1 A .... 6/5/2008 € 2000,00

Nota Pagamento 5/1 I.... 16/4/2008 € 2300,00

Nota Recebimento 52/1 A .... 6/5/2008 € 2300,00

Nota Pagamento 11/1 I.... 8/5/2008 € 9918,66

Nota Recebimento 35/8 A .... 8/5/2008 € 9918,66.

19) Os pagamentos e recebimentos, efectuados pela I...., Lda. à insolvente, estão registados na contabilidade das duas empresas, embora não de forma simétrica directa (BI/13).

20) O requerido tentou renegociar as dívidas vencidas, usou dinheiro seu para pagar dívidas da sociedade, incluindo dívidas à Segurança Social, J...., Lda., L...., Lda., e usando igualmente para o efeito dinheiro resultante das vendas à I...., Lda. (BI/9-12).

21) A devedora da insolvente M..., Lda., através do cheque nº ...., de 29/4/2008, procedeu ao pagamento do débito que tinha para com aquela, no valor de € 14.980,00 (al. G).

22) Por decisão dos requeridos, o valor pago por M...., Lda. foi afectado ao pagamento de suprimentos pela insolvente ao requerido, não chegando, em termos contabilísticos, a entrar na empresa (BI/1-B).

23) A insolvente manteve contabilidade organizada até Maio de 2008, faltando, porém, elementos contabilísticos desde Janeiro de 2008 (BI/14).

24) Deixou de lançar os documentos recebidos posteriormente a essa data, ainda que reportados a pagamentos efectuados antes dela (BI/15).

25) Por deliberação de 11/4/2008, em assembleia geral da insolvente, foi decidido pelos requeridos a apresentação da devedora à insolvência, nos termos que constam da acta nº16, com cópia junta a fls. 182ss e cujo teor restante se dá por reproduzido (fls. 182 destes autos).

26) A insolvente encerrou definitivamente a sua actividade em Maio de 2008 (BI/4).


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III – Fundamentação de Direito

Versam os presentes autos/incidente sobre a qualificação da insolvência da A ...., Lda. como culposa (art. 185.º e ss. do CIRE).

A sentença recorrida, analisando os fundamentos invocados pela Sr.ª Administradora, considerou “como praticados os comportamentos indicados nas als. d) e f) do art. 186.º/2 do CIRE” e ainda “verificada a previsão do art. 186.º/3, al. a), do CIRE, visto que a situação de falência técnica se verificava já no final de 2006”. E, nesta linha de raciocínio, acrescentou que, “segundo o art. 189.º/2 do CIRE, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, deve o Tribunal, em primeiro lugar, identificar as pessoas afectadas pela qualificação e, depois, declarar a inibição delas para o comércio durante um período de 2 a 10 anos”, e concluiu, como já se referiu, pela qualificação da insolvência como culposa e pela identificação dos requeridos B .... e C .... como afectados por tal qualificação.

É deste último segmento decisório – na parte em que identifica e declara a C .... como uma das pessoas afectadas pela qualificação da insolvência – que vem interposto o presente recurso.

A isto se circunscreve o objecto e âmbito do recurso, o que significa que não estão em causa nem a qualificação da insolvência como culposa nem a identificação/declaração do outro requerido, B ...., como pessoa afectada por tal qualificação.

Antecipando a solução, em face do que foi e está factualmente reunido, a C .... não pode ser afectada pela qualificação da insolvência; mas – é este o ponto – o desfecho do recurso também não pode ser o pretendido, isto é, a recorrente não pode, desde já, ficar eximida/absolvida de tal consequência/afectação.

Vejamos:

A devedora/insolvente é uma sociedade por quotas.

A recorrente, como se vê da certidão da matrícula da devedora/insolvente de fls. 91 e ss. (maxime de fls. 98, 99 e 100), é sócia da mesma desde 02/10/2006 com uma quota de € 2.500,00 (pertencendo o restante capital, no montante de € 47.500,00, ao sócio B ...., único gerente designado da devedora/insolvente após a renúncia, em 30/09/2006, de F...).

As sociedades comerciais, é sabido, gozam de personalidade jurídica, tanto em relação a terceiros como em relação aos próprios sócios; é o que resulta do art. 5.º do CSC, segundo o qual “as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem”. E, constituídas, têm uma “automática” capacidade de gozo, que “compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim” (cfr. art. 6.º/1 do CSC).

Quanto à capacidade de exercício, não sendo as sociedades comerciais pessoas físicas, necessitam de alguém que as represente, isto é, de alguém que pratique actos que, mediante certo condicionalismo, produzam efeitos na esfera jurídica da sociedade, de alguém que intervenha por elas e no seu interesse, formando e manifestando a vontade social.

As sociedades comerciais têm, como não podia deixar de ser, capacidade de querer e de actuar, de formar a vontade e de manifestá-la para o exterior; porém, fazem-no através de órgãos.

Órgãos (ou os seus titulares) que “não são propriamente representantes (legais ou voluntários) das sociedades. O que os liga a estas não é um nexo de representação, é antes um nexo de organicidade; os órgãos são parte componente das sociedades, a vontade e os actos daqueles são a vontade e os actos destas, a estas são os mesmos referidos ou imputados[1].

Formação e manifestação da vontade social que cabe, nas sociedades por quotas, quanto à administração e representação, à gerência nos termos do art. 252.º, n.º 1, do CSC; sendo os gerentes designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios – cfr. 252.º, n.º 2, do CSC.

Gerentes que têm poderes e competência para praticar todos os actos – de administração e de disposição – pertinentes à realização do escopo social (cfr. 259.º do CSC); que dispõem duma competência genérica e indefinida para realizar todas as operações sociais, só não podendo praticar os actos que a lei ou o contrato social reservam à competência de outros órgãos (assembleia-geral ou ao órgão fiscalizador).

Tudo ido para dizer e explicar que, sendo assim, a qualificação, como culposa, da insolvência duma sociedade por quotas tem necessariamente que afectar e que se reflectir sobre as pessoas que constituem o órgão que forma e manifesta a sua vontade[2]; sobre as pessoas – enquanto elementos e “partes componentes” da sociedade – que conceberam e praticaram os actos de administração e de disposição que conduziram à situação de insolvência culposa, o mesmo é dizer, os gerentes designados no contrato de sociedade[3] ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios.

Sucede, todavia, não raras vezes, que concebem e praticam actos de administração e de disposição da sociedade pessoas que não são administradores/gerentes de direito ou formais.

O que coloca a questão de saber se tais pessoas – que podemos designar como administradores de facto em sentido amplo[4] – não devem também ser responsabilizados do mesmo modo que os administradores/gerentes de direito ou formais.

“Tal como os administradores de direito, eles (os administradores de facto) administram; devem por isso igualmente cumprir as regras da correcta administração, sob pena de arcarem com as respectivas responsabilidades. Esta perspectiva funcional (que atende às funções de administração efectivamente exercidas, não à qualificação formal do sujeito como administrador de jure) será suficiente para concluir que os art. 72.º e ss. do CSC são directamente aplicáveis (também) aos administradores de facto”[5].

Administradores de facto (em sentido amplo) que são “quem, sem título bastante, exerce, directa ou indirectamente e de modo autónomo (não subordinadamente) funções próprias de administrador de direito da sociedade[6]

Todos constatamos que na prática há pessoas – sócios ou terceiros – que chamam a si (ou contribuem para) a direcção da empresa, mesmo não sendo administradores/gerentes; há pessoas que, embora sem qualquer designação, exercem substancialmente os poderes que competem a administradores/gerentes regularmente nomeados ou que determinam de forma reiterada a conduta dos administradores/gerentes “oficiais”; há pessoas que, ostentando uma concreta qualidade relacional com a sociedade (por ex. sócio), levam a cabo funções de gestão com a independência que é própria da administração/gerência de direito..

Todos constatamos que há pessoas que decidem e tratam dos negócios sociais na primeira pessoa, agindo na posição dos administradores/gerentes de direito sem qualquer intermediário, que actuam indirectamente sobre a administração/gerência designada, impondo as suas instruções e condicionando as escolhas dos administradores/gerentes de direito.

Merecem pois todas estas pessoas – que desempenhem papéis administrativos com o poder de independência decisória que caracteriza a esfera dos administradores – a quem a administração, em substância, se reporta, a qualificação de administradores/gerentes; e se protagonizam actos de má gestão, em desrespeito da lei, dos estatutos, de deliberações e dos deveres de cuidado e lealdade inerentes e inseparáveis do cargo – como seguramente acontecerá com uma gestão que desemboca numa insolvência culposa – devem ser tratados e responsabilizados do mesmo modo que os administradores/gerentes de direito.

Enfim, a sua actuação funcionalmente administrativa – de acordo com um princípio de equiparação com os administradores de direito – é o que basta para lhes ser aplicável o art. 189.º, n.º 2, do CIRE[7]

É por este percurso de raciocínio – como administradora/gerente de facto da insolvente – que a recorrente C .... pode/deve ser afectada pela qualificação como culposa da insolvência; mas, evidentemente, para que tal possa ocorrer, têm que ficar reunidos elementos de facto que exprimam o desempenho de papéis administrativos (na devedora/insolvente) com a independência decisória que caracterizam uma actuação funcionalmente administrativa.

Em relação ao B ...., diversamente, basta invocar o que consta da certidão da matrícula da insolvente – isto é, que o mesmo era o designado gerente da devedora/insolvente nos 3 anos que antecederam a insolvência – para ficar estabelecida a sua qualidade de administrador/gerente da devedora/insolvente e para, enquanto parte componente da mesma, lhe poder/dever ser directamente imputada a qualificação culposa da insolvência.

Em relação à recorrente C .... – que é apenas sócia da devedora/insolvente – é preciso que se reúna um elenco de factos que estabeleça a sua actuação funcionalmente administrativa, para, a partir daí, lhe poder ser imputada a qualificação culposa da insolvência.

É justamente esta actuação que os factos provados da sentença recorrida nem de longe espelham.

Os factos constantes dos pontos 6, 12, 13 e 25 da matéria de facto não exprimem, ao contrário do defendido na alegação recursiva do M.º P.º[8], a mais leve actuação funcionalmente administrativa da recorrente.

O único facto susceptível de integrar uma actuação funcionalmente administrativa da recorrente é o referido no ponto 22 – daí que a recorrente pretenda alterar o seu “julgamento” – porém, só por si, é insuficiente para consubstanciar a administração/gerência de facto por parte da recorrente.

Daí que tenhamos começado por afirmar que a recorrente, com o que foi e está factualmente reunido, não pode ser afectada pela qualificação da insolvência.

Mas – é este o ponto – os autos, se impõem tal conclusão, também revelam que a questão da recorrente como administradora/gerente de facto da devedora/insolvente nunca foi devida e convenientemente colocada.

É exactamente por isto – tratando-se duma questão inteiramente pertinente e que não podia/devia ter sido omitida – que não se pode, desde já, eximir/absolver a recorrente da consequência/afectação que ela repele.

As coisas começaram logo mal, com o devido respeito, no parecer (do art. 188.º/2 do CIRE) da Administradora.

Há indícios factuais que apontam para uma possível e eventual administração de facto da recorrente, como sejam, designadamente, a venda dos stocks, da maquinaria e dos veículos da devedora/insolvente a uma outra e “nova” sociedade, com o mesmo objecto social, de que a recorrente é agora a única sócia gerente (cfr. pontos 14, 15, 12 e 13 da matéria de facto)[9].

Fazia (e faz) pois todo o sentido que o parecer da Administradora concluísse pela identificação da recorrente C .... como pessoa a poder/dever ser também afectada pela qualificação da insolvência como culposa.

Só que – é este o óbice – o parecer da administradora de insolvência que deu início ao presente apenso/incidente não cumpre – ou melhor cumpre formalmente, mas não em substância – o disposto no art. 188.º, n.º 2, do CIRE, em que se diz que “apresenta parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes”.

Devidamente fundamentado e documentado significa que deve expor, mencionar, enumerar – não saltando logo para a conclusão – todos os factos, todos os elementos, que, aplicando-se depois o CIRE, conduzam a considerar preenchida alguma das alíneas dos n.º 2 e 3 do art. 186.º do CIRE ou conduzam a considerar afectado pela qualificação culposa quem não é administrador/gerente de direito.

O que estamos a expor é bastante elementar, bem o sabemos, e só o referimos por, recorrentemente, nos depararmos com pareceres muito pouco fundamentados e documentados sobre os factos relevantes.

Não interessa muito – ao contrário do que é normalmente feito e do que é exemplo o parecer que dá início ao presente incidente – a exaustiva e explícita alusão à lei, a exaustiva e explícita alusão/imputação das várias alíneas do art. 186.º do CIRE (parecendo fazer curso a ideia de quantas mais alíneas melhor); uma vez que é dever do juiz conhecer a lei (art. 664.º do CPC).

O que interessa mesmo é a exposição dos factos – com detalhe factual e não apenas em termos conclusivos – é a equação das razões de facto, se possível sem saltos de raciocínio, que conduzem à proposta a final formulada.

O que estamos a dizer, sendo elementar, não é supérfluo, inútil ou gratuito; uma que o juiz/tribunal, para qualificar uma insolvência como culposa ou para afectar pessoas por tal qualificação, não se pode subtrair à elaboração de silogismos judiciários em que a “premissa menor” tem necessariamente que estar e ser composta por factos.

E – é esta a consequência – com pareceres conclusivos e de direito, com pareceres insuficientes e inconsistentes em termos factuais, o labor processual será as mais das vezes vão[10] ou, então, bem mais penoso e árduo do que podia e devia ser[11].

Repare-se, revertendo ao parecer sub-judice, que – embora se revele saber que a devedora/insolvente só tinha um gerente de direito[12] – nem um único facto é explicitamente alegado/invocado para apoiar a afectação da sócia/recorrente, nem um único facto é explicitamente alegado para estribar a sua putativa administração de facto.

Estivéssemos nós num comum processo declarativo, dominado por princípios como o do “dispositivo” ou da “auto-responsabilidade das partes”, e a solução – ultrapassada a fase do convite ao aperfeiçoamento, uso que o tribunal, embora pudesse/devesse fazê-lo, não exerceu – seria, como já se disse, a revogação pura e simples do decidido em relação à recorrente C .....

Sucede, porém, que estamos num processo especial (CIRE), em cujo art. 11.º, sob a epigrafe “princípio do inquisitório”, se dispõe que “no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegado pelas partes”; poder este, de fundar a decisão em factos não alegados, que contém implícita a faculdade de o juiz, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem com recolher as provas e informações que entender convenientes.

É exactamente por isto que entendemos que, no caso, a solução deve passar pela anulação da decisão proferida quanto à recorrente C .... e, ainda apenas com reporte à recorrente, pela ampliação da matéria de facto – cfr. art. 712.º, n.º 4, do CPC – ampliação em que se deve investigar/apurar se a recorrente C ...., nos 3 anos anteriores ao processo de insolvência, exerceu, de modo autónomo, funções que são próprias de gerente[13]; e, designada e especialmente, se as vendas e ocorrências referidas nos factos 14, 15, 21 e 22 deste acórdão também foram decididas e tratadas por si.

Anulação/ampliação também sugerida pelo conteúdo da discussão jurídica da sentença recorrida, em que, sem que os factos o retratem e suportem, se atribuiu a alienação (à nova empresa) dos bens da insolvente e o uso do crédito daí resultante – factos decisivos para a qualificação da insolvência como culposa – a ambos os requeridos.

Em síntese, a selecção da matéria de facto efectuada nos autos não contém, entre os factos logo assentes e a base instrutória organizada, factos suficientes para, em caso de insolvência culposa, poder ser afectada com tal qualificação, como havia sido proposto no parecer da Administradora, a recorrente C .....

É certo que os factos que faltam também não constam explicitamente do parecer da Administradora, porém, em face do princípio do inquisitório constante do art. 11.º do CIRE e tendo presente os indícios que ressoam dos autos, o tribunal – uma vez que não exerceu o convite ao aperfeiçoamento – devia suprir a insuficiência de alegação do parecer da Administradora e pronunciar-se, na decisão de facto proferida[14], sobre os mesmos – dizendo explicitamente se ficaram provados ou não provados – pelo que, não o tendo feito, é indispensável mandar ampliar, com tal sentido e objecto, a matéria de facto.

Ampliação que, menciona-se, nada obsta a que possa ser precedida da notificação da Administradora para aduzir as razões de facto que a levaram a propor que a recorrida, que não é gerente de direito, seja também afectada pela qualificação da insolvência.


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IV - Decisão

Pelo exposto, decide-se anular, quanto à recorrente C ....[15], a decisão da 1.ª Instância, ordenando-se que, em novo julgamento, se proceda à ampliação da matéria de facto, investigando-se/apurando-se se a recorrente C ...., nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência, exerceu, de modo autónomo, funções que são próprias de gerente[16]; e, designada e especialmente, se as vendas e ocorrências referidas nos factos/pontos 14, 15, 21 e 22 deste acórdão também foram decididas e tratadas pela recorrente C .....

Custas, nesta Instância, pelo vencido a final.


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Barateiro Martins) (Relator

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial II, pág. 204. Onde, a pág. 539 também refere “os órgãos são parte componente das sociedades; os titulares dos órgãos não querem nem actuam como terceiros em substituição ou em vez da sociedade (vontade e actos orgânicos são vontade e actos da sociedade). Fala-se, por isso, de representação orgânica”.

No mesmo sentido, Pupo Correia, Direito Comercial, pág. 252, em que refere que “a perspectiva doutrinária moderna é no sentido de entender, de acordo com a teoria organicista, que as funções destes órgãos não resultam de um mandato representativo, mas sim duma situação de representação orgânica. Os órgãos são elementos da própria sociedade, através dos quais esta se manifesta e actua. Os seus poderes não estão limitados por um instrumento ou relação de mandato, antes coincidem com os inerentes à capacidade de gozo de direitos da sociedade.
[2] Como é evidente, se afectasse apenas o ente jurídico autónomo, seria bastante inócuo.
[3] Como é, no caso, o requerido B .....
[4] As hipóteses e situações são as mais diversas, como refere Coutinho de Abreu, in Responsabilidade Civil dos Administradores, IDET, Cadernos, N.º 5, pág. 97/8; incluindo os “administradores de facto aparentes”, os “administradores de facto ocultos sob outro título” e os “administradores na sombra”.
[5] Coutinho de Abreu, in Responsabilidade Civil dos Administradores, IDET, Cadernos, N.º 5, pág. 102.

[6] Coutinho de Abreu/Elisabete Ramos, Responsabilidade Civil dos Administradores, em IDET, Miscelâneas, N.º 3, pág. 43.

[7] Em harmonia com o que se dispõe quer no art. 186.º/2, ao aludir aos administradores de direito e de facto, quer no art. 82.º/2 do CIRE, segundo o qual, enquanto dura o processo de insolvência, o administrador tem legitimidade exclusiva para propor e fazer seguir “as acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto (…)”. E, em linha, com o que também se diz no art. 24.º/1 da LGT, segundo o qual “os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exercem, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas ou fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si (…)”.
[8] Os factos 12 e 13 nem sequer dizem respeito à devedora/insolvente.
[9] É curioso – não podemos deixar de observá-lo – que na nova sociedade, em que o outro sócio é o mesmo B ...., se invertam, pelo menos em termos formais e de direito, os papéis; sendo agora a recorrente a única gerente.
[10] Com o inevitável prejuízo para a imagem e prestígio da justiça, uma vez que gritantes insolvências culposas se poderão quedar, à mingua dum elenco factual consistente, pela fortuitidade.
[11] Com recursos quase sempre à volta da suficiência ou não dos factos.
[12] Alude-se em vários artigos a gerente, no singular.
[13] Em que se pode/deve investigar – na negativa e na positiva – o que consta do art. 2.º da oposição da recorrente (fls. 70).
[14] Após prévio aditamento à base instrutória e possibilidade de pronuncia das partes.
[15] Quanto à qualificação da insolvência como culposa e quanto à identificação/declaração do outro requerido, B ...., como pessoa afectada por tal qualificação, a sentença de 1.ª Instância transitou em julgado. Assim como não são prejudicados pela presente anulação todos os efeitos do julgado, na parte não recorrida (cfr. 684.º, n.º 4, do CPC).
[16] Fazendo constar toda a matéria de facto que, atenta a construção jurídica referida sobre a responsabilização dos administradores/gerentes de facto, se mostre relevante.