Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1828/06.3TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
CAUSALIDADE
DESOBEDIÊNCIA
ALCOOLÉMIA
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 137º,Nº1,292º,Nº1,69º DO CP E 152º ; 156º DO CE E 127º,163º, 340º, 361º,365º,369º, 412º E 428º DO CPP
Sumário: 1.Enquanto não der início à leitura da sentença, o tribunal ainda pode ordenar a produção de novos meios de prova, cujo conhecimento se lhe afigure necessário à decisão da causa.

2 No recurso sobre a matéria de facto, o recorrente só logrará ver alterada a decisão de facto se as provas por si indicadas impuserem uma outra decisão.

3. Nos crimes negligentes por omissão dum especial dever de cuidado a causa que há-de estabelecer-se entre a omissão desse especial dever de cuidado e o resultado verificado não é uma causalidade verdadeira e própria mas antes um seu equivalente normativo para os fins de imputação jurídica do resultado à conduta do omitente desse dever.

4. O concurso de causas na produção dum certo resultado não é excludente da responsabilização criminal do agente duma delas.

5. As provas a que o condutor que conduz veículo automóvel na via pública está legalmente obrigado a submeter-se para a detecção de álcool no sangue não constituem prova proibida pelos artigos 32º,nº8 da CRP e 126ºdo CPP.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal de Coimbra
I-
1- No processo …/06 do tribunal de Porto de Mós, C. foi condenado na pena única de 320 dias de multa à taxa diária de €6 resultante do cúmulo jurídico das seguintes penas: 280 dias de multa pela prática dum crime de homicídio por negligência previsto e punível pelo artigo 137/1do Código Penal; 40 dias de multa pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punível pelo artigo 292/1 do Código Penal; e de 50 dias de multa pela prática do crime de desobediência previsto e punível pelo artigo 348/1alínea b), todos do Código Penal.
À pena única principal acresce a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 3 meses pela prática do referido crime de condução em estado de embriaguez.
2- O arguido recorre quer da sentença quer de despacho proferido numa das sessões do julgamento em que o tribunal determinou a produção de prova suplementar com vista ao apuramento dos factos, mais concretamente pretendendo o tribunal fazer juntar o original do auto de apreensão do veículo ocorrida a 16/9/2005 e saber da hora exacta em que foi feita a recolha da amostra de sangue com vista à determinação da TAS de que o arguido era portador.
As suas conclusões são as seguintes –
a) Do recurso intercalar -
a) A legislação processual penal em vigor não permite, em regra, a reabertura da audiência de julgamento.
b) A audiência de julgamento só pode ser reaberta nos casos expressamente previstos na lei.
c) A M.ma Juiz declarou encerrada a audiência de julgamento após ter dado cumprimento ao disposto no art.º 361º do Código de Processo Penal .
d) E designou a data para a leitura de sentença.
e) No dia designado para a leitura de sentença proferiu o despacho aqui recorrido.
f) A reabertura da audiência de julgamento só é possível nos termos do art.º 371 do Código de Processo Penal, ou seja,
g) Quando por força do art.º 369/2 se tornar necessária prova suplementar para a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar.
h) Actualmente também o art.º371-A do Código de Processo Penal prevê um outro caso em que é possível proceder à reabertura da audiência de julgamento para a aplicação retroactiva de lei penal mais favorável ao arguido.
i) Fora estes dois casos expressamente previstos em mais nenhum outro é permitida a reabertura da audiência de julgamento.
j) O art.º 360/4 onde se afirma que "Em casos excepcionais, o tribunal pode ordenar ou autorizar, por despacho, a suspensão das alegações para produção de meios de prova supervenientes quando tal se revelar indispensável para a boa decisão da causa", vem reforçar este entendimento.
k) Tal norma permite, em casos excepcionais, a produção de meios de prova supervenientes mas só enquanto não estiverem findas as alegações.
l) Já que nessa norma se afirma que as mesmas poderão ser suspensas para esse fim, em casos excepcionais.
m) Tal norma excepcional tem como limite temporal o fim das alegações orais.
n) No caso em apreço, para além das alegações terem terminado, a própria audiência de julgamento já tinha sido declarada encerrada.
o) Nos termos do art.º 125 do Código de Processo Penal só são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
p) Estamos assim perante a utilização de provas proibidas.
q) Nos termos do art.º 122 do Código de Processo Penal deve o despacho que determinou a reabertura da audiência ser declarado nulo, bem como as diligências probatórias nele ordenadas e a sentença ser proferida com base na produção de prova produzida até ao encerramento da audiência de julgamento.
r) Ao não se querer pronunciar de forma favorável ao arguido, uma vez que tinha dúvidas sobre alguns pontos da matéria de facto imputada ao arguido, a M.ma Juiz ao proferir o despacho violou o principio « in dubio pro reo» consagrado no art.º 32 da CRP que garante ao arguido todas as garantias de defesa.
s) Tal normativo impõe que quando o juiz não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa tem que decidir a favor do arguido.
t) A solução nunca poderá ser voltar a julgar o arguido ou produzir nova prova.
u) Até porque dessa forma também se está a violar o princípio «ne bis in idem» - art.º 29º da CRP.
b) Do recurso da sentença –
I) Os factos dados como provados nos art.ºs 7), 1ª parte do 8), 12), 13), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 20), 21), 23), 26) e 27) não têm fundamento na prova produzida.
II) Os n.ºs 7,13,14, 15,16, 17,18,19,21, e 23 dos factos provados têm de ser suprimidos uma vez que não se provaram.
III) Os n.ºs 8, 19, 11, 12, 20, 24, 26, 27 e 32 deverão ser alterados com a redacção acima exposta, para que a matéria de facto dada como provada seja o reflexo da prova produzida em audiência de julgamento.
IV) Mantendo-se os factos constantes nos n.ºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 9, 22, 25, 28, 29, 30, 31, 33, 34, 35, 36, 37 e 38.
V) E aditando-se a matéria de facto constante nos supra referidos n.ºs 39, 40, 41, 42 e 43, em conformidade com a prova produzida em audiência e por nos parecerem relevantes para a boa decisão dos autos.
VI) Aos factos dados como não provados terão que se acrescentar os seguintes factos:
- O arguido circulava desatento ao tráfego e com falta de perícia.
- O acidente só ocorreu devido ao arguido circular desatento e em manifesto desrespeito às mais elementares regras de condução estradal, as quais podia e devia ter adoptado de modo a evitar um resultado que podia e devia prever.
- O arguido sabia que a condução de veículos na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas que determinem uma taxa de álcool igual ao superior a 1,2 g/litro constitui uma conduta proibida e punível por lei penal.
- Apesar disso o arguido quis conduzir o ciclomotor em causa, o que fez de forma livre, voluntária e consciente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei penal.
- No acto de apreensão do ciclomotor de matrícula 1-RMR-…, no dia 16 de Setembro de 2005, por não ter seguro de responsabilidade civil válido, o arguido foi notificado pessoalmente de que incorreria na prática do crime de desobediência, caso utilizasse o tal ciclomotor
- O arguido sabia que a condução do referido ciclomotor apreendido era punível por lei penal
VII) A matéria constante nos factos provados, com nova renumeração, devido à supressão dalguns e o aditamento doutros provados, deve ser alterada da seguinte forma:
l) No dia 5/../2006, pelas 21h40m, o arguido tripulava o ciclomotor de matrícula l-RMR…, o que fazia na Rua …. Porto de Mós, no sentido de marcha Vale Pia/Lagoa.
2) O piso estava seco e o tempo era bom.
3) A rua apresentava-se naquele local como uma curva pouco acentuada com boa visibilidade, embora inferior a cinquenta metros, nos dois sentidos de circulação, sem inclinação transversal.
4) Tem a largura total de 5.95 metros.
5) O local no sentido de marcha Vale Pia/Lagoa dispõe de berma em terra batida e no sentido de marcha Lagoa/Vale Pia não dispõe de berma.
6) A via encontrava-se em regular estado de conservação e dispunha de iluminação pública, ainda que de baixa intensidade.
7) O arguido circulando pela sua faixa de rodagem não se apercebeu da presença de M. que naquele circunstancialismo de tempo circulava pelo seu pé acompanhado de E e de M M no sentido de trânsito contrário ao do arguido, Lagoa/Vale Pia, próximo da berma esquerda da faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha mas ainda no alcatrão da mesma, atento o sentido em que circulava, sem que nada o impedisse de circular pela berma da faixa de rodagem.
8) Por não se aperceber da presença dos referidos peões, o arguido continuou a sua marcha e embateu com a parte frontal do ciclomotor no peão M, o que fez na sua faixa de rodagem, ainda no alcatrão, próximo da berma do lado direito da via atento o sentido de marcha do arguido.
9) Como consequência directa e necessária do embate o M sofreu as seguintes lesões: traumatismo crâneo-encefálico moderado (Escala de Glasgow 13), facial (regiões periorbitárias equimóticas e lacerações nas pálpebras do olho esquerdo) e torácico (pneumotorax à esquerda). Manifestava dificuldade respiratória com polipneia, do ponto de vista ortopédico apresentava fractura do pilão tibial esquerdo, hematoma na parede anterior e na fossa ilíaca: apresentava ainda ar: mediastino e enfisema subcutâneo. Sofreu agravamento do estado de consciência (Escala de Glasgow 10), manifestando pouca colaboração e desorientação. Revelou, ainda, a presença de múltiplas fracturas das órbitas, fractura zigomato-malar esquerda. fractura temporal e malar esquerda. fractura frontal bilateral, secção parcial do nervo óptico do olho esquerdo, hemorragias meníngeas, contusões temporais anteriores esquerdas, edema cerebral e lâmina de higroma hemisférico esquerdo, hemorragia subconjuntival à esquerda, íris irregular em midríase média fixa e reflexo consensual à esquerda diminuído. Durante o internamento no Centro Hospitalar de Coimbra, desenvolveu crises convulsivas focais e no dia 8/5/2006 acentuou-se a deterioração do estado mental (Escala de Glasgow 8), evidenciando lateralização motora, e melhoria progressiva da dificuldade respiratória. Transferido para o Hospital de Santo André, em Leiria, no dia 17/5/2006, à data apresentava-se consciente, com resposta verbal adequada a questões simples, apirético e normotenso. Nos dias seguintes, já no Hospital de Santo André, desenvolveu quadro respiratório infeccioso caracterizado por secreções abundantes, hipotermia e febre, que desencadeou manifesta insuficiência respiratória. No dia 19/5/2006 apresentava-se em estado comatoso (Escala de Glasgow 7), tendo sido necessário efectuar traqueotomia. Reobservado em 29/5/2006 no Centro Hospitalar de Coimbra, apresentando-se prostrado, sem abertura espontânea de olhos, respondia ao chamamento com gemido e apertava a mão quando solicitado. Apesar da terapêutica instituída a situação clínica manteve-se sobreponível, vindo a falecer em 3 de Junho de 2006 no Hospital de Leiria.
10) Em súmula, M sofreu lesões traumáticas crânio/meningo/­encefálicas, torácicas e do membro inferior esquerdo. Até ao dia 17 de Maio de 2006 todas estas lesões evoluíram favoravelmente, tendo a partir do dia 19 de Maio de 2006 essas lesões evoluído de modo pouco favorável, com deterioração do estado de consciência e posterior desenvolvimento de quadro infeccioso pulmonar e insuficiência respiratória que culminaram na sua morte.
11) O arguido ingeriu uma cerveja antes de iniciar o exercício da condução do ciclomotor.
12) No dia 16 de Setembro de 2005 o ciclomotor com a matrícula 1-RMR-… foi apreendido pelo soldado P.., da GNR de Porto de Mos, por não possuir seguro de responsabilidade civil válido e entregue ao arguido como fiel depositário do mesmo.
13) No dia 5 de…de 2006, pelas 21 h40m, estando o ciclomotor em causa ainda apreendido, o arguido conduziu-o, bem sabendo que não o poderia fazer.
14) O arguido estava consciente de que lhe estava vedada a condução do ciclomotor em causa, por saber dever obediência à ordem que lhe foi dada, que sabia ser legítima e emanada de autoridade competente.
15) Ainda assim, o arguido quis conduzir o referido ciclomotor, sabendo a sua conduta proibida, tendo agido sempre deforma livre, voluntária e consciente.
16) O arguido confessou os factos referidos sob os pontos 24, 25 e 26.
17) No circunstancialismo de tempo em que se verificou o embate entre o ciclomotor conduzido pelo arguido e o falecido M já estava tempo escuro.
18) M e as duas pessoas que o acompanhavam vestiam roupa escura e não faziam uso do colete reflector.
19) Conhecia o referido M as características da via e sabia que à hora em que circulavam pela mesma a pé fazia tempo escuro.
20) O arguido circulava com as luzes do ciclomotor acesas.
21) O arguido foi de imediato transportado ao Hospital de Santo André, em Leiria, estando inconsciente quando os Bombeiros chegaram ao local do acidente, logo após a sua ocorrência, tendo recuperado a consciência durante duas horas quando chegou às urgências do referido Hospital, tendo depois desmaiado, não se recordando de nada a partir desse momento, designadamente das colheitas de sangue que posteriormente e no mesmo lhe terão sido feitas.
22) O arguido não tem antecedentes criminais e nada consta do seu cadastro rodoviário.
23) Exerce a profissão de cabouqueiro, por força da qual aufere o vencimento mensal de €660.
24) É divorciado e tem dois filhos menores aos quais entrega a pensão mensal de alimentos de €300.
25) Paga a prestação mensal de €200 associada a crédito pessoal.
26) Na escola completou a 4ª classe.
27) É pessoa bem considerada por aqueles que consigo convivem e trabalham
VIII) Provou-se ainda que:
28) O sinistrado tinha à data do acidente bem como à data da sua morte 82 anos.
29) O sinistrado M circulava pelo seu pé na faixa de rodagem, em violação das normas do Código da Estrada, uma vez que para além de não circular na berma existente no local fazia-o na companhia de MM e de E, ao lado uns dos outros, sem ser numa única fila.
30) Nos segundos que antecederam o acidente circulava em sentido contrário do ciclomotor um veículo automóvel.
31) O sinistrado tinha antes do acidente ocorrer os seguintes antecedentes clínicos: a)- AVC; b) Cirurgia no IPO a tumor intestinal; c) DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica); e d)Enfisema pulmonar
32) Que por lapso não foi diligenciada a realização da autópsia do falecido Madaíl Caetano.
IX) Dos factos provados em audiência de julgamento resulta que o sinistrado M ao caminhar na faixa de rodagem nos termos em que o fez infringiu o disposto no artigo 99/1 do Código da Estrada e agiu com culpa inconsciente.
X) Acresce que o arguido, condutor do ciclomotor não é obrigado a prever ou contar com a falta de prudência dos outros; tem antes de partir do princípio de que todos cumprem os preceitos regulamentares do trânsito pois que se eles os cumprem e a todos é exigível cumpri-los as possibilidades de acidente estão afastadas.
XI) Estamos o perante o chamado princípio da confiança, consagrado desde há muito tempo pelo Supremo Tribunal de Justiça – cfr. Acórdão STJ de 4 de Abril de 1978.
XII) No mesmo sentido, mais recentemente, o mesmo Tribunal [Acórdão de 20 Janeiro 2009 (Jusnet 691/2009)] considerou que a conduta do sinistrado que infringiu uma disposição do Código da Estrada (nesse caso o artigo 40.° do Código da Estrada), não sendo obrigado o condutor do veículo a prever ou a contar com a falta de prudência dos restantes utentes da via, deve-se partir do princípio de que todos cumprem os processos regulamentares de trânsito e observam os deveres de cuidado que lhes subjazem.
XIII) Em resumo, o condutor do ciclomotor, arguido nos autos, não agiu com culpa pois não resultou provado que o mesmo transitava acima dos limites de velocidade recomendados para a via em causa, nem que violou qualquer outra norma do Código da Estrada, ou que o embate nos peões, nomeadamente no M, tenha resultado de qualquer acção ou omissão praticada na condução do automóvel.
XIV) Os atropelamentos ficaram-se a dever à culpa exclusiva das vítimas do referido acidente que transitavam na faixa de rodagem que se destinava exclusivamente ao trânsito de veículos automóveis, violando as normas estradais e sem a exigível cautela, uma vez que face à existência de berma naquele local, encontrava-se vedado o trânsito de peões pela faixa de rodagem.
XV) Não se encontram assim preenchidos os elementos constitutivos do tipo legal de crime em apreço e porque da matéria de facto que se deverá dar como provada não é possível afirmar que o acidente em apreço se tenha ficado a dever ao excesso de velocidade ou à condução desatenta e descuidada do arguido.
XVI) Em consequência, inexiste fundamento legal para condenar o arguido pela prática do crime de homicídio negligente p. e p. pelo art.° 137/1 do Código Penal, já que o sinistrado e os restantes peões foram os únicos responsáveis do evento estradal.
XVII) No entanto, sem condescender, sempre se diga que nunca se conseguirá saber com rigor se existiu alguma interrupção do nexo causal.
XVIII) Sem autópsia, sempre estaremos confrontados com meras probabilidades e presunções.
XIX) Ora, o nosso ordenamento penal não se satisfaz com meras presunções ou probabilidades, impõem-se certezas que só com a realização da autópsia se poderiam encontrar.
XX) Mesmo que se considere provado, sem condescender, que a insuficiência respiratória provocada por uma pneumonia "hospitalar" foi a causa directa e necessária da morte do sinistrado M
XXI) Nunca se poderá concluir que as lesões sofridas pelo sinistrado M. é que foram a causa da sua morte.
XXII) Não verifica o nexo de causalidade adequada entre essas mesmas lesões sofridas e a sua morte.
XXIII) Para além da idade avançada do sinistrado ( 82 anos) este já padecia de várias doenças graves antes do acidente - A VC, cirurgia no IPO a tumor intestinal, Doença Pulmonar Crónica Obstrutiva (DPCO) e enfisema pulmonar - Ver Diário Clínico de 10 de Maio de 2006 (fls. 45 dos autos).
XXIV) Mais, o sinistrado encontrava-se a recuperar favoravelmente das lesões sofridas no acidente, tendo tido Alta do Hospital do Covões em Coimbra, e sido transferido para o Hospital de Santo André em Leiria, quando é aí acometido de uma pneumonia também chamada "pneumonia hospitalar".
XXV) Mesmo nesta hipótese sempre se verificaria a interrupção do nexo causal.
XXVI) Assim, mesmo que se considerasse que o arguido tenha contribuído com culpa de alguma forma para a eclosão do acidente, nunca poderá ser condenado pela prática do crime de homicídio negligente uma vez que não se verifica o nexo causal entre as lesões provocadas pelo acidente no sinistrado e a sua morte.
XXVII) De qualquer forma invoca-se desde já o vício previsto na alínea a) do art.º 410º do CPPenal, ou seja, estamos perante a insuficiência da matéria de facto para a decisão.
XXVIII) Já que ao não considerar factos provados em audiência de julgamento referidos no n.º 115 destas alegações, a matéria de facto dada como provada é insuficiente para a decisão.
XXIX) Acresce ainda que nos termos dos art.ºs 3 e 4 da Lei 18/2007 de 17 de Maio, que revogou o Decreto Regulamentar 24/98 de 30 de Outubro, a entidade policial ao fazer a análise ao sangue sem tentar previamente efectuar o teste ao expirado através de analisador quantitativo - e não somente em analisador qualitativo - ­violou o art.º 153 do Código da Estrada, o art.º 4 do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, bem como os art.ºs 18 e 32 do Constituição da República Portuguesa.
XXX) O Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool aprovado pela Lei 18/2007 de 17 de Maio dispõe no seu art.º 1º/2 que “a quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise ao sangue”.
XXXI) O art.º 4º é que regulamenta o procedimento no caso de impossibilidade de realização do teste no ar expirado.
XXXII) A análise de sangue como prova só é admitida em duas situações que estão previstas no art.º4º do referido Regulamento, ou seja,
XXXIII) "Quando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou
XXIV) Quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste ".
XXXV) No art.º 2º do referido Regulamento (método de fiscalização) impõe que "quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste a realizar em analisador quantitativo";
XXXVI) O arguido esteve consciente desde que chegou ao Hospital de Leiria durante cerca de duas horas e portanto as condições físicas em que se encontrava permitiriam a realização do teste em analisador quantitativo, o que não aconteceu.
XXXVII) Pese embora o arguido se tivesse encontrado consciente durante cerca de duas horas e não ter sido solicitado que efectuasse o teste ao ar expirado por analisador quantitativo, ou mesmo por análise ao sangue, poderia ainda recusar-se a fazê-lo sendo a sanção para este caso a prevista no n.º3 do art.° 152 do Código da Estrada, ou seja, com tal comportamento o arguido cometeria o crime de desobediência mas não poderia ser submetido a tal análise ao sangue sem o seu consentimento.
XXXVIII) O art.º 152/3 do Código da Estrada dispõe o seguinte: “As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º1 que recusem submeter-se as provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência".
XXXIX) Se fosse possível efectuar a análise ao sangue sem consentimento do arguido não estaria prevista a sanção para a sua recusa no Código da Estrada.
XL) Mais, se tal fosse permitido, nunca haveria a hipótese de recusa porque os examinandos seriam levados pelas autoridades policiais para serem todos sujeitos a tal análise sanguínea no estabelecimento da rede pública de saúde mais próximo (art.º 4º/2 e 3 do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool aprovado pela Lei 18/2007 de 17 de Maio).
XLI) A submissão do arguido, sem o seu consentimento, ao teste de análise ao sangue sempre será inconstitucional já que viola os artigos 25, 26 e 32/4 da CRP.
XLII) A interpretação do n.º8 do art.º 153 e do n.º2 do art.º 172 do CPP no sentido de que tais normas possibilitam, sem autorização do juiz, a colheita coactiva de sangue para posterior pesquisa de álcool no sangue, quando não foi informado da intenção de realizar tal colheita, nem teve possibilidade de dar ou não o seu consentimento, violam os art.°s 25, 26 e 32/4 da CRP.
XLIII) Em consequência e no caso de ser considerada válida e susceptível de posterior utilização e valoração, a prova obtida através da colheita de sangue realizado nos moldes expostos, por força da aplicação das alíneas a) e c) do n.º1 do art.° 126, deve tal interpretação também ser julgada inconstitucional por violação do art.º32/4 do C.R.P. (Ver Acórdão do Tribunal Constitucional 155/2007, publicado no D.R . II Série, n.º70 de 10 de Abril de 2007).
XLIV) Nos termos do art.º 125 do Código de Processo Penal só são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
XLV) Qualquer acto da autoridade pública, administrativa ou policial, está sujeita ao princípio da legalidade, logo este caso de fiscalização efectuado fora das condições permitidas por lei é ilegal.
XLVI) Ora, não podendo servir de meio de prova os documentos onde constam o resultados da pesquisa de álcool no sangue, não existe qualquer outra prova que permita levar à conclusão que o arguido conduzia o seu veículo automóvel com uma taxa de álcool de 1,23 g/l.
XLVII) Estamos assim perante a utilização de provas proibidas que como tal não podem ser utilizadas como prova, sendo o recurso a elas um erro de direito e são insanáveis – V/ M. Gonçalves, CPP. 16ª ed. págs. 303/304 e Ac. STJ de 5/6/1991, BMJ 408/405.
XLVIII) Foi violado o art.º 122 do Código de Processo Penal, já que deveria ter sido declarada a nulidade da referida prova e tal nulidade determina a invalidade do acto em que se verificar e bem assim daqueles que dele dependerem e possam afectar, devendo ser declarados inválidos e ordenar, se possível, a sua repetição salvando o que puder ser salvo.
XLIX) Ora, no caso, a repetição do exame já não é possível e uma vez que o arguido foi condenado com base numa prova inválida deve o mesmo ser absolvido.
L) A sentença ao considerar a prova resultante da recolha de sangue efectuada ao arguido, violou o art.º 153 e ss. do Código da Estrada, o art.º 4 do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool, bem como os art.ºs 18 e 32 da CRP.
LI) No que diz respeito à prática do crime de desobediência, não consta especificamente de nenhuma disposição legal, contrariamente ao afirmado na sentença.
LII) Pelo que se tornava necessário fazer prova na audiência que a autoridade policial tinha feito tal cominação e notificado ao arguido de que com a condução do ciclomotor apreendido cometeria o crime desobediência.
LIII) Nunca o arguido admitiu que foi notificado pessoalmente de que incorreria na prática do crime de desobediência caso utilizasse tal ciclomotor.
LIV) Nem que sabia que tal conduta era punível por lei penal.
LV) Ora, da prova válida produzida nos autos nada se diz sobre os factos constantes nos n.ºs 23 e 26 da matéria dada como provada.
LVI) A prova documental junta aos autos, cópia do auto de apreensão e a cópia de cópia junta na sequência da reabertura da audiência -, também já colocada em crise no recurso anterior -, não tem qualquer valor e,
LVII) No depoimento da única testemunha que se referiu aos factos aqui em apreciação - P - em parte alguma afirma que advertiu o arguido das consequências do não acatamento da ordem que lhe foi efectivamente comunicada.
LVIII) Aliás, mesmo que se pudesse considerar que a cópia era uma prova válida sempre esta seria nula porque não continha todas as comi nações que são impostas pelo art. ° 162 do Código da Estrada.
LIX) O art.º 162/3 do Código da Estrada impõe que no auto de apreensão se faça a cominação prevista no n.º 2 da mesma norma legal, ou seja,
LX) Que o veículo não pode manter-se apreendido por mais de 90 dias devido a negligência do titular do respectivo documento de identificação em promover a regularização da sua situação, sob pena de perda do veículo a favor do Estado.
LXI) A prática do crime de desobediência não consta especificamente de nenhuma disposição legal, pelo que se tornava necessário fazer prova na audiência de julgamento que a autoridade policial tinha feito tal cominação e notificado ao arguido que, com a condução do ciclomotor apreendido cometeria o crime desobediência.
LXII) Como tal prova não se fez, o arguido também terá que ser absolvido da prática deste crime.
LXIII) Aliás, até a própria Juiz no despacho que determinou a reabertura da audiência fundamenta o mesmo no facto de no decurso da ponderação ter verificado que alguns pontos da matéria de facto em apreciação relativos à prática quer do crime de condução em estado de embriaguez quer do crime de desobediência não resultaram esclarecidos na perspectiva do integral apuramento da factual idade imputada ao arguido.
LXIX) Ora, os dois documentos juntos não vieram esclarecer o que quer que fosse, sendo um cópia de outra fotocópia já existente nos autos e sem qualquer valor probatório.
LXX) E o outro que não trouxe nenhuma explicação plausível no que se refere à hora em que foi efectuada a recolha para a pesquisa de álcool no sangue.
LXXI) Nos termos do art.º 412/5 do CPP, o recorrente mantém interesse na subida do recurso interposto do despacho que determinou a reabertura da audiência de julgamento depois de já designada a data para a leitura da sentença.
3- Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido pelo infundado dos recursos e no mesmo sentido se pronunciou neste tribunal o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
4- Colheram-se os vistos legais.
Cumpre agora apreciar e decidir!
II-
1.1- Teor do despacho recorrido -
«Encerrada a discussão da presente causa e no decurso da ponderação pelo tribunal da prova na mesma produzida, verificou-se que alguns pontos da matéria de facto em apreciação não resultaram suficientemente esclarecidos na perspectiva do integral e cabal apuramento da factualidade imputada ao arguido.
Nos termos do artigo 340/1 do Código de Processo Penal o tribunal deve ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, norma que, para além do mais, consagra o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material enquanto poder/dever que incumbe ao tribunal, para além do contributo da acusação de da defesa(…).
Por outro lado, o legislador também previu no artigo 360/4 do Código de Processo Penal a possibilidade do tribunal, em casos excepcionais, suspender as alegações orais para produção de meios de prova supervenientes quando tal se revelar indispensável para a boa decisão da causa.
No caso que ora se aprecia, a adequada compreensão e valoração da conduta imputada ao arguido supõe, de forma necessária e indispensável, a produção de meios de prova supervenientes, concretamente o esclarecimento da razão pela qual a colheita de sangue ao mesmo foi efectuada à hora constante de fls. 84/85.
Com efeito, tendo o acidente ocorrido no dia 5 de …e 2006 pelas 21h40m, não se compreende a razão pela qual a colheita de sangue ao arguido apenas foi efectuada pelas 12h45m do dia 6/5/2006.
Tendo em conta dois dos crimes imputados ao arguido (crime de condução de veículo em estado de embriaguez e crime de homicídio por negligência), assume-se de inegável relevo a averiguação dos exactos termos em que a recolha de sangue foi efectuada.
Por outro lado, sendo-lhe imputada a prática, em concurso, dum crime de desobediência qualificada, verifica-se que o auto de apreensão junto a fls. 72 se trata de simples cópia, não constando dos autos a respectiva certidão, elemento cuja junção deve, outrossim, solicitar-se.
Por isso que, em tais casos limite, haja de interpretar-se as referidas disposições legais, designadamente a constante do artigo 360/ 4, não apenas como um poder mas sim como um poder/dever do tribunal indispensável à boa decisão da causa.
Assim, em obediência aos referidos princípios e sem prejuízo da salvaguarda, constitucionalmente imposta, do princípio do contraditório, não resta ao tribunal outra solução senão a de determinar a reabertura da audiência de julgamento e a produção de meios de prova suplementares, sendo certo que tanto à acusação como à defesa caberá o direito de, querendo, e após a concretização das diligências a determinar, produzir novas alegações ou requerer a produção de outros meios de prova(…).
Daí que entendamos que o encerramento formal da discussão da causa não obsta à sua reabertura quando suscitada ao tribunal já no decurso da deliberação e determinação da sanção, do mesmo modo que a comunicação previste no art.º 358/1 e 3 pode e deve ser feita mesmo para além do encerramento da discussão(…).
Nestes termos determino a reabertura da presente audiência para que se oficie Hospital de Santo André de Leiria(…) solicitando que esclareçam a razão pela qual tendo o arguido sido interveniente em acidente de viação a 5/5/2006, pelas 21h40m apenas se procedeu à colheita de sangue ao mesmo pelas 12h45m do dia 6/5/2006 (…); e se solicite à GNR/Posto Territorial de Porto de Mós a remessa de certidão do auto de apreensão constante de fls. 72.
Continuação da audiência no dia (…)»
1.2- Teor da decisão de facto constante da sentença
a) Factos provados
1- No dia 5 de… de 2006, pelas 21h40m, o arguido tripulava o ciclomotor de matrícula 1-RMR-… o que fazia na Rua … Porto de Mós, no sentido de marcha Vale Pia/Lagoa.
2- O piso estava seco e o tempo era bom.
3- A rua apresentava-se, naquele local, como uma curva pouco acentuada, com boa visibilidade, embora inferior a cinquenta metros, nos dois sentidos de circulação, sem inclinação transversal.
4- Tem a largura total de 5,95 metros.
5- O local, no sentido de marcha Vale Pia/Lagoa, dispõe de berma em terra batida, e no sentido de marcha Lagoa/Vale Pia não dispõe de berma.
6- A via encontrava-se em regular estado de conservação e dispunha de iluminação pública, ainda que de baixa intensidade.
7- O arguido, ao circular nos termos referidos sob o ponto 1, fazia-o sem atentar no tráfego de veículos e de pessoas que se processava no local, e após ter ingerido bebidas alcoólicas que lhe determinaram uma taxa de álcool no sangue de 1,23g/litro.
8- Por força da falta de atenção à circulação de pessoas que se processava no local, o arguido, circulando pela sua faixa de rodagem, não se apercebeu da presença de M que, naquele circunstancialismo de tempo, circulava pelo seu pé, acompanhado de E e de M M, no sentido de trânsito contrário ao do arguido, Lagoa/Vale Pia, próximo da berma esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, mas ainda no alcatrão da mesma, atento o sentido em que circulava, sem que nada o impedisse de circular pela berma da faixa de rodagem.
9- Por não se aperceber da presença dos referidos peões, o arguido continuou a sua marcha e embateu com a parte frontal do ciclomotor no peão M o que fez na sua faixa de rodagem, ainda no alcatrão, próximo da berma do lado direito da via, atento o sentido de marcha do arguido.
10- Como consequência directa e necessária do embate, M sofreu as seguintes lesões: traumatismo crâneo-encefálico moderado (Escala de Glasgow 13), facial (regiões periorbitárias equimóticas e lacerações nas pálpebras do olho esquerdo) e torácico (pneumotorax à esquerda). Manifestava dificuldade respiratória com polipneia, do ponto de vista ortopédico apresentava fractura do pilão tibial esquerdo, hematoma na parede anterior e na fossa ilíaca; apresentava ainda ar mediastino e enfisema subcutâneo. Sofreu agravamento do estado de consciência (Escala de Glasgow 10), manifestando pouca colaboração e desorientação. Revelou, ainda, a presença de múltiplas fracturas das órbitas, fractura zigomato-malar esquerda, fractura temporal e malar esquerda, fractura frontal bilateral, secção parcial do nervo óptico do olho esquerdo, hemorragias meníngeas, contusões temporais anteriores esquerdas, edema cerebral e lâmina de higroma hemisférico esquerdo, hemorragia subconjuntival à esquerda, íris irregular em midríase média fixa e reflexo consensual à esquerda diminuído. Durante o internamento no Centro Hospitalar de Coimbra, desenvolveu crises convulsivas focais e no dia 8 de Maio de 2006 acentuou-se a deterioração do estado mental (Escala de Glasgow 8), evidenciando lateralização motora. Transferido para o Hospital de Santo André, em Leiria, no dia 17 de Maio de 2006, à data apresentava-se consciente, com resposta verbal adequada a questões simples, apirético e normotenso. Nos dias seguintes, já no Hospital de Santo André, desenvolveu quadro respiratório infeccioso caracterizado por secreções abundantes, hipertermia e febre, que desencadeou manifesta insuficiência respiratória. No dia 19 de Maio de 2006, apresentava-se em estado comatoso (Escala de Glasgow 7), tendo sido necessário efectuar traqueostomia. Reobservado em 29 de Maio de 2006, no Centro Hospitalar de Coimbra, apresentando-se prostrado, sem abertura espontânea de olhos, respondia ao chamamento com gemido e apertava a mão quando solicitado. Apesar da terapêutica instituída, a situação clínica manteve-se sobreponível, vindo a falecer em 3 de Junho de 2006, no Hospital de Leiria.
11- Em súmula, M. sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, torácicas e do membro inferior esquerdo. Estas lesões evoluíram de modo pouco favorável, com deterioração do estado de consciência e posterior desenvolvimento de quadro infeccioso pulmonar e insuficiência respiratória que culminaram na sua morte.
12- Estas lesões foram causa directa e necessária da sua morte.
13- O acidente ocorreu porque o arguido circulava sem atentar no tráfego de veículos e de pessoas que se processava no local.
14- Nada impedia o arguido de circular atentando no tráfego de veículos e de pessoas que se processava no local.
15- Se o tivesse feito, poderia reagir à presença dos peões que circulavam em sentido contrário pela faixa de rodagem por onde circulava e, assim, adequar o seu comportamento à marcha de M
16- Nada impedia o arguido de se aperceber da presença de M na faixa de rodagem por onde circulava e de, atempadamente, desviar o ciclomotor que conduzia do trajecto daquele, como forma de evitar o embate que se concretizou.
17- Nada o impedia de adequar a sua condução aos comandos legais, desta forma podendo reagir aos condicionalismos que, no local, ocorressem, e, assim, adequar a sua condução à presença de M logrando imobilizar o veículo por si tripulado face à sua presença.
18- Contudo, o arguido não fez tal adequação, fosse porque não atendesse aos específicos condicionalismos existentes na via, fosse porque os comandos legais impostos pela circulação rodoviária lhe fossem indiferentes.
19- O arguido, ao agir da forma descrita, agiu com manifesta falta de consideração pelas normas legais relativas à circulação automóvel e, ao dirigir o veículo do modo e nas condições descritas, não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências da sua conduta, agindo sempre de forma livre.
20- O arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas e que a condução de veículos na via pública após se ter ingerido bebidas alcoólicas que determinem uma taxa de álcool igual ou superior a 1,2g/litro constitui uma conduta proibida e punível por lei penal.
21- Apesar disso, o arguido quis conduzir o ciclomotor em causa, o que fez de forma livre, voluntária e consciente, sabendo a sua conduta proibida e punível por lei penal.
22- No dia 16 de… de 2005, o ciclomotor com a matrícula 1-RMR-.. foi apreendido pelo soldado P, da GNR de Porto de Mós, por não possuir seguro de responsabilidade civil válido e entregue ao arguido como fiel depositário do mesmo.
23- Nesse acto, foi o arguido pessoalmente notificado de que incorreria na prática do crime de desobediência, caso utilizasse tal ciclomotor.
24- No dia 5 de … de 2006, pelas 21h40m, estando o ciclomotor em causa ainda apreendido, o arguido conduziu-o, desrespeitando aquela ordem.
25- O arguido estava consciente de que lhe estava vedada a condução do ciclomotor em causa, por saber dever obediência à ordem que lhe foi dada, que sabia ser legítima e emanada de autoridade competente.
26- Ainda assim, o arguido quis conduzir o referido ciclomotor, sabendo a sua conduta proibida e punível por lei penal, tendo agido sempre de forma livre, voluntária e consciente.
27- O arguido confessou os factos referidos sob os pontos 23 a 27 que antecedem.
28- No circunstancialismo de tempo em que se verificou o embate entre o ciclomotor conduzido pelo arguido e o falecido M já estava tempo escuro.
29- M e as duas pessoas que o acompanhavam vestiam roupa escura e não faziam uso de colete reflector.
30- Conhecia o referido M as características da via e sabia que, à hora em que circulavam pela mesma a pé, fazia tempo escuro.
31- O arguido circulava com as luzes do ciclomotor acesas.
32- O arguido foi, de imediato, transportado ao HOSPITAL DE SANTO ANDRÉ, S.A., em Leiria, estando inconsciente quando os Bombeiros chegaram ao local do acidente, logo após a sua ocorrência, e de nada se recordando do período de tempo em que permaneceu no serviço de urgências do Hospital, designadamente das colheitas de sangue que, no mesmo, lhe foram efectuadas.
33- O arguido não tem antecedentes criminais e nada consta do seu cadastro rodoviário.
34- Exerce a profissão de cabouqueiro, por força da qual aufere o vencimento mensal de € 660,00.
35- É divorciado e tem dois filhos menores, aos quais entrega a pensão mensal de alimentos de € 300,00.
36- Paga a prestação mensal de € 200,00 associada a crédito pessoal.
37- Na escola, completou a 4ª classe.
38- É pessoa bem considerada por aqueles que consigo convivem e trabalham.
b) Factos não provados -
- Que o local do embate, no sentido Lagoa/Vale Pia disponha de berma, ainda que não pavimentada, e que no sentido oposto não tenha berma.
- Que M E e MM circulassem, no circunstancialismo de tempo e de lugar em causa nos autos, em fila indiana.
- Que a taxa de álcool apresentada pelo arguido no circunstancialismo de tempo em causa nos autos tenha contribuído para o embate ocorrido.
- Que o arguido tenha saído da sua via ao fazer a curva.
- Que o arguido tenha saído da sua faixa de rodagem e embatido em M na berma do lado esquerdo da via, atento o seu sentido de trânsito.
c) Motivação
Os factos provados e não provados resultaram da apreciação crítica de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente dos depoimentos das testemunhas inquiridas e respectivas características de precisão, imparcialidade e objectividade, conjugadas com a respectiva razão de ciência, das declarações prestadas pelo arguido, dos documentos juntos aos autos e da deslocação ao local efectuada pelo Tribunal, nos termos que passarão a enunciar-se, sempre que necessário, conjugados tais elementos de prova com as regras gerais da experiência e com a normalidade do acontecer.
Assim, no que respeita à forma de circulação do ciclomotor conduzido pelo arguido, o Tribunal estribou-se, essencialmente, nos depoimentos da testemunha PM que assistiu ao embate e que afirmou que se apercebeu da presença de um ciclomotor, por força das respectivas luzes, e de, pelo menos, duas pessoas circulando no alcatrão da estrada, sendo certo que o veículo seguiu o seu percurso, pela sua faixa de rodagem, sem efectuar qualquer desvio ou travagem até embater nas pessoas.
No mesmo sentido depôs a testemunha PS embora referindo a presença de três vultos na estrada, lado a lado uns dos outros.
Estas testemunhas, conhecidos tanto do arguido como da vítima mortal, apresentaram depoimentos credíveis e aos quais não se reconhece qualquer interesse na decisão, tendo efectuado uma descrição dos factos compatível com a rapidez e o carácter inesperado do evento, pelo que lograram, na sua globalidade, e em particular no que concerne à forma de condução do arguido e à forma de circulação dos peões, convencer o Tribunal da correspondência com a realidade dos factos por si relatados.
Assim, desde logo face a estes depoimentos, o apuramento da forma de circulação dos três peões envolvidos no acidente, designadamente da vítima mortal M., resolveu-se em sentido diverso do constante da acusação.
Com efeito, face à questão de saber se os mesmos seguiriam em fila indiana, como consta da acusação, ou lado a lado; e se o fariam na berma esquerda da faixa de rodagem, atento o respectivo sentido de marcha, ou, diversamente, se seguiriam na parte alcatroada da via, ainda que na proximidade da berma, o Tribunal não pôde deixar de se convencer nos termos constantes dos factos provados: embora na proximidade da berma, pelo menos a vítima M circulava, ainda, na parte alcatroada da via; não se tendo apurado que circulassem em fila única.
Com efeito, se as referidas testemunhas mencionaram que, imediatamente antes do embate, se aperceberam das luzes de um veículo, sem que o mesmo tenha desviado, por qualquer forma, o seu trajecto, nem para a esquerda, nem para a direita, até que se desse o embate, outra conclusão não se pode retirar – se o arguido circulava pela faixa direita de rodagem, não tendo efectuado qualquer desvio na forma de circulação que imprimia ao ciclomotor em causa, resta, pois, concluir que pelo menos o malogrado M circulava ainda na parte alcatroada da via pública.
Por outro lado, não se nos afigura ter resultado demonstrado que circulassem em ‘fila indiana’, como consta da acusação, desde logo por força dos resultados do embate: caso circulassem desta forma, os resultados lesivos não teriam deixado de ocorrer, também, relativamente à testemunha MM
Acontece, porém, que esta testemunha, afirmando embora que circulava entre o malogrado M e a outra pessoa, E, uns atrás dos outros, não apresentou lesões físicas graves decorrentes do embate, diversamente do que veio a ocorrer com a referida E o que inviabiliza, naturalmente, segundo a normalidade do acontecer, que a circulação dos peões se processasse nos termos por si descritos.
Pelas mesmas razões, o depoimento desta E não logrou convencer o Tribunal sobre este aspecto da matéria de facto.
No que concerne à cor escura das roupas usadas pelos peões e à omissão do uso de coletes reflectores, todas as testemunhas inquiridas sobre a matéria revelaram unanimidade no facto, pelo que o mesmo não se revelou revestido de qualquer complexidade.
Refira-se, por fim, que o auto de participação de acidente de viação constante de fls. 73/74 dos autos não se revelou particularmente esclarecedor da dinâmica do acidente, na medida em que o participante chegou ao local já depois da ocorrência, tendo o auto sido elaborado, essencialmente, com base nas afirmações da testemunha MM pelo que de pouca relevância se revestiu, outrossim, o depoimento do agente participante, N, sem prejuízo de o mesmo ter contribuído para o esclarecimento das características da via à data dos factos, concomitantemente com a deslocação que o Tribunal efectuou ao local.
Para o esclarecimento das características do local, à data dos factos, contribuiu, outrossim, o depoimento da testemunha V bombeiro em Porto de Mós e que se deslocou ao local já o evento se havia concretizado; e o depoimento de LA, também bombeiro voluntário em Porto de Mós, deslocado ao local dos factos.
O Tribunal considerou, ainda, para o esclarecimento da dinâmica do acidente, o relatório fotográfico de fls. 115 a 119.
Apreciemos, agora, outro aspecto que resultou controvertido e polémico em sede de audiência de julgamento, e que se reporta ao nexo de causalidade entre as lesões causadas pelo embate e a subsequente morte de M.
O MINISTÉRIO PÚBLICO sustentou, em sede de acusação, que as lesões sofridas pelo arguido como consequência do embate, foram causa adequada da sua morte.
O arguido, por sua vez, em sede de alegações finais, sustentou que a doença determinativa da morte do arguido (pneumonia) foi contraída no Hospital, pelo que o acidente apenas contribuiu para a morte da vítima por força da ocorrência de pneumonia, sem que haja ocorrido um nexo de causalidade adequado entre aquele acidente e a morte.
Cumpre, então, apreciar.
O início da questão de facto ora a decidir situa-se no Boletim de Informação Clínica e/ou Circunstancial constante de fls. 4 dos autos, do qual consta que o diagnóstico final ou provável se reconduz a insuficiência respiratória devido a pneumonia; bem assim do documento de fls. 3 dos autos, que identifica como causa de morte a pneumonia.
Sobre esta matéria foram inquiridos diversas testemunhas, todas especialmente habilitadas a prestarem esclarecimentos sobre a matéria, por força da respectiva formação académica em medicina.
J médico anestesista no Hospital de Santo André, S.A., confrontado com o relatório pericial de fls. 245/246, afirmou que as pessoas que padecem de Glasgow 7, como acontecia com o infeliz M, acabam por falecer, muitas vezes, devido a infecções provocadas por esse estado. Mais referiu que a vítima, por força dos elementos constantes da sua história clínica (DPCO), dispunha de mais facilidade em contrair pneumonia. Não esclareceu, porém, o Tribunal, no que concerne à específica influência das lesões sofridas em consequência do acidente na subsequente contracção de pneumonia e na derradeira morte.
A, médico ortopedista no Hospital de Santo André, S.A., apenas contactou com o falecido M na data em que o mesmo deu entrada nos serviços de urgência, não tendo acompanhado o doente durante o demais período em que permaneceu internado.
MP médica de cirurgia geral no Hospital de Santo André, em Leiria, esclareceu que internamentos prolongados por parte de pessoas debilitadas conduzem normalmente a uma situação de pneumonia, ao que acresce ao facto, agravante, de o doente em causa revelar patologias anteriores, como decorre da sua história clínica, com a qual foi confrontada. Afirmando que é difícil afirmar que o traumatismo padecido como consequência do acidente desencadeou a ocorrência da pneumonia em causa, também assumiu a grande possibilidade de assim ter ocorrido, como afirmou, na sequência da análise do relatório de fls. 245/246, que com alta probabilidade, a inexistência das lesões sofridas desencadearia uma situação em que não se verificaria a pneumonia que se revelou mortal. Sendo certo que o internamento prolongado se justifica, precisamente, pela necessidade de tratar lesões graves, como acontecia no caso apreciado em concreto. Afirmando, por fim, que, ainda sem a realização de autópsia, face aos elementos clínicos disponíveis, é possível medicamente afirmar a causa da morte.
U, médico cirurgião no Hospital de Santo André, S.A., confrontado com todos os documentos clínicos respeitantes ao falecido M designadamente com o diário clínico do doente de fls. 42 e seguintes e com o parecer de fls. 245/246, afirmou que é de supor que a pneumonia surgiu por força das lesões sofridas em consequência do acidente, sendo certo que a drenagem torácica com fractura de costelas dá facilmente origem a uma situação de pneumonia, situação agravada pelo historial clínico do doente em causa, com antecedentes de AVC, DVCO e outros constantes dos respectivos elementos clínicos.
NR médico de cirurgia geral do Hospital de Santo André, em Leiria, analisando o historial clínico de fls. 42 e seguintes dos autos e o parecer de fls. 245/246, afirmou que a causa provável e presumida da morte foi uma pneumonia, sendo certo que, na sua opinião, foi o trauma a que foi sujeito que favoreceu – e muito – o aparecimento da pneumonia.
Por fim, AL, médico de cirurgia no Hospital de Santo André, afirmou, analisados os documentos clínicos constantes dos autos, que a causa da pneumonia sofrida pelo falecido M foi o estado grave do doente, em concreto, as lesões causadas pelo acidente. E tão seguro se revelou da afirmação efectuada que sustentou que, num caso como o descrito, tal como aconteceu, também ele não teria solicitado a realização de autópsia. Como afirmou que o estado já debilitado do doente, associado às lesões sofridas com o acidente, agravou a probabilidade concretizada de contracção da pneumonia, infecção que, porém, se associa com frequência à existência de traumatismos como aqueles de que a vítima padecia em consequência do atropelamento.
Expostos os depoimentos prestados pelas testemunhas medicamente habilitadas a esclarecer a questão, conclui-se que a causa última da morte de M foi a pneumonia que contraiu, como se conclui que esta pneumonia foi determinada, maioritariamente, pelas lesões sofridas como consequência do embate, sendo certo que o seu historial clínico, contribuindo para um maior risco de contracção da infecção, não foi determinante na mesma, na medida em que a pneumonia, na sequência das lesões sofridas como consequência do embate, e ainda que não dispusesse de uma situação de saúde já debilitada, ocorreria com alta probabilidade (conforme, essencialmente, depoimentos precisos das testemunhas MV, N e A).
Assim, não pode afirmar-se, no caso, a verificação de qualquer quebra no nexo de causalidade entre as lesões causadas a M e a sua subsequente morte – aquelas foram a causa directa e necessária desta; o resultado produzido (morte) mostra-se, pois, causalmente ligado à conduta negligente do arguido, não consubstanciando aquela morte uma consequência imprevisível ou de verificação rara nem para a mesma tendo contribuído qualquer factor imprevisível ou raro, estes juridicamente irrelevantes.
Em suma, entre o comportamento do arguido e a morte da vítima existe uma relação de causalidade, directa e necessária, nos termos constantes da matéria de facto considerada provada, englobando o requisito da previsibilidade – o agente da conduta poderia prever que da mesma resultaria a ofensa na vida de uma pessoa, nenhum factor estranho, imprevisível ou raro (designadamente a aludida pneumonia) se tendo intrometido no decurso do nexo causal que se iniciou com a conduta ilícita e culminou na referida morte.
O Tribunal considerou, ainda, para a formação da sua convicção, os elementos clínicos de fls. 32 a 49 e de fls. 58 a 66, bem assim o parecer de fls. 245/246.
Outro aspecto da matéria de facto que evidenciou maior controvérsia em sede de audiência de julgamento respeitou à taxa de álcool apresentada pelo arguido.
Assim, transportado que foi para o HOSPITAL DE SANTO ANDRÉ, em Leiria, logo na sequência do acidente, porque padeceu, outrossim, de ferimentos graves, o arguido deu entrada nos serviços de urgência desse Hospital pelas 23h13m desse dia (cfr. informação prestada pelo Hospital de Santo André, na sequência de solicitação do Tribunal já após a reabertura da audiência de julgamento).
Analisado o Relatório n.º 2006/1302/CR-X, constante de fls. 85 dos autos, verifica-se que a amostra de sangue enviada no contentor referente ao arguido, com o n.º 2582, apresentou o seguinte resultado: 1,23g/litro.
Nenhum elemento susceptível de causar estranheza ou perplexidade, no que se reporta aos factos até aqui descritos.
Todavia, analisado tal relatório, verifica-se que a data e hora da colheita se reportam ao seguinte: dia 6 de … de 2006, pelas 12h45m.
Acontece que o acidente ocorreu no dia 5 de de 2006, pelas 21h40m, tendo o arguido dado entrada no Hospital pelas 23h13m desse dia.
Como explicar, então, o decurso temporal de mais de 12 horas verificado entre o momento do acidente e a hora a que o arguido deu entrada no Hospital e a hora da colheita?
Já o relatório efectuado pela Núcleo de Investigação Criminal da GNR, constante de fls. 139 a 144 evidenciava a existência de um lapso na indicação desta hora da colheita (conforme fls. 143/verso), na medida em que do mesmo consta que a colheita foi efectuada às 12h45m do dia 6 de .. de 2006, sendo esta indicação seguida da menção a diversa hora, em concreto, 00h45m.
Todavia, porque tal relatório não constitui, por si, meio de prova válido quanto a este aspecto da matéria de facto, solicitou-se tal esclarecimento ao Hospital. Nesta medida, o Serviço de Cirurgia 1, do Hospital de Santo André, S.A., informou que a colheita de sangue para determinação de alcoolemia para KIT específico para análise no Instituto de Medicina Legal foi efectuada às 00h45m do dia 6 de .. de 2006, de forma que a hora referida no impresso, preenchida pelo agente de autoridade que acompanhou a situação está errada, na medida em que onde se lê 12h45 deveria considerar-se 00h45m (cfr. informação prestada a fls. 454).
Este Serviço juntou, acompanhando tal informação, um relatório descritivo da hora inicial a que se principiou a colheita de sangue ao arguido, pelas 23h48m, como referido na aludida informação, pelo que se afigura razoável que a colheita com a finalidade específica de remessa ao Instituto de Medicina Legal tenha sido realizada pelas 00h45m, como informado.
Por outro lado, um outro facto permite considerar válida a existência de lapso na redacção constante do documento de fls. 84 (que originou, subsequentemente, a indicação da mesma hora no Relatório n.º 2006/1302/CR-X, de fls. 85).
Com efeito, o acidente ocorreu pelas 21h40m do dia 5 de .. de 2006. Como é sabido, o processo de eliminação do álcool é lento, variando o período de duração do álcool no sangue de acordo com vários factores, designadamente a quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas.
Não obstante o carácter lento de tal processo de eliminação, não resulta minimamente razoável que o arguido, mais de 12 horas após a ocorrência do acidente e, assim, mais de 12 horas após a alegada ingestão de bebidas alcoólicas, apresentasse a taxa de álcool de 1,23g/litro, quando, cerca das 23h48 apresentava uma taxa de álcool de 1,40g/litro, de acordo com o exame realizado no Hospital de Santo André, em Leiria.
Sendo certo que nenhum elemento constante dos autos permite afirmar, ainda que de forma minimamente viável, a existência de qualquer troca nas amostras de sangue recolhidas, tanto mais que a primeira recolha efectuada (sem que esta primeira recolha se destinasse a ser enviada ao Instituto de Medicina Legal para análise, mas antes a outras análises, incluindo alcoolemia) no Hospital de Santo André. S.A., pelas 23h48m, evidenciava já uma taxa de álcool de 1,40g/litro no sangue recolhido ao arguido.
Com base nestes argumentos, o Tribunal convenceu-se que o arguido circulava o ciclomotor em causa depois de ter ingerido bebidas alcoólicas que lhe determinaram uma taxa de álcool no sangue de 1,23g/litro, por ser este o resultado decorrente das análises toxicológicas de confirmação relativas à amostra de sangue em causa.
Por outro lado, importa referir que nenhuma irregularidade se reconhece ao exame de álcool efectuado ao arguido, com base na recolha de sangue.
Com efeito, da prova produzida decorre que o arguido não dispunha de condições físicas adequadas a efectuar o teste com base no ar expirado, sendo certo que o arguido confirmou que de nada se recorda após a sua chegada ao Hospital, situação que evidencia de forma clara a situação de saúde grave em que se encontrava, imprópria para realizar qualquer outra forma de análise do álcool no sangue (no mesmo sentido, veja-se o depoimento do agente participante, deslocado ao local após o evento, e que afirmou que apenas um dos feridos leves estava em condições de efectuar o teste em causa, necessariamente com exclusão do arguido, transportado de imediato para o Hospital; bem assim o depoimento da testemunha LA, bombeiro voluntário em Porto de Mós, que confirmou que, chegado ao local depois do acidente, o arguido era a pessoa que se encontrava em pior estado, por se mostrar inconsciente.
Sem embargo do exposto, o Tribunal não conseguiu apurar se foi a quantidade de álcool (1,23 g/l) de que o arguido era portador a causa causans do embate.
O que decorre dos autos e da prova produzida em audiência de julgamento é que só a desatenção do arguido à circulação de pessoas que se processava no local – uma vez não apurado que tenha sido a quantidade de álcool tenha funcionado como elemento causal do despiste – pode explicar, na óptica do Tribunal e da consideração da prova no seu conjunto, levando em conta as características da via, que o embate se tenha dado da forma que se deu, concluindo-se, pois, que o arguido, a dado momento, por desatenção, veio, numa recta, a enfaixar-se frontalmente contra pessoas que circulavam, a pé, pelo local – com efeito, outra explicação não se alcança, designadamente se considerarmos as características da via pela qual o arguido circulava (a rua apresentava-se, naquele local, como uma curva pouco acentuada, com boa visibilidade, embora inferior a cinquenta metros, nos dois sentidos de circulação, sem inclinação transversal; tem a largura total de 5,95 metros; e encontrava-se em regular estado de conservação e dispunha de iluminação pública, ainda que de baixa intensidade): se o arguido circulava pela faixa direita de rodagem, atento o seu sentido de trânsito, com as luzes do ciclomotor acesas e, mesmo assim, não se apercebeu, num local com boa visibilidade, da presença de pessoas na estrada, então resta concluir que seguia desatento, tanto mais que não resulta minimamente demonstrado nos autos que a vítima mortal ou as pessoas que a acompanhavam tivessem desenvolvido qualquer comportamento inopinado, antes que se limitavam a seguir, pelo seu pé, no circunstancialismo descrito. Outra explicação não se vislumbra, pois, para a ocorrência do acidente.
No que respeita ao facto de o arguido saber que o ciclomotor em causa se encontrava apreendido e do mesmo ter sido nomeado fiel depositário, não podendo com ele circular ainda no dia 5 de .. de 2006, estes aspectos da matéria de facto foram considerados provados com base na confissão livre, integral e sem reservas efectuada pelo arguido aquando da prestação de declarações.
Se o arguido estava ciente destes factos, então naturalmente que a autoridade policial competente e que procedeu à apreensão do veículo lhos transmitiu, já que, de outra forma, o arguido não poderia afirmar conhecer tal situação – nesse preciso sentido depôs, aliás, o agente de autoridade em causa, P cujo discurso não mereceu qualquer reparo por parte do Tribunal.
Assim, o auto de apreensão de fls. 72 traduz a realidade dos factos ocorridos, sendo certo que a sua valoração enquanto meio de prova não resulta prejudicada pela circunstância de não se ter logrado obter o respectivo original, na medida em que, não só o arguido confirmou os factos no mesmo relatados, como, outrossim, atestou que a assinatura do mesmo constante é a sua e feita pelo seu próprio punho.
O Tribunal considerou, por fim, as declarações do arguido para aferir da sua situação pessoal, familiar e profissional, as quais se revelaram, nesta matéria, sérias, sendo certo que os autos não contêm elementos que as contrariem, bem assim o certificado de registo criminal do arguido junto ao processo e ainda a informação relativa ao cadastro rodoviário do arguido, constante de fls. 150.
As características associadas à reputação do arguido decorreram dos depoimentos das testemunhas J, para quem o arguido trabalha há cerca de 11 anos; e L colega de trabalho do arguido e residente no mesmo local.
Os factos não provados decorreram, pois, da ausência de prova respectiva, ou tida por insuficiente, nos termos relatados.
*
3- Apreciação
3.1- Recurso do despacho proferida na sessão de 21/4/2009
3.1.1- A situação de facto é a seguinte –
Procedeu-se à audiência de julgamento com vista ao apuramento da responsabilidade criminal do arguido.
As inquirições e a inspecção ao local decorreram por seis sessões, na última das quais também se procedeu às alegações orais e designou data para a leitura da sentença.
Nesta data a M.ma Juiz em vez de proceder à leitura da sentença consignou em acta o despacho recorrido após o que foi designada nova data para a leitura da sentença.
Feitas as diligências pretendidas pelo despacho recorrido, a M.ma juiz deu novamente ao Ministério Público e ao advogado do arguido a palavra para novas alegações. Posteriormente reponderou a prova e proferiu a sentença.
3.1.2- O recorrente entende que proferidas as primeiras alegações e designada a primeira data para a leitura da sentença, estava vedado ao tribunal reabrir a audiência para produção de mais prova.
Apoia-se o recorrente no que conjugadamente resulta dos art.ºs 361/2, 369/2 e 371 do Código de Processo Penal.
O Ministério Público defende a tese oposta socorrendo-se do art.º 340º do mesmo diploma onde se estatui sem demarcação de balizas temporais que o tribunal procederá à produção de toda a prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade.
Quanto a nós a tramitação processual indicada pelo recorrente, que conjugadamente resulta dos art.ºs 360, 361, 365 a 371 e 372, corresponde ao processamento normal.
Mas o Código de Processo Penal também prevê um processamento eventual para situações fora da ocorrência normal.
Assim, o art.º 365/1 estatui que «Salvo casos de absoluta impossibilidade, declarada em despacho, a deliberação segue-se ao encerramento da discussão.
O por nós sublinhado deste preceito estava ao alcance do juiz ao constatar não estar suficientemente esclarecido e afigurar-se-lhe haver provas esclarecedoras, pelo que não procedeu à leitura da sentença antes ordenou a produção dessas provas. E fê-lo por despacho fundamentado, o despacho recorrido.
Seria até incongruente que o tribunal procedesse à leitura duma sentença que ele próprio sabia estar viciada por insuficiente indagação.
A situação criada é muito semelhante à prevista no art.º 358/1 onde também se fala «Se no decurso da audiência (…)», vindo comummente a ser entendido que esta audiência tanto pode ser aquela em que decorreu a produção da prova como a que foi designada para a leitura da sentença.
Obviamente que iniciada a leitura da sentença o tribunal terá de concluí-la no mesmo acto. E lida esgota-se o poder jurisdicional do tribunal.
Mas enquanto não der início à leitura da sentença estará sempre a tempo de ordenar a produção de novos meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à decisão da causa.
Produzida a nova prova dará de novo a palavra para alegações finais e encerrada a discussão reponderará à prova na sua globalidade decidindo em conformidade.
A conclusão a que chegamos é, pois, a de que o tribunal agiu correctamente, não tendo sido violados quer o princípio «in dubio pro reo» quer o princípio «ne bis in idem» invocados pelo recorrente.
Contrariamente ao alegado, nem o arguido foi julgado por duas diferentes vezes sobre os mesmos factos já que no momento não se encontrava sentenciado, nem se violou o princípio «in dubio pro reo» a ter presente pela M.ma Juiz no momento da sua ponderação e decisão finais sobre os factos.
Consequentemente o recurso é improcedente.
3.2- Recurso da sentença
O recorrente discorda da decisão de facto. Discorda que se desse por provados os pontos 7), 1ª parte do 8), 12), 13), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 20), 21), 23), 26) e 27).
Em resumo, quanto à sua condução não aceita que conduzisse sem atenção ao trânsito de veículos e peões; não aceita a presença do nexo causal entre as lesões sofridas pelo malogrado M e a sua morte, a quem pretende imputar por inteiro a culpa no acidente.
Quanto ao seu estado de embriaguez não aceita que se possa dar por provada a TAS referida na sentença com base no exame por análise sanguínea.
Quanto ao crime de desobediência que tivesse sido pessoalmente advertido de que incorreria em crime de desobediência se tripulasse o ciclomotor enquanto este estivesse apreendido; e que tivesse confessado os factos narrados de 23 a 27) do elenco factual provado.
3.2.1- Quanto aos factos [no que tange ao acidente propriamente dito] começaremos por dizer o seguinte -
3.2.1.1-A regra geral sobre a apreciação da prova testemunhal ou por declarações é a enunciada no art.º 127º segundo o qual esta é feita de acordo com as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador. Reza o artigo que «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
Livre convicção não significa apreciação arbitrária já que ao formular o seu juízo o tribunal terá de o fundamentar em exame crítico da prova ( art.º 374/2). Se este exame for racional então tal valoração não será infirmada.
Ou seja, o recorrente só logrará ver alterada a decisão de facto se as provas por si indicadas impuserem uma outra decisão. É isto que se colhe da alínea b) do n.º3 do art.º 412º ao exigir que o recorrente indique as concretas provas que “impõem decisão diversa da recorrida”.
O recorrente terá de demonstrar que a decisão recorrida é manifestamente errada e não só que a prova por si indicada também permite ou consente uma outra convicção.
Pelo que o tribunal de recurso ao reapreciar a prova procurará num primeiro momento saber se a apreciação feita pelo tribunal recorrido ainda é compatível com os critérios de apreciação devidos. Se o for então não alterará a decisão. Afinal quem gozou da imediação plena das provas foi o tribunal recorrido.
Isto vem a propósito da discordância do recorrente quanto aos pontos da decisão de facto donde se retira que circulava sem prestar a devida atenção ao trânsito no local.
O tribunal neste ponto formulou a seguinte convicção « (…) no que respeita à forma de circulação do ciclomotor conduzido pelo arguido, o tribunal estribou-se, essencialmente, nos depoimentos da testemunha P que assistiu ao embate e que afirmou que se apercebeu da presença de um ciclomotor por força das respectivas luzes e de, pelo menos, duas pessoas circulando no alcatrão da estrada, sendo certo que o veículo seguiu o seu percurso pela sua faixa de rodagem sem efectuar qualquer desvio ou travagem até embater nas pessoas. No mesmo sentido depôs a testemunha P (…)
Estas testemunhas, conhecidos tanto do arguido como da vítima mortal, apresentaram depoimentos credíveis (…) tendo efectuado uma descrição dos factos compatível com a rapidez e o carácter inesperado do evento, pelo que lograram (…) em particular no que concerne à forma de condução do arguido e à forma de circulação dos peões convencer o tribunal da correspondência com a realidade dos factos por si relatados.
(…) Com efeito, se as referidas testemunhas mencionaram que imediatamente antes do embate se aperceberam das luzes dum veículo sem que o mesmo tenha desviado por qualquer forma o seu trajecto nem para a esquerda nem para a direita até que se desse o embate, outra conclusão não se pode retirar – se o arguido circulava pela faixa direita de rodagem, não tendo efectuado qualquer desvio na forma de circulação que imprimia ao ciclomotor em causa, resta concluir que pelo menos o malogrado M circulava ainda na parte alcatroada da via pública».
Estas considerações fê-las o tribunal para concluir que tanto o arguido conduzia sem atentar no trânsito local como para concluir que o falecido também caminhava na faixa de rodagem por onde transitava o arguido em sentido oposto.
Se o local era dotado de iluminação pública [embora fraca]; se a curva oferecia visibilidade [embora inferior a 50 metros]; se o veículo atropelante não deixou rastos de travagem marcados no pavimento; se o embate foi frontal e o condutor não esboçou sequer uma qualquer manobra de recurso sendo a sua rota de colisão frontal com os peões -, não somos nós que teremos razões para alterar o decidido.
3.2.1.2- O nexo causal entre as lesões sofridas pelo peão M. e a sua morte não oferece dúvidas.
Nos termos do art.º 163º “O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre convicção do julgador. Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”.
Por força da disposição tem vindo a entender-se que os juízos periciais só podem ser afastados por prova igualmente pericial. Não sendo imposta uma contraprova é, pelo menos, necessário uma diversa valoração também pericial dos argumentos invocados pelo perito.
Os juízos que o tribunal não poderá contrariar são aqueles juízos decorrentes dos especiais conhecimentos da entidade que realizou a perícia dela incumbida nos termos dos art.ºs 152º e ss. do CPP.
São juízos não admissíveis nem contrariáveis por quem não domine esse saber específico, pelo que também o juiz só deles poderá afastar-se perante nova argumentação esclarecedora do perito ou perante nova peritagem doutro especialista na mesma área de conhecimento para o efeito nomeado como perito pelo tribunal (cfr. art.º 158º).
Esse nexo vem claramente enunciado no relatório pericial de fls. 245/246 onde o perito médico/legal concluiu nos seguintes termos - « M. foi vítima de atropelamento de que resultaram lesões traumáticas cranio-meningo-encefálicas (já de si graves), torácicas e do membro inferior esquerdo. Estas lesões evoluíram de modo pouco favorável, com deterioração do estado de consciência e posterior desenvolvimento de quadro infeccioso pulmonar e insuficiência respiratória que culminaram no seu falecimento.
Face ao exposto, é de admitir que a morte de M tenha sido devida às lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, torácicas e do membro inferior esquerdo descritas ( consecutivas ao atropelamento de que foi vítima) complicadas de quadro infeccioso pulmonar».
Este juízo nem sequer foi afastado pelos médicos inquiridos em julgamento, afirmando v.g. o Dr. A que em traumatismos craniano e torácico é frequente a pneumonia como causa da morte.
A causa imediata, verdadeira e própria, foi a pneumonia. Mas nos crimes comissivos por omissão consistindo esta na não observância dum dever objectivo de cuidado ou omissão da diligência devida, a causalidade que importa é a omissão desse dever.
A omissão deste dever é que constitui a «causa adequada» do resultado não querido pela lei [as lesões corporais/morte] sempre que segundo as regras da experiência comum esse resultado se não tivesse produzido se esse dever não tivesse sido omitido [no caso uma condução não imprudente].
Nos crimes negligentes por omissão dum especial dever de cuidado a causa que há-de interceder entre a omissão desse especial dever de cuidado e o resultado verificado [lesões corporais e morte] não é uma causalidade verdadeira e própria mas antes um seu equivalente normativo para os fins de imputação jurídica do resultado à conduta do omitente desse dever, no caso uma condução segura [art.º 3º/2 do CE].
O juízo de causalidade na omissão é um juízo que se concretiza em considerar que se a acção devida que foi omitida se tivesse verificado, o evento ou resultado não se verificaria.
No caso, a falta de cuidado e/ou a falta de atenção posta na condução equivale à omissão do dever de evitar resultados danosos para a integridade física dos outros utentes da estrada, independentemente doutros factores concorrentes à sua produção.
A concorrência de causas na produção dum certo resultado não é excludente da responsabilização criminal do agente duma delas. No caso o tribunal tanto considerou responsáveis pelo sinistro o condutor/arguido como o peão/ofendido.
A tónica da «causa adequada» reside na omissão pelo arguido duma condução prudente. Esta foi uma das causas concorrentes para o choque.
Sob o tema “Causalidade acidental” escreveu o Prof. Cavaleiro de Ferreira que “(…) a causa a que se segue outra causa que é daquela necessário efeito é ainda causa adequada da morte ( por exemplo a enfermidade ou infecção causada pelos ferimentos”.
De acordo com a perícia efectuada a morte foi devida às lesões traumáticas crânio/meningo/encefálicas, torácicas e do membro inferior, complicadas por quadro infeccioso pulmonar.
Não há assim que negar a relação de causa/efeito entre as lesões sofridas pelo sinistrado M. e o seu falecimento.
3.2.2- Quanto ao crime de condução em estado de embriaguez, o recorrente nega a legitimidade ao tribunal para valorar a detecção da TAS obtida pela análise à amostra sanguínea recolhida no hospital para onde o arguido fora de imediato transportado. Mas cremos que não lhe assista razão. Vejamos -
Nos termos do art.º 152º/1 do Código da Estrada os condutores e os peões que sejam intervenientes em acidente de trânsito estão obrigados a submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciados pelo álcool.
Em caso de acidente estabelece o art.º 156º que «1- Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool de ar expirado (...); 2- Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool».
Resulta assim, por um lado, que os condutores em vias públicas que intervenham em acidente de trânsito estão obrigados a submeter-se às provas estabelecidas na lei para a detecção de álcool no sangue; por outro, o médico do estabelecimento oficial de saúde para onde o sinistrado foi transportado também está obrigado a proceder à colheita de sangue com vista ao referido diagnóstico quando não tenha sido efectuado o teste por ar expirado.
Resulta ainda que a decisão de despistagem no local mediante teste por ar expirado fica ao prudente critério da autoridade policial interveniente em caso de condutor sinistrado.
Não depende, pois, do livre alvedrio do sinistrado transportado para estabelecimento público com vista à sua assistência médica a recolha da referida amostra sanguínea.
Contrariamente ao referido pelo recorrente, nem o exame de pesquisa de álcool no ar expirado era o único a praticar no caso nem estava dependente da sua anuência a recolha da amostra sanguínea para o efeito pretendido.
Encontrando-se o condutor gravemente ferido [o arguido foi transportado inconsciente para o hospital onde, no dizer do arguido, só por algum tempo recuperou a consciência para logo depois voltar a perdê-la…] estava no prudente critério das autoridades policiais intervenientes efectuar ou não o teste por ar expirado.
A nosso ver prudentemente foi o arguido sem mais transportado para o hospital. Tendo-se optado, face ao seu grave estado de saúde, pela não realização do teste através de ar expirado, o clínico do hospital público para onde fora transportado estava para o efeito obrigado à recolha da amostra sanguínea.
Havendo preceito específico (art.º 156 do CE) o recorrente não pode invocar com êxito em favor da sua tese o art.º 152/3 do mesmo diploma. Como é despropositada, embora também indiferente, a invocação do Regulamento de Fiscalização de Condução sob a Influência do Álcool aprovado pela Lei 18/2007 de 17/5 já que a sua publicação é posterior aos factos.
A detecção de álcool no sangue dos condutores através de análise sanguínea não constitui qualquer prova proibida pelos preceitos constitucionais invocados pelo recorrente ou pelo art.ºs 32º/8 da CRP e art.º 126º do CPP.
O arguido alega que a análise ao sangue constitui prova proibida pelos art.ºs 32º/8 da CRP e art.º 126º do CPP traduzindo-se, além do mais, numa agressão física à sua pessoa.
Mas carece de fundamento nesta alegação já que nenhum direito é absoluto, prevendo a Constituição que a lei possa restringir os direitos, liberdades e garantias desde que tais restrições se limitem ao necessário para salvaguarda doutros direitos ou interesses também constitucionalmente protegidos.
Ora a intervenção policial tanto na sua função de fiscalização do trânsito como na de autoridade de polícia criminal é uma acção de prevenção e cautelar de recolha de provas doutras violações algumas também contra a liberdade, o património, a vida e a integridade física quer do agente fiscalizado quer dos outros utentes da estrada.
Daí a previsão legal e a possibilidade de fiscalização de qualquer condutor que opte pela condução na via pública.
No caso da condução sob a influência do álcool o agente tanto pode cometer uma mera contra-ordenação estradal como o crime de condução em estado de embriaguez. Tudo depende da taxa de álcool de que for portador. E há um interesse público imediato em sabê-lo.
Como tal o agente está sujeito quer às medidas de fiscalização previstas no Código da Estrada quer às medidas cautelares quanto aos meios de prova previstas no CPP, recaindo sobre si o dever de se sujeitar às diligências de prova especificadas na lei efectuadas pelas entidades competentes [art.º 61/3 alínea c)], não podendo eximir-se à realização dos exames necessários (art.º 172º).
O exame de pesquisa de álcool no sangue destina-se no caso à recolher duma prova rapidamente perecível e por isso de carácter urgente.
Assim, a sua imediata sujeição a exame pericial mostra-se adequada à salvaguarda desses bens fundamentais e ao fim da descoberta da verdade visada no processo.
Embora a regra seja a liberdade e a restrição a excepção, esta também está constitucionalmente consagrada em obediência ao princípio da proporcionalidade na limitação recíproca dos direitos de cada um.
Por este breve excurso se vê que a intrusão na liberdade e na integridade física é permitida dentro de certos limites, como no caso dos autos, pelo que não é correcto o arguido vir alegar o uso de prova proibida resultante dos exames serológicos efectuados nas conhecidas condições em que se obteve a colheita de sangue para o efeito.
2.3- Quanto ao crime de desobediência, também não há razão para alterar a decisão de facto. Para além do já dito sobre esta há ainda a referir que não deve desvalorizar-se a prova indiciária embora seja de com ela lidar com cautelas.
O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa como em prova indiciária de que se infere o facto probando não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova indiciária lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária.
As presunções judiciais não são meios de prova mas raciocínios lógico/mentais firmados em regras de experiência de que o julgador se serve para a descoberta da verdade. Apesar de nem sempre resultar explícita a sua intervenção, elas constituem um mecanismo necessário para levar o tribunal a afirmar a convicção de factos controvertidos.
O art.º 127º do CPP não proíbe o uso desses raciocínios lógicos nem a lei processual penal faz qualquer referência a requisitos especiais no uso da prova indiciária.
O arguido confessou que sabia estar o veículo apreendido, dele ter sido nomeado como depositário e estar-lhe legalmente vedado conduzi-lo.
Por sua vez a testemunha P (soldado da GNR que procedeu a 16/9/2005 à apreensão do veículo e nomeou o arguido como seu depositário) referiu na audiência que na altura o auto foi lido ao depositário.
Acresce que na ocasião este assinou o auto, do qual recebeu duplicado. Deste consta (a negrito) que «Fica o depositário intimado que a sua utilização o fará incorrer em crime de desobediência e a alienação no crime de furto».
Não pode assim pretender-se que perante isto se altere a decisão de facto no sentido de que o arguido desconhecia que incorreria em crime de desobediência se utilizasse o veículo apreendido no seu transporte pessoal.
A apreensão foi efectuada por quanto ao veículo não haver seguro (obrigatório) de responsabilidade civil (Dec-Lei nº 522/85 de 31/12) mas também por ter tido intervenção em acidente de viação.
Nos termos do n.º6 do art.º 162º do Código da Estrada e do art.º 32/2 do Dec-Lei nº 522/85 a apreensão é de manter enquanto não se encontrarem satisfeitas as indemnizações devidas decorrentes da sua utilização.
Não é, pois, por falta da cominação prevista no n.º2 do referido art.º 162ºdo Código da Estrada que a apreensão careceria de valia.
3.4.1- Finalmente os aditamentos propostos à decisão de facto [v.g. que esteve consciente no hospital por duas horas; o falecido tinha 82 anos de idade; já sofrera de AVC; fora intervencionado a tumor intestinal; e sofria de doença pulmonar; que por lapso não foi efectuada a autópsia, etc.] para além de não corresponder a factos alegados pelo arguido na sua contestação (cfr. fls. 304) não se impõem já que não interferem com a condenação do arguido.
Admitimos que teriam algum relevo em sede de responsabilidade civil [v.g. quanto ao apuramento dos danos patrimoniais] mas esta não foi sequer colocada no processo.
Os recursos não são modos de refinamento das decisões judiciais; são remédio a aplicar a decisões erradas com repercussão na decisão de direito. Mas o recorrente nem sequer pôs em crise a medida das penas aplicadas se tivesse de ser condenado. E note-se que o tribunal ponderou a culpa concorrente do sinistrado/falecido.
De resto restaria ainda saber se todos os propostos aditamentos têm suporte em prova bastante -, v. g. o arguido esteve consciente no hospital durante duas horas(?).
3.4.2- A sentença não padece do invocado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ( art.º 410/2 alínea a) do CPP) .
O referido vício haveria de resultar do texto da sentença sem o lançar de mão de outros elementos constantes dos autos, excepção feita à prova tarifada. O provado revela-se bastante para a decisão de direito proferida.
Mas altera-se o ponto 27) do provado por manifestamente incorrecto e pouco cuidado. A sua redacção será a seguinte:
«27) O arguido confessou não ter seguro do veículo pelo que lhe fora apreendido por também com ele ter tido um outro acidente de viação e que na ocasião soldado da GNR dele o nomeara como depositário advertindo-o que não o poderia conduzir».
A fundamentação do mais constante dos pontos 23) a 26) é a por nós supra referida em II/2.3 credibilizando-se integralmente o depoimento da testemunha Paulo Jacinto ( soldado da GNR que o nomeara depositário do veículo) que testemunhou ter lido ao arguido o auto em que o constituíra depositário.
III-
Decisão –
Termos em que se altera a redacção do ponto 27) do provado para o que se acaba de deixar consignado, mas tendo-se os recursos por improcedentes.
Custas pelo recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 4 UCs .
Coimbra,