Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
308/12.2T3AND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: LEI ANTIGA
LEI NOVA
NATUREZA DA INFRACÇÃO
CRIME SEMI-PÚBLICO
CRIME PARTICULAR
PROCESSO SUMARISSIMO
REQUERIMENTO
MINISTÉRIO PÚBLICO
APLICAÇÃO DE SANÇÃO
DECISÃO POR DESPACHO JUDICIAL
Data do Acordão: 03/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA (ANADIA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 113.º E 117.º DO CP; ARTIGOS 48.º, 49.º, 50.º, 392.º, N.º 1, 394.º, 395.º, N.º 3, E 398.º, DO CPP
Sumário: I - A lei nova que altera a natureza do crime, de semi-público para particular, a menos que o processo ainda esteja em fase de inquérito e a acusação pública ainda não tenha sido deduzida, não assume qualquer relevância, por consubstanciar uma alteração de procedimentos que em nada afecta os direitos do arguido - o ofendido manifestou o desejo de perseguição criminal e o MP detinha, quando deduziu acusação, legitimidade para o efeito -, não sendo, por isso, de aplicar ao caso o disposto no n.º 4 do artigo 2.º do CP.

II - Em conformidade, se, no domínio da lei antiga, o crime era semi-público e o MP requereu, legitimamente, a aplicação de pena ao arguido em processo sumaríssimo - requerimento que, nos termos do disposto nos artigos 395.º, n.º 3, e 398.º, ambos do CPP, corresponde materialmente a uma acusação -, sanção que veio a ser imposta por despacho judicial, a entrada em vigor de nova lei, antes do trânsito em julgado daquela decisão, convertendo o ilícito penal em semi-público, não retira validade e eficácia aos referidos actos processuais.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

 

 

I - RELATÓRIO

 

O Ministério Público veio interpor recurso do despacho, de fls. 103/106, que declarou extinto o procedimento criminal movido contra a arguida A..., por falta de legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação pelos factos imputados à mesma (em face da Lei n.º 19/2013, de 21 Fev., que alterou a natureza do crime de furto simples) e, deu sem efeito a sua condenação.

 

A razão da sua discordância encontra-se expressa nas conclusões da motivação de recurso onde refere que:

1. Nos presentes autos, a arguida A...foi condenada pelo crime de furto simples, na forma tentada, após requerimento do Ministério Público para aplicação de sanções em processo sumaríssimo. Sucede que, por despacho de fls. 103-106, a Mma. Juíza a quo declarou extinto o procedimento criminal atenta a entrada em vigor da Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, que alterou a natureza do crime em causa, entendendo ser este o regime mais favorável a aplicar à arguida, e consequentemente deu sem efeito a condenação proferida, decisão que discordamos.

2. Face à entrada em vigor da Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, o crime de furto passou a ter natureza particular verificadas as circunstâncias previstas no art. 207.º, n.º 2, do CP. Sucede que, quando o Ministério Público requereu a aplicação de sanções em processo sumaríssimo, tal lei não se encontrava em vigor (o que ocorreu a 23.03.2013), pois data de 26.02.2013. Verifica-se que tal requerimento é admitido pela Mma. Juíza a 03.04.2013, tendo a arguida declarado expressamente não se opor, motivando a decisão de valor equivalente a sentença condenatória proferida a 14.05.2013, actos praticados já após a entrada em vigor do citado diploma.

3. Resulta então que estamos perante uma lei nova que adita uma norma de natureza processual material, não sendo por isso de aplicar o regime de aplicação da lei no tempo, mais favorável à arguida, prescrito no art. 2.° do CP, mas antes, as normas constantes do art. 5.º do CPP.

4. Desta forma, não poderia, nunca, a Mma. Juíza a quo entender que, em face da aplicação de uma lei mais favorável, o procedimento criminal se deverá extinguir, porque mais benéfico para a arguida. Isto porque a nova lei não agrava de forma nenhuma a posição desta, pelo contrário, exige mais por parte da ofendida, designadamente a sua constituição como assistente e a dedução de acusação particular. Por seu lado, o despacho recorrido prejudica a ofendida que, atempadamente, apresentou a sua queixa e participou diligentemente em todos os actos processuais.

5. Ainda, como decorre do art. 5.º, n.º 2, al. b), do CPP, a alteração legislativa não poderá colocar em crise a harmonia e unidade dos actos processuais. Assim sendo, como poderia a ofendida ter deduzido acusação particular (ainda que se tivesse constituído assistente)? De onde decorria a obrigatoriedade de se constituir assistente? Ora, a solução perfilhada no despacho recorrido coloca em causa a unidade processual, beneficiando injustificadamente a arguida, acusada de um crime de furto que mantém na íntegra todos os seus elementos objectivos e subjectivos, e prejudicando sobejamente a ofendida.

6. Cumpre, desta forma, concluir que a solução perfilhada pela Mma. Juíza a quo não é correcta. É nosso manifesto entendimento, salvo o devido respeito, que seria decidindo nos termos requeridos pelo Ministério Público a fls. 92-94, designadamente, notificando a ofendida para se constituir assistente.

7. Não desconhecemos que, nesta matéria, a jurisprudência diverge. Por um lado, um entendimento será o da manutenção in totum da legitimidade do Ministério Público. Por outro lado, outra solução será a de dar oportunidade ao lesado/ofendido para apresentar queixa (quando o crime passa de público para semi-público, devido a alterações legislativas), ou para se constituir assistente (quando o crime passa a assumir natureza particular).

8. Perfilhamos este segundo entendimento, já que será a ofendida a principal interessada no desfecho dos autos. E sobretudo no caso em que o crime passa a ter natureza semi-pública, é esta quem deverá decidir se quer, ou não, que o procedimento criminal avance. Por outro lado, é, das duas, a solução que mais beneficia o arguido, exigindo uma actuação por parte da ofendida.

9. No presente caso, o requerimento para aplicação de sanções em processo sumaríssimo foi apresentado ao abrigo da lei anterior vigente, pelo que, estando a fase de inquérito já encerrada, consideramos dever manter-se tal despacho, declarar-se nulos todos os actos subsequentes (porque praticados ao abrigo da nova lei) e notificar-se a ofendida para, e apenas, constituir-se assistente. Com efeito, parece-nos ser esta a solução mais acertada, pois que, para além da argumentação lógica despendida, é esta que permite que a unidade do sistema jurídico não seja quebrada, sob pena de se exigir a constituição de assistente e a dedução de uma acusação particular em momento posterior à dedução do despacho de encerramento de inquérito pelo Ministério Público.

10. A Mma. Juíza a quo violou o disposto nos arts. 5°, 49.° e 50.° do CPP.

Termos em que,

Deve o despacho de fls. 103-106 ser revogado e substituído por outro que determine a manutenção do procedimento criminal, mediante a notificação da ofendida para se constituir assistente e declarar concordar (ou não) com o requerimento de aplicação de sanções em processo sumaríssimo proferido pelo Ministério Público, declarando nulo todo o processado após a apresentação de tal requerimento por ser praticado ao abrigo da lei nova.

*

A arguida pronunciou-se no sentido de ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se, assim, a decisão recorrida.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, subscrevendo os fundamentos invocados pela Magistrada do Ministério Público recorrente.

Os autos tiveram os vistos legais.

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 417º do CPP, a arguida respondeu, reiterando os fundamentos da sua resposta ao recurso.

***

 

II- FUNDAMENTAÇÃO

É do seguinte teor o despacho recorrido (por transcrição):

“A fls. 92 a 94 veio a Exmª Magistrada do Ministério Público requerer que seja declarada nulidade insanável, invalidando-se todos os actos posteriores ao requerimento de fls. 53 a 57 (o qual entende poder aproveitar-se mediante a prestação de concordância pelo assistente, caso este se constitua).

Alega, para tanto, que por despacho proferido a 26.02.2013, o Ministério Público requereu a aplicação de sanções em processo sumaríssimo à arguida A..., pela prática de um crime de furto, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, nº 1, 23º, 26º e 203º, nº 1, do Código Penal, perpetrado no estabelecimento Lidl, em Anadia.

Acrescenta que entretanto entrou em vigor a Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, que acrescentou ao artigo 207.º do Código Penal o n.º 2, que alterou a natureza do crime imputado à arguida, o qual passou de semi-público para particular.

Defende que o processado não poderá manter-se, atenta a falta de legitimidade do Ministério Público, devendo notificar-se o ofendido para se constituir assistente e, caso o faça, para manifestar a sua concordância com o processo sumaríssimo.

O ofendido, notificado para se pronunciar, nada disse.

Por sua vez, a arguida, também notificada para se pronunciar, veio dizer que a alteração da natureza do crime pelo qual vem acusada apenas pode ter por efeito o arquivamento dos autos, por aplicação da lei mais favorável.

Caso assim não se entenda, não deverá ser declarada nulidade, por mão ter sido praticado qualquer acto ferido de tal vício.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos presentes autos de processo sumaríssimo, a arguida A... foi condenada pela prática de um crime de furto, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, nº 1, 23º, nº 1, 26º e 203º, nº 1, do Código Penal.

O artigo 207º do Código Penal, em vigor à data da prática dos factos dispunha que “No caso do artigo 203º e do nº 1 do artigo 205º, o procedimento criminal depende de acusação particular se:

a) O agente for cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2º grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges; ou

b) A coisa furtada ou ilegitimamente apropriada for de valor diminuto e destinada à utilização imediata e indispensável á satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa mencionada na alínea a)”.

Todavia, no dia 23 de Março de 2013, após a data da prática dos factos imputados à arguida, e após o requerimento do Ministério Público para a aplicação à arguida de sanções em processo sumaríssimo, entrou em vigor a Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro, a qual introduziu algumas alterações ao Código Penal.

Com a alteração introduzida pela referida lei ao artigo 207º do Código Penal, este passou a dispor de um nº 1, correspondente ao anterior corpo e alíneas, tendo sido acrescentado o nº 2 à referida norma, nos termos da qual “No caso do artigo 203º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtracção de coisas móveis expostas de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas”.

Esta alteração legislativa conferiu natureza particular ao furto previsto no artigo 203º, nº 1, na situação prevista no artigo 207º, nº 2, do Código Penal, que é precisamente o caso dos autos.

Efectivamente, a identificada arguida está acusada:

- da prática de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal;

- a conduta ocorreu no estabelecimento comercial Lidl em Anadia;

- às 18 horas e 20 minutos, durante o período de abertura ao público;

- da subtracção de coisas móveis de valor diminuto;

- os produtos foram recuperados sem danos;

- a arguida actuou isoladamente.

Deste modo, estamos perante uma situação de concorrência de leis, sendo que o Código Penal prevê este tipo de situações no seu artigo 2º.

Nos termos do nº 1 dessa disposição legal consagra-se o princípio da não retroactividade da lei penal, segundo o qual as penas são determinadas pela lei vigente no momento da prática dos factos. Esta é a regra geral.

No entanto, esta regra tem excepções, pois que quando a retroactividade da lei penal, em vez de prejudicar, beneficia o arguido, cessam os fundamentos subjacentes àquela regra e daí as excepções que a lei formula nos nºs 2, 3 e 4 daquele artigo.

De facto, diz o nº 4 do artigo 2º do Código Penal que quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente.

A irretroactividade das leis penais está constitucionalmente estabelecida no nº 4 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, quando estatui que “ninguém pode sofrer penas ou medidas de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”.

Isto significa que antes de 23 de Março de 2013 (data da entrada em vigor da Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro), a arguida seria punida pela prática do crime de que vem acusada.

A partir de 23 de Março de 2013, o Ministério Público deixou de ter legitimidade para o procedimento criminal movido contra a arguida.

Na verdade, o crime imputado à arguida tem agora a natureza particular, o que significa que para que haja procedimento criminal é necessário o ofendido constituir-se assistente e deduzir acusação particular.

No caso concreto, a ofendida não se constituiu assistente, nem foi deduzida acusação particular, o que significa que, em face da lei actual, o procedimento criminal não pode prosseguir por falta de legitimidade do Ministério Público (artigos 48º e seguintes do Código de Processo Penal).

Concluímos, pois, que a lei nova é mais favorável à arguida e, como tal, tem que ser aplicada.

Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.01.2006 (disponível em www.dgsi.pt) “o processo iniciado sob a égide da lei antiga mais intensa no seu iter persecutório, deve ser ilaqueado e o procedimento criminal ser declarado extinto. Poder-se-á dizer que esta solução fere os interesses, a tranquilidade e a consciência do titular do interesse jurídico-penal protegido, que sob o abanico da anterior legislação tinha logrado prosseguir com a perseguição dos eventuais infractores desses interesses e que, desta forma deixa de poder persegui-los, ao não ter accionado atempadamente o mecanismo da queixa”.

Admitimos que assim possa ser. Todavia, a lei nova apresenta-se mais favorável e deverá ser aplicada (também neste sentido Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29.11.2006 e 23.05.2007, disponíveis em www.dgsi.pt).

Em face do exposto, é nosso entendimento que no caso concreto não estamos perante uma nulidade insanável, como pretende o Ministério Público, e subsequente invalidação dos actos praticados posteriormente.

De facto, trata-se de uma situação de aplicação da lei no tempo, que só permite a aplicação do regime mais favorável à arguida.

Pelo exposto, o tribunal decide:

1. Declarar extinto o procedimento criminal movido contra a arguida, por falta de legitimidade do Ministério Público em face da Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro, para deduzir acusação pelos factos imputados à mesma;

2. Dar sem efeito a sua condenação;

Notifique.

Oportunamente arquive.”

***

APRECIANDO

Atendendo ao texto da motivação e respectivas conclusões, no presente recurso vem suscitada a questão da legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal; concretamente, saber se num processo iniciado por uma infracção de natureza semi-pública, que a lei nova converte em particular, já depois de o Ministério Público ter deduzido acusação, a lei nova se repercute na legitimidade deste para promover o processo.

*

Com interesse para a decisão há a considerar o seguinte desenvolvimento processual:

- pela prática (em 11.5.2012) de um crime de furto simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, n.º 1, 23º e 203º, n.º 1, todos do Código Penal, o Ministério Público requereu, em processo sumaríssimo, nos termos do artigo 392º e ss do CPP, que fosse aplicada à arguida A... a pena de 40 dias de multa, à taxa diária de 5€, o que perfaz 200€, substituída pela pena de admoestação prevista no artigo 60º do CP;

- este requerimento está datado de 26.2.2013;

- e, foi notificado à arguida (art. 396º, n.ºs 1, al. b) e 2 do CPP), a qual aceitou a aplicação da sanção proposta (fls. 75 e 76);

- por despacho proferido em 14.5.2013, a Mmª Juiz condenou a arguida na pena que havia sido proposta pelo Ministério Público, tendo designado data para a aplicação da admoestação à arguida;

- notificada da sentença proferida, a Magistrada do Ministério Público, face à alteração da natureza do crime em causa, de semi-público a particular, com a redacção introduzida ao n.º 2 do artigo 107º do CP pela Lei n.º 19/2013, de 21 Fev., por entender que o processado não se podia manter, atenta a falta de legitimidade do Ministério Público para a promoção do presente processo, correspondendo tal vício à nulidade insanável prevista no artigo 119º, al. b) do CPP, requereu que fosse declarada a arguida nulidade, com a subsequente invalidade dos actos posteriores ao seu requerimento de proposta da sanção, de fls. 53/57, o qual se poderá aproveitar caso o ofendido se constitua assistente e manifeste a sua concordância com tal requerimento;

- notificados o ofendido e a arguida, apenas a arguida se pronunciou no sentido de que a alteração da natureza do crime pelo qual a arguida foi condenada apenas poderá ter por efeito o arquivamento dos autos ou, caso assim se não entenda, ser desatendida a arguição de nulidade pelo MP e designado novo dia para a aplicação da admoestação;

- veio então a ser proferido o despacho recorrido, nos termos do qual a Srª Juiz, perante a alteração da natureza do crime imputado à arguida, e com o fundamento na aplicação do regime mais favorável, “declarou extinto o procedimento criminal movido contra a arguida, por falta de legitimidade do Ministério Público (em face da Lei n.º 19/2013, de 21 Fev.) para deduzir acusação e, deu sem efeito a sua condenação”.

*

O requerimento do Ministério Público formulado nos termos do artigo 394º corresponde materialmente a uma acusação (cfr. artigos 395º, n.º 3 e 398º).

Importa, pois, saber se o Ministério Público, naquela data (26.2.2013), tinha legitimidade para deduzir acusação relativamente ao crime de furto simples em causa.

A resposta é necessariamente positiva. Com efeito,

O crime de furto simples por que a arguida foi acusada tinha natureza semi-pública – n.º 3 do artigo 203º do Código Penal – e, dependendo o procedimento criminal de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo (art. 49º, n.º 1 do CPP), o que aconteceu dentro do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 115º do mesmo diploma.

Nos termos do artigo 113º, n.º 1 do CP, tem legitimidade para apresentar a queixa o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação e, de acordo com o n.º 3 do artigo 49º do CPP «A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais».

Como é sabido, o direito de queixa consiste numa declaração de vontade do seu titular, e destina-se a desencadear o procedimento criminal, sendo que nos crimes semi-públicos (e nos crimes particulares), a queixa é uma condição essencial de procedibilidade; se não houver queixa o processo não pode prosseguir.

Estabelece o n.º 1 do artigo 262º do CPP que “O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação”. E, cabe ao MP dirigir o inquérito, enquanto titular da acção penal, competindo-lhe, assim, praticar os actos e assegurar os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no n.º 1 do citado art. 262º - art. 267º do CPP.

 

No caso vertente, dada a não oposição da arguida, veio esta a ser condenada na pena proposta pelo Ministério Público.

Assim, o despacho proferido em 14.5.2013 vale como sentença condenatória e não admite recurso ordinário – artigo 397º, n.º 2 do CPP (na redacção dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 Fev.).

Como verificamos, na anterior redacção constava transita imediatamente em julgado.

Tentando esclarecer o alcance desta alteração, na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII, que esteve na origem da citada Lei n.º 20/2013, diploma que alterou o CPP, disse-se que “No processo sumaríssimo importava clarificar, devido à admissibilidade de arguição de nulidades, que o despacho judicial que aplica a sanção não admite recurso ordinário, embora só transite após ter decorrido o prazo de arguição de nulidades”.

 

Acontece que, com a alteração introduzida ao Código Penal pela Lei n.º 19/2013, de 21 Fev., que entrou em vigor em 23 de Março de 2013, foi aditado o n.º 2 ao artigo 207º do CP, com a seguinte redacção:

«2- No caso do artigo 203º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtração de coisas móveis expostas de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas.».

 

Os factos praticados pela arguida ocorreram neste circunstancialismo.

Ora, após a condenação da arguida, mas dentro do prazo em que era possível arguir nulidades, entendendo o Ministério Público que face à alteração da natureza do crime praticado pela arguida, deixou de ter legitimidade para a promoção do processo, veio arguir a nulidade insanável prevista no artigo 119º, al. b) do CPP e requerer que o ofendido fosse notificado para se constituir assistente e dizer se se não opunha ao requerimento apresentado nos termos do artigo 394º do CPP. Fundamentos que reiterou no recurso ora interposto.

Entendemos que não assiste razão ao recorrente.

 

Nos termos da citada al. b), constitui causa de nulidade absoluta geral, a ausência de promoção do processo penal por parte do Ministério Público, pressupondo que exista promoção de outra entidade (por exemplo, da autoridade de polícia criminal).

Na situação em causa, a falta de promoção do processo pelo Ministério Público só poderia respeitar à falta do requerimento para aplicação de pena em processo sumaríssimo.

Porém, tal requerimento foi deduzido antes da alteração introduzida pela Lei n.º 19/2013, pelo que dependendo o crime denunciado apenas de queixa do ofendido, o Ministério Público detinha legitimidade para acusar.

Terá, assim, de improceder a arguida nulidade.

 

Como se decidiu no acórdão desta Relação, de 15-5-2013, in www.dgsi.pt «A lei nova que altera a natureza do crime, de semi-público para particular, a menos que o processo ainda esteja em fase de inquérito e a acusação pública ainda não tenha sido deduzida, não assume qualquer relevância, por consubstanciar uma alteração de procedimentos que em nada afecta os direitos do arguido – o ofendido manifestou o desejo de perseguição criminal e o MP detinha, quando deduziu acusação, legitimidade para o efeito – não sendo, por isso, de aplicar ao caso o disposto no n.º 4 do artigo 2º do CP».

 

Em consequência, mantêm-se válidos todos os actos posteriores ao requerimento do MP para a aplicação da sanção em processo sumaríssimo, incluindo a sentença condenatória.

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III- DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação, embora com fundamentos e alcance jurídico diversos dos invocados pelo recorrente, revogam o despacho recorrido, mantendo-se o despacho proferido em 14-05-2013.

Sem tributação.
                                                                 *****                                                                         

Coimbra, 12 de Março de 2014
(Elisa Sales - relatora)
(Paulo Valério - adjunto)