Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
140/13.6GTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
ERRO MÁXIMO ADMISSÍVEL
EMA
LEI INTERPRETATIVA
LEI NOVA
LEI MAIS FAVORÁVEL
Data do Acordão: 02/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTA COMBA DÃO (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 2.º, N.º 4, E 292.º, DO CP; ARTIGO 170.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CE; ARTIGO 13.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - A alínea b) do n.º 2 do artigo 170.º do Código da Estrada - redacção dada pela Lei 72/2013, de 03-09 - tem carácter inovatório, e não interpretativo, no domínio da determinação da condução sob o efeito do álcool, porquanto não existia anteriormente norma semelhante ou que pudesse merecer interpretação no sentido de os erros máximos admissíveis deverem ser objecto de desconto no momento da imputação dos factos integradores de contra-ordenação ou de crime.

II - A polémica preexistente à alteração legislativa agora efectuada, com duas posições jurisprudenciais antagónicas - uma no sentido de que aos resultados obtidos deveria ser deduzido a margem de erro e outra no sentido contrário -, não se centrou em diferente interpretação de preceito legal que consentisse a solução de deduzir o erro máximo admissível, mas em diferente interpretação do princípio de direito probatório in dubio pro reo.

III - Assim, não pode estar em causa a aplicação retroactiva da lei interpretativa por se integrar na lei interpretada nos termos do artigo 13.º do Código Civil, mas antes a aplicação retroactiva de lei nova de conteúdo mais favorável ao arguido nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, emanação do artigo 29.º, n.º 5, da CRP.

IV - E a lei nova tem conteúdo mais favorável ao arguido, por envolver a diminuição do grau de ilicitude do facto, degradando a responsabilidade criminal em responsabilidade contra-ordenacional ou morigerando o doseamento das penas.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo sumário 140/13.6GTVIS do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão o arguido A... , devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento sob a imputação de haver cometido um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença condenando o arguido pela autoria do citado crime, na pena principal de 80 dias de multa à taxa diária de 7,50 euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de sete meses e quinze dias.

Inconformado com esta decisão dela recorreu o arguido, rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:

1. Nas tarefas de determinação das medidas das penas (principal e acessória) cominadas, o Tribunal a quo não ponderou adequadamente as atenuantes resultantes da discussão da causa.

2. O arguido, após ter sido interceptado por uma brigada da Guarda Nacional Republicana na sequência de uma fiscalização de rotina para detecção da presença de álcool no sangue, sujeito ao teste quantitativo no sentido de apurar a sua TAS, apresentou uma taxa de 1,63 g/l de sangue.

3. Mostrando-se, consequentemente, preenchido o elemento objectivo do tipo legal aplicável, o arguido apenas fez uma ressalva relativamente às circunstâncias subjectivas da conduta criminosa, pois reconheceu haver ingerido bebidas alcoólicas, mas sem ter degustado qualquer alimento sólido; que, quando tomou a decisão de conduzir o veículo automóvel na via pública se sentia em condições de o fazer, sem colocar em perigo os outros utentes da estrada, além de ter admitido a hipótese e ter a consciência de que poderia acusar um valor de TAS próximo do mínimo legal, porém jamais o valor que lhe foi detectado, como dito.

4. Em suma, mal andou o Tribunal recorrido quando não considerou tal confissão dos factos, denotando colaboração com a justiça e vontade na descoberta da verdade material e, pelo contrário, concluiu incorrectamente que o mesmo entrou em contradição nas suas próprias declarações e com as declarações da testemunha Leandro Mendes, algo que claramente não sucedeu.

5. Concorda o recorrente com a afirmação do Tribunal sindicado, quando consignou que o grau da ilicitude dos factos por si perpetrados se mostrou "mediano'?e que agiu com dolo necessário e não com dolo directo.

6. Na operação de determinação da medida concreta da pena principal, além das circunstâncias elencadas em 4. e 5., impunha-se ao Tribunal recorrido atentar, ademais, nas finalidades de prevenção geral que, não obstante serem altas, não podem ser tidas por elevadíssimas, pois que existem certamente condutas penalmente puníveis com um carácter significativamente mais censurável.

7. Bem como, ao nível da prevenção especial, que o recorrente não tem antecedentes criminais, sendo que conduz veículos a motor há mais de 25 anos.

8. Com a sua conduta não provocou qualquer acidente de viação (nem nunca esteve envolvido em qualquer situação do género).

9. Colaborou com a justiça e demonstrou arrependimento, tendo mencionado que a situação havia sido única, pontual e irrepetível.

10. Se mostra um individuo inserido familiar, social e profissionalmente.

11. Tem parcos rendimentos, e daí que a sua situação económico-financeira não possa considerar-se desafogada.

12. Necessita, imperiosamente, da carta de condução para o exercício da sua profissão de motorista.

13. A TAS que acusou, não sendo muito próxima do limite legalmente previsto, também não se poderá considerar bastante elevada, tendo inclusivamente em consideração que o arguido não ingeriu qualquer alimento sólido aquando do consumo de bebidas com teor alcoólico e essa circunstância inflacionou o resultado do teste.

14. Também não ajuizou adequadamente o Tribunal a quo quando considera que o facto de o arguido ser motorista de passageiros de profissão seria necessariamente agravante a ter em conta na medida da pena, pois não obstante ser uma realidade que os motoristas deveriam ter uma maior consciência do risco e perigo de ingestão de bebidas alcoólicas antes da condução de veículos, verdade é que só pelo facto de o mesmo ter a profissão que tem ele não pode ser prejudicado, uma vez que não se encontrava nesse exercício de funções na altura dos factos, limitando-se a conduzir a sua viatura particular.

15. Acrescem os óbvios prejuízos que resultarão para o recorrente por durante o período de inibição de condução se ver privado do exercício da sua profissão.

16. Tudo conjugado, impõe-se condenar o recorrente em pena de multa com menor duração e com menor quantitativo diário, pois, assim não sucedendo, se mostrarão violados, tal como o fez a decisão recorrida, os art.ºs 71.° e 47.°, ambos do Código Penal.

17. Para determinação da medida da pena acessória (in casu, variável num período entre três meses e três anos), impunha-se ao Tribunal a quo atentar ao conjugadamente estatuído pelos art.ºs 69.°, 40.° e 71.°, do Código Penal e, decorrentemente, às circunstâncias já expendidas supra.

18. O que não se verificou na decisão recorrida, isto igualmente ao arrepio do entendimento maioritário da nossa jurisprudência sobre o tema.

Terminou pedindo que no provimento do recurso interposto seja reduzido o montante da pena principal bem como a duração da pena acessória.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que deve ser mantida a pena principal e reduzida a pena acessória.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve proceder parcialmente nos termos apontados na resposta ao recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Fundamentos da Decisão Recorrida

Na sentença recorrida foi consignada a seguinte fundamentação factual:

Factos Provados:

1.1. O arguido, no dia 28 de Junho de 2013, cerca das 21 :06 horas, conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula OF..., no itinerário principal 3, próximo da área de serviço da Aguieira, na área da comarca de Santa Comba Dão, e submetido ao teste para detecção de álcool no sangue comprovou-se ser a mesma, então, de 1,63 g/l.

2. O arguido, previamente à condução automóvel ingeriu bebidas alcoólicas com teor alcoólico e em quantidade tal que sabia determinar-lhe necessariamente uma TAS igual ou superior a 1,20 g/l e como tal impeditiva do exercício dessa mesma condução na via pública como efectivamente o fez.

3. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente.

4. O arguido não tem antecedentes criminais. É motorista de profissão, auferindo pro tal actividade o vencimento mensal de € 620,00. É casado, vivendo com a esposa, funcionária pública que aufere € 485,00 mensais. O casal reside em casa própria, possuindo ainda dois outros imóveis, um urbano e um rústico. O arguido paga de seguro anual do veículo em causa, € 270,00. Tem a 4.a classe de instrução.

No que concerne a factos não provados considerou inexistirem.

Por fim, a motivação probatória alicerçou-se como segue:

O elemento objectivo da infracção foi considerado como provado tendo por fundamento a confissão assumida pelo próprio arguido, ainda que de forma parcial, bem como o teor dos documentos juntos aos autos, mormente o talão de fls. 7.

As condições pessoais do agente foram alicerçadas nas declarações do próprio. A inexistência de antecedentes criminais do arguido decorreu do CRC também junto aos autos.

O elemento subjectivo da infracção, sob a forma de dolo necessário, decorreu das declarações do próprio arguido, embora prestadas de forma contraditória pois afirmou que tinha consciência da ilicitude dos factos, como a não tinha. Conjugadamente valorou-se o depoimento da testemunha agente da autoridade inquirida em audiência, a qual deu nota de discrepâncias na versão dos factos apresentada pelo arguido. Objectivamente, não sendo verosímil a versão do arguido segundo a qual apenas teria bebido 2 copos, desacompanhado de qualquer alimento, resulta que quem se apresenta como uma TAS como a do arguido, necessariamente tinha de saber que o que bebeu era susceptível de a determinar, como foi o caso.


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III. Apreciação do Recurso

A documentação dos actos da audiência determina que este Tribunal possa conhecer de facto e de direito como resulta do disposto nos artigos 363º e 427º do Código de Processo Penal. Mas, o objecto do recurso delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Penal) sempre sem embargo dos poderes de conhecimento oficioso. 

Ora, vistas as conclusões do recurso interposto, a questão que reclama solução restringe-se a saber se as penas principal e acessória devem ser reduzidas por terem sido fixadas em medida que viola o disposto no artigo 71º do Código Penal, como deve ser reduzida a taxa diária da multa por ocorrer violação do disposto no artigo 47º do Código Penal.

Antes de apreciar a questão equacionada relativa ao doseamento das penas cumpre analisar as implicações que as alterações ao Código da Estrada produzidas pela Lei nº 72/2013 de 3 de Setembro de 2013, entradas em vigor em 1 de Janeiro de 2014, terão para o presente caso.

Assim a referida Lei deu nova redacção ao artigo 170º do Código da Estrada que sob a epígrafe "auto de notícia e de denúncia"passou a ser do seguinte teor:

1 - Quando qualquer autoridade ou agente de autoridade, no exercício das suas funções de fiscalização, presenciar contraordenação rodoviária, levanta ou manda levantar auto de notícia, o qual deve mencionar:

a) Os factos que constituem a infração, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida, o nome e a qualidade da autoridade ou agente de autoridade que a presenciou, a identificação dos agentes da infração e, quando possível, de, pelo menos, uma testemunha que possa depor sobre os factos;

b) O valor registado e o valor apurado após dedução do erro máximo admissível previsto no regulamento de controlo metrológico dos métodos e instrumentos de medição, quando exista, prevalecendo o valor apurado, quando a infração for aferida por aparelhos ou instrumentos devidamente aprovados nos termos legais e regulamentares.

2 - O auto de notícia é assinado pela autoridade ou agente de autoridade que o levantou ou mandou levantar e, quando for possível, pelas testemunhas.

3 - O auto de notícia levantado e assinado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário.

4 - O disposto no número anterior aplica-se aos elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares.

5 - A autoridade ou agente de autoridade que tiver notícia, por denúncia ou conhecimento próprio, de contraordenação que deva conhecer levanta auto, a que é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 1 e 2, com as necessárias adaptações.

A redacção anterior do preceito ( Decreto-Lei nº 44/2005) de era a seguinte:

1 - Quando qualquer autoridade ou agente de autoridade, no exercício das suas funções de fiscalização, presenciar contra-ordenação rodoviária, levanta ou manda levantar auto de notícia, que deve mencionar os factos que constituem a infracção, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida, o nome e a qualidade da autoridade ou agente de autoridade que a presenciou, a identificação dos agentes da infracção e, quando possível, de, pelo menos, uma testemunha que possa depor sobre os factos.

2 - O auto de notícia é assinado pela autoridade ou agente de autoridade que o levantou ou mandou levantar e, quando for possível, pelas testemunhas.

3 - O auto de notícia levantado e assinado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário.

4 - O disposto no número anterior aplica-se aos elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares.

5 - A autoridade ou agente de autoridade que tiver notícia, por denúncia ou conhecimento próprio, de contra-ordenação que deva conhecer levanta auto, a que é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 1 e 2, com as necessárias adaptações.

A redacção actual do nº 2, alínea b) é expressa no sentido de que quando estiverem em causa factos comprovados através de instrumentos de medição prevalece o valor apurado depois de deduzido o valor do erro máximo admissível previsto no regulamento de controlo metrológico.

O preceito refere-se exclusivamente ao levantamento de autos por infracção contraordenacional e não criminal, o que se compreende porque o Código da Estrada em matéria de infracções regula apenas as de natureza contraordenacional, salvo excepções pontuais.

As regras de interpretação ditam, cremos que pacificamente neste caso, que tal seja aplicável às infracções criminais igualmente comprovadas através de instrumentos de medição sujeitos a controle metrológico como é o caso da condução em estado de embriaguez na maioria dos casos.

A alínea b) do nº 2 do artigo 170º do Código da Estrada tem a nosso ver carácter inovatório no domínio da determinação da condução sob o efeito do álcool, não existindo anteriormente norma semelhante ou que pudesse merecer interpretação no sentido de que os erros máximos admissíveis deviam ser objecto de desconto no momento da imputação do factos integradores de contraordenação ou crime.

Com efeito, o regulamento do controlo metrológico dos alcoolímetros apenas determinava, como continua a determinar, que era requisito de aprovação e utilização dos alcoolímetros que os resultados através deles obtidos não excedessem os erros máximos admissíveis e apenas regulava os termos do controlo metrológico de tais aparelhos (cfr. Portaria 1556/2007 de 10.12).

Por seu turno o artigo 170º nº 4, sem menção de que o resultado obtido através do aparelho devia merecer qualquer desconto, estipulava que fazia fé em juízo até prova em contrário.

A polémica preexistente à alteração legislativa agora efectuada que levou à existência de duas correntes jurisprudenciais, uma no sentido de que aos resultados obtidos devia ser deduzido a margem de erro e outra no sentido contrário, não se centrou em diferente interpretação de preceito que consentisse a preconizada solução de deduzir o erro máximo admissível, mas em diferente interpretação do princípio de direito probatório in dubio pro reo.

Os defensores da dedução do erro máximo admissível assentavam a sua argumentação precisamente no facto de não ser consentâneo com o princípio in dubio pro reo admitir como correcto e fazendo fé em juízo um resultado obtido através de um aparelho que consente margem de erro, pelo que o erro máximo de que era passível o aparelho devia ser descontado em benefício do arguido (cfr. os Acs. do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.6.2008 e da Relação de Coimbra de 9.1.2008 ambos publicados em www.dgsi.pt e que são significativos no sentido apontado).

E porque não estava em causa um concreto preceito que permitisse interpretação no sentido de que o EMA devesse ser deduzido, entendemos que a nova lei não tem carácter interpretativo mas sim carácter inovatório (ao contrário de alguma jurisprudência já produzida sobre a matéria – cfr. o Acórdão da Relação de Lisboa de 21.1.2014 publicado em www.sgsi.pt).

Como ensina Inocêncio Galvão Teles, em Introdução ao Estudo do Direito, Vol I, 11ª edição, pág. 241 a 242, lei interpretativa é aquela que, por expressa determinação sua ou pela sua intenção reconhecível, determina o sentido de uma lei anterior, a fim de esta ser aplicada com esse sentido. E prossegue o autor, referindo que nem toda a decisão legal de uma controvérsia gizada em torno de um preceito legal se deve tomar como interpretação autêntica.

Ou seja, a lei nova resolveu um diferendo judicial que era centrado especialmente sobre as implicações do princípio in dubio pro reo, não legislando sobre tal matéria mas sobre o ponto que gerava essa discórdia de interpretação do princípio, preenchendo o vazio legislativo existente sobre a dedução do EMA no momento da imputação dos factos constitutivos de infracção.

E sendo assim, não pode estar em causa a aplicação retroactiva da lei interpretativa por se integrar na lei interpretada nos termos do artigo 13º do Código Civil, mas antes a aplicação retroactiva de lei nova de conteúdo mais favorável ao arguido nos termos do artigo 2º, nº 4 do Código Penal que é emanação do artigo 29º, nº 5 da CRP.

E a lei nova tem conteúdo mais favorável ao arguido porque pode ter como efeito degradar a responsabilidade criminal em responsabilidade contraordenacional ou porque tem como efeito diminuir o grau de ilicitude do facto com eventuais reflexos no doseamento das penas.

Assim, a análise do recurso interposto em que se pretende o desagravamento das penas aplicadas deve ser efectuada com o necessário confronto entre o que resultaria da aplicação da lei em vigor à data dos factos e o que resulta da aplicação da lei actual com dedução do erro máximo admissível à taxa de álcool que resulta provada na decisão recorrida.   

Apreciando:

Foi o arguido condenado na pena principal de 80 dias de multa à taxa diária de 7,50 euros e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de sete meses e quinze dias por crime punível com pena de multa a fixar entre 10 e 120 dias e com pena de proibição de conduzir veículos motorizados a fixar entre três meses e três anos.

Alega o arguido no sentido do desagravamento de tais penas essencialmente o facto de não ter antecedentes, de a ilicitude não ser elevada e ainda as suas condições pessoais, nomeadamente o facto de ser motorista de profissão e as implicações da proibição de conduzir.

Na sentença recorrida consignou-se como provado que o arguido conduzia com a taxa de álcool no sangue 1,63 g/l a que, aplicando a lei nova, corresponde a taxa de 1,417 g/l por aplicação do EMA de 8% previsto no anexo da Portaria 1556/2007 de 10.12 – a TAS de 1,63 corresponde à TAE 0,708 a que é aplicável o referido EMA para alcoolímetros que não estejam em 1ª utilização e verificação, sendo que a 1 mg/l de TAE igual a 2,3g/l de TAS).

Vejamos.

Sobre as finalidades da punição consignadas no artigo 40º, do Código Penal e sobre os critérios concretos a observar no doseamento da pena, apenas se dirá de forma resumida, reproduzindo Figueiredo Dias, em “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 84, que “a pena concreta é limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais”.

Refira-se ainda que a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, tal como a pena principal, deve ser doseada com observância do disposto nos artigos 40º e 71º, do Código Penal que se referem genericamente às penas, não distinguindo entre penas principais e acessórias.

Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71º, nº 1, do Código Penal preceitua, na senda do citado artigo 40º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o nº 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido.

Perante os pressupostos já enunciados, ao nível da ilicitude deparamo-nos com um desvalor da acção não especialmente acentuado, com aproximação sensível do limiar da criminalização na lei actualmente vigente, a que se associa um desvalor do resultado de idêntica amplitude e que nos crimes de perigo, como o presente, se deve medir pela perigosidade que a acção contém.

Não será de escamotear e conceder algum significado atenuante ao facto de o arguido ser primário e de ter confessado (parcialmente segundo o provado e não impugnado) de ser pessoa socialmente integrada, embora se trate de situação comum neste tipo de criminalidade, circunstâncias que no seu conjunto e também pelo reflexo que a pena acessória terá para o exercício da actividade profissional do arguido, indicam uma prognose positiva sobre o futuro comportamento do arguido e que, por isso, implicam que as penas devem situar-se no limiar mais baixo que é exigido pelas exigências de prevenção geral.

Ditam as regras de doseamento das penas contidas nos citados artigos 40º e 71º do Código Penal que penas próximas do limite máximo previsto sejam reservadas a situações de excepcional gravidade, quiçá de repetição de ilícito idêntico em que a pena de multa ainda se possa considerar adequada e suficiente a realizar as finalidades da punição.

Entendemos ser manifesto que a pena de multa aplicada, mesmo tendo em consideração a taxa de álcool que se evidenciava à data da decisão recorrida, em nome do princípio da proporcionalidade, devia ser reduzida para 50 dias. Com a aplicação da lei nova mais ainda se acentua essa necessidade, entendendo-se como ajustada a pena de 40 dias.

Quanto à pena acessória de proibição de conduzir encontra-se fixada longe do limite máximo legalmente previsto, mas neste caso há que equacionar que a respectiva moldura abarca quer as situações a que é aplicável pena de multa quer aquelas a que é aplicável pena de prisão. Sempre que se opte pela aplicação de pena de multa e especialmente quando se trata de delinquentes primários, deve a pena acessória ser doseada com aproximação sensível do limite mínimo previsto, entendendo-se no caso como adequada e suficiente pena acessória de proibição de conduzir pelo período de cinco meses e por decorrência da aplicação da lei nova justifica-se a sua redução para quatro meses.

Finalmente, no que respeita à taxa diária da multa, preceitua o artigo 47º, nº 2 do Código Penal que “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500 que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.”

Este normativo não invalida a consideração de que a multa é uma verdadeira pena e que para cumprir essa função deve representar um efectivo sacrifício para o condenado, mas impõe que se opte pela aplicação da taxa mínima prevista em situações no limiar da pobreza ou mesmo de manifesta insuficiência de rendimentos, desde logo para prover às necessidades básicas.

Ora a matéria de facto provada mostra-nos que o arguido se encontra um pouco afastado do que possa considerar-se o limiar da pobreza, parecendo-nos perfeitamente ajustada a taxa fixada em 1ª instância que se afasta ligeiramente, na justa medida, do limite mínimo previsto.

Procede, pois, parcialmente o recurso interposto.


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IV. Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, alterar as penas fixadas na decisão recorrida, condenando-o na pena principal de 40 dias de multa à taxa diária de sete euros e cinquenta cêntimos, no montante de 450 euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de quatro meses.

Não há lugar a tributação em razão do recurso (cfr. artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal).


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Coimbra, 26 de Fevereiro de 2014

 (Maria Pilar Pereira de Oliveira - relatora)

 (José Eduardo Fernandes Martins - adjunto)