Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1773/09.0PCCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: PROCESSO ABREVIADO
AUDIÊNCIA
PRAZO
Data do Acordão: 10/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 391º-D CPP
Sumário: 1. O prazo de 90 dias para realização da audiência de julgamento, não é um pressuposto do processo abreviado, apenas regulando a tempestividade desse acto.
2. A sua inobservância integra o vício de irregularidade.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
Nos autos de processo abreviado com o nº 1773/09.0PCCBR do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Coimbra, em que é arguido S..., acusado da autoria de dois crimes de injúrias p. e p. pelos artigos 181º, 184º e 132º, nº 2, alínea f) do Código Penal e de dois crimes de ameaças p. e p. pelo artigo 153º, nº 1 do Código Penal.
No decurso da audiência de julgamento a Mmª Juiz a quo proferiu despacho ordenando a remessa dos autos ao DIAP para tramitação em processo comum.
Inconformado com tal despacho, dele recorreu o Ministério Publico, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1. Os presentes autos iniciaram-se com um Auto de Notícia lavrado em 2009/06/29, pelas 11H19, por factos ocorridos no mesmo dia, pelas 09H30 (fls.2/3).
2. Em 2009/07/14, o Ministério Público encerrou o inquérito, proferindo despacho de acusação, em processo especial abreviado, imputando a S… a prática de dois crimes de injúrias agravadas e de dois crimes de ameaças (fls.7/8).
3. Em 2009/09/08, a Mmª. Juiz a quo proferiu despacho de saneamento do processo e designou para julgamento o dia 2010/02/04 (art.º 391°- C do C.P.P., na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007 de 29/08, bem como todas os demais artigos que venham a citar-se).
4. Na data agendada, iniciou-se a audiência de julgamento, à qual o arguido não compareceu apesar de validamente notificado, sendo a sua presença considerada prescindível desde o início da audiência (art.º 333°, n.ºs 1 e 2 do CPP), e ouviram-se as testemunhas arroladas pelo M.O P.O e pelo arguido;
5. Finda a audição, foi proferido o despacho de que ora se recorre, com o seguinte teor: .,. "Com efeito, nos termos do disposto no art.º 391°-D do Cód. Proc. Penal, a audiência de julgamento tem o seu início no prazo de 90 dias a contar da dedução da acusação. E se inicialmente entendíamos que a não observância de tal prazo constituía mera irregularidade, a verdade é que recentemente, face ao teor dos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 162/09 e 163/09, ambos de 25 de Março, verificamos que a não observância de tal prazo pode ser considerada como nulidade insanável, inquinando, por isso, todo o processado, devendo as nulidades insanáveis ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do processo (cfr. art.° 119 do Cód. Proc. Penal, o que ora se declara. Assim, face ao supra exposto, entendo ser mais adequado e prudente determinar a remessa dos autos ao DIAP, para tramitação em processo comum" ...
6. Porém, e salvo melhor opinião, cremos que não se verifica qualquer nulidade insanável, conforme passamos a expor.
7. Questão prévia: o despacho que declara a nulidade insanável e remete o processo ao DIAP, para que siga a forma comum, põe fim ao processo abreviado, sendo que a lei processual penal não prevê em parte alguma o reenvio do processo abreviado para a forma comum (contrariamente ao que sucede com o processo sumário - vide art.º 390º CPP).
8. É, portanto, um despacho que admite recurso.
9. O art.º 391°-D do Código de Processo Penal tem carácter programático, meramente ordenador e disciplinador do processo, à semelhança dos prazos consignados nos art.ºs 276°, 312°, n.º 1 e 373°, n.º 1, todos do mesmo diploma legal.
10. O prazo de 90 dias referido no art.º 391°-D do CPP não é um requisito essencial da forma de processo abreviado, pelo que, a sua violação traduz-se em mera irregularidade, que nunca foi invocada no processo, e cuja sanção natural se faz com a efectivação do julgamento.
11. O art.º 119°, alínea f) do C.P.P., ao referir tratar-se de nulidade insanável o emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei, refere-se, salvo melhor entendimento, e, atenta a forma de processo em questão, exclusivamente, à dedução de acusação em processo abreviado, quando não se encontram preenchidos os requisitos previstos no art.º 391°-A do C.P.P., nos quais não se engloba o início da audiência no prazo de 90 dias.
12. E daí que, à semelhança do que fez no processo comum, o legislador não previu qualquer consequência para os casos em que tal prazo não é observado.
13.Logo, não se verifica a aludida nulidade insanável, mas apenas uma mera irregularidade que, não tendo sido suscitada no prazo previsto no art.º 123° do C.P.P., não determina a invalidade do acto a que se refere.
14. Assim, a Mma Juiz a quo fez uma errada interpretação da lei e, consequentemente, violou o disposto nos art.ºs 118°, 119°, al. f), 123° e 391°-D, todos do C.P.P.
15. Os invocados Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 162 e 163/2009 inserem-se em distinto contexto e debruçam-se sobre questões subjacentes ao princípio do juiz natural e às regras de competência e funcionamento dos tribunais criminais, não apreciando a validade infraconstitucional do despacho que remeteu os autos, para julgamento, do Tribunal de Pequena Instância Criminal para o Tribunal Criminal de Lisboa.
16. Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine nova data para julgamento (porquanto, a prova produzida perderá, entretanto, a sua eficácia), em processo abreviado.
Assim decidindo, Vossas Excelências farão,
Como sempre, a costumada JUSTIÇA!


Notificado, o arguido não respondeu ao recurso.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu.

Corridos os vistos legais e realizada conferência, cumpre apreciar e decidir.
***
II. Fundamentos da decisão recorrida
O Despacho recorrido é do seguinte teor:
“Da inquirição das testemunhas resulta que o arguido terá um temperamento que foi descrito pela testemunha H… como não sendo "normal". Mais foi dito por este agente da P.SP. que o arguido é muito nervoso e violento em casa, que parte coisas e agride os progenitores e que, por tal facto, foi já diversas vezes ao local. Mais foi afirmado por esta testemunha que o arguido já esteve para ser internado, o que no seu entender só o beneficiaria, pois está convencido de que ele necessita de tratamento médico, aliás, ao que sabe, toma medicação.
Tais declarações, não infirmadas pelo agente C…, levam o Tribunal a ponderar sobre a imputabilidade, eventualmente diminuída ou não, do arguido.
Tal questão deve ser apreciada livremente pelo Tribunal com o auxílio que consideramos imprescindível de perícia à personalidade do arguido, digo perícia às faculdades mentais do arguido.
Contudo, a realização de tal perícia não se compagina com a natureza do processo abreviado.
Com efeito, nos termos do disposto no art. o 391º-D do Cód. Proc. Penal, a audiência de julgamento tem o seu início no prazo de 90 dias a contar da dedução da acusação.
E se inicialmente entendíamos que a não observância de tal prazo constituía mera irregularidade, a verdade é que recentemente, face ao teor dos acórdãos do Tribunal Constitucional n. Os 162/09 e 163109, ambos de 25 de Março, verificamos que a não observância de tal prazo pode ser considerada como nulidade insanável, inquinando, por isso, todo o processado, devendo as nulidades insanáveis ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do processo (cfr. art. ° 119º do Cód. Proc. Penal), o que ora se declara.
Assim, face ao supra exposto, entendo ser mais adequado e prudente determinar a remessa dos autos ao DIAP, para tramitação em processo comum, no âmbito do qual, mesmo em face de julgamento, poder-se-á ordenar a realização da perícia.
Notifique.”
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III. Apreciação do Recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação a questão que reclama solução pode sintetizar-se do seguinte modo:
- se a inobservância do prazo previsto arte 391.°-D do C. P. P. e o prosseguimento dos autos sob a forma de processo abreviado configura uma nulidade insanável.

Apreciando:
O processo abreviado foi introduzido pela Lei nº 59/98 de 25 de Agosto com o objectivo de criar um processo mais expedito, acelerando desde logo a fase preliminar de inquérito ou suprimindo-a mesmo, sempre que a evidência e simplicidade da prova o justificassem, quando estivessem em causa situações de pequena ou média criminalidade.
A exposição de motivos da Proposta de Lei nº 157/VII que deu origem à referida Lei, dá eco desse objectivo quando aí se refere “Trata-se de um procedimento caracterizado por uma substancial aceleração nas fases preliminares, mas em que se garante o formalismo próprio do julgamento em processo comum com ligeiras alterações de natureza formal justificadas pela pequena gravidade do crime e pelos pressupostos que o fundamentam”.
A redacção inicialmente dada ao artigo 391º-A do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Quando tem lugar”, preceituava no seu nº 1 que “em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, face ao auto de notícia ou realizado inquérito sumário, pode deduzir acusação para julgamento em processo abreviado, se não tiverem decorrido mais de 90 dias desde a data em que o crime foi cometido.”
Com a revisão operada pela Lei nº 48/2007 de 28 de Agosto o mesmo artigo passou a ter a seguinte redacção:
1. Em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a 5 anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, em face do auto de notícia ou após realizar inquérito sumário, deduz acusação para julgamento em processo abreviado.
2. São ainda julgados em processo abreviado, nos termos do número anterior, os crimes puníveis com pena de prisão de limite máximo superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.
Na redacção introduzida pelo mesmo diploma ao artigo 391º-B passou a constar a menção de que a acusação é deduzida no prazo de 90 dias a contar da aquisição da notícia do crime, nos termos do disposto no artigo 241º, tratando -se de crime público ou da apresentação de queixa, nos restantes casos. Na redacção anterior a menção de prazo vinha consignada no artigo 391º-A.
Do artigo 391º-D passou a constar de forma inovatória que a audiência de julgamento tem início no prazo de noventa dias a contar da dedução da acusação, sem que se estabeleça qualquer consequência para o seu incumprimento.
Nota-se a esse propósito e antes de mais que o processo abreviado não contém uma norma semelhante à do artigo 390°. Nesse preceito prevêem-se os casos de reenvio do processo sumário para outro forma de processo, como sucede, nomeadamente, com a impossibilidade de realização imediata da audiência.
Por outro lado, os requisitos da tramitação em processo abreviado vêm delineados no artigo 391º-A, deles não constando o prazo de 90 dias. E porque assim, não alcançamos a possibilidade de ocorrer a nulidade prevista no artigo 119º, alínea f) do Código de Processo Penal que supõe o emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei, no caso do processo abreviado, fora dos casos previstos no artigo 391º-A.
Como qualquer outro prazo estabelecido para a prática de actos processuais, na falta de previsão específica, é aplicável o disposto no artigo 118º, nº 1 do Código de Processo Penal preceituando que (nº 1) a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei e (nº 2) nos casos que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.
Assim o excesso do prazo de 90 dias em causa apenas pode configurar uma irregularidade que, não tendo sido arguida, se encontra sanada como resulta do disposto no artigo 123º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Tem sido, aliás, este o entendimento que vem sendo expresso na doutrina (cfr. Comentário do Código de Processo Penal, Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo 391º-D e Código de Processo Penal Anotado, Maia Gonçalves em anotação ao mesmo artigo) como também na Jurisprudência (cfr. Acórdão da Relação do Porto de de 5.5.2010 publicado em www.dgsi.pt e Acórdãos da Relação de Lisboa de 7.7.2009 e de 22.8.2009, CJ III ambos publicados em www.colectaneadejurisprudencia.com).
E a jurisprudência do Tribunal Constitucional que vem mencionada no despacho recorrido (Acórdãos 162 e 163 de 2009) não pode ser transposta para o caso em apreço.
Com efeito, nos acórdãos citados apreciou-se situação de processo abreviado que foi remetido para processo comum em que o Tribunal Constitucional apenas se pronuncia no sentido de que não é inconstitucional o critério normativo extraído dos artigos 119º, alínea f) e 391º-D do Código de Processo Penal segundo o qual a inviabilidade da realização de julgamento em processo abreviado no prazo de noventa dias a contar da dedução de acusação constitui nulidade insanável, conducente à alteração da forma de processo abreviado para a forma de processo comum, com a consequente remessa dos autos, para julgamento do Tribunal de Pequena Instância Criminal para o Tribunal Criminal, inconstitucionalidade que havia sido declarada por este último em função de o julgamento, na situação em causa, competir a diferente tribunal consoante a forma de processo adoptada.
Ora o Tribunal Constitucional apenas se pronuncia pela não inconstitucionalidade do entendimento em causa que determinou a remessa do processo da forma abreviada para comum, no pressuposto de que são diferentes os Tribunais competentes, o que não significa que seja esse o entendimento jurídico correcto, posto que ao Tribunal Constitucional apenas compete pronúncia sobre a constitucionalidade de determinado entendimento normativo.
Ou seja, o entendimento formulado pelo Tribunal a quo não é inconstitucional, mas não é o que resulta, a nosso ver, da interpretação correcta das normas processuais em causa, acrescendo que no caso a forma de processo não determina sequer que o julgamento seja da competência de diferente Tribunal.
Assim se conclui que os pressupostos para a tramitação em processo abreviado se confinam somente aos casos de crime punível com multa ou pena de prisão não superior a 5 anos ou que o Ministério Público requeira que, em concreto, não exceda este limite e em que existam provas simples e evidentes da suficiência dos respectivos indícios.
O prazo de 90 dias para realização da audiência de julgamento, não é um pressuposto do processo abreviado, apenas regulando a tempestividade desse acto. A sua inobservância apenas integra o vício de irregularidade.
Do que flui que o recurso interposto merece provimento.
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IV. Decisão
Nestes termos acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que designe data para julgamento em processo abreviado, sem embargo de eventual realização de exame às faculdades mentais do arguido.
Não há lugar a tributação.
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Maria Pilar Pereira de Oliveira (Relatora)
José Eduardo Fernandes Martins