Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
77/10.0TANLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: SIGILO PROFISSIONAL
ADVOGADO
VALOR PROBATÓRIO
DEPOIMENTO
Data do Acordão: 09/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 87.º, N.ºS 1, 2 E 5, DO EOA (ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS)
Sumário: I - O segredo profissional regulado no artigo 87.º do EOA abrange os factos conhecidos pelo advogado no exercício da sua profissão e por causa desse exercício, numa relação de causalidade necessária entre o exercício das funções e o conhecimento dos factos.

II - Essa relação de causalidade necessária deve ter-se por excluída sempre que os factos de que o advogado tenha conhecimento no exercício das suas funções extravasem o objecto da prestação de serviços e não ofereçam nenhum ponto de ligação com esta, de modo que se possa dizer que a circunstância de deles saber é meramente acidental e não causal; ou seja, o conhecimento do episódio não ocorreu por força do exercício de funções, mas tão só durante esse exercício.

III - No caso em que o advogado acompanhou a assistente, sua representada, a um determinado terreno, em razão de problemas com a utilização de uma passagem, e, nessa deslocação, ouve palavras insultuosas e ameaçadoras dirigidas àquela, nenhum obstáculo legal existe à valoração do depoimento prestado, em audiência de julgamento, nesse sentido, pelo primeiro, porquanto, foi acidentalmente que o mesmo tomou conhecimento dos referidos factos, não tendo eles qualquer ponto de coincidência com a prestação de serviços em causa.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular 77/10.0TANLS do Tribunal Judicial de Nelas, após realização da audiência de julgamento com documentação da prova oral, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Por tudo o exposto, decide-se:

A.  condenar  o  arguido  A… pela  prática,  em  autoria material  e  em  concurso  real,  de  um  crime  de  ameaça  agravada  e  de  um crime  de  injúria, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 155º, n.º 1, al. a) e 181º, do Código Penal, na pena única de 70 (setenta) dias de multa à  taxa  diária  de  5  €  (seis  euros),  o  que  perfaz  a  quantia  global  de  350  € (trezentos   e   cinquenta   euros), a          que     correspondem,         em      caso   de incumprimento 46 dias de prisão subsidiária, por cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares:

i.          pena  de  60  (sessenta)  dias  de  multa  pela  prática  do  crime  de  ameaça agravada;

ii.         pena de 30 (trinta) dias de multa pela prática do crime de injúria;

B.  condenar  a  arguida B… pela prática,  em  autoria  material  e  em  concurso  real,  de  um  crime  de  ameaça agravada  e  de  um  crime  de  injúria,  previstos  e  puníveis,  respectivamente, pelos artigos 155º, n.º 1, al. a) e 181º, do Código Penal, na  pena  única  de  80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de 5 €, o que perfaz a quantia global de 400  €  (quatrocentos  euros), a que correspondem, em caso de incumprimento 53  dias  de  prisão  subsidiária,  por  cúmulo  jurídico  das  seguintes  penas parcelares:

iii.  pena  de  70  (setenta)  dias  de  multa  pela  prática  do  crime  de  ameaça agravada;

iv.  pena de 40 (quarenta) dias de multa, pela prática do crime de injúria.

C.  condenar  os  arguidos  nas  custas  criminais,  fixando-se  a  taxa  de  justiça individual em 2 (duas) UC’s, nos termos dos artigos 513º  e 514º do Código do Processo  Penal  e  tabela  III  do  Regulamento  das  Custas  Processuais,  com referência ao artigo 8º, n.º 8 do mesmo diploma.

D. julgar parcialmente procedentes os pedidos de indemnização civis deduzidos  pela  assistente/demandante  J… e, consequentemente, condenar cada um dos arguidos/demandados   no   pagamento   àquela   da   quantia   de   400   € (quatrocentos  euros) a  título de compensação pelos danos não patrimoniais causados à mesma com as suas condutas.

Custas  na  parte  cível  pela  assistente/demandante  e  pelos  arguidos/demandados,  na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixa em 2/3 para aquela e 1/3 para estes – artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Inconformada, recorreu a arguida B…, extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões:

A) A sentença condenatória não levou na devida consideração as regras e princípios processuais que se impõem numa decisão de um processo crime, decidindo sem que houvesse prova da certeza sobre a forma como decorreram os factos na circunstância de modo, tempo e lugar constantes da acusação;

B) Violando-se o princípio fundamental do in dubio pro reu e decidindo-se contra esse direito e pedra basilar do processo penal;

C) O tribunal dá como provados factos que de todo em todo não se podem dar como provados e como certos que tenham ocorrido da forma como se fizeram constar da decisão objecto de recurso;

D) Neste julgamento houve três versões dos factos, não podendo o tribunal com rigor e com a certeza absoluta e segura que tem de nortear uma decisão em matéria criminal saber qual das versões é a que corresponde à verdade;

E) Os arguidos admitiram ter estado no local, hora e dia e terem estado com a assistente e com a testemunha Dr. E…, seu advogado, e negaram que tivessem proferido qualquer das expressões injuriosas ou ameaçadoras constantes da acusação;

F) A assistente. prestou declarações de forma esclarecida e consciente e demonstrou ter mau relacionamento com os seus vizinhos aqui arguidos, e disse quais as expressões que lhe foram dirigidas pela arguida;

G) Afirmou por diversas vezes e a instâncias de várias pessoas, que as expressões dirigidas naquele dia hora e local pela arguida à sua pessoa foram "putita, putita, putita";

H) Não declarou que não tivesse ouvido ou que tivessem sido proferidas outras expressões nomeadamente as que constam da acusação crime;

I) Negou que a arguida lhe tivesse dirigido qualquer expressão ameaçadora naquele dia hora e local, antes dizendo que quem o fez no seu entender foi o   A...;

J) E temos ainda a versão da testemunha Dr.   E..., depoimento este que o tribunal não deveria ter dado desde logo o cariz de isento e sem proximidade com a assistente;

K) Salvo o devido respeito, o sr advogado estava no local no exercício da sua profissão, e como advogado da aqui queixosa, continua a ser o advogado da ofendida e o processo crime em causa é acompanhado pelo seu escritório de advocacia, com outra colega sua;

L) O desfecho do processo não se pode considerar assim indiferente à testemunha, pois que se trata de um processo de uma sua cliente e de um processo do seu escritório;

M) Acresce que considera a recorrente que o Sr. Dr.   E... estava abrangido pela regra de ouro da advocacia que é o segredo profissional, e pois impedido de prestar declarações sobre factos que presenciou no exercício da sua actividade profissional;

N) Para que pudesse depor -e por ser essa a sua vontade ­impunha-se que tivesse formulado pedido de dispensa de sigilo profissional à ordem dos advogados, o que não fez;

O) O segredo profissional abrange um âmbito muito mais lato do que o mero interesse da cliente do advogado, e pois quebrando-se essa regra, a prova assim produzida não pode produzir quaisquer efeitos jurídicos -art. 89 n.º 4 do EAO;

P) De notar ainda que há uma similitude total entre as expressões injuriosas e ameaçadoras de ambos os arguidos, não se tendo provado - antes pelo contrário - que o arguido   A... tivesse·visto ou ouvido o que se teria passado com a arguida   B..., dado que aliás foi o tribunal que indeferiu a deslocação ao local requerida pela recorrente;

Q) Nestes termos, a recorrente impugna a matéria de facto dada como provada, sendo que das regras da experiência comum resulta ainda que os arguidos não tomariam um comportamento desta natureza na presença de pessoa que a recorrente desde logo identificou como advogado, por conhecer o Sr. Dr.   E... de outro processo em que foi testemunha;

R) A matéria de facto dada como provada constante dos pontos 2 a 8, e 19 não deveria assim ser considerada pelo tribunal, com as legais consequências, e absolvendo-se a arguida dos crimes de que vem acusada e da condenação no pedido civel;

s) O tribunal violou assim as regras da experiência comum na apreciação crítica da prova, o princípio do in dubio pro reo, as regras estabelecidas para o sigilo profissional do advogado e das consequências processuais da sua violação, e não valorizou o depoimento verdadeiro dos arguidos, considerando como decisivo um depoimento de testemunha que para além das regras profissionais acima indicadas, não poderia considerar-se como pessoa afastada das partes e isenta;

T) Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio e ainda que assim se venha a considerar sempre a escolha da medida da pena deveria ser fixada nos mesmos dias para os dois arguidos, pois que nenhuma diferença de actuação ou de inserção profissional ou social ou de comportamento impõe que se fixem dias diferentes para os arguidos;

U) Devendo assim e sem prescindir fixar-se a pena nos dias que foram estabelecidos para o arguido com a pena menor;

V) De igual modo o pedido de indemnização civil deverá ser julgado improcedente, na medida em que não resultou provado qualquer dano não patrimonial que pela sua gravidade mereça a tutela do direito, com as legais consequências.

Nestes termos, nos melhores de direito, e com o sempre mui douto suprimento de vossas Excelências, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a sentença recorrida, e absolvendo-se a arguida da prática dos crimes de que vem acusada e julgando-se o pedido civil improcedente por não provado, com todas as legais consequências para a recorrente e para o co-arguido.

Assim fará esse Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, como sempre, inteira justiça.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:

1. Atento o princípio da livre apreciação da prova - art. 127.° do Código de Proc. Penal -, o recurso não serve, ou não deve servir para que as teses nascidas de convicções interiores da Recorrente, não coincidentes com o que foi a convicção do Tribunal a quo, vençam.

2. Formulada a convicção do julgador em juízos objectivos e motiváveis, necessários para que a livre convicção não redunde em arbitrariedade, nada se pode apontar à convicção do Tribunal recorrido.

3. No caso em apreço, o Tribunal a quo apontou às declarações da Recorrente os elementos que a fragilizavam, e tornavam inconsistente, de um modo lógico e que efectivamente assacou que os arguidos estavam a prestar declarações inverosímeis.

4. Depois, cumpre afirmar que o Tribunal a quo esteve bem, analisando de forma ponderada as declarações da Assistente, sem lhe notar as inerentes fragilidades, mas não as descartando completamente.

5. Por último, o Tribunal a quo ponderou devidamente, e notando os elementos que lhe conferiam consistência, o depoimento da testemunha   E..., que era a única testemunha ocular que não tinha um interesse directo na situação, e ainda assim disse ter ficado impressionado com toda a situação, que lhe ficou na memória, e que descreveu com segurança e certeza.

6. No seguimento, a desconsideração do facto de tal testemunha ser um Advogado foi juridicamente apreciada pelo Tribunal a quo de forma acertada, precisamente porque se não ateve na literalidade, e procurou no espírito das normas convocadas o sentido e o alcance do dever sagrado de um Advogado.

7. Nesse circunspecto, como bem concluiu, não faria sentido algum que o sigilo tivesse tal abrangência, pois que a testemunha   E... não era nos factos Advogado da Recorrente, e por isso não depôs sobre o que ouviu de urna sua cliente.

8. No mais, o Tribunal a quo também apreciou a credibilidade da testemunha, e não será só porque o seu escritório tem um interesse na causa que imediatamente se deva considerar suspeito de mentir ...

9. A questão de só o co-arguido figurar nos factos não provados sob a al. g) ­questão, de resto, irrelevante - deriva do alegado nas contestações de ambos, na do co-arguido, a fls. 121, aquele facto sendo literalmente alegado, e já não na contestação da Recorrente junta a fls. 123.

10. É em todo o caso urna questão meramente formal, pois nada se altera na substância. Não há factos contraditórios, e a responsabilidade da Recorrente foi afirmada na positiva (nos factos provados).

11. A putativamente arbitrária diferença entre as concretas medidas da pena (da Recorrente e co-arguido) não foi demonstrada, e decorre do facto de a Recorrente ter repetido com mais intensidade as expressões criminosas, a diferença não resultando portanto de arbitrariedade alguma.

Termos em que, improcedendo na íntegra o recurso em apreço, V. Exas. farão a já costumada JUSTIÇA.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, acompanhando a antecedente resposta.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

            II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:

1. No dia 17 de Abril de 2010, cerca das 11h30m a assistente   J... deslocou-se com o seu advogado E… , junto ao prédio rústico, sito na freguesia de Aguieira, no sítio da " X...".

2. Aí chegados, a arguida   B..., que se  encontrava  a trabalhar num terreno junto a este prédio rústico, disse à assistente em voz alta e tom sério, “qualquer dia arranco-te a cabeça, mato-te aqui mesmo e enterro-te...”.

3. Mais lhe dizendo, por várias vezes, “velha puta”, “puta velha”, “vai para o caralho sua puta velha”, “ordinária”.

4. No local, data e hora referidos, o arguido   A..., que se encontrava a trabalhar num terreno junto ao prédio rústico identificado em 1., disse à assistente em voz alta e tom sério, após uma breve troca de palavras, “qualquer dia arranco-te a cabeça...”.

5. Mais lhe dizendo repetidamente: “puta velha”, “velha puta”.

6. Ao  agir  da  forma  descrita  em  2.  e  4.,  os  arguidos  actuaram  com  intenção  de assustar e amedrontar a assistente   J..., sabendo que as suas condutas eram adequadas a provocar medo naquela.

7. Ao proferir as expressões identificadas em 3. e 5. os arguidos tencionavam ofender a honra e consideração devidas à assistente, como sucedeu.

8. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime.

9. O arguido   A... vive com a esposa e com uma filha, de 36 anos de idade, em casa própria.

10. Possui uma oficina de serralharia, auferindo em média, quantia não inferior a 400 € por mês.

11. A esposa trabalha no campo e não aufere rendimentos e a filha trabalha na Câmara Municipal de Nelas, auferindo quantia mensal não concretamente apurada.

12. A arguida   B... vive com o marido, em casa própria.

13. É doméstica e o marido encontra-se reformado, auferindo uma pensão de invalidez de montante mensal não inferior a 350 €.

14. Pagam uma prestação bancária mensal de montante não concretamente apurado, a título do empréstimo que contraíram para aquisição de casa própria, há mais de vinte anos.

15. No meio social em  que  se  inserem,  os  arguidos  são  considerados  pessoas honestas e trabalhadoras.

16. Dos certificados de registo criminal dos arguidos nada consta.

17. À data da prática dos factos a assistente tinha 85 anos de idade.

18. A assistente é uma pessoa trabalhadora e briosa na lide dos seus campos.

19. A assistente ficou triste, desgostosa e  envergonhada   com   as   expressões identificadas em 3. e 5..

B. Factos não provados

Não se provou que:

a. a  assistente  tivesse  sentido  medo  de  que  os  arguidos  concretizassem  o  mal anunciado;

b. os arguidos tivessem praticado os factos em apreciação repetidamente e na frente dos trabalhadores que acompanhavam a assistente ao campo;

c. a assistente seja uma pessoa frágil, séria, honesta e muito considerada por todos os vizinhos e pessoas da aldeia onde reside;

d.  a assistente sempre tenha sido esposa, mãe e avó exemplar;

e. desde os factos em apreciação a assistente nunca mais se tivesse deslocado às suas  propriedades  sozinha,  por  medo  dos  arguidos,  levando  sempre  alguém consigo;

f. após os factos provados  a assistente tivesse passado a andar aterrorizada, com medo de ser agredida pelos arguidos;

g. o arguido não tivesse praticado os factos constantes das acusações.

C. Motivação

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada da prova produzida, numa leitura conforme às regras da experiência comum.

Os arguidos prestaram declarações, assumindo as circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas na acusação, negando, porém, terem proferido quaisquer das expressões que lhes são imputadas.

Todavia, as  versões  dos  arguidos  revelaram-se  frágeis  e  inconsistentes,  tendo  sido contrariadas pelo depoimento da testemunha da acusação e pelas declarações da assistente, que nos mereceram credibilidade.

Com efeito, o arguido   A... sustentou que a assistente se deslocou junto do seu terreno, acompanhada do seu advogado, e que tratou mal a sua mãe, após o que aquele lhe disse que lhe levantava um auto, ao que respondeu para levantar dois ou três.

Questionado acerca de qual o motivo para o advogado da assistente, a testemunha E…, dizer que lhe  levantava  um  auto,  não  soube  explicar,  não conseguindo,  outrossim,  descrever  ou  concretizar  o  episódio  que  terá  ocorrido,  isto  é,  a conversa que teve lugar, não apresentando senão uma versão dos factos vaga e lacunar.

Por outro lado, começou por afirmar que não admite que a assistente fale mal da sua finada mãe, como tem por hábito fazer, o que reiterou várias vezes, demonstrando desagrado e sensibilidade a essa questão, referindo, porém, que não reagiu, como nunca reage, o que não é verosímil.

A  tese  do  arguido  foi  acompanhada  pelo  depoimento  da  sua  esposa,  a  testemunha D…,  que  apesar  de  ter  presenciado  os  factos  em apreciação  prestou  um  depoimento  comprometido  com  a  versão  daquele,  pautado  pelas mesmas incoerências e imprecisões.

De facto, pese embora tenha declarado que o Senhor Doutor perguntou se podia falar com o seu marido e que este respondeu que sim, não conseguiu reproduzir minimamente a conversa/troca de palavras que terá havido entre eles.

A arguida   B..., admitindo que nas circunstâncias de tempo, modo e lugar  descritas  na  acusação,  a  assistente  se  deslocou  ao  local  onde  se  encontrava,  nega, também,   ter   proferido   qualquer   das   expressões   que   lhe   são   imputadas,   o   que   foi expressamente contrariado pela prova da acusação, mais concretamente, pelas declarações da assistente e pelo depoimento daquela testemunha.

A primeira, apesar da idade que possui, da dificuldade de audição que revelou e do conflito que mantém com os arguidos - o qual resultou patente quer das suas declarações, quer das dos próprios arguidos -, descreveu as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os factos ocorreram, bem como algumas das expressões que os arguidos proferiram, declarando já não se recordar das demais.

A versão que apresentou foi corroborada pelo depoimento claro, consistente e seguro da testemunha E…, que presenciou os factos em apreciação e não possui  qualquer  relação  de  vizinhança  ou  familiar  com  os  demais  sujeitos  processuais  dos autos, sendo, por isso, alheio ao conflito existente entre os arguidos e a assistente.

A circunstância de ter mencionado, de forma exacta, as expressões que constam das acusações não é susceptível de abalar a sua credibilidade, seja porque esclareceu que recorda com precisão o sucedido porque “nunca tinha presenciado nada assim”, seja pela profissão que exerce e a inerente preocupação de relatar, de forma cabal, o episódio presenciado.

Por outro lado, explicou que as expressões proferidas pelo arguido   A... são praticamente coincidentes com as proferidas pela arguida   B... por aquele ter seguramente ouvido o que esta havia dito momentos antes, aos berros, num local calmo, onde tudo se ouve.

Na  versão  da  defesa  não  era  possível  ouvir as  conversas  que  tivessem  ocorrido  no local, naquele dia, em virtude de o arguido   A... ter o motocultivador ligado.

Tal  facto,  contudo,  foi  contrariado  pela  assistente  e  pela  testemunha  em  referência, cujos depoimentos/declarações foram, no essencial, coincidentes, e que, conforme referimos, nos mereceram credibilidade.

A propósito do depoimento desta testemunha, cabe, por fim, aquilatar se o mesmo foi proferido em violação do segredo profissional a que se encontra vinculada, conforme sustentou a defesa sem sede de alegações.

Ora,  é  sabido  que  o  segredo  profissional  do  advogado  possui  um  âmbito  muito abrangente,  conforme  decorre  do  artigo  87º  do  Estatuto  da  Ordem  dos  Advogados,  não dependendo do pagamento de honorários, da outorga formal de qualquer procuração ou da entrada em juízo de qualquer acção.

O n.º 4, desse normativo legal, acrescenta que as declarações prestadas em violação de tal segredo, não podem fazer prova em juízo.

Não obstante, impõe-se esclarecer que o sigilo profissional existe como garantia e protecção da relação de confiança entre cliente e advogado, ou seja, em benefício daquele, e não de terceiros.

Por  outro  lado,  a  nosso  ver,  tal  segredo  não  abrange  factos  que  tenham  sido presenciados pelo advogado, ainda que no exercício das suas funções, mas que não foram relatados ou confidenciados pelo seu cliente, em virtude dessas mesmas funções.

Com efeito, não se poderia admitir - nem aceitar - que o segredo profissional tivesse uma abrangência tal, que permitisse a prática de qualquer crime contra o cliente do advogado - ou mesmo pelo cliente contra terceiros -, na presença do advogado, ficando este, pelo simples facto de exercer tal profissão, impedido de testemunhar o crime que presenciou.

Aqui chegados, torna-se claro que não houve, no caso em apreço, violação do segredo profissional, pelo menos no que concerne aos factos que assumem relevo para os autos.

Na verdade, os factos que a testemunha presenciou quando se encontrava com a sua cliente no local onde os mesmos ocorreram - ao ar livre, note-se -, não foram revelados ou confidenciados pela assistente, no âmbito da relação profissional existente entre ambos, nem comunicados pelos arguidos, no âmbito de negociações malogradas.

De  resto,  ainda  que  os  factos  relatados  estivessem  abrangidos  pelo  mencionado segredo, sempre a testemunha os poderia revelar mediante prévia autorização da cliente, por ser esta, no caso dos autos, a exclusiva beneficiária do mesmo.

Assim sendo, o depoimento da mencionada testemunha não constitui prova nula ou proibida, podendo e devendo ser livremente valorado pelo Tribunal.

Já a circunstância de a ilustre mandatária que representa a assistente nestes autos ser colega  de  escritório  da  mencionada  testemunha,  nenhuma  nulidade  ou  proibição  de  prova acarreta, podendo, quando muito, configurar a quebra de um dever deontológico por parte dos mesmos.

Em conformidade com o exposto, diremos que, tendo-nos merecido credibilidade o depoimento prestado pela testemunha   E..., e não havendo qualquer obstáculo legal à sua livre valoração, não pode o Tribunal deixar de o levar em consideração, ao contrário do que pretendem os arguidos.

As demais testemunhas inquiridas pouco acrescentaram à nossa convicção, quer por não  terem  presenciado  os  factos  em  apreciação,  quer  por  terem  adoptado  uma  postura relutante  e  hesitante  em  prestar  depoimento,  em  virtude  de  serem  pessoas  da  aldeia,  que conhecem todos os envolvidos nos autos.

Referimo-nos,  concretamente,  às  testemunhas  F… ,  G…, H… , I… e L….

Excepção deve ser feita, contudo, ao depoimento da testemunha C…, Presidente da Junta de Freguesia da Aguieira, que conhece os arguidos e nos deu  conta,  de  forma  desinteressada,  da  perspectiva  que  possui  acerca  do  carácter  dos mesmos.

Relativamente às condições sócio-económicas dos arguidos valoramos as declarações dos  próprios,  que  neste  particular  se  revelaram  claras,  bem  como  o  teor  dos  respectivos certificados de registo criminal, de fls. 119 e 120.

No que respeita aos factos não provados, ou foi produzida prova em sentido contrário, conforme vimos de expor, ou a que se produziu revelou-se insuficiente para os considerarmos verificados.

Assim,  no  que  concerne  ao  facto  de  a  assistente  ser  pessoa  frágil  e  ter  ficado aterrorizada  com  a  conduta  dos  arguidos,  não  se  apurou  que  tal  medo,  a  ter  existido, decorresse da prática dos concretos factos objecto dos autos.

Com efeito, cabe esclarecer que apenas está em discussão e apreciação nestes autos o episódio ocorrido em 17.04.2010, e não quaisquer outros, que eventualmente tenham tido lugar.

Neste particular, saliente-se que a testemunha   E... mencionou que antes de se deslocar ao local dos factos com a assistente, já esta dizia que os vizinhos a tratavam mal e tinha medo de lá ir sozinha.

Referiu,  ainda,  que  “as  pessoas  velhotas  ciosas  do  que  é  seu”,  como  é  o  caso  da assistente, também geram alguma conflituosidade com os vizinhos, e que esta disse que aos arguidos,  quando  dos  factos  em  apreciação,  que  só  não  lhes  respondia  porque  estava  na presença do Senhor Doutor, o que nos cria sérias dúvidas de que tivesse ficado, efectivamente, intimidada.

De resto, a assistente declarou já não se recordar das expressões que a arguida lhe dirigiu, descritas na acusação, o que é dificilmente compaginável com a circunstância de ter ficado aterrorizada com as mesmas, por receio de que fossem concretizadas.


***

            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso.

Antes porém de concretizar as questões que devem ser objecto de apreciação, importa referir que o recurso interposto não se circunscreve a matéria penal. Com efeito, na conclusão V) a recorrente formula pedido de improcedência do pedido cível contra si deduzido para o caso de ser mantida a sua condenação.

Tal pretensão, contudo, não é passível de conhecimento porque, na parte relativa ao pedido de indemnização a sentença é irrecorrível, como resulta do disposto no artigo 400º, nº 2 do Código de Processo Penal, ao preceituar que só é admissível recurso da parte da sentença relativa a indemnização civil desde que o valor do pedido seja superior a alçada do tribunal recorrido (no caso o valor do pedido é inferior, sendo a alçada do tribunal recorrido de 5.000 euros – cfr. artigo 24º, nº 1 da L.O.F.T.J. – Lei nº 3/99 de 13.1 na redacção do Decreto-Lei nº 303/2007 de 24.8).

A parte cível da sentença sob recurso apenas será passível de alteração nos termos mitigados previstos no artigo 403º, nº 3 do Código de Processo Penal, ou seja, se tal decorrer necessariamente da decisão que for proferida em matéria penal.

Vistas as conclusões do recurso, as questões a apreciar resumem-se a saber se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo a recorrente ser absolvida e, para o caso da improcedência desta questão, se a pena em que a arguida foi condenada deve ser reduzida.

Apreciando:

A recorrente, condenada em 1ª instância como autora de um crime de ameaças e de um crime de injúria, impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, considerando que foram mal julgados os factos provados sob os nºs 2 a 8 e 19, todos os que permitiram imputar-lhe a autoria dos mencionados crimes. Na sua perspectiva deviam esses factos ser considerados como não provados com a sua consequente absolvição criminal e civil.

Em favor da sua tese invoca:

- a existência de três versões dos factos; a dos arguidos negando a prática dos factos, a da assistente confirmando apenas parcialmente os factos e a da testemunha Dr.   E... que não pode considerar-se isento pelo que foi violado o princípio in dúbio pro reo;

- a testemunha Dr.   E... estava obrigada a segredo profissional e impedida de depor por não haver pedido dispensa pelo que a prova assim produzida não pode produzir efeitos nos termos do artigo 89º, nº 4 do EOA;

- as regras da experiência ditam que se conclua que os arguidos não teriam o descrito comportamento na presença de pessoa que a recorrente identificou como advogado.

 

Nos termos do artigo 87º, nº 5 do Estatuto da Ordem dos Advogados os actos praticados por advogado com violação do segredo profissional não podem fazer prova em juízo. Estamos pois perante uma proibição de prova que, a existir, vicia a decisão de facto do Tribunal a quo, invalidando-a. Deverá o seu conhecimento ser prévio em relação ao restante alegado no âmbito da impugnação de facto.

O artigo 87º, nº 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados estipula que “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.

As alíneas do nº 2 do mesmo artigo, com carácter exemplificativo, enunciam situações típicas abrangidas pelo segredo profissional, como sejam as relativas a “factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente por revelação do cliente ou revelados por ordem deste” (alínea a)), “factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração” (alínea c)), “factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante” (alínea d)), “factos de que a parte contrária do clinete ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise por termo ao diferendo ou litígio”(alínea e)), “factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo” (alínea f)).

Em todas estas previsões normativas se mencionam situações em que estão em causa factos de que o advogado teve conhecimento no exercício da sua profissão e por causa desse exercício e que se refiram ao tema que constitui objecto dessa prestação de serviços.

Os exemplos referidos no preceito oferecem-nos, pois, um fio de condutor para a interpretação dos casos que devem ser considerados abrangidos pelo segredo profissional e serão, portanto, todos aqueles em que estejam em causa factos de que o advogado tenha conhecimento no exercício das suas funções, por causa desse exercício e que se refiram ao tema que é objecto da prestação de serviços.

Em diversos pareceres que se encontram publicados no site da Ordem do Avogados tem-se definido positivamente a abrangência do segredo profissional como integrando os factos conhecidos pelo advogado no exercício da sua profissão e por causa desse exercício numa relação de causalidade necessária entre o exercício das funções e o conhecimento dos factos, em conformidade com a doutrina exposta por Fernando de Sousa Magalhães, em Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado e Comentado, pág. 106.

Essa relação de causalidade necessária deve, porém, ter-se, a nosso ver, por excluída sempre que os factos de que o advogado tenha conhecimento no exercício das suas funções extravasem o objecto da prestação de serviços e não ofereçam nenhum ponto de ligação com esta, de modo que se possa dizer que a circunstância de deles ter tido conhecimento no exercício das sua funções é meramente acidental e não causal, não ocorreu por força do exercício dessas funções, mas tão só durante esse exercício.

Ora, cremos que no caso é manifesto que, embora no exercício de funções, foi acidentalmente que o Dr.   E... presenciou os factos sobre que depôs, não tendo estes qualquer ponto de coincidência com a prestação de serviços que estava em causa e nenhuma razão que justifica a obrigação de sigilo impõe que se exclua a possibilidade de depoimento.

Com efeito o Dr.   E..., como resulta mais claramente do teor do seu depoimento, acompanhou a assistente a um terreno em razão de problemas com a utilização de uma passagem e nessa deslocação a assistente foi objecto de insultos e ameaças.

Não nos oferece, por isso, qualquer censura o decidido em primeira instância sobre a admissibilidade do depoimento em causa porque se refere a factos não abrangidos por dever de sigilo profissional.

Nada obsta a que se valore o depoimento prestado pela referida testemunha.

Verificamos que a convicção positiva do Tribunal a quo se sedimentou com base no depoimento da testemunha Dr.   E... com conhecimento dos factos porque os presenciou. E ouvido o depoimento desta testemunha verificamos que é marcado por precisão e objectividade na narração dos factos, confirmando em toda a linha o que se fez constar da matéria de facto provada e ora impugnada.

Nada ressalta da gravação que permita por em fundada equação a isenção de tal depoimento e a sua correspondência à verdade, sendo certo que mais apetrechado esteve o Tribunal a quo para avaliar esse aspecto com os inestimáveis contributos da oralidade e da imediação.

Sendo certo que as declarações da assistente não se pautaram por idêntico rigor e precisão e não confirmaram toda a factualidade em causa, o Tribunal a quo não deixou de aflorar tal aspecto e de analisar criticamente as mesmas, sendo certo que sempre o dito depoimento justifica a convicção expressa sem necessidade de total coincidência com as declarações daquela.

A existência de várias versões dos factos nunca será por si obstáculo a que o Tribunal formule a sua convicção com base exclusivamente numa das versões porque a tarefa de valoração da prova não é uma operação matemática em que os opostos se anulem, mas antes um processo de análise do conteúdo verbal segundo as regras da experiência, um exercício da inteligência de quem julga que começa desde logo no modo como o depoimento é prestado, tantas vezes mais significativo do que o próprio conteúdo declarado.

Se a convicção alcançada pelo Tribunal a quo não ofende as regras da experiência e tem suporte na prova produzida, como no caso é manifesto, não pode este Tribunal de recurso, a que falta o benefício da imediação e oralidade, exercer censura crítica sobre a mesma, sendo certo que não se vislumbra ofensa do princípio in dúbio pro reo posto que a prova produzida consente a convicção positiva alcançada.

O duplo grau de jurisdição em recurso de matéria de facto não tem a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de 1.ª instância, podendo o tribunal ad quem, na reapreciação das provas oralmente produzidas em audiência de julgamento, gravadas, modificá-la apenas nos casos em que a decisão recorrida não colhe manifestamente apoio nos elementos de prova que o processo comporta.

Não sendo esse o caso, não se divisando qualquer erro de julgamento da matéria de facto e não se divisando igualmente que a decisão recorrida padeça de qualquer dos vícios a que se refere o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, não alegados, mas em todo o caso do conhecimento oficioso, importa considerar definitivamente fixada a matéria de facto da sentença recorrida e consequentemente manter a condenação penal e civil da recorrente.

Improcede, pois, a impugnação factual realizada.

Pretende a recorrente que a pena em que foi condenada seja reduzida ( penas parcelares de 70 e 40 dias de multa e pena única de 80 dias de multa) e fixada na mesma medida em que o foi para o co-arguido ( penas parcelares de 60 e 30 dias de multa e pena única de 70 dias de multa) porque nenhuma diferença de actuação ou ao nível das circunstâncias pessoais impõe tratamento diferente entre os arguidos.

Tendo presente o disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal que contêm as regras de doseamento da pena e confrontando a matéria de facto constante da sentença recorrida, verificamos que ao nível das circunstâncias dos factos ilícitos imputados existe uma diferença do grau de ilicitude que igualmente se reflecte na intensidade do dolo. Assim, a actuação da arguida reveste-se de uma maior intensidade espelhada no maior número de expressões intimidatórias e ofensivas da honra proferidas que justifica plenamente a diferença, aliás não significativa, das penas parcelares e única aplicadas, sendo manifesta a falta de razão da recorrente.

Sem necessidade de maiores considerandos, se conclui que a pena aplicada deve ser mantida.


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em negar provimento ao recurso interposto pela arguida B…, mantendo a sentença recorrida.

Pelo seu decaimento em recurso vai a recorrente condenada em custas, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC.


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 (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)
 (José Eduardo Fernandes Martins)