Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2336/19.8T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INCIDENTE DE HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
PEDIDO IMPLÍCITO
PROVA
Data do Acordão: 01/07/2021
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.351, 353, 354 CPC, ARTS. 2132, 2133, 2147 CC
Sumário: I - Invocado, em incidente de habilitação de herdeiros, que os requeridos são os «herdeiros» do falecido, tem de entender-se, perante a letra dos preceitos atinentes – artºs 351º e segs do CPC – e a lógica exegese dimanante do desiderato do incidente, que, ao menos implicitamente, os requerentes se reportam aos «únicos e «universais» herdeiros daquele.

II - A certidão de nascimento que prova a qualidade de filho do falecido é documento bastante para provar a qualidade de herdeiro no âmbito do artº 354º do CPC.

Decisão Texto Integral:

DESPACHO.

Atento o invocado pelos recorridos, relevo o lapso e considero efetuado o pagamento da multa de 63,75 euros, com efeitos liberatórios relativamente à previsão do artº 570º nº5 do CPC.

DECISÃO DO RELATOR – ARTº 652º Nº1 AL. C) DO CPC.

1.

D (…) e R (…), deduziram, por apenso à ação sob a forma de processo comum, em que é requerida G (…), SA,  incidente de habilitação de herdeiros do autor C (…)

Alegaram:

O autor faleceu no estado de viúvo, sem testamento e deixou como seus herdeiros os seus filhos: C (…) e mulher e R (…).

A requerida deduziu oposição.

Alegou que os requerentes não juntaram instrumento de habilitação de herdeiros nem alegaram que os requeridos são os únicos e universais herdeiros conhecidos.

Assim, e nos termos do artº 354º do CPC, a habilitação deve ser julgada improcedente.

Os requerentes responderam.

Disseram que há que distinguir entre o artº 353º e 354º, sendo o caso vertente subsumível neste último preceito e, assim, que os documentos juntos fazem prova idónea do alegado e, ainda, que foi requerida a habilitação dos «herdeiros» do falecido.

2.

Seguidamente foi proferida sentença na qual foi decidido:

«…julgo procedente a habilitação de herdeiros e, em consequência, declaro C (…) e R (…) na qualidade de únicos herdeiros de C (…), habilitados a prosseguir os termos desta ação em substituição daquele autor na relação

substantiva em litígio.»

3.

Inconformada recorreu a G (…).

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Foi deduzido Incidente de Habilitação de Herdeiros por falecimento de C (…) tendo os requerentes identificado como herdeiros daquele os identificados C (…) e mulher, e no pedido também o autor R (…)

 2. Não foi junto aos autos qualquer certidão de habilitação de herdeiros que comprovasse a universalidade dos herdeiros habilitados, mas tão só certidões de nascimentos dos mesmos.

3. A recorrida contestou o Incidente, advertindo que não estava assegurado que os herdeiros identificados nas certidões de nascimento fossem os únicos e universais herdeiros com direito a legitimar a substituição do falecido, nem que tal qualidade havia sido invocada pelos requerentes, pugnando pela improcedência do pedido.

 4. Os autores usaram o seu direito de resposta, e reiteraram que apenas tinham qualificado os herdeiros como tal, sem indicação de serem ou não únicos, mas que essa simples qualificação não impedia o seu reconhecimento como legítimos sucessores do falecido, para prosseguimento da ação que, entretanto, estava suspensa.

5. São dois os factos provados na sentença: que o autor C (…) faleceu a 1 Outubro 2019 e que C (…) e R (…) eram seus filhos e como tal, herdeiros.

6. Apesar do assim provado, a sentença veio a declarar os filhos C (…) e R (…) como únicos herdeiros do falecido Celestino.

7. Qualificação essa que extravasa o articulado e o pedido no Incidente, e extravasa os factos provados.

8. Pelo que manifestamente a decisão enferma de nulidade, por decidir objecto diverso do pedido, que consistia no reconhecimento da habilitação dos herdeiros identificados no Incidente na posição do falecido C (…), para prosseguimento dos autos.

 9. Sem conceder, sempre a decisão proferida labora em erro na apreciação das provas produzidas, pois que a qualidade de únicos herdeiros, para além de não ter sido alegada nem pedida, não foi provada pelos requerentes do Incidente.

10. Violando o artº 609º nº 1 e 615, nº 1 e) e nº 4 do CPC.

11. Deve ser a sentença recorrida revogada, suprimindo-se a qualificação de únicos herdeiros aos sucessores identificados como filhos do falecido.

Contra alegaram os requerentes pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

- O tribunal a quo não cometeu erro na apreciação das provas produzidas;

- A qualidade de herdeiros legais dos habilitados foi alegada e requerida pelos reclamados; - A referida qualidade foi provada pela prova documental junta aos autos;

- A sentença não violou o art.º 609º nº 1 e 615, nº 1 e) e nº 4 do CPC.

 - A sentença respeitou o artº 354º do CPC, e decidiu apenas assegurar a legitimidade para a ação, fazendo intervir, em substituição da parte falecida as pessoas que, no momento em que o incidente é decidido, se devem considerar herdeiras, de acordo com o nº 2 daquele preceito legal do CPC.

- A sentença não deve merece qualquer reparo legal e deve produzir efeitos, alcançando-se em consequência o desiderato de “fazer andar“ o processo principal, assumindo os habilitados a posição processual do autor falecido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Improcedência da habilitação.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos:

1. No dia 1 de outubro de 2019, faleceu C (…), no estado de viúvo de O (…)não tendo outorgado testamento ou qualquer disposição de última vontade.

2. Sucedem-lhe, como seus herdeiros os seus filhos: C (…) e R (…).

6.

Decidindo.

6.1.

O tribunal a quo julgou, de jure, nos seguintes termos:

No caso de habilitação em que a qualidade de herdeiro não se encontra declarada noutro processo, ou reconhecida em habilitação notarial, dispõe o artigo 354.º do Código de Processo Civil que o juiz decide o incidente logo que, findo o prazo da contestação, se faça a produção de prova que no caso couber.

 Atenta a produção de prova que foi realizada em sede documental, resulta demonstrado que os únicos herdeiros do autor são os seus filhos, na posição de herdeiros legítimos – artigos 2132.º, 2133, alínea d) e 2147.º, do Código Civil.

6.2.

São os seguintes os preceitos do CPC a considerar.

Artº 351º:

1 - A habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes.

Artº 353º:

Processo a seguir no caso de a legitimidade já estar reconhecida em documento ou noutro processo

1 - Se a qualidade de herdeiro ou aquela que legitimar o habilitando para substituir a parte falecida já estiver declarada noutro processo, por decisão transitada em julgado, ou reconhecida em habilitação notarial, a habilitação tem por base certidão da sentença ou da escritura, sendo requerida e processada nos próprios autos da causa principal.

2 - Os interessados para quem a decisão constitua caso julgado ou que intervieram na escritura não podem impugnar a qualidade que lhes é atribuída no título de habilitação, salvo se alegarem que o título não preenche as condições exigidas por este artigo ou enferma de vício que o invalida.

3 - Na falta de contestação, verifica-se se o documento prova a qualidade de que depende a habilitação, decidindo-se em conformidade; se algum dos chamados contestar, segue-se a produção da prova oferecida e depois decide-se.

Artº 354º:

Habilitação no caso de a legitimidade ainda não estar reconhecida

1 - Não se verificando qualquer dos casos previstos no artigo anterior, o juiz decide o incidente logo que, findo o prazo da contestação, se faça a produção de prova que no caso couber.

6.3.

O caso vertente subsume-se na previsão do artº 354º.

Vista a letra de  tais normativos  verifica-se que nela não foram consagradas as expressões «únicos» ou «universais» sucessores ou herdeiros.

Nela apenas constando, comedida e parcimoniosamente (e, assim, virtuosamente), as expressões «sucessores» ou «herdeiros».

Mas perante tal contenção, ninguém terá a ousadia de defender que a lei apenas se quis reportar a alguns herdeiros, que não, necessariamente, a todos os herdeiros do fenecido.

Efetivamente, os elementos lógico e  teleológico da hermenêutica jurídica clamam, na economia do jaez e desiderato deste incidente, a meridiana conclusão que a lei se reporta, efetivamente, a todos os herdeiros do falecido.

Se esta interpretação é a mais lógica e sensata para a lei, não pode deixar de o ser para a declaração plasmada no requerimento inicial e no consequente pedido nela formulado a final.

Quando muito, podemos aqui invocar, jurídico processualmente, a figura do pedido implícito.

Na verdade, tal como uma declaração negocial, também uma decisão ou um articulado da parte devem ser devidamente analisados e interpretados de sorte a que deles se retire o seu  real e verdadeiro fundamento, sentido e fito.

Nesta conformidade, o intérprete deve partir do texto e do seu sentido perfunctório, liminar e heurístico para, através de adequada hermenêutica jurídica alcançar o real e essencial pensamento,  a ratio e teleologia do quid interpretando.

Pois que só assim se consecute a finalidade suprema a alcançar pela aplicação concreta do direito: a realização efetiva da justiça material – cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 05.11.1998, p. 98B712 in dgsi.pt.

Este vislumbre último pode não advir, desde logo e como é preferível, da letra da declaração adrede consignada; sendo pois, por vezes, necessário efetivar um esforço hermenéutico/exegético para o alcançar, máxime se aquele verdadeiro fundamento e finalidade se indiciarem tácitos ou implícitos.

Ora: «A declaração negocial tácita deve deduzir-se de factos que ‘com toda a probabilidade a revelem» -artigo 217.º, n.º 1 do CC.

Assim: «a inequivocidade dos factos concludentes não exige que a dedução, no sentido de auto regulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade …A univocidade dos “facta concludentia” deve ser aferida por um critério prático que não de acordo com um critério estritamente lógico. Há que buscar um grau de probabilidade da vida da pessoa comum, de os factos serem praticados com determinado significado negocial.

 Já a autorização ou aceitação implícita não tem de se inferir de factos por inequivocamente se conter na declaração integrando-se na vontade que esta exprime» - Ac. do STJ de  01.07.2008, p. 08A1920 in dgsi.pt, citando Mota Pinto in Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª ed., 425.

Nesta conformidade, tem sido entendido que, por ex., na ação de reivindicação, quando o autor pede e vê reconhecido o seu direito de propriedade, tem direito à restituição da coisa, mesmo que não tenha expressamente formulado tal pedido – cfr. Ac. do STJ de 05.11.1998, p. 98B712.

E demonstrada a propriedade – cujo pedido de reconhecimento pode ser implícito – a restituição só pode ser recusada excecionalmente e apenas nos casos previstos na lei, assumindo-se pois a entrega/restituição como consequência da constatação daquele direito, por o direito de reivindicar ser uma manifestação da sequela – artº 1311º nº2 do CC e Acs. do STJ de  13.07.2010 e de 08.02.2011, dgsi.pt, p. 122/05.1TBPNC.C1.S1 e 12/09 9T2STC.E1.S1.

Assim devendo ser, e retornando ao caso vertente,  a referência pelos requerentes aos «herdeiros» do falecido, tem de entender-se como reportada a todos os herdeiros do mesmo.

Pois que tal dimana, como se viu, dos preceitos legais por eles invocados.

E, ademais, tal se mostra consonante com a própria defesa dos seus interesses, na medida em que a intervenção de todos os herdeiros do de cujus, acarreta  a completa e definitiva resolução do litígio, versus o que aconteceria com a intervenção de apenas alguns deles.

Aliás, a, eventual hipótese de os herdeiros chamados serem apenas alguns, e não todos, afetaria apenas, ou essencialmente, a posição destes e dos requerentes, que não, ou não tanto e, quiçá, em medida atendível, a da recorrente.

Pelo que nem sequer se enxerga, nem a recorrente, aliás, o alega, o seu real e substancial interesse em contestar deste modo a pretensão dos requerentes.

Finalmente e telegraficamente sempre se dirá que os documentos apresentados – certidões de nascimento - fazendo prova da qualidade de filhos dos requeridos relativamente ao sucumbido, provam, concomitantemente, a qualidade de herdeiros daqueles relativamente a este, nos termos das disposições legais citadas na decisão recorrida.

Improcede, brevitatis causa, o recurso.

7.

Sumariando – artº663º nº7 do CPC.

I - Invocado, em incidente de habilitação de herdeiros, que os requeridos são os «herdeiros» do falecido, tem de entender-se, perante a letra dos preceitos atinentes – artºs 351º e segs do CPC – e a lógica exegese dimanante do desiderato do incidente, que, ao menos implicitamente, os requerentes se reportam aos «únicos e «universais» herdeiros daquele.

II -  A certidão de nascimento que prova a qualidade de filho do falecido é documento bastante para provar a qualidade de herdeiro no âmbito do artº 354º do CPC.

8.

Decisão.

Termos em que se decide julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas recursivas pela recorrente.

Coimbra, 2021.01.14.

Carlos Moreira (Relator)