Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
878/14.0TBMGR-Q.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
MEDIDA DE ACOLHIMENTO RESIDENCIAL
CONFIANÇA COM VISTA A FUTURA ADOPÇÃO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1978.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 3.º, 1 E 2, C), 34.º; 38.º-A E 39º, 1, G), DA LPCJP
Sumário: I – Inexistindo entre o menor e seus pais os vínculos afectivos próprios da filiação e inexistindo, igualmente, quaisquer laços afectivos com a família alargada, designadamente com os avós, está desaconselhada a integração do menor na família natural, por isso acarretar grande perigo para o menor.
II – Pelo que tudo aconselha que, em tal circunstancialismo, a adopção seja a única solução que permite ao menor satisfazer os seus interesses.
Decisão Texto Integral: Apelações em processo comum e especial (2013)
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Relator: Falcão de Magalhães
1.º Adjunto: Des. Pires Robalo
2.º Adjunto: Des. Teresa Albuquerque
Apelação n.º 878/14.0TBMGR-Q.C1 
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:1
 

I – A) – 1) - 2«[…] Os presentes autos tiveram início com o procedimento judicial urgente requerido pelo Ministério Público em benefício de AA, nascido em ../../2022, filho de BB e de CC, com vista à ratificação da medida de acolhimento residencial aplicada pela CPCJ ... que em benefício da criança instaurou processo de promoção e proteção. *

Em 16.04.2022 foi aplicada pelo Tribunal, a título cautelar, a medida de acolhimento residencial e confirmada a medida determinada pela CPCJ ....
Declarou-se aberta a instrução.

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Na sequência do parecer do ISS, o Ministério Público promoveu a aplicação de medida de confiança da criança com vista a futura adoção, não tendo os progenitores dado o seu acordo.
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O Ministério Público apresentou alegações nos termos que constam do articulado apresentado em 12.09.2022, ref. a 9007169. *
Os progenitores e a criança estão representados por advogado.
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Os progenitores não apresentaram alegações.
 
*
Foi realizada perícia de avaliação psicológica e psiquiátrica aos progenitores.
+

Procedeu-se a debate judicial, de acordo com o formalismo legal aplicável, com produção da prova requerida pelo Ministério Público e tomada de declarações aos progenitores. […]».
*

2) – Em 4/10/2023, pela Mma. Juiz do Juízo de Família e Menores ... e pelos Exmos. Juízes Sociais, veio a ser proferido Acórdão, constando, da respectiva parte dispositiva, o seguinte:
«[…] ao abrigo das disposições legais supra mencionadas, o Tribunal decide:

a) confiar a criança AA a instituição com vista à adoção, indicando-se para o efeito o Centro de Acolhimento Temporário
DD, em ..., onde se encontra acolhido;

b) nomear como curador(a) provisório(a) da criança o(a) Diretor(a) do Centro de Acolhimento Temporário DD, em ...:
c) declarar os progenitores BB e de CC
 inibidos do exercício das responsabilidades parentais;

d) proibir todas as visitas por parte dos progenitores e de quaisquer outros familiares.

*

Fixa-se à presente ação o valor de € 30.000,01 (artigos 296°, 303°, n° 1 e 2, 306°, n° 1 e 2 do CPC).
Sem custas (artigo 4°, n° 1, al. a) e n° 2, al. f), do RCP). […]».
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B) – Inconformados com essa decisão, vieram dela interpor recurso, separadamente, os progenitores do menor AA, bem assim como este último, por intermédio do respectivo e Ilustre Advogado,
 

tendo sido este recurso o único que subsistiu e foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo3.  A findar a alegação de recurso foram oferecidas as seguintes “conclusões”: «[…] 1. A decisão de que ora se recorre, determinou a confiança a instituição com vista a adoção nos seguintes termos:

"IV - Decisão Em face do exposto, ao abrigo das disposições legais supra mencionadas, o Tribunal decide:

a) confiar a criança AA a instituição com vista à adoção, indicando-se para o efeito o Centro de Acolhimento Temporário
DD, em ..., onde se encontra acolhido;

b) nomear como curador(a) provisório(a) da criança o(a) Diretor(a) do Centro de Acolhimento Temporário DD, em ...:
c) declarar os progenitores BB e de CC
 inibidos do exercício das responsabilidades parentais;

d) proibir todas as visitas por parte dos progenitores e de quaisquer outros familiares."

2. Preterindo o amor de mãe manifestado em audiência de julgamento de entrega da confiança do menor a instituição para acompanhamento da sua criação e educação com visita da família biológica.

3. Existindo um conflito de interesses superiores de proteção do menor, que importará quantificar e descodificar determinando qual o mais importante que urge salvaguardar:

a) Nomeadamente a proteção da família biológica num estado dito "Mariano" com normas rígidas Constitucionalmente consagradas. b) A proteção do superior interesse da criança.

4. Crendo-se que a confiança para adoção poderá ser a melhor opção. Neste caso o Estado daqui "lava as mãos" sem quaisquer custos porquanto as despesas de criação e educação ficam a cargo do casal adotante.

 

5. Contudo não deixa de também ser válida a opção de confiança a instituição onde possa o menor receber visitas da família biológica.

Podendo assim continuar a acompanhar o interesse superior da criança mantendo laços familiares. Neste caso o Estado fica com o encargo de subvencionar a instituição que promoverá a educação do requerente

6. Não discutiremos o "amor" de mãe ou o "amor" de casal adotante ainda que homossexual, assim como não discutiremos que existem instituições muito capazes e boas para "criarem e educarem" qualquer criança.

7. Crendo-se que em qualquer dos casos a criança ficará sempre melhor à guarda de uma família.
8. Pelo exposto forma violadas as normas e princípios que a seguir se enunciam:

- o princípio da prevalência da família biológica ou adotiva (artigo 4°, al. h) da LPCJP),, o art° 1978° do CC, tendo em conta o superior interesse da criança ou do jovem (artigo 4°, al. a) da LPCJP

- os (artigos 35°, n° 1, al. g) e 38°-A da LPCJP) o (artigo 3°, n° 1 da LPCJP) o (artigo 3°, n° 1 da LPCJP), sendo exemplo de tais situações aquelas em que a criança está abandonada ou entregue a si própria, sofre maus tratos físicos ou psíquicos, não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal e está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional (n° 2, al. a), b), c) e f)), nomeadamente não resulta dos_fatos dados como provados que o requerente_foi mal tratada pelos pais.

- (artigo 34° da LPCJP) 35°, da LPCJP artigo 1978° do CC o 1978° do CC (artigo 62°-A, n° 3 da LPCJP), que impedi que haja lugar a visitas por parte da família biológica (artigo 62°-A, n° 6 da LPCJP). artigo 1920°-B, al. d) do CC e artigos 1°, n° 1, al. g), 69°, n° 1, al. f) e 78° do CRC,

 

- a douta decisão violará ainda os artigos 88°, n° 8 da LPCJP Registo Civil (artigo 1920°-B, alínea d) do CC e artigos 69°, n° 1, alínea f) e 78° do CRC); (artigo 122° - A da LPCJP).- o art°1978° do código civil.
Pelo que está em causa no objeto deste recurso:

9. A aplicação da medida de confiança com vista à adoção - art. 35°, alínea g) da LPCJP - pressupõe que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação, mercê da verificação objetiva de qualquer das situações previstas no n.° 1 do artigo 1978.° do CC, nomeadamente, se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança (alínea d). Outro critério orientador patente no artigo 4° LPCJP é a proporcionalidade da medida. o superior interesse das crianças versus o direito dos progenitores, numa preponderância do primeiro por estar em causa o seu destino e a sua vida;

10. Se terem dado aos progenitores oportunidades relevantes e efetivas para evitar este desfecho, sempre penoso, para eles e para a criança; Matéria sobre a qual o douto Acórdão é omisso.

11. Se a solução encontrada é proporcional ao sacrifício impostos aos progenitores, em face do benefício que dela resultará para as crianças; 12. Da decisão não resulta uma objetiva consideração de factos provados que demonstram, à evidência, estarem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação.

Pelo que deverá ser o presente recurso admitido e revogado o acórdão proferido que determina a medida de confiança a instituição do menor com vista à adoção: - por errada interpretação e conjugação de normas nomeadamente do artigo 1978° do código civil de da LPCJP;

- por deficiência e omissão da matéria de fato dada por provada nulidades que invoca nos termos gerais dos artigos 186 e seg. do CPC.

 
- por viabilidade da questão.
Desde que orçamentado no OE é viável o pedido da progenitora.

Sendo substituído por decisão que determine a entrega do menor a instituição que supervisione as suas necessidades e permita as visitas dos pais biológicos.
Assim se fará justiça. […]».

*

2) - O Ministério Público, na resposta que apresentou à alegação de recurso, ofereceu as seguintes conclusões:

«[…] 1. O acórdão recorrido aplicou em beneficio do menor AA, actualmente com um ano de idade, a medida de confiança a instituição com vista à adopção.

2. No acórdão recorrido foram ponderadas todas as questões que eram colocadas, seja em termos fácticos, seja em termos jurídicos, tendo o tribunal recorrido, a final, aplicado o direito aos sobreditos factos, não padecendo de qualquer nulidade, mormente por omissão de pronúncia.

3. O acórdão recorrido, de forma assertiva, lógica, clara e cabalmente fundamentada, e por reporte aos princípios orientadores em matéria de intervenção a nível da promoção e protecção, concluiu que a criança se encontrava em perigo e da necessidade e adequação de aplicação da medida de promoção e protecção em questão.

4. Tal perigo é tanto mais evidente considerando que os progenitores, por falta de vontade e capacidade, são inaptos para prestar a assistência necessária ao AA, levando a que, caso a criança lhes fosse entregue, se verificasse um perigo grave para a sua saúde, formação, educação e desenvolvimento, pois que não souberam, nem quiseram, criar um ambiente familiar que lhe permitisse crescer e desenvolver- se de forma saudável, de tal modo que ele teve de ser retirado do meio familiar natural logo após o nascimento.

 

5. É no superior interesse desta criança que reside a aplicação da medida de confiança com vista à adopção, de modo a que a mesma cresça num ambiente familiar e social que lhe permita desenvolver-se e ser amada como precisa e é seu direito.

6. Atenta a tenra idade da criança, e a ausência manifesta de qualquer fundada expectativa de que, num período de tempo útil, a família natural esteja em condições de exercer de forma minimamente aceitável as suas responsabilidades parentais, torna-se premente o seu encaminhamento para a adopção, que se apresenta como o único projecto de vida estável em termos de presente e de futuro.

7. O acórdão recorrido não merece, assim, qualquer censura, devendo manter-se nos seus precisos termos.

Assim, mantendo-se o Acórdão recorrido, e julgando improcedente os recursos, Vossas Excelências, decidindo, farão, como habitualmente, JUSTIÇA! […]». *

II – O objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do novo Código de Processo Civil (doravante, NCPC4), não olvidando, porém, que não cumprirá conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”5 e que o Tribunal, embora possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar.

 

Ora, em face do exposto, não se vê que o Tribunal “a quo” haja omitido pronúncia sobre qualquer questão - na acepção que acima se indicou dever ser dada ao termo - e que o Recorrente haja, minimamente, concretizado nas conclusões da alegação de recurso.

Por outro lado, também quanto aos princípios e às normas cuja violação imputa ao Tribunal “a quo” (“maxime” nas conclusões 8º e 12º), fica-se, o Recorrente, pela respectiva enunciação, sem que, de forma minimamente cabal, concretize o modo como o Tribunal levou a cabo tal violação.
É certo que o Recorrente disse, nas respectivas conclusões:

a) - Que o Tribunal preteriu “…o amor de mãe manifestado em audiência de julgamento de entrega da confiança do menor a instituição para acompanhamento da sua criação e educação com visita da família biológica.”. Ora, essa manifestação não resulta provada na decisão proferida quanto à matéria de facto, nem o Recorrente pediu qualquer alteração a essa decisão.

b)- Que não foram dadas, aos progenitores, oportunidades relevantes e efectivas para evitar o resultado a que se chegou.

Mas, quais as concretas oportunidades, deveria o Tribunal ter dado aos progenitores do AA, que fossem idóneas a – perante a factualidade apurada – chegar a diferente solução daquela a que chegou? O Apelante não concretiza.

c)- Que, “…da decisão não resulta uma objetiva consideração de factos provados que demonstram, à evidência, estarem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação.”. 

Ora, tal afirmação, a ser correcta, poderá denotar erro de julgamento, mas é absolutamente ineficaz a gerar qualquer nulidade de sentença.

Portanto, no caso, o que importa resolver, afinal, é o acerto do decidido no Acórdão recorrido, “maxime” quanto à medida aplicada à criança

AA, de confiança à instituição Centro de

 

Acolhimento Temporário DD, em ..., com vista a futura adoção. 
* III – Fundamentação:  

A) - No Acórdão recorrido, a decisão proferida quanto à matéria de facto, foi a que se transcreve:

«[…] Com relevância para a decisão a proferir, resultaram provados os seguintes factos:

1. AA nasceu em ../../2022 e é filho de BB e de CC.

2. A progenitora nasceu em ../../2001 e é filha de EE e de FF.

3. O progenitor nasceu em ../../2002 e é filho de GG e de HH.

4. AA nasceu em casa, tendo entrado no Serviço de Urgência Obstétrica do Centro Hospitalar ... ao colo da mãe, após o parto.

5. O Serviço Social do Centro Hospitalar comunicou à CPCJ o nascimento da criança, na sequência do que esta, conhecedora da situação da progenitora e seu agregado familiar, deliberou a aplicação da medida de acolhimento residencial em 13.04.2022.

6. Nesse dia, os técnicos da CPCJ dirigiram-se ao Hospital e propuseram à progenitora o seu acolhimento juntamente com a criança, o que esta recusou.

7. Em face da falta de consentimento dos progenitores, a medida foi confirmada pelo Tribunal e aplicada a título cautelar em 16.04.2022 e mantém-se até à presente data.

8. Os elementos do agregado familiar materno apresentam problemas de saúde mental e o relacionamento intrafamiliar e para com terceiros carateriza-se pelo conflito, discussões e por ofensas verbais e corporais.

 

9. Em particular, o relacionamento entre a progenitora e a avó e bisavó maternas é marcado por discussões e ofensas físicas e verbais regulares.

10. À data, a avó materna residia em habitação social e beneficiava de Rendimento Social de Inserção, não tendo ocupação laboral, sendo que atualmente encontra-se internada para tratamento da dependência de álcool.
11. A progenitora beneficiou da medida de acolhimento residencial, desde
16.11.2015 até à maioridade (apenso L).

12. Enquanto acolhida recebeu acompanhamento pedopsiquiátrico, cumpriu a medicação psiquiátrica indicada, havendo registo de ocorrência de episódios de automutilação.

13. Todos os seus quatro irmãos, tios maternos do AA, beneficiaram de igual medida, que apenas cessou quanto àqueles que atingiram a maioridade, sendo que os dois ainda menores têm proposto como projeto de vida a confiança a instituição com vista à adoção (apensos L, M, N).

14. Foi realizada perícia médico-legal à avó materna, em cujo relatório se concluiu:

(…) apurou-se: (i) existência de traços psicopatológicos de personalidade (que levantam a hipótese de um tipo de perturbação de personalidade - borderline (…), caracterizada por estilo de vida esquizoide/bizarro, predisposição paranoide, problemas somáticos graves, sintomatologia depressiva grave com ideação suicida ativa; manifestação de comportamento antissocial, juízo pobre, instabilidade emocional grave, irresponsabilidade, egocentrismo e imaturidade, e fraca possibilidade de aderência a tratamento/potencial de mudança; (ii) problemas emocionais graves/psicopatologia (presença incapacitante de sintomatologia depressiva, ansiosa e conversiva, desconfiança e sensibilidade interpessoal nas relações afetivas); (…); (iv) modelos parentais educativos de referência disfuncionais, marcados por negligência afetiva; (v) modelo de vinculação insegura evitante, caraterizada por insegurança afetiva nas relações com os demais e desconforto com a intimidade e proximidade emocional.

 

(…) apresenta forte desajustamento psicológico (emocional e de personalidade) e fraco potencial de mudança, não estando capaz de cuidar de si mesma e, portanto, nem assim de garantir o salutar desenvolvimento dos filhos. A possibilidade de reintegração dos menores no contexto materno representa um risco elevado para as crianças (…).

15. A progenitora esteve acolhida até 2019 e após cessar o acolhimento em virtude da maioridade decidiu viver com o progenitor, que conheceu nas redes sociais.

16. Os elementos da família paterna não trabalham, vivem em casas devolutas que ocupam sem condições de habitabilidade, havendo registo de consumo de estupefacientes e de violência doméstica.

17. Inicialmente os progenitores residiram na ... e após mudaram-se para o ..., onde pernoitavam em casas devolutas, sem condições de habitabilidade, estando a progenitora já grávida da criança.

18. Ocorreram diversos episódios de ofensas físicas e verbais entre o casal, tendo o progenitor agredido fisicamente a progenitora e ameaçado a mesma com uma arma branca, inclusive enquanto grávida da primeira filha.

19. Apesar das várias tentativas de intervenção, os jovens nunca aderiram às propostas, nomeadamente de integração em alojamento temporário.

20. Em ../../2021 nasceu a primeira filha do casal, II.

21. No âmbito do processo de promoção e proteção instaurado em seu benefício (apenso P), esta criança beneficiou da medida de apoio junto da bisavó materna, que culminou com agressões físicas entre a progenitora, a avó e a bisavó maternas.

22. A partir de 08.03.2021, a criança beneficiou da medida de apoio junto da mãe, a concretizar em casa de acolhimento para jovens mães.

23. Sucede que a progenitora quis sair da Casa para residir com o namorado, agredindo verbalmente e dirigindo expressões ameaçadoras aos técnicos e

 

funcionários da casa na presença da criança, na sequência do que em 30.04.2021 foi aplicada a medida de acolhimento residencial da criança.

24. Por acórdão de 21.04.2022 foi aplicada a favor da II a medida de confiança a instituição com vista à adoção.

25. No âmbito da intervenção protetiva em benefício da primeira filha do casal, os progenitores não aderiram às propostas dos técnicos intervenientes e dirigiram-lhes insultos e ameaças contra a vida.

26. Já após o acolhimento da II, o casal regressou à cidade ... e à vivência como sem abrigo, o que manteve no período de gravidez do AA. 27. Anteriormente ao nascimento do AA, a progenitora foi advertida pelo ISS da necessidade de sinalizar o nascimento do filho à CPCJ para avaliação e orientação, o que não fez.

28. À data do nascimento, a progenitora encontrava-se a viver em casa da avó materna da criança, tendo sido posteriormente expulsa da mesma.

29. Em 22.04.2022, os progenitores foram informados da identificação e contactos da casa de acolhimento onde a criança se encontra.

30. Desde então, a progenitora nunca contactou a casa de acolhimento com vista a obter informação sobre o filho ou a estabelecer contacto com o mesmo e o progenitor fê-lo três vezes.

31. Nunca realizaram qualquer visita presencial, o que igualmente não foi feito por outros elementos do agregado familiar materno ou paterno.

32. Após o acolhimento do AA, os progenitores regressaram ao ... e à vivência como sem abrigo.

33. Os progenitores permanecem, pelo menos desde data anterior ao nascimento da filha II, sem habitação, sem ocupação laboral e fonte de rendimentos, beneficiando o progenitor do Rendimento Social de Inserção.

34. O progenitor consome estupefacientes, em particular cocaína, despendendo integralmente no mesmo o montante da aludida prestação social.

 

35. Aquando do cumprimento da pena de prisão, a progenitora pediu que lhe fosse dada a oportunidade de ter os filhos consigo no estabelecimento prisional, depois solicitou ser integrada com estes numa instituição e mais tarde pediu que fossem entregues à avó materna.

36. Após sair em liberdade, em 26.02.2023, a progenitora passou a residir na habitação da avó materna.

37. Em 24.07.2023, a progenitora remeteu um e-mail ao processo em que peticionou a realização de convívios de fins de semana com o filho, bem como videochamadas e manifestou: gostaria que o meu filho fica se na instituição até 15 anos.

38. Em 22.08.2023, a progenitora remeteu novo e-mail ao processo em que expressou: Eu queria que o meu filho fica se na instituição até aos 18 anos eu agora estou a fazer uma nova vida com outra pessoa e nós estamos a organizar a nossa vida. Eu estou muito melhor agora eu quero que me dêem outra oportunidade.

39. Por e-mail de 26.09.2023, a progenitora solicitou que a guarda do seu filho fosse dada ao seu atual companheiro.

40. Foi realizada perícia de avaliação psicológica à progenitora, cujo relatório junto em 17.07.2023, ref.ª 9935935 se dá por reproduzido, em que se concluiu, dentre o mais:

No que concerne a eventual sintomatologia psicopatológica, da avaliação decorre a sinalização de sintomatologia clinicamente expressiva no âmbito das dimensões depressão, ansiedade fóbica, ideação paranoide e psicoticismo, que respeitam a humor deprimido e a um modo perturbado de funcionamento cognitivo – com um pensamento projectivo, hostilidade, suspeição, egocentrismo – bem como sintomas de controlo de pensamento.

Da análise do seu perfil de personalidade (Cfr. 1.2. Personalidade) emergem características de especial relevo no âmbito das relações interpessoais/sociais e do

 

exercício da parentalidade, denotando-se imaturidade e um perfil sugestivo de perturbação da personalidade. Destacam-se evidentes dificuldades na auto-regulação emocional, défice do controlo de impulsos e baixa tolerância à frustração, bem como défices de ressonância afectiva e empatia “(…) fria e distante, sentindo-se pouco confortável em situações em que se estabelecem frequentemente relações interpessoais e nas quais se manifestam emoções e sentimentos. (…) reactiva e emocionalmente instável (…) Dominante, manifestará os seus desejos e opiniões de forma a conseguir o que pretende e sentir-se-á livre para criticar e tentar controlar a conduta dos outros, podendo mostrar-se antagonista e agressiva. (…) poderá mostrar-se insensível, ignorando os sentimentos dos outros. Será imatura e a sua consciência do que é correcto/incorrecto está pouco desenvolvida (i.e. lacunas importantes ao nível dos valores morais interiorizados) pelo que tenderá a ignorar ou incumprir regras. Individualista e solitária, percepcionar-se-á como auto-suficiente e ser-lhe-á difícil solicitar ajuda quando necessita. Terá dificuldades em aceitar novos pontos de vista, mesmo os que implicam emoções. Tolerante com a desordem ou com os erros, tenderá a deixar as coisas ao acaso e sentir-se-á mais confortável em situações sem muita ordem”. Embora a examinada verbalize priorizar o bem-estar dos menores, dos comportamentos manifestados (plasmados nas peças processuais consultadas e referenciados em sede de entrevistas) decorre egocentrismo.

A examinada verbaliza vínculo aos menores porém não se mostra capaz de identificar consistentemente as suas Necessidades emocionais, afectivas e instrumentais e, sobretudo, de evidenciar comportamentos que correspondam às mesmas, pelo que se sublinha valorável risco e não se afigura protector para os menores o exercício do papel parental”.

41. Foi realizada perícia de avaliação psiquiátrica à progenitora, cujo relatório junto em 13.07.2023, ref.ª 9926897 se dá por reproduzido, em que se concluiu, dentre o mais:

 

(…) da análise do todos os elementos disponíveis, verificou-se que a examinanda evidenciava características compatíveis com um diagnóstico de Atraso mental Ligeiro. Não foram percetíveis outras alterações psicopatológicas que permitissem elaborar um diagnóstico de doença mental grave.

Ao nível da personalidade, evidenciou a existência de traços patológicos, nomeadamente imaturidade emocional, desresponsabilização, impulsividade comportamental, e dificuldades em respeitar normas e regras sociais.

Apesar de ter manifestado boa ressonância afetiva relativamente aos filhos, o seu padrão comportamental não parece indiciar uma capacidade estruturada para proporcionar bem-estar e um desenvolvimento adequado à vida em sociedade aos filhos. Por outro lado, a situação de baixa dotação cognitiva, pode constituir uma dificuldade na gestão dos problemas que eventualmente surjam no seu dia a dia, pelo que a examinanda, globalmente, não reúne capacidades parentais adequadas.

42. Foi realizada perícia de avaliação psicológica ao progenitor, cujo relatório junto em 17.07.2023, ref.ª 9935000 se dá por reproduzido, em que se concluiu, dentre o mais:

No que concerne a eventual sintomatologia psicopatológica, a avaliação identifica sintomatologia clinicamente expressiva no âmbito das dimensões depressão, ansiedade Fóbica, hostilidade, sensibilidade Interpessoal e psicoticismo, que respeitam a humor deprimido, sentimentos de inadequação pessoal e inferioridade particularmente na comparação com os outros, pensamentos emoções e comportamentos característicos do estado afectivo negativo da raiva, e sintomas de controlo de pensamento.

Da análise da personalidade emergem características de especial relevo no âmbito das relações interpessoais/sociais e do exercício da parentalidade, denotando-se imaturidade e um perfil sugestivo de perturbação da personalidade. Destacam-se evidentes dificuldades na auto-regulação emocional e propensão para a instabilidade, com enfoque no défice do controlo de impulsos e baixa tolerância à frustração, (Cfr. 1.2. Personalidade) “podendo este entusiasmo e busca de atenção assumir proporções

 

inadequadas em determinadas situações, especialmente nas que exijam recato e respeito. Será inconformista, pouco cumpridor e indulgente, denotando-se dificuldade de adaptação a normas e regras estritas e falhas no desenvolvimento de normas morais; será imaturo e a sua consciência do que é correcto/incorrecto está pouco desenvolvida (i.e. lacunas importantes ao nível dos valores morais interiorizados). O examinado crerá não ser bem compreendido ou que os outros se podem aproveitar de si, considerando-se diferente da maioria das pessoas. Tende a ser incapaz de relaxar a sua vigilância em situações em que seria apropriado fazê-lo e a sua desconfiança poderá traduzir-se em animosidade. Será imaginativo e abstraído, podendo mostrar-se absorto nos seus pensamentos e perder o controlo da sua atenção ou da situação. Fechado e calculista, preferirá guardar os seus problemas si próprio e ser-lhe-á difícil estabelecer relações interpessoais de intimidade. Individualista e solitário, percepcionar-se-á como auto-suficiente. Preferirá o que lhe é familiar ao desconhecido, não se questionando sobre as coisas ainda que essa forma de viver possa não ser a ideal. Intranquilo, tenderá a experienciar uma impaciência e tensão perturbadoras do auto-controlo e impeditivas da prática de uma acção eficaz”. Sinaliza-se sublinhada dificuldade em identificar problemas e na elaboração da sua resolução, fazendo-o com recurso a um pensamento mágico e sem evidenciar capacidade de se debruçar aprofundadamente sobre as estratégias que conduziriam a essa mesma resolução. (…)

O examinado alude a consumos de haxixe desde os 10 anos de idade e nega hábitos etílicos.

Embora o examinado verbalize priorizar o bem-estar dos menores, dos comportamentos manifestados (plasmados nas peças processuais consultadas e referenciados em sede de entrevistas) decorre egocentrismo.

O examinado verbaliza vínculo aos menores porém não se mostra capaz de identificar consistentemente as suas necessidades emocionais, afectivas e instrumentais e, sobretudo, de evidenciar comportamentos que correspondam às mesmas, pelo que se sublinha valorável risco e não se afigura protector para os menores o exercício do papel parental.

 

43. Foi realizada perícia de avaliação psiquiátrica ao progenitor, cujo relatório junto em 25.05.2023, ref.ª 9778873 se dá por reproduzido, em que se concluiu, dentre o mais:

(…) da análise do todos os elementos disponíveis, verificou-se que o examinando não evidenciava alterações psicopatológicas major; no entanto, evidenciou uma capacidade cognitiva ligeiramente abaixo do normal ou no limite da normalidade, atentos às suas dificuldades de aprendizagem, onde se teriam enxertado alterações mentais e do comportamento decorrentes do consumo de múltiplas substancias de abuso.

Aquando da realização do exame pericial, no entanto, não foram encontradas alterações psicopatológicas significativas.

Relativamente à personalidade, revelou a existência de traços desadaptativos, nomeadamente má ressonância afetiva, falta de sentido de responsabilidade e de apreço pelo trabalho, bem como pela observação das regras de funcionamento normativo em sociedade.

Revelou interesse nas questões relacionadas com o filho, mas de forma pouco consistente e amadurecida, pelo que não parece reunir condições psíquicas para o desempenho de uma parentalidade responsável.
(…)

Da avaliação realizada, percebe-se que o examinando apresenta uma marcada superficialidade na vivência dos afetos e uma reduzida ressonância afetiva, falando de sentimentos e vivências, mas não demostrando uma vivencia interior refletida e aprofundada dos mesmos; o comportamento acompanha esta pouca variedade e profundidade de vivencias afetivas. Trata se de um indivíduo preocupado, sobretudo, com a satisfação das suas necessidades e vontades, e menos com a de terceiros, nomeadamente de crianças e o que o seu desenvolvimento normativo implica; assim, não parece estar ciente da necessidade de estabelecimento de vínculos normativos, securizadores e responsáveis para poder contribuir para o desenvolvimento adequado de seres frágeis em desenvolvimento.

 
(…)

O examinando não revelou crítica para o efeito nefasto dos consumos de estupefacientes no seu comportamento, nem evidenciou planos ou motivação para mudar este trajeto de vida, mantendo a situação de dependência de estupefacientes.
(…)
O examinando, dada a estruturação patológica da sua personalidade, não reúne condições afetivas nem idoneidade para o desempenho das suas responsabilidades parentais.
44. A progenitora tem antecedentes criminais, tendo sido condenada:

i. em 19.11.2020, por sentença transitada em julgado em 02.02.2021, no âmbito do processo nº 407/20...., que correu termos no Juízo Central Criminal ... - J..., pela prática, em 07.06.2020, de um crime de roubo, p. e p. pelos arts. 210º nº1 e 2 al. b) por referência ao disposto art.º 204.º, nº 2, al. f), e nº 4, todos do Cód. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 12 (doze) meses, mediante a imposição dos deveres e regras de conduta: 1) obedecer a um plano individual de readaptação social, a elaborar pelos serviços de reinserção social, no prazo de 3 meses; 2) exercer ocupação profissional compatível com as suas qualificações a aptidões. Por decisão de 21.02.2022, transitada em julgado em 28.03.2022, foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão e determinado o cumprimento de prisão efetiva.
45. O progenitor tem antecedentes criminais, tendo sido condenado:

ii. em 19.11.2020, por sentença transitada em julgado em 05.07.2021, no âmbito do processo nº 407/20...., que correu termos no Juízo Central Criminal ... - J..., pela prática, em 07.06.2020, de um crime de roubo, p. e p. pelos arts. 210º nº1 e 2 al. b) por referência ao disposto art.º 204.º, nº 2, al. f), e nº 4, todos do Cód. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 12 (doze) meses, mediante a imposição dos deveres e

 

regras de conduta: 1) obedecer a um plano individual de readaptação social, a elaborar pelos serviços de reinserção social, no prazo de 3 meses; 2) exercer ocupação profissional compatível com as suas qualificações a aptidões. Por decisão de 22.06.2022, transitada em julgado em 19.09.2022, foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão e determinado o cumprimento de prisão efetiva; iii. em 14.02.2022, por sentença transitada em julgado em 21.03.2022, no âmbito do processo nº 751/20...., que correu termos no Juízo Local Criminal ... - J..., pela prática, em 09.04.2020, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelos artºs 143º e 145º, nº 1, al.a) do C. Penal, na pena de 7 meses e 0 dias de prisão, substituída por 200 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €, que perfaz o total de 1 200,00 €; iv. em 04.04.2022, por sentença transitada em julgado em 19.05.2022, no âmbito do processo nº 215/20...., que correu termos no Juízo Local Criminal ..., pela prática, em 11.04.2020, de um crime de desobediência, p.p. pelo artº 348º, nº 1, al. b) do C. Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, que perfaz o total de 500 €.

46. Até ao presente, nenhum membro da família alargada se apresentou interessado e capaz de cuidar da criança.

47. AA é uma criança saudável e encontra-se bem integrado na casa de acolhimento Centro de Acolhimento Temporário DD, em ....

48. Não tem memória dos progenitores ou de qualquer elemento da sua família de origem, não os reconhecendo.
Factos não provados:
Inexistem factos não provados com relevância para a decisão da causa.».

*
 
B) – A LEI DE PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO

(LPCJP), aprovada pela Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro, tem por objecto “…a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral.” (Artigo 1.º) De acordo com o artº 3º, nº 1, “a intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.”. A criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, entre outras situações:

- Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal; (artº 3, nº 2, alínea c));

- Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; (artº 3, nº 2, alínea f)).

As medidas de promoção dos direitos e de protecção das crianças e dos jovens em perigo, visam (artº 34º): 
“a) Afastar o perigo em que estes se encontram;

b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;

c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.”.

Os princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo estão enunciados no artº 4º, e, não olvidando a importância que, entre eles, tem o da prevalência das medidas que os integrem na família (al-b)), deles se entende ser de destacar, pela sua

 

preponderância na aplicação das medidas, o princípio do interesse superior da criança e do jovem (al. a)), de acordo com o qual, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto, “…a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas…”.

De entre as medidas de promoção e protecção, a da confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção, prevista na alínea g) do nº 1 do artº 35º, aplicável, segundo o que dispõe o artº 38.º-A, quando se verifique alguma das situações previstas no artigo 1978.º do Código Civil, consiste:

a) Na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de candidato selecionado para a adoção pelo competente organismo de segurança social;

b) Ou na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de família de acolhimento ou de instituição com vista a futura adoção.

Ora, de acordo com o nº 1 do citado artº 1978.º “O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objectiva de qualquer das seguintes situações:
a) Se a criança for filha de pais incógnitos ou falecidos;
b) Se tiver havido consentimento prévio para a adopção;
c) Se os pais tiverem abandonado a criança;

d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;”.

 

O nº 3 do artigo ora em causa estabelece que se considera “…que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à proteção e à promoção dos direitos das crianças.”.

O Recorrente sustenta, entre o mais, que “…a criança ficará sempre melhor à guarda de uma família.”, mas, admitindo, também ser válida, “…a opção de confiança a instituição onde possa o menor receber visitas da família biológica”, acaba por defender a revogação do Acórdão recorrido e a sua substituição por decisão “que determine a entrega do menor a instituição que supervisione as suas necessidades e permita as visitas dos pais biológicos.”. Ora, se, sendo também válida, “…a opção de confiança a instituição onde possa o menor receber visitas da família biológica”, a criança ficará sempre melhor, no dizer do Recorrente, “à guarda de uma família”, então parece que, mesmo na sua óptica, a confiança para a adopção é preferível à permanência da criança numa instituição.

Só assim não seria se, como propõe o Recorrente, fosse de determinar que a criança recebesse as visitas dos pais biológicos.

Sucede que, uma tal medida – de manutenção da criança institucionalizada -, além de ter, necessariamente, de ser temporária, pressupunha a existência de expectativa fundada de que a criança, num período temporal não muito longínquo, pudesse, com segurança, voltar a integrar o agregado dos respectivos progenitores.

Contudo, se, desde logo, se vislumbrar que a integração no agregado dos progenitores, representa um real perigo para a criança, carece de qualquer viabilidade a opção defendida pelo Recorrente.

Pergunta-se, assim: Há alguns pontos positivos na matéria de facto provada que sejam favoráveis a uma actual, ou, mesmo, a uma futura, mas não muito longínqua, integração do menor AA – agora a cerca de 2 meses de fazer dois anos de idade – no agregado composto pelos seus progenitores?

 
A resposta a esta questão é, inequivocamente, negativa.

Indagando, na matéria de facto, algo, que nos habilite a descortinar a possibilidade, ao menos num juízo de prognose quanto a uma ocasião futura, de integração do AA no agregado constituído pelos respectivos progenitores, o certo é que factualidade alguma nos permite concluir por essa possibilidade. Antes pelo contrário. O que ficou provado demostra, sem qualquer dúvida, obstar a que se faça um juízo positivo sobre a possibilidade de a criança, sem perigo grave para a mesma, poder integrar, quer agora, quer numa ocasião futura, o agregado constituído pelo respectivos progenitores.

E para justificar o que se acaba de dizer, basta sintetizar alguma da factualidade provada, que leva a concluir – sem que outra factualidade haja que nos permita perspectivar uma futura alteração nesse sentido – que ficaria em perigo a segurança, saúde, formação, educação e desenvolvimento do AA, se deixado aos cuidados dos respectivos pais, porquanto, em razão daquilo que se apurou quanto a estes, não receberia os cuidados e a afeição adequados à sua idade e situação pessoal, bem assim, porque, estaria sujeito a comportamentos desses seus progenitores, que afectariam gravemente a sua segurança.
Note-se, pois, que, em síntese, se apurou:

Relativamente aos pais da criança:
- O progenitor do AA, CC, nasceu em ../../2002;

- A progenitora do AA, BB, nasceu em ../../2001;

- A progenitora beneficiou da medida de acolhimento residencial, desde ../../2015 até à maioridade (apenso L);
- AA nasceu em casa, tendo entrado no Serviço de Urgência Obstétrica do

Centro Hospitalar ... ao colo da mãe, após o parto;

 

- Anteriormente ao nascimento do AA, a progenitora foi advertida pelo ISS da necessidade de sinalizar o nascimento do filho à CPCJ para avaliação e orientação, o que não fez;

- O Serviço Social do Centro Hospitalar comunicou à CPCJ o nascimento da criança, na sequência do que esta, conhecedora da situação da progenitora e seu agregado familiar, deliberou a aplicação da medida de acolhimento residencial em 13.04.2022;

- Nesse dia, os técnicos da CPCJ dirigiram-se ao Hospital e propuseram à progenitora o seu acolhimento juntamente com a criança, o que esta recusou; - Em face da falta de consentimento dos progenitores, a medida foi confirmada pelo Tribunal e aplicada a título cautelar em 16.04.2022 e mantém-se até à presente data;

- Em 22.04.2022, os progenitores foram informados da identificação e contactos da casa de acolhimento onde a criança se encontra;

- Desde então, a progenitora nunca contactou a casa de acolhimento com vista a obter informação sobre o filho ou a estabelecer contacto com o mesmo e o progenitor fê-lo três vezes;

- Nunca realizaram qualquer visita presencial, o que igualmente não foi feito por outros elementos do agregado familiar materno ou paterno;

- Após o acolhimento do AA, os progenitores regressaram ao ... e à vivência como sem abrigo.

- Os progenitores permanecem, pelo menos desde data anterior ao nascimento da filha II, sem habitação, sem ocupação laboral e fonte de rendimentos, beneficiando o progenitor do Rendimento Social de Inserção;

- A progenitora do AA, enquanto acolhida recebeu acompanhamento pedopsiquiátrico, cumpriu a medicação psiquiátrica indicada, havendo registo de ocorrência de episódios de automutilação;

 

- No relatório (junto em 17.07.2023) da perícia de avaliação psicológica a que foi submetida concluiu-se, dentre o mais;

(…) a sinalização de sintomatologia clinicamente expressiva no âmbito das dimensões depressão, ansiedade fóbica, ideação paranoide e psicoticismo, que respeitam a humor deprimido e a um modo perturbado de funcionamento cognitivo – com um pensamento projectivo, hostilidade, suspeição, egocentrismo – bem como sintomas de controlo de pensamento.

Da análise do seu perfil de personalidade (Cfr. 1.2. Personalidade) emergem características de especial relevo no âmbito das relações interpessoais/sociais e do exercício da parentalidade, denotando-se imaturidade e um perfil sugestivo de perturbação da personalidade. Destacam-se evidentes dificuldades na auto-regulação emocional, défice do controlo de impulsos e baixa tolerância à frustração, bem como défices de ressonância afectiva e empatia “(…) fria e distante, sentindo-se pouco confortável em situações em que se estabelecem frequentemente relações interpessoais e nas quais se manifestam emoções e sentimentos. (…) reactiva e emocionalmente instável (…);

- A examinada verbaliza vínculo aos menores porém não se mostra capaz de identificar consistentemente as suas Necessidades emocionais, afectivas e instrumentais e, sobretudo, de evidenciar comportamentos que correspondam às mesmas, pelo que se sublinha valorável risco e não se afigura protector para os menores o exercício do papel parental”.

- A progenitora do AA foi já condenada pela prática do crime de roubo e cumpriu pena de prisão pela prática de tal crime;

- O progenitor do AA consome estupefacientes, em particular cocaína, despendendo integralmente, no mesmo, o montante da aludida prestação social; - Nos relatórios das perícias de avaliação psicológica a que foi submetido consta, dentre o mais:

 

(…) a avaliação identifica sintomatologia clinicamente expressiva no âmbito das dimensões depressão, ansiedade Fóbica, hostilidade, sensibilidade Interpessoal e psicoticismo, que respeitam a humor deprimido, sentimentos de inadequação pessoal e inferioridade particularmente na comparação com os outros, pensamentos emoções e comportamentos característicos do estado afectivo negativo da raiva, e sintomas de controlo de pensamento.

Da análise da personalidade emergem características de especial relevo no âmbito das relações interpessoais/sociais e do exercício da parentalidade, denotando-se imaturidade e um perfil sugestivo de perturbação da personalidade. Destacam-se evidentes dificuldades na auto-regulação emocional e propensão para a instabilidade, com enfoque no défice do controlo de impulsos e baixa tolerância à frustração
(…)

O examinado verbaliza vínculo aos menores porém não se mostra capaz de identificar consistentemente as suas necessidades emocionais, afectivas e instrumentais e, sobretudo, de evidenciar comportamentos que correspondam às mesmas, pelo que se sublinha valorável risco e não se afigura protector para os menores o exercício do papel parental. (…)

- O progenitor do AA foi já condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, um crime de desobediência e de um crime de roubo, tendo, relativamente a este último, sido determinado o cumprimento de prisão efectiva;

Relativamente à família alargada:

- Até ao presente, nenhum membro da família alargada se apresentou interessado e capaz de cuidar da criança;

- Os elementos do agregado familiar materno apresentam problemas de saúde mental e o relacionamento intrafamiliar e para com terceiros carateriza-se pelo conflito, discussões e por ofensas verbais e corporais;

 

- Em particular, o relacionamento entre a progenitora e a avó e bisavó maternas é marcado por discussões e ofensas físicas e verbais regulares; - À data, a avó materna residia em habitação social e beneficiava de Rendimento Social de Inserção, não tendo ocupação laboral, sendo que atualmente encontrase internada para tratamento da dependência de álcool;

- Foi realizada perícia médico-legal à avó materna, em cujo relatório se concluiu, entre o mais: (…) apresenta forte desajustamento psicológico (emocional e de personalidade) e fraco potencial de mudança, não estando capaz de cuidar de si mesma e, portanto, nem assim de garantir o salutar desenvolvimento dos filhos. A possibilidade de reintegração dos menores no contexto materno representa um risco elevado para as crianças (…).

- Os elementos da família paterna não trabalham, vivem em casas devolutas que ocupam sem condições de habitabilidade, havendo registo de consumo de estupefacientes e de violência doméstica;

No que respeita à criança, cabe evidenciar, que:

- É uma criança saudável, bem integrado na casa de acolhimento Centro de Acolhimento Temporário DD, em ..., não tendo memória dos progenitores ou de qualquer elemento da sua família de origem, não os reconhecendo.

Após o que se acaba de expor, parece claro que, não só inexistem, entre o AA e os respectivos pais, os vínculos afetivos próprios da filiação, como, quer nem a integração da crinnaça no agregado constituído pelos progenitores da criança, quer a integração da mesma no agregado familiar dos avós, acarreta – pelo que ficou assinalado -  um gravíssimo perigo para a segurança, a saúde, a formação, a educação e o desenvolvimento do AA, sendo a adopção do mesmo a única solução que nos parece poder-lhe propiciar as condições que permitem proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação,

 

bem-estar e desenvolvimento integral e, que, portanto, se revela a única solução que zela, devidamente, pelo interesse desta criança.

Do exposto resulta, pois, que, sem infracção dos princípios e normas cuja violação o Apelante imputa ao Acórdão recorrido, foi acertada a decisão nela proferida, mais não havendo senão confirmá-la e julgar o recurso improcedente. * IV – Decisão:
Em face de tudo o exposto, decidem os Juízes Desembargadores deste Tribunal da Relação de Coimbra, julgar o recurso improcedente e confirmar o Acórdão recorrido.
 

Sem custas, porquanto o Apelante delas está isento (artº 4º, nº 1, alínea i) do Regulamento das Custas Processuais).
20/02/20246
 

 (Luiz José Falcão de Magalhães)
 (António Domingos Pires Robalo)
(Maria Teresa Albuquerque)
 
                                                 
1 Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2 Transcrição de extracto do relatório do Acórdão ora recorrido.
3 Despacho de 9/1/2024.
4 Utilizar-se-á a sigla “CPC” para referir o código pretérito, ou, excepcionalmente, nos casos em que transcrevemos texto onde essa sigla foi já utilizada para identificar o novo Código de Processo Civil.
5 Cfr. Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586.
6 Processado e revisto pelo Relator.