Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
249/19.2T8CNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: EMBARGO DE OBRA NOVA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
OBRA CONCLUÍDA
DANO
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.3 Nº3, 195, 397 CPC, 1252, 1263, 1543, 1544, 1547, 1548 CC
Sumário: I – Modernamente, o contraditório é entendido como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio.

II – O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.

III – No plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie.

IV – A lei, no caso de embargo de obra nova (ou respetiva ratificação judicial), contenta-se com a verificação de um dano jurídico.

V – Bastando, pois, que o facto tenha a feição de ilícito porque contrário à ordem jurídica concretizada num direito de propriedade ou noutro direito real (num direito de servidão) para que haja de considerar-se prejudicial para os efeitos de tal embargo de obra nova.

VI – O embargo de obra nova depende da verificação, cumulativa, de vários requisitos, um dos quais se traduz precisamente na necessidade de se tratar de obra, trabalho ou serviço novo, e não concluído, e que cause ou ameace causar prejuízo, sendo que a obra deve considerar-se concluída apenas quando lhe faltem alguns trabalhos secundários ou complementares.

VII – Não se pode considerar que é esse o caso quando está em causa a construção de um muro relativamente ao qual, à data da notificação do embargo (extrajudicial), ainda estava em falta o enchimento de pilares e viga, isto é, a conclusão da estrutura resistente do próprio muro, bem assim não havia ainda sido operada a definição do perímetro exterior/área total de ocupação da obra em causa, pois que nesse quadro se afigura insofismável que o prejuízo ainda podia ser aumentado com a prossecução das obras.

Decisão Texto Integral:          








   Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

C (…) instaurou procedimento cautelar especificado de ratificação judicial de embargo de obra nova contra C (…) e L (…) pretendendo que seja ordenado a suspensão da edificação de um muro que ocupa a faixa de terreno pertencente ao prédio dos requeridos onde, por usucapião, está constituída uma servidão de passagem a favor do prédio dela requerente, com a largura de 5,30 metros.

Foi apresentada contestação, onde, além do mais, sustentam os requeridos a falta de alegação de factos que demonstrem a titularidade de um direito expressamente tutelado pela providência, designadamente da posse, e que o muro já estava construído e consumado o prejuízo aquando da ordem de suspensão dos trabalhos.

                                                           *

Em 11.04.19 foi proferido despacho de aperfeiçoamento do requerimento inicial, tendo a autora apresentado a petição aperfeiçoada de 18.04.19, relativamente à qual os requeridos exerceram contraditório, com junção aos autos [certificada pelo sistema CITIUS] de “novo” articulado de Oposição, em 23.04.2019, o qual, no essencial, reproduziu o respectivo articulado [de Oposição] primitivo.

*

            Na imediata sequência, mais concretamente em 24.04.2019, a Exma. Juíza de 1ª instância entendendo que o estado dos autos permitia o imediato conhecimento do mérito, a tal procedeu, por despacho/sentença proferido nessa data, no qual, depois de fazer um bosquejo teórico sobre os requisitos da providência que havia sido requerida, considerou, decisivamente, o seguinte:

«(…)

               Da facticidade alegada, mesmo depois do convite expresso para o efeito, não consta invocado um dos elementos essenciais da posse – o animus., pelo que mesmo a provar-se toda a matéria alegada nunca seria possível concluir pela verificação do direito de servidão de passagem com as características pretendidas. E não se objecte com a referida presunção prevista no art. 1252º, nº 2 do CC dado que esta não exonera a parte da alegação do elemento intencional da posse, mas tão só da sua prova.

Acresce que, do teor do requerimento inicial e documentos juntos constata-se a obra a que se reporta o procedimento cautelar já se encontra concluída nos seus aspectos fundamentais. Com efeito, a requerente alega que os requeridos construíram o muro e que a edificação já impede o uso da invocada servidão de passagem, em toda a sua largura, destinada a assegurar o acesso a partir da via pública (cfr. arts. 16º e 23º).

Não se olvida que segundo a alegação da requerente o muro encontra-se inacabado, mantendo-se no local matérias-primas e máquinas, destinadas a continuar a construção do mesmo (cfr. art. 19º). Mas tal circunstância não impede que se tenham as obras objecto do embargo por terminadas dado que os trabalhos que estarão por executar são meramente complementares, o que significa que o prejuízo que dessa obra advém para os requerentes já não pode ser aumentado pela prossecução daquela, nem eliminando pela sua suspensão – cfr. Acórdão da Relação 24.04.2012, proc. 4696/11.0TBLRA-A.C1.

Atento o explanado, a improcedência do presente procedimento torna-se inevitável por falta de verificação dos referidos pressupostos essenciais.»

Nestes termos, concluiu no sentido do indeferimento do procedimento cautelar requerido.

                                                           *

            Inconformada, apresentou a Requerente C (…) recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                      *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Requerente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- nulidade, por preterição do exercício do contraditório [a qual é susceptível de influir sobre a decisão da causa]; 

- incorreto julgamento de direito [independentemente de se não deferir ao peticionado na questão antecedente], quer no aspeto do entendimento perfilhado quanto à pretensa falta de alegação do elemento animus da posse invocada, quer no aspeto de se ter considerado a falta de verificação do pressuposto de a obra [embargada] ainda não se encontrar concluída nos seus aspectos fundamentais.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em consideração para a decisão são os que decorrem do relatório supra.

                                                                       *

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 - Por razões de precedência lógica e jurídica não pode deixar de se começar pela apreciação da questão da nulidade, por preterição do exercício do contraditório [a qual é susceptível de influir sobre a decisão da causa].

Sustenta enfaticamente a Requerente ora recorrente que não foi por qualquer forma dado cumprimento ao princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3 do n.C.P.Civil, na medida em que não foi permitido a ela requerente pronunciar-se sobre a Oposição apresentada pelos Requeridos, pois que aquando da prolação da sentença recorrida se encontrava ainda a decorrer o prazo de contraditório face à Oposição apresentada pelos requeridos, bem como aos documentos que a suportavam.

            Que dizer?

Quanto a nós, que efetivamente foi cometida a nulidade arguida, pelo que se impõe reconhecê-la e declará-la.

Senão vejamos.

Recorde-se que a Exma. Juíza a quo, na sequência da apresentação de Oposição pelos requeridos, entendeu proferir despacho a mandar a requerente aperfeiçoar o requerimento inicial.

A requerente correspondeu a tal solicitação, apresentando o atinente articulado em 18.04.19, relativamente ao qual os requeridos exerceram contraditório, com junção aos autos de “novo” articulado de Oposição, em 23.04.2019, o qual, no essencial, reproduziu o respectivo articulado [de Oposição] primitivo.

De referir que os requeridos, nesse articulado de Oposição, para além de terem suscitado a exceção peremptória de direito material de que o muro já estava construído e consumado o prejuízo aquando da ordem de suspensão dos trabalhos, mais concretamente e para o que ora releva, impugnando a alegação feita no requerimento inicial de que «o muro encontra-se inacabado, mantendo-se no local matérias e máquinas, destinadas a continuar a construção do mesmo.»

Sucedeu que, na imediata sequência, mais concretamente em 24.04.2019, a Exma. Juíza a quo, entendendo que o estado dos autos permitia o imediato conhecimento do mérito, a tal procedeu, por despacho/sentença proferido nessa data e ora em recurso.

Será, então, que assistia à requerente ora recorrente o direito de se pronunciar sobre a Oposição e bem assim exercer o contraditório sobre os documentos juntos?

Cremos bem que sim.

Na verdade, não podia deixar de lhe ser facultada resposta à dita exceção perentória deduzida no articulado de Oposição dos Requeridos, e documentos com esta juntos de suporte a uma tal questão.

O que, em termos normais, teria lugar na audiência final, mas, a entender-se que não havia necessidade de produção de prova, e, concomitantemente, de realizar a dita audiência final, não podia, então, deixar de ser concedido prazo à requerente para esse preciso efeito de resposta e funcionamento do princípio do contraditório (cf. art. 3º, nos 3 e 4 do n.C.P.Civil).

Contudo não foi isso que sucedeu, antes a Exma. Juíza a quo proferiu sem mais sentença, por entender que os autos o possibilitavam sem mais.

Ora, há claramente, no atual (“novo”) Código de Processo Civil o reforço do contraditório, tida que é a audição das partes sobre cada questão a decidir no processo como fator indispensável da realização da justiça: é assim que o nº 3 do art. 3º expressamente dispõe que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Mas quando é que, afinal, se viola, frontalmente, o princípio do contraditório, plasmado no dito art. 3º, nº 3, do n.C.P.Civil?

Já foi doutamente sublinhado que, modernamente, o contraditório é entendido como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.[2]

Ora se assim é, bem se compreende que «no plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie»[3].

É certo que «O entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo n.º 3 do artigo 3.º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (…); trata-se apenas e tão somente, de, previamente, ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de excepções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar».[4]

Deste modo, o princípio do contraditório assume-se como corolário ou consequência do princípio do dispositivo, emergente, para além de outras disposições, do nº1 deste preceito, destinando-se a proteger o exercício do direito de ação e de defesa.

Na verdade, «quer o direito de ação, quer de defesa, assentam numa determinada qualificação jurídica dos factos carreados para o processo, que as partes tiveram por pertinente e adequada quando procederam à respetiva articulação. Deste modo qualquer alteração do módulo jurídico perfilhado, designadamente quando assuma um grau particularmente relevante, é suscetível de comprometer a posição das partes…e daí a proibição imposta pelo nº3».[5]

Ao assim não atuar, a Exma. Juíza a quo violou o aludido art. 3º, nº3 do n.C.P.Civil, cometendo, por omissão, uma nulidade processual, a qual influiu no exame e decisão da causa e produziu uma decisão surpresa, pois que, no mínimo, é alheia ao, ou se situa fora do, módulo ou do plano jurídico perfilhado pelas partes (rectius, pela requerente).

E, assim, tornando a própria sentença final nula – art. 195º, nos 1 e 2 do mesmo n.C.P.Civil.

O que, efetivamente, se verifica e declara.

Todavia porque o ato praticado na sequência dessa omissão foi uma decisão que pôs termo ao processo, sempre este tribunal ad quem, por força da regra da substituição ao tribunal recorrido, terá de conhecer do objeto da apelação – art. 665º, nº1 do n.C.P.Civil.

Ao que se procederá de seguida.

                                                           *

4.2 – questão do incorreto julgamento de direito [independentemente de se não deferir ao peticionado na questão antecedente], quer no aspeto do entendimento perfilhado quanto à pretensa falta de alegação do elemento animus da posse invocada, quer no aspeto de se ter considerado a falta de verificação do pressuposto de a obra [embargada] ainda não se encontrar concluída nos seus aspectos fundamentais.

Como já se mencionou a Exma. julgadora de 1ª instância indeferiu o procedimento cautelar, por falta de verificação dos seus pressupostos essenciais, a saber, com base no entendimento de que não constava invocado no procedimento um dos elementos essenciais da posse [o animus pela requerente], acrescendo que a obra objeto do procedimento cautelar se encontrava já terminada e que o seu prejuízo para a requerente já não podia ser aumentado pela prossecução da referida obra.

Cumpre então agora apreciar e decidir da bondade e curialidade, ou não, destes segmentos decisórios.

Perscrutemos.

Desde já se adiantará – e releve-se o juízo antecipatório! – que mal andou a Exma. Juíza a quo nas duas vertentes da decisão.

Senão vejamos.

É que, resultando alegada, como estava, a utilização da servidão de passagem em causa, para os efeitos de acesso e cultivo do prédio da requerente, por parte da mesma, desde tempos imemoriais («desde há mais de 20, 30 ou 50 anos»), entendemos estar demonstrada a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício da utilização para passagem sobre a parcela em causa, mais concretamente, em termos de direito de servidão de passagem.

Atuação essa que faz presumir, atento o disposto no nº2 do art. 1252º do C.Civil, o animus possidendi da requerente de passagem sobre a parcela ajuizada.

Na verdade, concretamente quanto a este ponto da presunção do animus possidendi, importa não olvidar que a posse sempre se terá de considerar constituida na respetiva esfera jurídica através do apossamento, modalidade de aquisição originária e unilateral da posse e que se traduz, segundo o disposto na al. a) do art. 1263º do C.Civil, na “prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito”.

Com efeito, como já foi sustentado em douto aresto[6] para um caso com suficiente paralelismo com o ajuizado, «Estando assente, no caso, a publicidade (cfr. ponto 26 da matéria de facto provada), – é condição de aquisição da posse “uma relação de facto” entre a pessoa e a coisa que se traduza nessa prática reiterada e efectiva de actos materiais “capazes de exprimirem o exercício do direito” (Pires de Lima – Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, reimp. da 2ª ed. revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, págs. 25-26). Como explica, por exemplo, Carvalho Fernandes (Direitos Reais, 4ª ed., Lisboa, 2003, pág. 297), para ocorrer o apossamento exige-se “uma intensidade particular da actuação material sobre a coisa. Assim, a necessidade de a prática de actos materiais ser reiterada significa, não só uma certa repetição da actuação material sobre a coisa, mas também, e sobretudo, a necessidade de ela ser significativa da intenção de se apoderar dela”, ou, nas palavras de Menezes Cordeiro, “para consubstanciar apossamento”, terá “de se processar uma actuação de acordo com as circunstâncias, que faculte um controlo duradouro da coisa considerada” (A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª ed., Coimbra, 1999, pág. 104). Estando em causa saber se uma determinada pessoa adquiriu a posse correspondente ao direito de propriedade, e sabendo-se que “o proprietário goza não só dos direitos de uso e fruição, poderes materiais, como do direito de disposição, poder puramente jurídico, tal como o de administração da coisa” (cfr. artigo 1305º do Código Civil), esta exigência da prática de actos materiais como condição de aquisição da posse faz com que “só através de actos materiais, isto é, de actos que incidem directa e materialmente sobre a coisa se pode adquirir a posse, e nunca através de actos de disposição ou de administração”, porque eles podem ser praticados mesmo que a coisa seja possuída ou detida por um terceiro. Assim, e para continuar a utilizar as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., págs. 26 e 27, “se alguém, por exemplo, paga habitualmente a contribuição predial e outros encargos relativos a determinado imóvel, não adquire, através desses actos, a posse do prédio. Trata-se, com efeito, de actos que podem ser praticados por qualquer pessoa, não pressupondo uma relação de facto sobre a coisa”.

Não é todavia exigível que se pratiquem “todos os actos materiais qualificativos do direito”. Citando Manuel Rodrigues (A Posse, Estudo de Direito Civil Português, Coimbra, 1981, nº 38, pág. 182 e segs., pág. 186), “o proprietário não é obrigado a usar, fruir e transformar continuamente e simultaneamente. Para se adquirir a posse do direito de propriedade basta, por isso, praticar actos materiais que correspondam a alguns daqueles poderes (…)».

Alinhamos por inteiro com esta linha de entendimento, pelo que, revertendo-o ao caso ajuizado, não se pode deixar de concluir pelo dito apossamento por parte da requerente, apossamento esse com o conteúdo do direito de servidão de passagem, porquanto todos os atos materiais alegadamente praticados pela mesma (e anteproprietários/anteposuidores) são próprios desse direito – utilização da servidão de passagem «para acesso e cultivo» do prédio da ora requerente/recorrente, «desde tempos imemoriais, a pé, com carro de tração animal, tractores com reboques e alfaias agrícolas e outras máquinas agro-industriais, à vista de  toda a gente, sem oposição de pessoa alguma, designadamente dos Requeridos e ante proprietários do seu prédio, que sempre reconheceram a sua existência, ininterruptamente, de forma pública e pacífica, desde há mais de 20, 30 ou 50 anos, mantendo-a livre e permanentemente circulável para o tratamento, cultivo, rega e colheita das sementeiras ali efectuadas» [cf. art. 12º do requerimento inicial corrigido], donde, atos típicos, por parte da requerente de quem goza e usufrui de uma tal servidão de passagem (cfr. art.os 1543º, 1544º, 1547º e 1548º todos do C.Civil).

Sendo certo que, como igualmente sublinhado no aresto vindo de citar, «O nº 2 do artigo 1252º do Código Civil inverte na verdade o ónus da prova quanto à existência de posse, assente na prova de que existe detenção; explica-se, como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado cit, III, pág. 8, por ser “difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente; e este pode, inclusivamente, não existir.” Esta razão de ser vale muito para além dos casos de “exercício da posse por intermediário”, e esteve presente no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal da Justiça de 14 de Maio de 1996 (www.dgsi.pt, proc. nº 085204), a cuja decisão – “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” – é totalmente alheia a restrição aos casos de posse por intermediário; vale, portanto, para os casos em que (como aqui sucede) se desconhece o modo como começou a posse.“Faltando o título, é a própria lei que então, em caso de dúvida, presume que o possuidor possui em nome próprio, ou, usando os termos legais em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto – nº 2 do art. 1252º C.” (acórdão deste Supremo Tribunal de 24 de Junho de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 106/06.2TBFCR.C1.S1).»

Isto porque, também quanto a nós, é pelo animus que se distinguem as situações de posse verdadeira e própria das de mera detenção, tal como é pelo animus que se sabe que direito é possuído.

Assim, se só o primeiro elemento (corpus) se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insuscetível de conduzir à dominialidade, à aquisição do direito de propriedade, ou do direito de servidão de passagem.

Sendo certo que foi por ser difícil, senão impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, que o nº 2 do art. 1252º do C.Civil estabelece a presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa, o corpus, e o nº 2 do art. 1257º do mesmo Código estabelece a presunção de que a posse continua em nome de quem a começou - Cfr. AcSTJ de 29/10/2009 (www.dgsi.pt.jstj577/04.1TVLSB) e AcSTJ de 14/5/1996 (DR, Iª Série, de 24/6/1996: que uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”).[7]

O que tudo serve para dizer que alegados os ditos atos materiais, é de presumir-se o animus possidendi de quem exerce esse o poder de facto em termos de servidão de passagem sobre o prédio serviente a favor do proprietário (a aqui requerente/recorrente) do prédio dominante, e verificados os outros pressupostos (publicidade e decurso do prazo legal) é possível a aquisição do respetivo direito por usucapião.

Soçobra, desta forma, o entendimento perfilhado na decisão recorrida da insuprível falta de alegação do animus, por parte da requerente ora recorrente!

                                                           ¨¨

E que dizer relativamente ao entendimento também perfilhado na sentença recorrida no sentido de que a obra objeto do procedimento cautelar se encontrava já terminada, face ao que, por o prejuízo que dessa obra adviria para a requerente já não poder ser aumentado pela prossecução daquela, nem eliminado pela sua suspensão, importava concluir pela incontornável falta de verificação do atinente pressuposto essencial – isto tendo por referência o requisito legal de que tem de se tratar de obra, trabalho ou serviço novo e não concluído que cause ou ameace causar prejuízo?

Quanto a nós, que também nesta parte não se ajuizou da melhor forma na decisão recorrida.

Consabidamente, o embargo de obra nova depende da verificação, cumulativa, de vários requisitos, um dos quais se traduz precisamente na necessidade de se tratar de obra, trabalho ou serviço novo, e não concluído, e que cause ou ameace causar prejuízo.

Ora se assim é, em nosso entender foi temerariamente que se concluiu, sem mais na fase processual em que teve lugar a prolação da decisão recorrida – e com os dados do processo decorrentes dos articulados das partes («e documentos juntos»), mormente pelo que havia sido alegada pela própria requerente! – no sentido de que «constata-se a obra a que se reporta o procedimento cautelar já se encontra concluída nos seus aspectos fundamentais».

Temos presente o entendimento doutrinal e jurisprudencial – ao que cremos perfeitamente líquido e pacífico! – segundo o qual os embargos de obra se restringem           apenas às obras ou trabalhos ainda não concluídos, donde, não podendo ser deferida uma tal providência relativamente a obras que já estejam concluídas, faltando apenas meros acabamentos ou obras secundárias ou complementares.

Contudo discordamos da interpretação dada na decisão recorrida ao que se entende por meros acabamentos e/ou obras secundárias ou complementares, ou melhor, que no caso ajuizado, faltassem apenas estas.

Recorde-se que a requerente foi muito explícita e expressa na alegação de que «o muro encontra-se inacabado, mantendo-se no local matérias-primas e máquinas, destinadas a continuar a construção do mesmo» (cfr. art. 19º do requerimento inicial corrigido).

Ademais, sublinhou ainda que «A obra edificada pelos requeridos encontrava-se, aquando do embargo, praticamente no seu início, sem pilares, reboco, compactação e outros, sendo facilmente removível. Facto este que se verifica actualmente» (cfr. art. 26º do requerimento inicial corrigido).

Por sua vez, os requeridos contrapuseram – e em alguma medida concretizando! – que «Assim, estando os alegados muros já consumados, o pretenso prejuízo também já estava consumado, pelo que não se justifica a suspensão das obras» (cfr. art. 23º da segunda oposição), e que «Aliás, como elucidam as ditas fotografias, no momento da ordem de suspensão da obra, os alegados muros já existiam, nos termos também elucidados no croquis, apenas faltando o acabamento da viga e o enchimento dos pilares do muro que veda a norte, o que, só por si, não aumenta o alegado prejuízo» (cfr. art. 24º da segunda oposição).

Neste conspecto, s.m.j., a situação não se podia considerar definida, por sobre ela haver acordo das partes, antes subsistia controvertida e por apurar o concreto grau e medida de acabamento/conclusão das obras…

Em todo o caso, cremos que sendo a melhor interpretação a dar ao conceito de meros acabamentos e obras secundárias ou complementares, o que as faz equivaler a obras que não contendem ou respeitem à definição do perímetro exterior/área total de ocupação da obra em causa, nem com as fundações propriamente ditas, se ainda estava em falta o enchimento de pilares e viga, isto é, a conclusão da estrutura resistente do próprio muro, parece-nos insofismável que o prejuízo ainda podia ser aumentado com a prossecução das obras!

Isto tanto mais que – como sublinhado nas alegações recursivas! – a doutrina e a jurisprudência têm entendido pacificamente que o prejuízo já está ínsito na ofensa do direito, não sendo necessário alegar perdas e danos materiais, por o dano ser jurídico.[8]

Sendo certo que basta que o facto tenha a feição de ilícito porque contrário à ordem jurídica concretizada num direito de propriedade ou noutro direito real (num direito de servidão) para que haja de considerar-se prejudicial para os efeitos de tal embargo de obra nova.[9]

Acresce a toda esta linha de argumentação, que a falta de resposta e do exercício do contraditório por parte da requerente sobre toda esta temática – que se abordou supra – nomeadamente face aos documentos/fotografias juntas, potenciou e conduz a uma insuficiente/deficiente concludência (em termos de certeza e segurança) sobre o efetivo estado de finalização/conclusão da obra.

Donde, em nosso entender não era lícito nem legítimo concluir, após os articulados que, no caso vertente, se encontrava demonstrado que a obra estava concluída, que estava consumada a lesão do direito da requerente, ou que nada havia já a prevenir ou acautelar.[10]

O que tudo serve para dizer que só após a produção de prova, em audiência final, a tal nada obstando, seria possível um grau de convicção bastante/positivo neste particular.

Procede, por isso, o recurso, impondo-se a revogação da decisão recorrida, em ordem a que tenha lugar a prossecução dos ulteriores termos do processo pela 1ª instância, subsequentes à fase dos articulados.

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Modernamente, o contraditório é entendido como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio.

II – O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.

III – No plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie.

IV – A lei, no caso de embargo de obra nova (ou respetiva ratificação judicial), contenta-se com a verificação de um dano jurídico.

V – Bastando, pois, que o facto tenha a feição de ilícito porque contrário à ordem jurídica concretizada num direito de propriedade ou noutro direito real (num direito de servidão) para que haja de considerar-se prejudicial para os efeitos de tal embargo de obra nova.

VI – O embargo de obra nova depende da verificação, cumulativa, de vários requisitos, um dos quais se traduz precisamente na necessidade de se tratar de obra, trabalho ou serviço novo, e não concluído, e que cause ou ameace causar prejuízo, sendo que a obra deve considerar-se concluída apenas quando lhe faltem alguns trabalhos secundários ou complementares.

VII – Não se pode considerar que é esse o caso quando está em causa a construção de um muro relativamente ao qual, à data da notificação do embargo (extrajudicial), ainda estava em falta o enchimento de pilares e viga, isto é, a conclusão da estrutura resistente do próprio muro, bem assim não havia ainda sido operada a definição do perímetro exterior/área total de ocupação da obra em causa, pois que nesse quadro se afigura insofismável que o prejuízo ainda podia ser aumentado com a prossecução das obras.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que, no prosseguimento normal dos autos em 1ª instância na fase subsequente aos articulados, conceda a possibilidade da requerente se pronunciar sobre a segunda Oposição dos requeridos [junta aos autos em 23.04.2019] e bem assim exercer o contraditório sobre os documentos com esta juntos, antes de proferir decisão final nos autos, nomeadamente concedendo-lhe a oportunidade de tal fazer no início da audiência final, sendo disso caso.

Sem custas.

                                              

Coimbra, 10 de Julho de 2019

                                               Luís Filipe Cravo ( Relator )

          Fernando Monteiro

    António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2] Assim por LEBRE DE FREITAS, in “ Introdução ao Processo Civil”, Coimbra, 3ª ed., a págs. 124-125, citando Nicolò Trocker.
[3] Cf. autor e obra referidos na nota antecedente, ora a págs. 133.
[4] Cf. autor e obra referidos na nota antecedente, a págs. 32.
[5] Citámos agora ABÍLIO NETO, in “Breves Notas ao CPC”, 2005, a págs. 10.
[6] Trata-se do acórdão do STJ de 15.11.2018, proferido no proc. nº 247/13.0TBCCH.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[7] Vide, ainda, ORLANDO DE CARVALHO, in “Introdução à Posse”, RLJ, 122º, 104 e segs.

[8] vide ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, a págs. 63-65; LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”,  Vol 2º, 3ª ed., a págs. 168-169; A. ABRANTES GERALDES, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Vol., 4ª Ed., 2010, a págs. 258, e MOITINHO DE ALMEIDA, in “Embargo ou Nunciação de Obra Nova, 3ª Ed., a págs. 13 e 19.
[9] Neste sentido o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 15.09.2015, proferido no proc. nº 6871/14.6T8CBR.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[10] Cf., para um caso com paralelismo, o constante do acórdão do T. Rel. de Coimbra de 24.04.2012, proferido no proc. nº 4696/11.0TBLRA-A.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc.