Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24/08.0TBSRT-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
MAIORIDADE
DIREITOS
MENORIDADE
Data do Acordão: 02/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 3º, Nº 1, AL. A) E 5º, Nº 1, AL. C) DO ESTATUTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário: I - Não integra a competência do Ministério Público, nos termos dos artºs 3º, nº 1, al. a) e 5º, nº 1, al. c) do respectivo Estatuto, representar recém-maiores, ainda que para exercício de direitos entrados na sua titularidade durante a menoridade.

II – Carece, portanto, o Ministério Público de legitimidade para, em representação de pessoa que já completou dezoito anos de idade, instaurar incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, mesmo que tenha em vista tão somente a declaração do incumprimento – falta de pagamento da prestação alimentícia – relativamente a período de tempo em que tal pessoa era ainda menor.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. RELATÓRIO
Por apenso aos autos de divórcio litigioso nº 24/08.0TBSRT, que correram termos pelo Tribunal Judicial da Sertã, foi pelo Ministério Público, em 14/07/2011, em representação de E…, nascido em 19/01/1992, instaurado incidente de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais contra V…, divorciado, motorista, residente em Troviscal, Sertã,
Alegou o requerente, para tanto, que na acção de divórcio nº 24/08.0TBSRT foi, por sentença de 06/02/2008, regulado o exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor E…, tendo, de acordo com a cláusula 4ª, ficado o requerido obrigado a contribuir, a título de alimentos devidos ao menor, com a quantia mensal de € 100,00 (cem euros); e que o requerido deixou de pagar a mencionada pensão de alimentos desde Junho de 2009, pelo que, até ao mês de Janeiro de 2010, data em que o E… atingiu a maioridade, deve a quantia de € 800,00 (oitocentos euros).
Sobre o requerimento inicial do Ministério Público recaiu o seguinte despacho:
“Uma vez que não cabe no âmbito da competência do M. P. – cfr. art. 3º, nº 1, al. a) e 5º, nº 1, al. c) do Estatuto do Ministério Público a contrario – a propositura do presente incidente, mormente, a representação de E…, na medida em que, aquando de tal interposição, este era já maior de idade e, nessa medida, com total personalidade e judiciária – cfr. arts. 5º, 9º e 10º a contrario do CPC e 66º e 67º do CC – a isso não obstando, a nosso ver, o facto dos alimentos em causa serem respeitantes à sua menoridade, não sendo obrigatória a constituição de advogado - cfr. art. 151º da OTM – notifique E… para, em dez dias, vir esclarecer se mantém interesse no prosseguimento dos autos, devendo, nesse caso, proceder ao pagamento da taxa de justiça devida, calculada em função do valor dos alimentos peticionados – € 800,00 – devendo, para o efeito, a secção informar a pessoa em causa de qual o valor da taxa de justiça devida”.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, tendo encerrado a alegação que apresentou com as seguintes conclusões:

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata e em separado e com efeito meramente devolutivo.
Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.
***
Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi apenas colocada a questão de saber se cabe ou não na competência do Ministério Público a propositura de incidente de incumprimento de alimentos devidos a pessoa já maior, mas relativos a um período de tempo em que era ainda menor.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. De facto
A matéria de facto relevante para a decisão do recurso é a que resulta do antecedente relatório que, para o efeito, aqui se dá como reproduzido.
2.2 De direito
Não sofre dúvida que a pessoa cuja representação o Ministério Público invocou para requerer o incidente de incumprimento – E… – nasceu em 19 de Janeiro de 1992 (cfr. certidão de nascimento de fls. 13), pelo que atingiu a maioridade em 19 de Janeiro de 2010 (cfr. artºs 122º e 130º do Cód. Civil).
Por isso, como expressamente admite o Digníssimo recorrente, o referido E… era já maior quando, em 14/07/2011, o incidente de incumprimento das responsabilidades parentais foi instaurado.
Até completar dezoito anos de idade o E… era menor, carecendo de capacidade para o exercício de direitos (artº 123º do Cód. Civil) e, consequentemente, de capacidade judiciária (artº 9º do Cód. Proc. Civil).
Ou seja, até aos dezoito anos o E…, como todas as demais pessoas singulares até àquela idade, era menor e, por isso e porque não emancipado, incapaz.
Embora a lei (artºs 124º do Cód. Civil e 10º do Cód. Proc. Civil) preveja a forma de suprimento da incapacidade dos menores, incumbe também – porventura receosa de que os seus direitos e interesses não sejam devidamente acautelados pelos respectivos representantes legais – o Ministério Público de os representar.
Com efeito, de acordo com o artº 3º, nº 1, al. a) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 47/86, de 15 de Outubro, compete, especialmente, ao Ministério Público representar diversas entidades, entre elas os incapazes, categoria em que, como se viu já, os menores se incluem.
E o artº 5º, nº 1, al. c) do mesmo Estatuto reforça a incumbência estatuindo que o Ministério Público tem intervenção principal nos processos quando representa incapazes, incertos ou ausentes em parte incerta.
Mas a menoridade integra uma incapacidade passageira, transitória, que passa com o tempo.
Efectivamente, de acordo com o artº 129º do Cód. Civil, a incapacidade dos menores termina quando eles atingem a maioridade ou são emancipados, salvas as restrições da lei.
Pondo de parte a emancipação, que não está em causa nestes autos, há que salientar também o 130º do Cód. Civil, segundo o qual aquele que perfizer dezoito anos de idade adquire plena capacidade de exercício de direitos, ficando habilitado a reger a sua pessoa e a dispor dos seus bens. Isto é, perfeitos os dezoito anos de idade, o menor, por isso incapaz, passa a maior, deixando automaticamente a incapacidade e entrando, também automaticamente, em estado de plena capacidade.
Só assim não sucede, como decorre do artº 131º do Cód. Civil, se estiver pendente contra o menor, ao atingir a maioridade, acção de interdição ou inabilitação, pois nesse caso manter-se-á o poder paternal ou a tutela (formas de suprimento da incapacidade – artº 124º) até ao trânsito em julgado da respectiva sentença.

Não há, pois, dúvida de que até 19 de Janeiro de 2010, data em que o E… atingiu a maioridade, o Ministério Público tinha, por força dos artºs 3º, nº 1, al. a) e 5º, nº 1, al. c) do respectivo Estatuto, competência para o representar, podendo intervir, a título principal, nos processos àquele respeitantes.
Tal como igualmente não há dúvida de que após aquela data, face à maioridade do E… e à sua consequente capacidade plena, o Ministério Público perdeu a referida competência.
Mas, pergunta-se, perdeu-a totalmente ou, como defende o Digníssimo recorrente, mantém-na para “fazer valer os direitos de quem já não sendo menor, pretende ser ressarcido daquilo a que tem direito, direito esse, que in casu, é respeitante ao período da sua menoridade, aos alimentos que o seu progenitor devia ter pago mas não pagou”, ou, mais concretamente, para “propor incidente de incumprimento de alimentos, em nome de quem já sendo maior, apenas pretende ver declarado esse incumprimento respeitante ao período da sua menoridade”.
A nosso ver, com todo o respeito por diferente entendimento, atingida a maioridade, o Ministério Público deixa de ter competência para representar o, até aí, menor e, consequentemente, carece de legitimidade para, em representação dele, intentar ou propor quaisquer acções ou incidentes, mesmo relativos a direitos entrados na sua esfera jurídica durante a menoridade.
Com efeito, como preceitua o artº 9º do Cód. Civil, embora a interpretação não deva cingir-se à letra da lei, também não pode conduzir a um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Dentro desses parâmetros, deve procurar reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. E o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Ora, tendo bem presentes os indicados critérios legais de interpretação, afigura-se-nos que não é possível entender os artºs 3º, nº 1, al. a) e 5º, nº 1, al. c) do Estatuto do Ministério Público em termos de estender a competência do Ministério Público à representação de maiores com vista ao exercício de direitos entrados na sua titularidade durante a menoridade ou, mais concretamente, à representação de recém-maiores para propositura de incidente de incumprimento de alimentos, ainda que apenas para ver declarado esse incumprimento respeitante ao período da sua menoridade.
Nada indicia que tal interpretação, que não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, corresponda ao pensamento do legislador que, sabendo, como é de presumir, exprimir-se em termos adequados, se quisesse dizê-lo, o teria seguramente dito.

Soçobram, portanto, todas as conclusões da alegação de recurso, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da decisão recorrida.
Sumário (artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil:
I – Não integra a competência do Ministério Público, nos termos dos artºs 3º, nº 1, al. a) e 5º, nº 1, al. c) do respectivo Estatuto, representar recém-maiores, ainda que para exercício de direitos entrados na sua titularidade durante a menoridade.
II – Carece, portanto, o Ministério Público de legitimidade para, em representação de pessoa que já completou dezoito anos de idade, instaurar incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, mesmo que tenha em vista tão somente a declaração do incumprimento – falta de pagamento da prestação alimentícia – relativamente a período de tempo em que tal pessoa era ainda menor.

3. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente e apelação e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.
Sem custas [artº 4º, nº 1, al. a) do RCP].

Artur Dias (Relator)
Jaime Ferreira
Jorge Arcanjo