Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
256/09.3GBFND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: ASSISTENTE
CONSTITUIÇÃO
ACUSAÇÃO
MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 01/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO FUNDÃO –1ºJ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 115º, 1 CP,68º,2 E 285º CPP
Sumário: 1- Não tem qualquer suporte legal a orientação de que em caso de inobservância pela entidade que recebe a queixa, do dever de advertência para a obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar, no caso de crime particular, conduz ao protelamento da admissibilidade da constituição de assistente apenas até ao termo do prazo em que poderia ser apresentada a queixa.

2-Nos crimes de natureza particular a acusação deduzida pelo M.P. sem prévia dedução de acusação particular, num momento em que nem sequer havia assistente constituído nos autos, não tem qualquer valor jurídico.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nos autos de processo comum que originaram este recurso em separado, M... apresentou queixa contra J..., em 18 de Maio de 2009, por factos susceptíveis de integrar a autoria de um crime de dano.
O denunciado foi constituído arguido, foi ouvido no inquérito e o M.P. veio a deduzir acusação contra ele em 10/09/2009, acusação que foi recebida por despacho de 13/11/2009. Em 15/01/2010 veio, no entanto, a ser proferido despacho com o seguinte teor:
“Atento o disposto nos arts. 212º, nº 4 e 207º, al. a) do CP e face aos agora demonstrados laços de afinidade entre ofendida e arguido, só aquela, constituindo-se assistente, tem legitimidade para deduzir acusação (ainda arts. 212º, nº 4, 207º, al. a), do CP e 50º, nº 1 e 68º, nºs 1 e 2, do CPP).
Pelo exposto, decide-se:
Dar sem efeito os meus despachos de fls. 112 e ss.
Ordenar a remessa dos autos ao MP para os fins tidos por convenientes.”
Ulteriormente, em 15/02/2010, foi proferido o seguinte despacho:
“Tendo em conta que os factos participados são subsumíveis na pratica de um crime de natureza particular, notifique a queixosa para, no prazo de 10 dias, vir aos autos requerer a sua constituição como assistente e proceder ao pagamento da taxa de justiça devida, juntando o respectivo comprovativo, sob pena de os autos serem arquivados, por falta de legitimidade do Ministério Público para promover a acção penal.
Após, aguardem os autos o decurso do prazo fixado.”
A queixosa requereu então a sua constituição como assistente.
Foi então proferido novo despacho, desta feita com o seguinte teor:
“CONSTITUIÇÃO COMO ASSISTENTE:
1) Cumpra-se o disposto no art. 68º, nº 4, do Código de Processo Penal quanto aos arguidos constituídos nos autos.
2) Se o arguido nada disser
Porque o arguido nada disse e porque tem legitimidade, está em tempo, mostra-se representado por advogado, pagou a taxa de justiça/ou/ mostra-se dispensado do pagamento da mesma, e ainda dada a não oposição da Digna Magistrada do Ministério Público e do arguido.
Admito o requerente a intervir nos autos como assistente.
(art. 68º do Código de Processo Penal)
Remeta oportunamente ao MP”
Na sequência desse despacho, o arguido apresentou o requerimento certificado a fls. 82 e ss, pedindo a sua absolvição da instância e o arquivamento do processo com fundamento na extemporaneidade do requerimento de constituição de assistente.
Ouvido o M.P., veio a ser proferido o despacho recorrido, que tem o seguinte teor:
“Constituição como assistente:
J..., arguido no processo à margem referenciado veio opor-se à constituição de assistente da ofendida, entendendo que a mesma é extemporânea.
Alega, em síntese, que: em Maio de 2009, a ofendida apresentou queixa contra o arguido, junto da Guarda Nacional Republicana do Fundão, por alegado crime de dano nos termos do disposto no artigo 2120 do Código Penal.
Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 212°, n, ° 4 e 207º, alínea a), do C.P., sempre que o agente for parente ou afim até ao 2° grau da vítima, leia-se aqui ofendida, o procedimento criminal depende de acusação particular.
Ora, a ofendida é casada com o irmão do aqui arguido, ou seja, parente por afinidade em 1° grau deste. Pelo que, para além da queixa-crime apresentada, a lei prevê a obrigatoriedade de apresentação de acusação particular e, consequentemente, constituição de assistente nos termos das disposições do nº 4 do artigo 212º, da alínea a) do artigo 207.9, ambos do Código Penal, conjugadas com as disposições dos artigos 50º, nº 1 e 68º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal.
Para tanto, o artigo 68º, nº 2, prevê um prazo de oito dias para a constituição de assistente.
Contudo, conclui, a ofendida só se constituiu assistente em 2 de Março de 2010, quase 10 meses depois da apresentação da queixa e assim fora do prazo de 6 meses.
O Digno Procurador Adjunto pugnou pela tempestividade da constituição de assistente da ofendida. Refere, desde logo, o que é omitido no requerimento do arguido, que nestes autos ocorreu uma nulidade processual, entretanto sanada, e que diz respeito, precisamente, á notificação da ofendida para se constituir assistente.
Expostas, sumariamente, as posições do arguido e do Digno Procurador Adjunto cumpre decidir.
A alegação do arguido até á sua conclusão, não merece qualquer reparo: é certa a cronologia dos factos, bem como tipo de crime e necessidade de dedução de acusação particular, precedida de constituição de assistente, por parte da ofendida.
Já não se pode concordar com a sua conclusão, É que verificada a apontada nulidade foi a mesma suprida, com a competente notificação à ofendida para se constituir assistente. Ora, esta mesma ofendida apresentou requerimento para constituição como assistente no prazo que lhe foi fixado.
Por tudo o exposto, decide-se: e porque tem legitimidade, está em tempo, mostra-se representado por advogado, pagou a taxa de justiça/ ou / mostra-se dispensado do pagamento da mesma, e ainda dada a não oposição do Digno Magistrado do Ministério Público admitir a requerente a intervir nos autos como assistente. (Artº 68º do Código de Processo Penal)
Remeta oportunamente ao MP”

A queixosa deduziu então acusação particular contra o arguido.
Por seu turno, o arguido, inconformado com aquele despacho, interpôs recurso de cuja motivação retira as seguintes conclusões:
1. O Despacho recorrido viola os artigos 50°, nº 1, 68º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Penal, conjugado com o artigo 115º do Código Penal pois, a constituição de assistente pela ofendida, passados quase 10 meses sobre o conhecimento dos alegados factos constitutivos do direito de queixa, é extemporânea e, a admitir-se, manifestamente violadora dos direitos e garantias do arguido, consagrados no Código Penal, mas acima de tudo, no artigo 29º, nº 3 e artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
2. Nos crimes de natureza particular, a lei faz depender o exercício do procedimento jurisdicional não só na apresentação de queixa mas também na constituição de assistente por parte do ofendido, sendo que estes dois actos têm de ser praticados dentro do prazo que a lei prevê para o exercício do direito de queixa, ou seja, dentro do prazo de seis meses a contar da data em que o ofendido teve conhecimento do facto típico violador da sua esfera jurídica.
3. Qualquer irregularidade, ou nulidade do procedimento poderá ser sanada no prazo para o exercício do direito de queixa, previsto no artigo 115º do Código Penal.
4. A constituição da ofendida, ainda que notificada para tal, como assistente, em 2 de Março de 2010, tendo os alegados factos ocorrido em 16 de Maio de 2009, é extemporânea.
5. Pelo que, e salvo o devido respeito o Tribunal a quo deveria ter considerado extemporânea a dita constituição de assistente e ordenado o arquivamento dos autos.
Nestes termos e nos mais de Direito e com o douto suprimento de V. Ex.as., deve ser concedido provimento ao presente recurso e consequentemente, deve ser revogado o despacho recorrido, tudo com as legais consequências, designadamente, deve o arguido J... ser absolvido da instância criminal e consequentemente proceder-se ao arquivamento do processo, tudo com as consequências legais e assim se fazendo justiça.

O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância pronunciando-se pela improcedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir se é válida a constituição de assistente e, oficiosamente, por se tratar de questão que contende com a validade da relação processual, há que averiguar da validade da acusação particular deduzida nos autos, determinando, em qualquer dos casos, quais as consequências processuais daí resultantes.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Apreciando e decidindo:
O crime que foi objecto de investigação na sequência da queixa apresentada por M... e que constitui o objecto do processo crime que originou este recurso tem natureza particular por força das disposições conjugadas dos arts. 212º, nº 4 e 207º, al. a), ambos do Código Penal. Com efeito, embora o crime de dano revista, em regra, natureza semi-pública (cfr. o nº 3 do citado art. 212º), bastando-se o procedimento criminal com a apresentação de queixa, já nos casos em que o agente for cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2º grau da vítima, ou com ele viver em condições análogas às dos cônjuges, é exigível ainda a dedução de acusação particular, precedida da constituição do queixoso como assistente (cfr. o art. 50º, nº 1, do CPP).
Sempre que estiver em causa a prática de crime de natureza particular, é obrigatória a declaração na denúncia, pelo denunciante, da intenção de se constituir como assistente, devendo a autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal a quem a denúncia for feita verbalmente advertir o denunciante da obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar (cfr. o art. 246º, nº 4, do CPP). Essa advertência tem relevância processual, na medida em que é a partir dela que se conta o prazo de 10 dias para o requerimento de constituição de assistente (cfr. o art. 68º, nº 2, do CPP).
Sustenta o arguido que não tendo havido constituição de assistente no prazo previsto no art. 68º, nº 2, do CPP, deveria ter sido requerida dentro do prazo de seis meses previsto no art. 115º, nº 1, do Código Penal e que nesse mesmo prazo deveria ter sido sanada qualquer nulidade ou irregularidade, pelo que tendo o requerimento para constituição de assistente sido formulado quando o prazo de apresentação de queixa já se encontrava ultrapassado em cerca de quatro meses, é extemporâneo. Em abono dessa posição, cita diversa jurisprudência dos tribunais superiores e um parecer da PGD de Lisboa.
Não vemos, no entanto, que a lei processual penal comporte uma leitura tão limitada como a sustentada pelo recorrente. Na verdade, ainda que a lei estipule no nº 2 do art. 68º do CPP que “tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, o requerimento tem lugar no prazo de 10 dias a contar da advertência referida no nº 4 do art. 246º”, não contempla qualquer sanção ou consequência para a inobservância daquele prazo. A afirmação de que em caso de inobservância pela entidade que recebe a queixa, do dever de advertência para a obrigatoriedade de constituição de assistente e dos procedimentos a observar, no caso de crime particular, conduz ao protelamento da admissibilidade da constituição de assistente apenas até ao termo do prazo em que poderia ser apresentada a expresso queixa, não tem qualquer suporte legal. As únicas limitações que encontram apoio na letra da lei – e é esse o limite objectivo da interpretação jurídica nos termos em que é conformada pelo nº 2 do art. 9º do Código Civil – para além da que resulta do decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal, são as constantes do art. 68º, nº 3, do CPP.
Em contrapartida, admitir que a omissão de um dever de informação por parte de uma autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal conduza à extinção do direito do queixoso a ver judicialmente apreciada a queixa que apresentou é entendimento que colide com a tutela constitucional do acesso ao direito e aos tribunais, garantida pelos comandos vertidos nos nºs 1 e 2 do art. 20º da Constituição da República Portuguesa, que a todos asseguram o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e a todos garantem, nos termos da lei, o direito à informação jurídica. O incumprimento daquele dever de informação por parte do órgão de polícia criminal que recebeu a queixa não pode ser resolvido em desfavor da queixosa, sob pena de atropelo aos referidos preceitos constitucionais.
Este entendimento não só não colide com as garantias constitucionais do arguido vertidas no art. 32º da CRP nem invalida qualquer expectativa juridicamente tutelada que aquele pudesse ter legitimamente acalentado, como assegura o “fair process” pressuposto pelo conceito de Estado de Direito, assegurando simultaneamente o direito de acesso ao tribunal por parte da vítima, direito este garantido não apenas pelos Arts. 20º, nº 1 e 32º, nº 7, da Constituição da República Portuguesa, mas também pelo art. 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e pelo art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Acresce que a protecção dos direitos da vítima constitui um direito fundamental do cidadão no Estado de Direito, inserindo-se no âmbito dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, sendo os correspondentes preceitos constitucionais directamente aplicáveis, vinculando as entidades públicas e privadas independentemente de intervenção do legislador (art. 18º, nº 1, da CRP).

O que efectivamente releva, no caso vertente, é que a queixa foi tempestivamente apresentada. E assim, uma vez que a omissão do órgão de polícia criminal veio a ser suprida antes de decorrido o prazo de prescrição do procedimento criminal, tendo a ofendida requerido a sua constituição como assistente no prazo que lhe foi assinalado para o efeito por despacho judicial, deverá esse acto considerar-se válido, por tempestivamente praticado.
Com a validação da constituição de assistente foi suprida a falta de legitimidade do M.P. para proceder pelo crime de natureza particular. Na verdade, o exercício da acção penal relativamente a crimes de natureza particular pressupõe necessariamente a constituição do titular do direito lesado na qualidade de assistente, constituindo condição de procedibilidade, a par da apresentação de queixa, por condicionar a legitimidade do M.P. enquanto titular da acção penal (cfr. arts. 48º e 50º, nº 1, do CPP).

Simplesmente, os problemas suscitados pela peculiar situação processual retratada nos autos não se ficam por aqui. Tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, findo o inquérito deveria o M.P. ter notificado o assistente para em 10 dias deduzir, querendo, acusação, nos termos previstos no art. 285º do CPP. Essa notificação não teve lugar no momento adequado – como se viu, no momento em que o inquérito findou nem sequer havia assistente constituído – antes o Ministério Público deduziu, ele próprio, acusação.
Ora, a acusação pelo assistente nos crimes de natureza particular constitui um pressuposto processual do prosseguimento do processo, condicionando a legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação pelos factos correspondentes. A falta desse pressuposto processual determina a invalidade da relação processual, decorrente da falta de uma condição de procedibilidade, que se vem a saldar no vício da inexistência, já que como inexistente se deve considerar o processo impulsionado por quem não tinha legitimidade para o efeito, vício este que deve ser oficiosamente conhecido. E nesta medida, a acusação deduzida pelo M.P. sem prévia dedução de acusação particular, num momento em que nem sequer havia assistente constituído nos autos, não tem qualquer valor jurídico. Trata-se de uma situação de tal modo anómala que o legislador nem sequer a taxou no elenco das nulidades insanáveis, incluindo-se, no entanto, no âmbito das invalidades processuais. A acusação deduzida pelo M.P. é inexistente, como inexistente é todo o anómalo processado subsequente, salvando-se apenas a constituição de assistente, por verificados os respectivos pressupostos formais, como já se referiu, já que tratando-se de acto que poderia validamente ser praticado no momento em que o foi independentemente da validade da relação processual (desde que o procedimento criminal não estivesse ainda prescrito, como efectivamente não estava), deve ser aproveitado por força do princípio geral do aproveitamento dos actos válidos não afectados pelos actos inválidos, sintetizado no aforismo utile per inutile non vitiatur.
Consequentemente, é inválido, por inexistente, todo o demais processado posterior ao encerramento do inquérito, pelo que os autos deverão voltar ao M.P. com vista ao cumprimento do disposto no art. 285º, nºs 1 e 2, do CPP, seguindo-se depois a tramitação que se revelar adequada em função da posição que vier a ser assumida pelo assistente.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, concede-se parcial provimento ao recurso, ainda que por razões distintas das invocadas, declarando-se a inexistência jurídica do processado posterior ao encerramento do inquérito com excepção da constituição de assistente, devendo os autos ser devolvidos ao Ministério Público.
Sem tributação.

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Jorge Miranda Jacob (Relator)
Maria Pilar de Oliveira