Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1362/21.1T8BJA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: ÓNUS DE ALEGAÇÃO EM SEDE DE RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO
VENDA DE BEM DEFEITUOSO
RESPONSABILIDADE DA VENDEDORA
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 5.º, 1 E 2, B) E 640.º, 1, A) A C) E 2, A), DO CPC
ARTIGOS 342.º, 1 E 2; 350.º, 2 E 914.º, DO CPC
Sumário: i) É estultícia pretender que seja dado por não provado um facto que não está provado e que nem sequer foi alegado;
ii) Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 2, a) do NCPC, designadamente: quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes; contudo a apelante limitou-se a indicar o início e termo temporal da gravação da audiência (perfeitamente dispensável, nos termos do art. 155º, nº 1, do NCPC, requisito que a 1ª instância observou, como se constata da consulta da acta), e nem sequer procedeu à facultativa transcrição dos excertos relevantes – limitando-se a afirmar, em forma sumário-conclusiva, o que tais pessoas terão dito;

iii) A omissão desses ónus, impostos no referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto;

iv) Na compra e venda de bens defeituosos, provado o defeito, cabe à vendedora, demonstrar factualmente que desconhecia sem culpa o vício de que a máquina vendida padecia;

v) Não logrando provar a posterioridade do defeito, ou que o aparecimento do defeito se ficou a dever a culpa da recorrida, designadamente a má utilização que ela tenha feito da máquina, ou que o defeito era aparente, conhecido da apelada ou posterior à data da entrega da dita máquina, a vendedora é responsável civil, perante a compradora, pelas despesas de reparação da máquina que não quis efectuar e pelo prejuízo adveniente para a mesma por ter tido paragem de trabalho da máquina Bulldozer durante determinado tempo, no qual não auferiu o rendimento financeiro que podia auferir.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. A..., Lda., com sede em ..., intentou acção declarativa contra B..., Lda., com sede em ..., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia global de 29.350,49 €, acrescido de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

Para o efeito, alegou, em síntese, ter celebrado com a ré um contrato com vista à aquisição de uma máquina Bulldozer, pelo preço total de 71.340 €, o qual incluía um conjunto de reparações a efectuar por parte da mesma, que lhe garantiu que o veículo se encontrava em bom estado de conservação. Após lhe ter sido entregue a máquina a mesma começou a evidenciar problemas de funcionamento, que discriminou, razão pela qual comunicou os mesmos à ré, mas sem que esta se responsabilizasse por eles, o que levou a que tivesse de ser a própria a proceder à reparação da máquina, sob pena de perder os trabalhos que lhe estavam adjudicados. Que toda a situação lhe causou prejuízos, quer no que diz respeito às reparações que se viu forçada a efectuar, quer no que diz respeito ao período que esteve impedida de executar um trabalho para o qual foi contratada. A ré deve ser condenada a pagar-lhe a quantia de 20.391,49 € a título das reparações efetuadas na máquina e a quantia de 8.959 € a título de lucros cessantes durante o período de imobilização da máquina para reparação, e, em alternativa a este último pedido, caso não possa ser quantificado o valor atinente aos lucros cessantes relativos à imobilização, deverá tal valor ser apurado a final, em execução de sentença.

A ré contestou, além do mais, por impugnação, pugnando pela improcedência da acção e a condenação da autora como litigante de má fé, no montante de 5.000 €. Em síntese, alegou que efectivamente celebrou com a autora um contrato de compra e venda relativo à máquina em causa e que procedeu a alguns trabalhos de manutenção da mesma antes de proceder à sua entrega. Contudo, discordando do valor da aquisição, refere que não foi acordada qualquer reparação do ar condicionado e que o veículo, após ter sido efectuada a manutenção que identifica na sua contestação, foi vendido no estado em que se encontrava e de que a autora era conhecedora. 

A autora respondeu, pugnando pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má fé, deduzindo também ela igual pedido de condenação da ré como litigante de má fé, no montante de 5.000 €, a que a ré respondeu, pugnando pela improcedência de tal pretensão.

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A final foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a R. no pagamento à A. da quantia global de 24.791,49 €, acrescidos de juros de moras à taxa legal, desde a citação.

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2. A A. recorreu, tendo concluído que:

01. A decisão a quo enferma de erro de julgamento da matéria de facto, pelo que, merece secura e deverá ser revogada, porquanto em sede de audiência de julgamento não se demonstrou a anterioridade dos vícios funcionais do Bulldozer à data da sua entrega em 05.02.2021, e que durante o período de 22 dias ficou impedia de operar na Herdade ... o que lhe causou um dano de natureza patrimonial de € 4.400,00.

02. Em 02.05.2021 a RECORRENTE entregou à RECORRIDA equipamento Bulldozer, da marca ..., modelo ..., com o número de série ...04.

03. No dia 15.03.2021 a RECORRIDA contactou a C..., informado que a ventoinha não rodava, a fim de o seu técnico se deslocar à sede da empresa (Estrada ... Km 3.1) para efeito de diagnostico a realizar no equipamento Bulldozer. DOC 18 JUNTO COM A PI

04. Na sequência do contacto realizado, veio a C... no decurso do mês de Março (nos dias 25 e 26, conforme decorre da ordem de serviço a que corresponde o documento n.º 17 junto com a PI), alegadamente a prestar no equipamento Bulldozer, os serviços titulados nas facturas ...93, de 16.04.2023, no valor de € 682,62 [DOC 18 (PROPOSTA DE SERVIÇO) e DOC 13 (FACTURA DO SERVIÇO)], ...95, de 16.04.2023, no valor de € 2.759,17 [DOC 19 (PROPOSTA DE SERVIÇO), DOC 17 (ORDEM DE SERVIÇO) e DOC 15 (FACTURA DO SERVIÇO)] e, ..., de 16.04.2023, no valor de € 4.365,91 [DOC 20 (PROPOSTA DE SERVIÇO ADITADA AO DOC 19) e 14 (FACTURA DO SERVIÇO)], perfazendo o valor

global de € 7.807,70, que corresponde ao valor € 5.650,18 (porquanto o valor de € 2.157,52, reporta-se a IVA).

05. A prestação de serviços descrita na proposta POS0...76, de 19.04.2023, no valor de € 13.494,71 (DOC 22 JUNTO COM A PI), não tem qualquer factura associada, nem recibo de pagamento de 50% do valor orçamentado a fim de ser considera a prestação de serviços adjudicada.

06. O valor global dos serviços prestados e facturados pela C... à RECORRIDA totalizam o valor de € 5.650,18 (porquanto o valor de € 2.157,52, reporta-se a IVA).

07. O equipamento foi vendido sem que fosse feito qualquer diagnostico para verificação de vícios funcionais, foi inscrito na factura que titula a venda a menção expressa [n]o estado em que se encontra e o cliente é sabedor. DOC 1 JUNTO COM A PI

08. A RECORRENTE à data da entrega do bem, não conhecia, nem podia ignorar os vícios funcionais do Bulldozer, deverá ser absolvida do pedido de pagamento das reparações de vícios.

09. Concatenada a prova, testemunhal e documental, não é possível concluir que à data da compra e venda (30.12.2020) ou mesmo à data da entrega do equipamento Bulldozer (05.02.2021) a RECORRENTE o conhecia e não ignorava os defeitos -vícios matérias- que em 25.03.2021 e 26.03.2021 foram diagnosticados pela C....

10. Cabia à RECORRIDA a prova de que o Bulldozer, em 05.02.2021, lhe foi entregue com os defeitos identificados pela C... em 25 e 26 de Março de 2021 (art. 342º, nº1, do C. Civil).

11. Não tendo a RECORRIDA a prova de que o Bulldozer lhe foi entregue pela RECORRENTE, em 05.02.2021, com os defeitos identificados pela C... em 25 e 26 de Março de 2021, não poderá esta ser responsabilizada pelo pagamento dos serviços de assistência feitos em momento posterior.

12. Não tendo sido feita prova da anterioridade dos defeitos funcionais da Bulldozer, à data da sua entrega, tendo apenas sido feita a prova da sua existência nos dias 25 e 26 de Março de 2021, mal andou o Tribunal a quo ao condenar a RECORRENTE no pagamento de reparações feitas pela C... no Bulldozer no valor de € 20.391,49. § segundo da pg. 18, da Sentença a quo

13. Da análise conjugada dos DOCUMENTOS JUNTOS COM A PI SOB OS NÚMEROS 1, 18 (PROPOSTA DE SERVIÇO) e DOC 13 (FACTURA DO SERVIÇO), DOC 19 (PROPOSTA DE SERVIÇO), DOC 17 (ORDEM DE SERVIÇO) e DOC 15 (FACTURA DO SERVIÇO), DOC 20 (PROPOSTA DE SERVIÇO ADITADA AO DOC 19), 14 (FACTURA DO SERVIÇO) DOC 22 (PROPOSTA DE SERVIÇO, SEM FACTURA CORRESPONDENTE), com os depoimentos de AA [(minuto 00:00:01 a 00:36:55) do registo áudio de 22.06.2023], de BB[(minuto 00:00:01 a 00:28:36) do registo áudio de 22.06.2023] e das declarações do legal representante da RECORRENTE CC [(minuto 00:00:01 a 00: 24:23 do registo áudio de 12.07.2023], decorre que a RECORRENTE à data da entrega do Bulldozer, não conhecia e ignorava os defeitos do equipamento Bulldozer, da marca ..., modelo ..., com o número de série ...04, que nos dias 25 e 26 de Março foram identificados pela C....

14. Não foi produzida prova de que prova a RECORRIDA ficou durante um mês impossibilitada de utilizar equipamento Bulldozer, da marca ..., modelo ..., com o número de série ...04, o que lhe causou um dano de natureza patrimonial de € 4.400,00.

15. Da prova produzida apenas decorre, quanto a este facto, que a RECORRENTE se faz remunerar em € 65,00 por cada hora de trabalho com o Bulldozer. DOCUMENTO JUNTO COM A PI SOB OS NÚMERO 27, não decorre da concatenação do DOCUMENTO JUNTO COM A PI SOB OS NÚMERO 27 com os depoimentos das testemunhas DD [(minuto 00:00:01 a 00:21:07) do registo áudio de 22.06.2023] e AA [(minuto 00:00:01 a 00:36:55) do registo áudio de 22.06.2023], que a Bulldozer não trabalhou na Herdade ... durante um mês.

16. Aceitar-se uma paralisação da Bulldozer devido a vícios funcionais, o que só por mero raciocínio de admite, apenas se poderia considerar uma paralisação entre os dias ../../2021 e o dia 26.03.2021, ou seja, de 12 dias, que mediaram entre o contacto com a C... e a data da sua resolução em 26.03.20212, o que totalizaria o valor de € 2.400,00 (€ 25,00/hora * 8 horas/dia * 12 dias).

17. Maior reparo merece a Sentença a quo se, se atentar que, por um lado o documento junto para motivar os trabalhos na Herdade ... não tem o adquirente identificado, e por outro, é do conhecimento comum que o Dr. EE mencionado na motivação da Sentença a quo exerce a sua actividade vitivinícola em ... e não em ..., e por último, porque, nunca para os autos foi carrado o contrato de prestação de serviços, nem o seu adquirente ouvido.

18. Da análise conjugada dos DOCUMENTO JUNTO COM A PI SOB O NÚMERO 27, com os depoimentos de AA [(minuto 00:00:01 a 00:36:55) do registo áudio de 22.06.2023], de DD [(minuto 00:00:01 a 00:21:07) do registo áudio de 22.06.2023] e dos factos do domínio público, não decorre que a

RECORRIDA durante um mês impossibilitada de utilizar equipamento Bulldozer, da marca ..., modelo ..., com o número de série ...04, na Herdade ..., o que lhe causou um dano de natureza patrimonial de € 4.400,00, por culpa da RECORRENTE.

19. A RECORRENTE à data da entrega do Bulldozer (05.02.2021), não conhecia e ignorava os defeitos do equipamento Bulldozer, da marca ..., modelo ..., com o número de série ...04, que nos dias 25 e 26 de Março foram identificados pela C..., pelo que, nenhuma responsabilidade lhe poderá ser assacada quer a título de reposição do dano materiais quer a título de danos não materiais por impedimento de laboração.

20. Ao abrigo do disposto no art. 637º, n.º 1 e 2 do CPC, se requer reapreciação da prova documental - DOCUMENTOS JUNTOS COM A PI SOB OS NÚMEROS 1, 18 (PROPOSTA DE SERVIÇO) e DOC 13 (FACTURA DO SERVIÇO), DOC 19 (PROPOSTA DE SERVIÇO), DOC 17 (ORDEM DE SERVIÇO) e DOC 15 (FACTURA DO SERVIÇO), DOC 20 (PROPOSTA DE SERVIÇO ADITADA AO DOC 19), 14 (FACTURA DO SERVIÇO) DOC 22 (PROPOSTA DE SERVIÇO, SEM FACTURA CORRESPONDENTE) e DOC 27, bem como da prova testemunhal prestada em sede de audiência de julgamento, consignadas em acta que consta de registo áudio em uso no Tribunal a quo (cfr. Acta: (…) depoimento encontra-se gravado através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal):

a) testemunha AA [(minuto 00:00:01 a 00:36:55) do registo áudio de 22.06.2023],

b) testemunha BB: [(minuto 00:00:01 a 00:36:55 do registo áudio de 22.06.2023)]

c) testemunha DD [(minuto 00:00:01 a 00:21:07) do registo áudio de 22.06.2023]

d) declarações de CC [(minuto 00:00:01 a 00: 24:23 do registo áudio de 12.07.2023]

21. Tendo-se evidenciado o erro de julgamento da matéria de facto, deverá o Tribunal ad quem revogar a decisão em recurso, e dar como provado que:

 em 05.02.2021 o equipamento Bulldozer, da marca ..., modelo ..., com o número de série ...04 já apresentava os vícios que em nos dias 25 e 26 de Março de 2021 foram listados e reparados pela

C....

 o equipamento Bulldozer, da marca ..., modelo ..., com o número de série ...04 esteve inoperacional por pelo menos um mês.

Julgando-se o Recurso procedente, e revogando-se a sentença a quo, será feita JUSTIÇA!

3. A R. contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

II - Factos Provados

 

1. A Autora adquiriu à Ré uma máquina Bulldozer da marca ..., modelo ..., com o n.º de série ...04, equipado com lâmina Semi-U e ripes de 3 dentes, do ano de 2003, com 13000h, “no estado em que se encontra e do qual o cliente é sabedor”.

2. O preço total da sua aquisição foi de 71.340,00€, IVA incluído.

3. Dos referidos 71.340,00€, 43.000,00€ corresponderam ao valor do veículo, 2.500,00€ a uma revisão geral e 500,00€ a colocação de rótulas.

4. Esse valor comportava igualmente o arranjo de todo o circuito de ar condicionado, na importância de 12.000,00€, constando da factura também que tal implicaria a substituição de todo o material necessários “por forma a ficar 100%).

5. A referida máquina buldózer encontrava-se à venda on line.

6. Após contacto telefónico por parte da Autora com a Ré, as partes acordaram que o gerente da Autora se deslocaria à sede da Ré, a fim de aí visualizar a máquina e proceder à sua experimentação.

7. Para ultimar o negócio, o Gerente da Autora, Sr.º FF, acompanhado de um seu operador, foi experimentar a máquina no dia 28.12.2020, data na qual acertaram os termos do acordo supramencionado em 1 a 4.

8. Durante a experimentação o operador notou que a máquina tinha um aquecimento excessivo, apesar de se fazer sentir muito frio.

9. Pelo representante da Ré., Sr. CC, logo foi dito que o aquecimento era normal dado o facto de a mesma estar parada há algum tempo e haver necessidade de proceder à limpeza das tubagens e do radiador.

10. Nesse momento, foi dito pelo legal representante da Ré para a Autora ficar descansada e que iam reparar tudo, ficando a máquina pronta a começar a trabalhar.

11. Assim, o acordo foi concluído nos termos identificados em 1.

12. Após, a máquina foi entregue à Autora no dia 05.02.2021.

13. A Autora entregou à Ré o valor acordado, tendo entregue inicialmente, para início da reparação, 20% do valor total acordado.

14. No momento da entrega foi sublinhado pela R. que “estava tudo impecável e que se houvesse algum problema era só dizer.”

15. Após a entrega, o Bulldozer acabou por não ser de imediato colocado ao serviço.

16. Só em março, a partir do dia 10, a máquina começou a ser utilizada.

17. Nesse momento, a máquina apresentava um sobreaquecimento rápido do sistema hidráulico ao fim de apenas 1 hora de trabalho, o que impossibilitava o hidráulico de virar completamente.

18. O que motivou que o gerente da Autora tivesse contactado a empresa C..., relatando o ocorrido e no dia 11 de Março de 2021 foi efectuada uma inspecção e diagnóstico no circuito hidráulico, tendo sido diagnosticado os seguintes problemas:

a. Foi detectado um alto nível de contaminação no fluido hidráulico;

b. Apresentava os filtros obstruídos, o que determinou a necessidade de limpar os solenóides LS/EPC e PC/EPC;

c. Foi verificado que a válvula LS d bomba frontal não gerava carga no motor quando era afinada; e

d. O cilindro superior apresentava uma trepidação no seu curso, tendo sido diagnosticado que a máquina necessitava de intervenção directa na bomba hidráulica, pois a mesma perdia muito fluido pelos vedantes.

19. No dia 12.03.2021, e face a este diagnóstico, o gerente da A., através de contacto telefónico pelas 14H08, relatou ao sr.º CC tais anomalias, solicitando que as mesmas fossem reparadas, mas sem sucesso.

20. De igual modo nos dias que se seguiram, a situação manteve-se inalterada, o que determinou que o gerente da A. procurasse falar novamente com o sr.º CC, o que fez através de contacto telefónico via Whatsapp, no dia 16 de Março de 2020, e novamente no dia 18, mas sem qualquer solução por parte da empresa vendedora.

21. No dia 4 de Maio de 2021, a Autora enviou uma carta à Ré a denunciar os problemas evidenciados na máquina adquirida, acompanhada dos orçamentos de reparação e de faturas com os valores já despendidos pela Autora, tudo como consta do documento 6-A junto com a petição inicial e cujo teor se dá aqui por reproduzido.

22. Na data em que foi enviada a carta referida em 21, a máquina adquirida pela Autora à Ré apresentava os seguintes problemas:

a) Sobreaquecimento geral sem motivo aparente;

b) Foram detetadas alterações à instalação elétrica de forma a dar pressão máxima à bomba de modo a esconder avarias graves;

c) Elevado estado de degradação da bomba e motor de arrefecimento;

d) Apresentava ao nível do motor, vários componentes com avarias internas, e a substituição de peças, contrafeitas, nomeadamente a colocação de um plug, com os mesmos desenhos de uma válvula de segurança, a fim de jumpear o circuito juntamente com uma linha extra não original ... e avaria na bomba do ventilador;

e) Ar condicionado sem funcionar para frio e sem força no ventilador;

f) Grande dificuldade em virar devido a problemas no sistema hidráulico;

g) Avaria no motor e na bomba de direção;

h) Apresentava alterações no sistema hidráulico, impedindo a aferição da pressão hidráulica, pois foi removido o tubo de medição original e substituído por um tubo fora da marca de origem.

23. Para proceder à reparação do sistema de arrefecimento, nomeadamente ventilador e demais componentes, despendeu o Autora a quantia de 7.807,73€, tal como consta das facturas identificadas no processo digital sob o documento 13, 14, 15.

24. Para reparação da Bomba de Direção e demais componentes foi despendida a quantia de 12.238,89€, tal como consta da factura identificada no processo digital sob o documento 21.

25. Para reparação e limpeza do ar condicionada a Autora despendeu a quantia de 344,87€.

26. O serviço prestado pela máquina é faturado pela Autora a € 68,90, correspondente a € 65,00 /hora + IVA à taxa de 6%, tendo um custo operacional, a deduzir a este valor, no total de 400,00€ diários para trabalhos diários de 10 horas.

27. A Autora tinha sido contratada para a prestação de serviços com recurso à máquina adquirida à Ré, pelo período de 6 meses.

28. O Bulldozer esteve, pelo menos, um mês sem poder ser utilizado pela Autora nos trabalhos para os quais foi contratada.

II - De Direito

 

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Inexistência de vício da máquina aquando da venda.    

2. A recorrente impugna a decisão da matéria de facto, pretendendo que seja dado como provado que:

- em 05.02.2021 o equipamento Bulldozer, da marca ..., modelo ..., com o número de série ...04 já apresentava os vícios que em nos dias 25 e 26 de Março de 2021 foram listados e reparados pela C....

- o equipamento Bulldozer, da marca ..., modelo ..., com o número de série ...04 esteve inoperacional por pelo menos um mês.

Isto com base em declarações de parte do seu representante legal CC e depoimento testemunhal de AA, BB e DD e docs. que indica (cfr. conclusões de recurso 1. a 9., 12. a 18., 20. e 21.).

Antes de efectuarmos a devida apreciação, cabe assinalar um lapso nas ditas conclusões: atenta a economia do recurso e a sua pretensão lógica, confirmada pela parte final do corpo das alegações de recurso, conclui-se que a recorrente pretende que tais factos sejam dados por não provados (na parte final do corpo das ditas alegações é isso que se indica expressamente).

2.1. Em relação àquele primeiro facto nota-se uma clara anormalidade: pretende que seja dado por não provado um facto que não está dado por provado !?

E que, na referida economia do recurso e solução de direito do litígio entre as partes, só podia ter potencial utilidade como facto positivo, se alegado pela recorrente, na sua contestação, o que nem sequer ocorreu.  

É, pois, manifesta estultícia a sua análise e ponderação.

Diga-se, adicionalmente, que mesmo que alegado tal facto não poderia ser considerado: primeiro porque seria facto essencial, de acordo com a argumentação jurídica exposta pela recorrente, mas não alegado pela em obediência ao art. 5º, nº 1, do NCPC, que dita que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir; segundo, na única perspectiva possível, a de eventual facto complementar ou concretizador, nos termos do art. 5º, nº 2, b), do mesmo código, dado que, ainda que resultantes da instrução da causa, nem a parte recorrente manifestou, atempadamente, a vontade de o usar, com inerente respeito pelo contraditório, nem o julgador se propôs fazê-lo, com possibilidade de pronúncia pelas partes.

Acrescente-se uma terceira razão. A norma que regula a impugnação da matéria de facto (art. 640º do NCPC) dita que tem de observar-se os ditames fixados no seu nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, sob pena de rejeição.

Ou seja, de tal dispositivo verifica-se que a lei exige 5 requisitos:

i) Que o recorrente obrigatoriamente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

ii) Que o recorrente obrigatoriamente especifique o sentido concreto da resposta, que na óptica do recorrente, se impunha fosse dado a tais pontos;

iii) Que o recorrente obrigatoriamente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa;

iv) E por que razão assim seria, com análise crítica criteriosa;

v) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes.  

Ora, a forma de impugnar praticada pela apelante não respeita a lei processual (o indicado nº2, a), do art. 640º), não satisfaz o quinto requisito legal elencado, uma vez que a recorrente, relativamente à prova por declarações de parte de CC e testemunhal de AA e BB, não indica com exactidão as passagens da gravação em que funda a impugnação – limitando-se a indicar o início e termo temporal da gravação da audiência, perfeitamente dispensável, nos termos do art. 155º, nº 1, do NCPC, requisito que a 1ª instância observou, como se constata da consulta da acta -, e nem sequer procedeu à facultativa transcrição dos excertos relevantes – limitando-se a afirmar, em forma sumário-conclusiva, o que tais pessoas terão dito.

Em relação a tal matéria, importa, pois, rejeitar a mencionada impugnação.

2.2. No respeitante àquele segundo facto, já é perceptível a pretensão da apelante, o mesmo é dizer que ela está a impugnar o facto provado 28. Fá-lo com base nos depoimentos testemunhais de DD e AA e doc. nº 27, junto com a p.i.

Na motivação da decisão de facto, o julgador exarou que:

“O juízo probatório tendente ao apuramento da factualidade dada como provada resultou dos elementos probatórios coligidos e colocados ao dispor do Tribunal, os quais incidiram sobre a matéria de facto não aceite pela Ré e objecto de impugnação em sede de contestação.

(…)

Feito este esclarecimento, passemos então à análise propriamente dita dos elementos probatórios que nos permitiram dar os factos 15 a 18 e 21 a 29 como provados.

(…)

Por fim, no que concerne aos factos 26 a 28, o tribunal socorreu-se essencialmente do teor do documento 24, devidamente concatenado com o depoimento das testemunhas DD e GG (sendo que o depoimento de parte da autora acabou por ser corroborada também ele por estes elementos de prova).

Em suma, veio então a testemunha DD, funcionário da Autora encarregue de realizar os trabalhos com o Bulldozer, referir que a empresa foi contratada pelo Dr.º EE (EE, conhecido empresário português, com empresas no sector vinícola em ...) para executar determinados trabalhos na Herdade ..., em ..., os quais iriam decorrer durante o período de 6 meses, os quais implicavam, além do mais, a utilização daquele veículo. Esclareceu que, fruto da impossibilidade de utilizar o veículo decorrente dos danos apresentados e consequente necessidade de reparação, o Dr.º EE acabou por contratar os serviços de outra entidade que pudessem fazer aquilo que estava destinado ao Bulldozer da Autora, razão pela qual referiu que o seu patrão perdeu cerca de 1 mês de trabalho.

Já a testemunha GG, na qualidade de funcionário da C..., acabou por confirmar que o Bulldozer esteve, pelo menos, cerca de um mês parado a aguardar a conclusão da reparação, justificando tal circunstância com o facto de serem necessárias peças provenientes d Japão.

Resumindo: encontrando-se junta a factura emitida na sequência de trabalhos posteriores feitos na Herdade ... (em cumprimento do serviço contratado, ainda que não na totalidade) da qual consta o valor cobrado pela a Autora pela utilização daquele equipamento à taxa diária, tendo igualmente aqueles testemunhas referido que a execução dos trabalhos teria a duração de seis meses e que a Autora esteve impossibilitada de utilizar o veiculo durante cerca de um mês (tendo o mesmo estado a aguardar a conclusão da reparação durante igual período), não podemos deixar que tais circunstância se mostram bastantes para considerar a aludida matéria de facto alegada pela Autora como provada, nada tendo sido adiantado que permita por em causa a veracidade daqueles relatos.”.

Quanto aos depoimentos testemunhais apontados pela apelante, não podem ser considerados pela razão exposta no ponto anterior: falta de indicação exacta das passagens da gravação e alternativa falta de transcrição dos excertos relevantes.

Resta o aludido doc. 27. Só que não existe o mencionado doc. nº 27, que a recorrente menciona (quer nas alegações de recurso, quer nas conclusões do mesmo). Uma vez que a apelante diz que ele foi emitido em 7.9.2021 e menciona o seu conteúdo só pode estar a referir-se ao doc. nº 24. Acontece que tal doc. foi analisado e ponderado pelo julgador de facto na sua motivação, concatenado com depoimentos testemunhais, como se depreende da transcrição atrás feita. E do seu teor não resulta, patentemente, a não prova do facto 28., como a recorrente aspira.       

Assim, por aqui, não procede, igualmente, a impugnação factual deduzida pela R.

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Atenta a causa de pedir tal qual vem estruturada pela Autora na sua petição inicial, a decisão sobre a presente causa remonta-nos desde logo para o regime do contrato de compra e venda, pelo que cumpre proceder desde já à sua análise.

Através do supramencionado artigo, o Código Civil adianta-nos uma noção deste contrato típico, declarando que “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”.

(…)

In casu, não temos qualquer dúvida em qualificar o contrato celebrado entre as partes como um contrato típico de compra e venda (nem ele é sequer posto em causa), na medida que resulta da factualidade dada como provada que a Autora adquiriu à Ré o Bulldozer melhor identificado no facto provado 1, isto mediante o pagamento do preço acordado entre ambas. Apesar de existir uma aparente divergência das partes quanto à data em que o contrato foi concluído, a verdade é que tal facto é completamente indiferente para a decisão a proferir, uma vez que o mesmo em nada contende com o pedido deduzido pela Autora.

Tornando-se o contrato perfeito pelo simples acordo das partes – recordemo-nos que estamos perante bens móveis, vigorando assim o princípio da liberdade de forma –, pendia sobre a Ré, enquanto vendedora, a obrigação de entregar aquele empilhador à Autora, o que acabou efectivamente por acontecer no dia 05.02.2021 (facto provado 12).

Contudo, dispõe o art.º 913.º do Código Civil, no seu n.º 1, que “se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes”, adiantando o n.º 2 do mesmo artigo que “quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria”.

Por seu turno, de acordo com o estatuído no art.º 914.º do Código Civil, “o comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela; mas esta obrigação não existe se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece”.

Daqui resulta que a lei civil equipara ao mesmo regime duas situações que podem afectar a coisa vendida: o vício ou defeito e a falta de qualidade, privilegiando, dessa forma, a idoneidade do bem para a função a que se destina, tendo em vista proteger o adquirente relativamente à aptidão da coisa, isto é, a utilidade que aquele espera dela.

Uma vez que a venda de coisa defeituosa é encarada legalmente pela falta de conformidade ou qualidade do bem adquirido para o fim específico e/ou normal a que é destinado, a determinação do defeito da coisa pressupõe um juízo de avaliação aferido, em primeiro lugar, de acordo com o destino fixado pelas partes; na sua ausência ou insuficiência, há que ter presente a realização do fim a que a coisa se destina, levando ainda em linha de conta as qualidades asseguradas ou necessárias à realização desse mesmo fim.

Importa igualmente considerar que o vício conhecido do adquirente na conclusão do negócio excluiu a responsabilidade do vendedor, sendo sobre este que impende tal prova, cabendo tão só ao comprador a demonstração da existência do defeito. No caso específico do direito de reparação, a lei desobriga o vendedor se este desconhecia, sem culpa, o vício ou a falta de qualidade da coisa (art.º 914.º, in fine, do Código Civil).

Verifica-se, deste modo, que o direito de reparação na venda de coisa defeituosa assenta na culpa presumida do vendedor, cabendo a este ilidir tal presunção mediante a demonstração de que ignorava, sem culpa, a existência do vício ou a falta de qualidade da coisa, o que não ocorreu no nosso caso.

Diferentemente, logrou a Autora demonstrar, como lhe competia (art.º 342.º, n.º 2 do Código Civil), que, mesmo após ter sido assegurado pela Ré que o veículo Bulldozer seria entregue no estado adequado ao exercício das actividades para as quais um veículo daquela natureza está destinado, tendo inclusive procedido a uma revisão geral e a reparação de determinados equipamentos, cobrando para isso um preço adicional face ao valor base fixado para o veículo, constatou que após a sua entrega à Autora o mesmo evidenciou um conjunto de problemas que impediram a sua utilização. De igual modo, resulta da matéria de facto dada como provada que a Autora comunicou os mesmos à Ré, tendo solicitado a sua reparação, solução essa à qual a Ré não deu resposta (tudo isto, tal como consta dos factos provados 3, 4, 10, 14, 17, 19, 20, 21 e 22.

Tal circunstância implicou que a Autora procedesse por si à reparação das anomalias detectadas e que impediram a utilização regular do veículo, tudo por forma a que lhe pudesse dar o destino para o qual foi adquirido (factos provados 23, 24 e 25).

Assim, contrariamente ao pugnado pela Ré, o facto de na factura ser referido que o veículo é vendido no estado em que se encontra e de que o comprador é sabedor, diz tudo e não diz nada, tanto mais que, como veio a ser dado como provado, foi assegurado pela Ré que o veículo seria vendido num estado que lhe permitisse trabalhar com o mesmo (impecável, nas palavras da Ré), o que manifestamente não aconteceu, não constando dos autos que a Autora tivesse adquirido um veículo com a finalidade de o manter inoperacional. Aliás, o estado em que o veículo estava, e isso noa foi negado pela Ré, é que estaria pelo menos em condições de ser utilizado de forma regular e adequada às características do veículo (ainda que não fosse um veículo novo), pelo que aquela expressão também poderia ser interpretado como sabendo a autora que o veículo era vendido na condição em que estava, ou seja, em boa condição para ser utilizado.

Posto isto, tendo em conta o citado art.º 913.º, n.º 1 do Código Civil, o comprador de coisas defeituosas goza do direito de escolher e exercer autonomamente a ação de responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente de cumprimento defeituoso ou inexato (o que foi o caso da Autora), presumidamente imputável ao devedor, sem necessidade de pedir a resolução do contrato ou a redução do preço, nem a reparação ou substituição da coisa, ou a reparação ou substituição da coisa. (artigos 905.º, 908.º, 909.º 911.º do Código Civil).

E ainda, sufragando tal tese, a resolução do contrato (art.º 432.º e ss. do Código Civil).

Descendo ao nosso caso, é manifesto que a Autora fez essa prova dos factos que legitimam o seu pedido de indemnização por conta da circunstância de a Ré, após a autora ter solicitado a reparação dos defeitos do veículo, ter assumido uma postura omissiva, não restando à Autora outra solução que não fosse a de, com recurso ao seu próprio capital, proceder à reparação do veículo por forma a coloca-lo num estado funcional, pelo que o seu pedido não poderá deixar de ser julgado procedente nesta parte, devendo a Ré ser condenada a indemnizar a Autora na quantia global de 20.391,49€ (factos provados 23, 24 e 25).

Por fim, veio igualmente a Autora peticionar o pagamento da quantia de 8.959,00€ por conta dos prejuízos que sofreu decorrentes da venda do veículo naquele estado, mormente dos trabalhos que ficou impossibilitada de realizar e para os quais já tinha sido contratada.

Ora, dando aqui por reproduzidas as considerações anteriores quanto ao direito indemnizatório que assiste à Autora (pelo interesse contratual positivo), também não podemos deixar de considerar que a mesmas logrou provar a existência dos referidos danos, ainda que não a extensão pretendido.

Com efeito, tal como resulta da matéria de facto dada como provada, a Autora não logou provar que o veículo este imobilizado e incapacitado de trabalhar em 31 dias úteis (por referência aos períodos de imobilização mencionados no facto não provado a)). Ainda assim, foi a autora capaz de provar que o veículo em causa este parado pelo menos durante um mês, assim como foi de um mês o período de tempo por esta perdido na execução dos trabalhos para os quais tinha sido contratada, tudo numa execução de serviços que duraria 6 meses. Do mesmo modo, logrou a Autora provar qual o custo contratualizado com a entidade em causa para a prestação dos trabalhos com aquele veículo, o qual ficou balizado em 65,00€ à hora, acrescido de IVA, à taxa de 6%, sendo de retirar a esse valor os custos operacionais que decorreriam da própria utilização do veículo (factos provados 26, 27 e 28).

Tal como dispõe o art. 566.º, n.º 3 do Código Civil, “Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, o que não nos poderá deixar de remeter para o regime da equidade.

E se assim é, não tendo a Autora logrado provar quais os concretos dias úteis (assim como a sua quantidade) em que o veículo ficou impossibilitado de ser utilizado para a execução dos trabalhos contratualizados, mas tendo conseguido lograr provar que o custo hora da utilização do veículo (descontado o valor associado aos custos operacionais), que perdeu um mês de trabalho (sendo que um mês tem, normalmente, 22 dias úteis), entende este tribunal fixar como justo e equitativo uma indemnização sofrida por estes danos no montante de 4.400,00€ (preço líquido hora pela utilização do veículo, cifrado em 25€, multiplicado por uma jornada de trabalho normal diária de 8h, multiplicado por 22 dias úteis).”.

A recorrente discorda pelos motivos constantes das suas conclusões de recurso (as 9. a 12. e 19.). E que em suma são os seguintes: não é possível concluir que à data da compra e venda (30.12.2020) ou mesmo à data da entrega do equipamento Bulldozer (5.2.2021) a recorrente conhecia e não ignorava os defeitos diagnosticados à máquina; cabia à recorrida a prova de que o Bulldozer, em 5.2.2021, lhe foi entregue com os defeitos identificados (art. 342º, nº 1, do C. Civil), o que não conseguiu, pelo que não poderá a recorrente ser responsabilizada pelo pagamento dos serviços de assistência feitos em momento posterior; não tendo sido feita prova da anterioridade dos defeitos funcionais da Bulldozer, à data da sua entrega, tendo apenas sido feita a prova da sua existência, mal andou o tribunal a quo ao condenar a apelante no pagamento de reparações feitas no Bulldozer no valor de 20.391,49 €.

Mas não tem razão. Expliquemos.

É indubitável para ambas as partes, e para o tribunal ad quem, face à matéria provada que a máquina apresentava defeitos.

Como tal a A. pretendeu que eles fossem reparados, o que podia reclamar, nos termos do citado e transcrito art. 914º, 1ª parte, do CC. Porém, para o vendedor, esta obrigação não existe se ele desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece (transcrito art. 914º, 2ª parte, do CC).

Ensina Antunes Varela (em CC Anotado, Vol. II, 2ª Ed., nota 1. ao referido artigo, pág. 190) que é ao vendedor que compete alegar e provar o desconhecimento do vício ou defeito da coisa, visto ele estar, em princípio, por força do contrato, obrigado a prestar a coisa isenta de defeito.

De outra parte, e no mesmo sentido, esclarece L.T. Menezes Leitão (em D. Obrigações, Vol. III, 5ª Ed., pág. 121/122) que o fundamento da obrigação de reparar a coisa é a garantia edilícia prestada pelo vendedor, no âmbito da qual resulta que ele garante tacitamente a inexistência de defeitos no bem vendido, tendo assim que o reparar (ou substituir), salvo naturalmente o conhecimento do vício pelo comprador. O regime da garantia edilícia não assenta assim numa responsabilidade objectiva do vendedor, mas apenas numa presunção de culpa relativamente à venda da coisa com defeitos, que pode ser elidida mediante a demonstração de que o vendedor se encontra numa situação de desconhecimento não culposo dos defeitos da coisa.

Por sua vez, e na mesma via, segue Calvão da Silva (em Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 5ª Ed., pág. 61), afirmando que esse desconhecimento tem de ser alegado e provado pelo próprio vendedor, visto tratar-se de um facto impeditivo do direito contra si invocado pelo comprador (art. 342º, nº 2, do CC) e estar obrigado a prestar a coisa isenta de vícios ou defeitos. Equivale a dizer, noutra formulação, que o direito à reparação (ou substituição) da coisa repousa sobre a culpa presumida do vendedor, cabendo a este ilidir tal presunção mediante prova em contrário (art. 350º, nº 2, do CC), isto é, a prova da sua ignorância, sem culpa, do vício da coisa, como facto impeditivo do direito invocado pelo comprador.

Ainda pelo mesmo caminho vai P. Romano Martinez (em Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e Empreitada, 1994, págs. 358/361) expressando mais pormenorizadamente que o comprador não tem de provar a anterioridade do defeito com respeito à data da celebração do contrato, da transferência do risco ou da entrega da coisa. Isto porque, tendo a lei estabelecido prazos curtos para o exercício dos direitos derivados do cumprimento defeituoso em matéria de compra e venda, pressupõe-se que qualquer defeito detectado nesse período curto é ele próprio anterior ou advém de causa pré-existente. Além disso a lei não faz referência à anterioridade, dando a entender uma presunção nesse sentido. Por outro lado, a referida anterioridade, na maioria dos casos, resulta de uma presunção de facto, tendo em conta a natureza da coisa e do defeito. Acresce que, por parte do comprador a prova da anterioridade do defeito é, por via da regra, bastante difícil; diversamente o vendedor, pela estreita relação que mantiveram com a coisa, tem mais facilidade de provar que o defeito é posterior à entrega. Deve, por conseguinte, considerar-se a posterioridade do defeito como um facto extintivo do direito invocado. E, pelas razões invocadas, também não é aceitável que que sobre o credor impenda o ónus de provar as causas do defeito. As pretensões do credor são válidas ainda que os motivos do aparecimento do defeito sejam desconhecidos.

Assim sendo, os factos constitutivos dos direitos atribuídos ao comprador em caso de cumprimento defeituoso são a existência de um defeito e a respectiva denúncia. Por parte do vendedor cabe a prova de factos impeditivos da sua responsabilidade (art. 342º, nº 2, do CC). Assim, incumbe-lhe demonstrar que o aparecimento do defeito se ficou a dever a culpa do lesado, designadamente a má utilização que este tenha feito do bem, ou que o defeito era aparente, conhecido da contraparte ou posterior à data da entrega.

São ensinamentos doutrinais que acolhemos e acompanhamos.

No nosso caso concreto, a matéria de facto apurada, não evidencia nada do exposto, a recorrente não demonstrou factualmente que desconhecia sem culpa o vício de que a máquina padecia.

Não logrou provar a posterioridade do defeito, ou que o aparecimento do defeito se ficou a dever a culpa da recorrida, designadamente a má utilização que ela tenha feito da máquina, ou que o defeito era aparente, conhecido da apelada ou posterior à data da entrega da dita máquina.

Aliás, nem mesmo em termos de presunção de culpa da recorrente vendedora consegue esta, factualmente, afastar a sua responsabilidade. Repare-se nestas circunstâncias de facto: a máquina foi entregue em 5.2.2021; após a entrega a máquina acabou por não ser de imediato colocada ao serviço, só em 10.3.2021 começando a ser utilizada; nesse momento apresentou um sobreaquecimento rápido do sistema ao fim de apenas 1 hora de trabalho, o que impossibilitou o hidráulico de virar completamente; e no dia seguinte foram-lhe logo diagnosticados 4 problemas graves sendo que acabou por evidenciar  8 defeitos de monta (factos provados 12., 15. a 18., 22.). É, portanto, patente que, em termos presuntivos, os defeitos existiam à data que a máquina foi entregue pela A./recorrente à R./recorrida.

De maneira que decorre dessa matéria de facto apurada que a apelante não demonstrou que desconhecia sem culpa o vício de que a máquina padecia. Não há facto provado positivo desta circunstância ou outro que ilidisse a presunção de culpa da recorrente.

Como a apelada reclamou o arranjo da máquina, mas sem sucesso, porque a apelante não a reparou (factos 19. a 21.), a A. viu-se forçada a promover a reparação na qual dispendeu as quantias apuradas nos factos 23. a 25. Por isso, tem direito a ser indemnizada pela R.

Relativamente aos prejuízos da paragem de trabalho da máquina, eles estão espelhados nos factos 26. a 28., pelo que a A. neste âmbito nada há censurar à decisão recorrida.

Tendo em consideração o que explicitou, não procede o recurso da R.   

(…)

 IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

*

Custas pela R./apelante.

*


                                                                                                Coimbra, 20.2.2024

 Moreira do Carmo

 Fonte Ramos

Luís Cravo