Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
309/15.9T8FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
OBRIGAÇÃO
JULGAMENTO
PRUDENTE ARBÍTRIO
Data do Acordão: 02/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - FUNDÃO - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 985, 1161 CC, 941, 943, 944, 945 CPC
Sumário: 1.- Quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração, ao titular desses bens ou interesses.

2.- A obrigação de prestar contas é estruturalmente uma obrigação de informação, e existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias, cujo fim é estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição dum saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.

3. – O prudente arbítrio do tribunal (referido no art. 943.º/2 do CPC), a ser usado – quando o R., não tendo contestado a obrigação de prestar contas, as não apresentou – no julgamento das contas apresentadas pelo A., “serve” para o juiz, valorando a prova em termos mais flexíveis, considerar justificadas, sem documentos, verbas de receita ou de despesa (em que não é costume exigi-los) inscritas nas contas apresentadas pelo A., mas não “serve” para o próprio juiz criar novas verbas da receita ou da despesa e muito menos impõe ao juiz o dever de obter as informações necessárias a perceber se todas as despesas e receitas foram incluídas nas contas apresentadas pelo A..

4 – Quem gere bens alheios (ou parcialmente alheios), deve ser escrupuloso e rigoroso na sua administração, não podendo deixar de ter elementos e informações para apresentar quando lhe são pedidas contas, pelo que, não prestando contas, quaisquer dúvidas, situadas no espectro dos elementos e informações que é suposto não poder deixar de ter, devem ser decididas/julgadas contra si.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A (…), casado, residente (…), intentou a presente acção especial de prestação de contas, contra S (…), casado, residente (…).

Alegou, em resumo, que formaram (A. e R.) uma sociedade informal em 2010 (sociedade entretanto dissolvida), que tinha como objecto a exploração agrícola da cultura de tabaco e em que partilhavam nas despesas e nos lucros em partes iguais; tendo, na cultura do ano de 2010, recolhido cerca de 164.613 kg de folhas de tabaco, que foram divididas em 1588 caixas e armazenadas na Herdade X (...) (1290 caixas) e na Herdade Y (...) (as restantes 298 caixas), onde permaneceram, devido ao diferendo entre ambos, até Março de 2013, data em que o R., sem dar qualquer informação quanto ao destino dado, retirou 1045 caixas armazenadas na Herdade do X (...) (deixando 245 caixas) e todas as 298 caixas armazenadas na Herdade Y (...) .

Mais alegou que o R. nunca prestou contas de tal mercadoria (1343 caixas de tabaco), sendo certo que o A. teria direito a metade do tabaco (ou seja, 82.306,50 kg) e que apenas ficou com as restantes 245 caixas que o R. deixou ficar na Herdade do X (...) , caixas que pesavam 20.410.50 kg e que o A. vendeu pelo montante global de € 35.546,18.

E, a final, concluiu que deverá:

“a) O R. ser condenado a prestar contas ao Autor;

  b) O R. ser condenado no pagamento ao Autor, do saldo que venha a apurar-se, a fixar entre a quantidade que ficou na posse do autor – 20.410.50kg – e o valor obtido na venda do tabaco que reteve pertença deste – 61.896.00kg – perfazendo as duas quantidades a proporção de 50% a que tem direito, acrescido dos juros à taxa comercial contabilizados desde a data – 14 de Março de 2013 – até efectivo e integral pagamento.

c) A sociedade ser declarada dissolvida;

O R., citado, não contestou a obrigação de prestar contas e, após pedir a prorrogação do prazo por duas vezes, “prestou/apresentou” contas – sem ser em forma de conta corrente, incluindo/escriturando verbas na coluna da receita e da despesa – concluindo por um saldo de € 10.592,10 a seu favor.

Para tal, alegou:

Que a sociedade irregular que constituiu com o A. remonta a 2008, tendo ambos apurado, do ano de 2008, um saldo a seu favor no montante de € 4.140,15; do ano de 2009, um saldo a seu favor no montante de € 2.427,42; e do ano de 2010, fizeram contas (parciais, segundo se subentende), tendo apurado um saldo a seu favor no montante de € 43.959,01.

Verificando-se, posteriormente, que, do ano de 2010, estavam por contabilizar as seguintes despesas:

- Factura de gasóleo no valor de € 2.044,93, relativo à secagem do tabaco, paga na íntegra pelo Réu;

- Factura de electricidade relativa às estufas existentes na Y (...) , no valor de € 3.599,17, paga na íntegra pelo Réu;

- Juros de empréstimo de € 100.000,00, concedido e aplicado na exploração, no valor de € 2.474,00, pagos na íntegra pelo Réu;

- Custo de classificação de tabaco produzido em 2010, feito por técnico habilitado, no valor de € 1.016,11, pago na íntegra pelo Réu.

Assim e no total, contabilizadas que foram as despesas, o Réu tem a haver do Autor a quantia de € 55.053,71. Sendo que sobre o saldo devedor apurado em Dezembro de 2010 – € 50.526,58 – acrescem juros que se liquidam em € 8.769,38, atingindo, assim, o saldo a favor do Réu o montante de € 63.823,09[1].

Passando às receitas, admitiu o R. que, em 2010, a produção total de tabaco atingiu as 1588 caixas, tendo o A. ficado com 262 caixas de tabaco, com um peso total de 28.139 kg, “sendo perfeitamente aceitável que tenha vendido apenas 20.410,5 kg – o tabaco seca e por via disso perde peso – ” e que tenha recebido a quantia de € 35.546,18; tendo o R. ficado com as restantes 1326 caixas, que continham 130.521 kg e que, perdendo peso na mesma proporção, “se convertem em 94.672,11 k de peso”, pelo que, “atendendo à qualidade do tabaco aqui em causa, o preço do kilo é avaliável em não mais do que 1,5 €, tendo de considerar-se que a receita de que beneficiou o R. foi de 142.008,15 € (94.672 k X 1.5 € = 142.008,15 €)[2].

E concluiu:

“Feitas as contas finais: se a receita total atingiu o montante de € 177.554,33, cabendo metade deste valor a cada sócio (€ 88.777,17); se o sócio R. levou a mais 53.230,99 €, o saldo final apurado desta sociedade é de 10.592,10 € a favor do R.”[3] (€ 63.823,09 - € 53.230,99)

O A. contestou as contas assim apresentadas, impugnando as despesas apresentadas e a receita indicada; e mantendo o alegado na PI.

Designada audiência prévia, foi aí proferido despacho em que se elencarem as imprecisões e irregularidades das contas apresentadas pelo R., convidando-se o mesmo a prestá-las devidamente, “em forma de conta corrente, especificando as proveniências das receitas e aplicação das despesas, e bem como o respectivo saldo, devendo ainda apresentar todos os documentos comprovativos das aludidas receitas e das despesas.”

Na sequência de tal despacho e após vários pedidos de suspensão, o R. veio dizer que suportou despesas de € 273.006,32 e o A. suportou despesas de € 183.043,36, pelo que tem a seu favor um saldo de € 44.981,48 que, com juros, ascende a 53.075,07; mantendo o que antes havia dito quanto à receita e chegando a um “saldo final favorável ao A. de € 155,92[4]; e juntando, como “conta corrente”, o que consta de fls. 174 a 182.

Mais referindo que “não pode desde já apresentar os documentos comprovativos das despesas aqui apresentadas atendendo a que a respectiva documentação se encontra apreendida (…)” e que “já requereu a devolução de tais documentos”.

O A. contestou mais uma vez as contas assim apresentadas, impugnando as despesas apresentadas e a receita indicada; e chamando a atenção que as contas apresentadas “não têm sustento em qualquer documento”, e que “o R. se limita a apresentar uma folha de excel, com rubricas totalmente desalinhadas (…)”.

Retomada a audiência prévia, foi na mesma proferido despacho, em que, inter alia, se consignou que “entende o tribunal que a única forma de apurar o saldo a favor de qualquer uma das partes, consiste em que cada uma delas preste contas relativamente às despesas que teve e às receitas que obteve (…)”, pelo que, “usando a adequação processual, o tribunal não se oporá a que as partes requeiram mutuamente a prestação de contas”

As partes aceitaram a sugestão do tribunal e após vários e sucessivos prazos de suspensão e prorrogação, veio apenas o A. juntar requerimento (fls. 247 e 248) das despesas que aceita e das receitas globais; requerimento a que o R. respondeu, dizendo que “ prestou contas nos termos da lei, não tendo apresentado ainda os documentos pois os mesmos foram apreendidos em processo crime que contra ele decorre”.

Retomada mais uma vez a audiência prévia, foi nela proferido despacho saneador, em que foi declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém.

Tendo-se identificado o objecto do litígio (apuramento do saldo resultante da prestação de contas relativa ao ano de 2010, referente à exploração de tabaco levada a cabo pelo A. e R. em sociedade).

E considerado assente:

I - Que o autor e o réu acordaram entre si que, relativamente ao ano de 2010, cada um partilharia nas despesas e nas receitas (lucros) em partes iguais;

II. Que produção total de tabaco, no ano de 2010, atingiu as 1.588 caixas;

III. Que os quilogramas de tabaco vendidos pelo autor foram 20.410,00 e a quantia recebida por esta venda € 35.546,18.

IV. Que o R. teve pelo menos as seguintes despesas:

a) de gasóleo, € 2.044,93;

b) de electricidade, € 3.599,17;

c) de classificação do tabaco,€ 1.016,11;

E enunciado como temas da prova os factos relativos às demais despesas e receitas na exploração de tabaco em apreço.

Designado dia para julgamento, veio o R., no dia imediatamente anterior, desistir das contas que havia apresentado, requerendo que o processo prossiga com o convite ao A. para apresentar, ele próprio, as contas da sociedade irregular, quer as relativas ao Réu quer as relativas a ele próprio Autor.

O A. não se opôs ao requerido e admitiu-se a requerida desistência das contas apresentadas, tendo-se “ (…) julgado prejudicado o julgamento das mesmas e, aplicando extensivamente o disposto no artº 943º do CPC, concedeu-se ao Autor o ensejo processual de apresentar as contas, sob a forma de conta corrente, no prazo de 30 (tinta) dias”; tendo-se “advertido o R. que, nos termos do nº 2 do sobredito normativo, não poderia contestar as contas a apresentar, que seriam julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador”.

Após o que o A. veio apresentar contas; apresentando como despesas tão só as relativas ao gasóleo (€ 2.044,93) à electricidade (€ 3.599,17) e à classificação do tabaco (€ 1.016,11) e apresentando como receitas as decorrentes da venda dos 164.613,00 Kg de folhas de tabaco a € 2,15 o kg.

Procedeu-se então à realização da audiência de julgamento – em que não foi produzida qualquer prova – após o que o Exmo. Juiz proferiu sentença em que concluiu do seguinte modo:

“ (…) consideram-se como parcialmente boas as contas apresentadas pelo A., condenando o réu S (…) ao pagamento ao autor A (…)da quantia de € 104.368,94 (cento e quatro mil trezentos e sessenta e oito euros e noventa e quatro cêntimos), acrescidos de juros, à taxa legal, a partir da citação para a presente acção, até efectivo e integral pagamento.

  Julga-se ainda extinta a respectiva sobredita sociedade irregular constituída entre o autor e o réu. (…)”

Inconformado com tal decisão, interpôs o R. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que “ordene ao MM Juiz a quo que proceda às diligencias necessárias para verificar com a devida prudência as contas apresentadas pelo autor ou em alternativa ser corrigido o saldo determinado a favor do autor para o montante de € 75.790,71”

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

Não foi apresentada qualquer resposta.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação

A acção de prestação de contas, nos termos do art. 941.º do CPC (1014.º do VCPC), pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

Pressupõe pois (a norma processual do art. 941.ºdo CPC) a existência de normas de direito substantivo que imponham a obrigação de prestar contas.

Obrigação esta, de prestar contas, que é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias; e cujo fim é estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição dum saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.

Obrigação que se encontra casuisticamente consagrada em várias/inúmeras normas da lei[5]; razão por que é usual afirmar-se, dada a frequência com que a lei a estabelece, que “quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração, ao titular desses bens ou interesses[6] ou, dito doutro modo, que tal obrigação tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios[7].

É o caso dos autos.

Tendo A. e R. estabelecido o exercício em comum da actividade de exploração de tabaco, tendo em vista repartirem os lucros de tal actividade, constituíram uma sociedade a que, quer hajam constituído uma sociedade comercial irregular, quer uma meramente civil (e, em face do alegado, inclinamo-nos para esta 2.ª hipótese), são aplicáveis as regras das sociedade civis, segundo as quais, “na falta de convenção em contrário, todos os sócios têm igual poder de administração” (cfr. art. 985.º/1 do C. Civil).

Poder este que as partes exerceram individual e unilateralmente – não interessando o contexto em que tal aconteceu, uma vez que as partes não questionam a validade dos concretos actos individuais e unilaterais de administração – devendo assim prestar contas dos mesmos (cfr. 1161.º/d) do C. Civil, ex vi art. 987.º do C. Civil), tanto mais que, estão nisso de acordo, a referida sociedade entre ambos já não existe.

Obrigação de prestar contas que o R/apelante nunca contestou, mas que, verdadeiramente, nunca cumpriu.

Suscitando agora, nesta instância recursiva, duas questões essencialmente “de facto”: sustenta o R./apelante, em sede de despesas, que “mandaria a prudência e o rigor devidos que o juiz a quo, antes de proferir a sentença, fizesse uso do artigo 943.º/2 do CPC e procurasse obter as informações necessárias a perceber que despesas que foram efectuadas pela sociedade irregular em causa nos presentes autos e quem as tinha suportado”; e sustenta o R/apelante, em sede de receitas, que o juiz a quo não reduziu o peso do tabaco que ficou para o R. na mesma proporção em que foi reduzido o peso do tabaco que ficou para o A..

Estando a resposta a tais questões, essencialmente “de facto”, no direito, mais exactamente na marcha processual que os presentes autos “sofreram”; daí o detalhe do relatório inicial, daí que não seja despiciendo começar pelas especialidades do presente processo (de prestação de contas), que têm necessariamente que estar presentes quando se decide de “facto”.

Assim[8]:

Basta ao autor, num processo como o presente, dizer a razão por que pede contas ao réu, a razão por que entende que sobre o réu impende a obrigação de as prestar; sendo a partir daqui que as especialidades processuais se situam.

Citado o réu, não contestando este a obrigação de apresentar contas, deve apresentá-las sob a forma gráfica de conta corrente; e uma prestação de contas sob a forma de conta corrente quer dizer uma forma de escrituração que se decompõe em receitas, despesas e saldo, em que há rubricas de deve e haver (débitos e créditos), de modo a revelar a situação patrimonial em cada momento ou num determinado período de tempo, através do saldo que a cada momento resulte das entradas/receitas/créditos e das saídas/despesas/débitos; escrituração que, assim sendo, deve ser efectuada num só documento, devendo, em princípio, as contas ser instruídas com os documentos justificativos (cfr. 944.º/3 do CPC).

Efectivamente, a obrigação de prestar contas tem como objecto, além da apresentação da conta, sobretudo a demonstração e a justificação da actividade desenvolvida por aquele que presta as contas.

Daí que se diga, no art. 944.º/1 do CPC, que se deve especificar (na conta-corrente) a proveniência das receitas e a aplicação das despesas; palavra “especificar” que “foi intencionalmente empregada para significar que ao réu incumbe descriminar e individualizar as diferentes fontes de receita e as diferentes causas da receita; (…) há que indicar separadamente como se obteve a totalidade da receita, quais as quantias que se foram recebendo e donde provieram; assim como é forçoso declarar quais as diferentes despesas que se fizeram e a que fim se aplicaram as verbas respectivas[9]

Com o que – assim apresentadas as contas sob a forma de conta-corrente e com especificação de proveniências e aplicações – se pretende facilitar a análise dos dados que são levados para o processo, sendo que o objectivo final do processo é o de determinar o quantitativo que uma parte deve a outra.

Assim, caso as contas sejam apresentadas duma forma que não respeite o que se acaba de dizer, haverá que aquilatar se a forma utilizada ainda assim permite apurar o deve e o haver, bem como o saldo global, no sentido de determinar o que uma parte deva a outra; se assim suceder, não há razões que justifiquem a rejeição das contas por mera inobservância da forma de conta-corrente, porém, em função do grau de imperfeição das contas, o juiz pode ordenar oficiosamente não só a correcção de eventuais irregularidades formais das contas apresentadas pelo autor como também ordenar a junção de suporte documental para comprovação destas.

Deste modo, a apresentação das contas pelo autor em moldes imprecisos e/ou incompletos quanto à proveniência ou montante das receitas bem como a aplicação e montante das despesas deve dar azo a despacho de aperfeiçoamento. Caso o mesmo despacho não seja acatado, ou não seja cumprido na sua íntegra, deve o juiz verificar se – apesar de tudo – as contas apresentadas pelo autor podem servir de base para que se ordenem diligências com vista ao seu aperfeiçoamento ou rectificação. Só no caso de tais diligências serem, de todo, inviáveis ou infrutíferas, é que o juiz deverá rejeitar as contas apresentadas pelo autor”[10]

Contas (apresentadas pelo R.) a que o A. pode responder “impugnando as verbas da receita, alegando que esta foi ou devia ter sido superior à inscrita, articular que há receita não incluída nas contas ou impugnar as verbas de despesa apresentadas pelo réu; podendo também limitar-se a exigir que o réu justifique as verbas de receita ou de despesa que indicar” (cfr 945.º/2 do CPC).

Ou seja, pode autor.

“ impugnar as verbas da receita, alegando que esta foi ou devia ter sido superior;

 articular que há receita não incluída nas contas ou impugnar as verbas da despesa apresentadas pelo réu;

 limitar-se a exigir que o réu justifique as verbas de receita ou de despesa que indicar. (…)

Se o autor impugna a verba da receita, argumentando que a receita foi ou devia ser superior à inscrita, cumpre ao autor fazer a prova da sua alegação.

Se o autor não impugna expressamente a verba da receita, mas exprime dúvidas sobre a sua exactidão e exige que o réu justifique a verba da receita, o ónus da prova incide sobre o réu[11]

Contas em cujo julgamento – é uma especialidade muito própria de tal meio processual – o tribunal tem amplos poderes de indagação. Como referia o Prof Alberto dos Reis[12], o juiz, no julgamento das contas, move-se com grande liberdade e largueza; há-de lavrar a sentença que, em seu prudente arbítrio, corresponder ao estado dos autos, prudente arbítrio que apela a um juízo em que se pondere, com razoabilidade, todos os elementos disponíveis, procurando obter um valor que, com forte probabilidade, envolva menor margem de erro[13].

Ou seja, segundo os art. 943.º/2 e 945.º/5 do CPC, o juiz, usando de prudente arbítrio, deve utilizar dados da experiência comum, permitindo-se-lhe valorar a prova trazida para os autos em termos mais flexíveis do que numa mera análise estrita da prova, podendo considerar justificadas sem documentos verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los, sendo aqui admissível a formulação de um juízo de probabilidade favorável (ocorrendo pois aqui um desvio na regra da apreciação estrita da prova); devendo naturalmente tomar em conta que o “ónus da prova” da exactidão das verbas das receitas e das despesas incumbe à pessoa que presta as contas (no caso, o réu) e que, no que toca às receitas, o réu, ao inscrever a verba como receita, confessa que recebeu tal quantia e que é sobre o réu que recai o ónus da prova das despesas arroladas nas contas apresentadas.

De tal maneira – e como corolário de tudo isto - que pode dizer-se que “o recurso ao prudente arbítrio e à experiência não deixam espaço a que não seja possível fixar o quantitativo do débito em termos exactos[14], o mesmo é dizer, o processo especial de prestação de contas tem que ter como desfecho a liquidação definitiva dum saldo, não podendo terminar com um “non liquet”, com o relegar do apuramento/acertamento para posterior incidente de liquidação[15].
Aqui chegados, confrontando o que vimos de expor (em termos de “premissa maior”) com as questões, “essencialmente de facto” (como supra referimos), suscitadas no recurso, impõe-se extrair o seguinte:
O R./apelante não foi minimamente preciso, completo e perfeito na apresentação das contas: não as apresentou sequer sob a forma gráfica de conta corrente, incluindo/escriturando verbas na coluna da receita e da despesa; não justificou/demonstrou devidamente a actividade desenvolvida e, em consequência, não facilitou o apuramento das contas; e não apresentou quaisquer documentos justificativos.

Entendeu-se, porém, que tais irregularidades não eram de molde a justificar a rejeição das contas, tendo-se convidado o R. ao aperfeiçoamento/correcção das contas.

O que o R/apelante não fez devidamente: o que consta de fls. 174 a 182 está longe de ser uma apresentação gráfica sob a forma gráfica de conta corrente e continuou sem apresentar quaisquer documentos justificativos.

Em todo o caso, as suas “contas” continuaram a não ser rejeitadas e não se mandou o A. apresentá-las em vez do R. (não se aplicou o art. 944.º/2/2.ª parte do CPC), antes prosseguindo o processo os seus termos como se as contas estivessem apresentadas de modo minimamente preciso (e de modo a permitir apurar o deve e o haver).

Mas, claro está, como as suas “contas” não estavam apresentadas de modo minimamente preciso, “entrou-se” em adequação processual, sugerindo o tribunal que as partes prestassem mutuamente contas, o que A. e R. aceitaram.

Todavia, em linha com o seu anterior comportamento processual, o R./apelante não cumpriu o que aceitou (após vários e sucessivos prazos de suspensão e prorrogação), vindo o A. apresentar requerimento a prestar as contas (cfr. fls. 247 e 248).

Assim chegados a julgamento, veio o R., mais uma vez em harmonia com o comportamento que foi tendo ao longo do processo, “desistir das contas que havia apresentado, requerendo que o processo prosseguisse com o convite ao A. para apresentar, ele próprio, as contas, quer as relativas ao Réu quer as relativas a ele próprio Autor”.

O que, em nova adequação processual, foi deferido, concedendo-se ao A. a faculdade de apresentar as contas, sob a forma de conta corrente, no prazo de 30 dias, advertindo-se o R. que, nos termos do art. 943.º/2 do CPC, não poderia contestar as contas que fossem apresentadas, que seriam julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador.

Enfim, de adequação processual em adequação processual, o processo aproximou-se do que é suposto ser a sua tramitação normal, ou seja, não tendo o R./apelante apresentado as contas como manda o art. 944.º/1 do CPC e não tendo corrigido as irregularidades, passa o A., nos termos do art. 944.º/2 do CPC, a ter a faculdade de apresentá-las.

O que fez, sendo estas contas, apresentadas pelo A., que estão a ser “julgadas segundo o prudente arbítrio do juiz” (cfr. art. 943.º/2 do CPC).

Significa tudo isto – é o ponto a que se quer chegar – que o comportamento processual do R/apelante, de não querer ou de não saber apresentar as contas, se repercute, necessariamente, sobre o desfecho dos autos, o mesmo é dizer, sobre as duas questões essencialmente de facto que constituem o objecto da apelação.

Efectivamente, o uso do prudente arbítrio (constante do art. 943.º/2 do CPC), invocado pelo R/apelante, “serve” para o juiz, valorando a prova em termos mais flexíveis, considerar justificadas, sem documentos, verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los; mas não “serve” para o próprio juiz criar novas verbas da receita ou da despesa.

Estão a ser julgadas, insiste-se, as contas apresentadas pelo A. (é este o estrito objecto de apreciação do tribunal), contas essas em que este apenas apresentou 3 verbas de despesa, que até considerou totalmente suportadas pelo R./apelante, razão pela qual, representando tal inscrição uma “confissão” do A. (é algo desfavorável ao A.), não havia uma única verba da despesa de que o A. tivesse que cumprir o ónus probatório, ou seja, quanto às verbas da despesa, nem há lugar ao uso do prudente arbítrio constante do art. 943.º/2 do CPC.

O presente processo especial, como supra se explicou, tem regras e cominatórios próprios, ajustados ao dever de prestar contas e às informações de que dispõe (“melhor que ninguém”) quem está adstrito a tal dever de prestar as contas.

O R/apelante prestou “mal” as contas, não as corrigiu e depois ainda veio desistir do que tinha feito “mal”, ou seja, não quis saber do cumprimento dos seus deveres processuais e das consequências do seu incumprimento, pelo que, agora, não pode vir alegar que uma actividade do volume económico e complexidade (como a sociedade tida com o A.) envolve outras e variadas despesas e, muito menos vir alegar, que o tribunal devia “procurar obter as informações necessárias a perceber que despesas é que foram efectuadas pela sociedade irregular em causa nos presentes autos e quem as tinha suportado”.

Como o relatório inicial o espelha, o R./apelante, repete-se, não quis saber do cumprimento dos seus deveres processuais e das consequências do seu incumprimento – aceitou ter o dever de prestar contas e não as apresentar – pelo que, agora, se há despesas que não estão a ser consideradas, é apenas de si próprio que se pode queixar.

Quem tem o dever de prestar contas (e não é por acaso que tem tal dever) é que tem a informação e elementos necessários à sua apresentação e justificação; ou seja, quem tem o dever de apresentar é que tem que justificar, não é o tribunal que tem que justificar que as receitas ou despesas apresentadas são as únicas (e que não há outras), antes se limitando a julgar as receitas e despesas que foram apresentadas (e não as que não foram apresentadas e que, se tivesse havido diligência, teriam sido apresentadas).

Não merece pois qualquer censura o decidido pelo tribunal a quo quanto às despesas.

Outro tanto sucedendo quanto às receitas.

Aqui, o A., ao inscrever como receita os € 35.546,18 que diz ter recebido pelas caixas de tabaco com que ficou, confessou que recebeu tal quantia, pelo que também sobre esta quantia (que o R. não contesta) nenhum ónus da prova cabia ao A..

A questão, toda a questão, está na receita correspondente às caixas de tabaco com que o R. ficou.

Se as coisas tivessem decorrido normalmente, em termos processuais, estaríamos aqui e agora a julgar as verbas que o R. havia escriturado como receitas efectivamente obtidas com a venda das caixas de tabaco com que ficou.

É nisto mesmo que se traduz uma prestação de contas; um procedimento em que o obrigado explica o que fez[16], em que, no caso, o R. decomporia as várias receitas obtidas com tão elevado número de caixas de tabaco e juntaria os respectivos documentos justificativos.

Enfim, estaríamos a “julgar” o que efectivamente aconteceu.

Como o R./apelante não disse sequer uma palavra sobre o que fez com as caixas de tabaco[17], não temos outro remédio senão, “com prudente arbítrio”, fazer raciocínios e conjecturas sobre as receitas que o R/apelante obteve com tal tabaco.

Mas, claro está, em tais raciocínios e conjecturas sobre receitas, a primeira coisa a ter em conta é a razão por que estão a ser feitos: não ter o R. querido usar a informação e elementos necessários à apresentação e justificação das receitas efectivamente obtidas[18].

É justamente por isto que o raciocínio sobre receitas do R/apelante (que vem já desde a sua apresentação inicial de contas) não pode colher a nossa concordância.

É verdade que, atribuindo-se o peso de 20.410,50 kg às 245 caixas com que o A. ficou, as 1.343 caixas com que o R. ficou, considerando o peso global (de todas as 1.588 caixas) de 164.613 kg, ficam a ter (em relação às 245 caixas que o A. vendeu) um peso superior em cerca de 20%.

Argumenta o R/apelante (o que também faz desde a sua apresentação inicial de contas) que tal resulta do tabaco ser vendido seco e ir perdendo peso.

É uma explicação possível, porém, não é certamente a única e não afasta todas as possíveis e plausíveis, designadamente, a de o R/apelante ter escolhido e levado as melhores caixas de tabaco (razão do maior peso das caixas com que ficou).

Seja como for, está assente que foram 20.410,50 os quilogramas de tabaco vendidos pelo A. e o R não contesta que houve um momento em que as 1.588 caixas de tabaco pesavam os 164.613 kg, pelo que, aqui sim, usando o “prudente arbítrio”, bem andou a decisão recorrida ao considerar que, sendo assim, as caixas com que o R. ficou pesavam a diferença (144.202,50 kg), razão pela qual, feitas as contas (a 1,74 o kg, o que o R. não contesta), o R. levou a mais € 107,699,04, valor a que há que deduzir metade das despesas, o que dá o saldo favorável ao A. de € 104.368,94, saldo este constante da sentença recorrida.

Acabamos sempre por voltar ao mesmo:

Quem tem o dever de prestar contas, quem obteve receitas a partir de bens que não eram exclusivamente próprios, não se pode ficar por raciocínios sobre receitas.

Quem gere bens alheios (ou parcialmente alheios), deve ser escrupuloso e rigoroso na sua administração, não podendo deixar de ter elementos e informações para apresentar quando lhe são pedidas contas, pelo que qualquer dúvida, situada no espectro dos elementos e informações que é suposto dever ter, tem que ser decidida/julgada contra si (dito doutro modo, o R./apelante não pode aspirar a tirar “vantagens” da sua falta de colaboração processual, no que diz respeito às receitas efectivamente por si realizadas e recebidas).

Concluindo pois – e tendo presente que estamos, como supra se referiu, num campo processual em que o juiz pode decidir, em certos termos, segundo o “seu prudente arbítrio”, ponderando, com razoabilidade, todos os elementos disponíveis, utilizando dados da experiência comum, permitindo-se-lhe valorar a prova trazida para os autos em termos mais flexíveis do que numa mera análise estrita da prova – não merece o decidido sobre as despesas e receitas qualquer censura, razão pela qual improcede “in totum” tudo o que o R/apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o naufrágio da apelação e a confirmação do sentenciado na 1ª instância, que não viola qualquer uma das disposições indicadas.

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III - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.

Custas, nesta instância, pelo R./apelante.


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Coimbra, 20/02/2019

Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Arts. 16.º, 17.º e 18.º da “contestação”.
[2] Arts. 29 e 30.º da “contestação”
[3] Arts. 31º e 32.º da “contestação”

[4] Acrescentando que “as diferenças relativamente às contas anteriormente apresentadas prendem-se com lapsos que se requer sejam relevados e com o facto de não se chamar aqui à discussão as contas de 2008 e 2009, que em processo autónomo terão que se discutir”. (cfr. art. 15.º)
[5] Podendo também resultar do princípio da boa fé ou de negócio jurídico.
[6] Alberto dos Reis, Processos especiais, Vol. I, pág. 303.
[7] Cfr. Ac. TRL de 24/05/1990, in CJ, III, pág. 125/7.
[8] Seguimos de perto o que já escrevemos noutros acórdãos sobre o mesmo tema.
[9] Alberto dos Reis, Processos especiais, Vol. I, pág. 315/6.
[10] Luís Filipe Pires de Sousa, Acções especiais, pág. 162.
[11] Luís Filipe Pires de Sousa, Acções especiais, pág. 168; seguindo de perto Alberto dos Reis, Processos especiais, Vol. I, pág. 320/1.
[12]  Local citado, pág. 323.

[13] Repare-se que na hipótese do réu, citado, nada dizer – isto é, se, citado, não contestar a obrigação de prestar contas nem as prestar – é o autor chamado a apresentar as contas e estas, então apresentadas pelo autor, não podem ser contestadas pelo réu, porém, não são “julgadas de preceito” como boas, sendo sim julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador (cfr. 943.º/2 do CPC), ou seja, a lei não associa qualquer efeito cominatório à falta de contestação e apresentação de contas por parte do réu, acabando, repete-se, as contas a ser julgadas pelo juiz segundo o seu prudente arbítrio do julgador e o que demais se refere no art. 943.º/2 do CPC.
[14] Cfr. Ac do STJ de 25/05/1993, in CJ, 1993, Tomo II, 106/7.

[15] O que a acontecer, diz-se, esvaziaria o processo de prestação de contas do seu conteúdo específico.

[16] A obrigação de prestar contas, repete-se, tem como objecto, além da apresentação da conta, sobretudo a demonstração e a justificação da actividade desenvolvida por aquele que presta as contas.
[17] Inclusive nas contas mal apresentadas e de que desistiu.

[18] E uma coisa é não se estar na posse de toda a informação, não ter todos os elementos e documentos, outra, diversa, é não se dizer sequer uma única palavra concreta sobre as receitas obtidas e apenas se fazerem “raciocínios” (como se tivesse sido outrem – um estranho – a obter receitas com tal tabaco).