Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA EMPRESA AGRÍCOLA AGRICULTOR | ||
Data do Acordão: | 09/23/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | CANTANHEDE 2º J | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 304, 312, 313, 317 B) CC, 12, 230 C COMERCIAL | ||
Sumário: | 1. A presunção prescritiva prevista no art. 317º, não tem por efeito libertar o devedor de proceder ao pagamento do crédito, mas tão só de o dispensar da prova de que procedeu a tal pagamento, transferindo para o credor a prova de que tal pagamento não ocorreu. 2. Numa interpretação actualista e funcionalmente adequada do art. 230º do CComercial, apenas a agricultura tradicional exercida por um sujeito e com meios escassos e rudimentares se encontra excluída do conceito de empresa, e já não a agricultura empresarial – no âmbito de um exercício profissional e com fins lucrativos. 3. A simples alegação de que se trata de um crédito resultante de fornecimento de produtos para alimentação de gado bovino e de que o devedor é um “agricultor”, é insuficiente para este se fazer valer da prescrição de dois anos previsto na al. b) do art. 317º do CC. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção): I – RELATÓRIO A (…) instaurou contra O (…) o presente procedimento de injunção, a prosseguir como ação declarativa sob a forma de processo comum, pedindo a condenação da ré no pagamento de 34.758,31 €, respeitante ao preço e respetivos juros pelo fornecimento de produtos para a alimentação de gado bovino. A requerida deduziu oposição alegando que “o montante não é devido, a requerida não tem qualquer dívida para com a requerente, estando tudo integralmente pago. A quantia reclamada está prescrita.” Notificado para aperfeiçoar o seu requerimento de injunção, o autor veio concretizar quais os produtos fornecidos à ré, requerendo ainda o depoimento de parte desta, no sentido de ver confessado a compra efetiva dos bens e não pagamento dos mesmos. Notificada para aperfeiçoar o seu requerimento de oposição na parte respeitante à invocada prescrição, a ré alega ser agricultora e que o autor exerce a atividade de comerciante no ramo de comércio por grosso de alimentos para animais. O juiz a quo proferiu saneador/sentença, julgando procedente a exceção perentória da prescrição presuntiva, absolvendo, em consequência, a ré do pedido. Inconformado com tal decisão, o autor dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões: 1. A matéria de facto apurada e constante do processo e da própria decisão, impunha uma decisão diametralmente diversa da fixada na sentença ora recorrida; 2. O presente recurso prende-se essencialmente com saber se a prescrição presuntiva é aplicável aos créditos emergentes de fornecimentos de rações, essenciais ao exercício empresarial pelo devedor de atividade no sector agropecuário (suinicultura), realizada de forma habitual e com fins lucrativos, envolvendo exploração de razoável dimensão económica - por, neste caso, tais fornecimentos se destinarem ao exercício industrial do devedor, extravasando o estrito âmbito da alínea b) do artigo 317 do C.C; 3. Tendo a R. um fim lucrativo na sua exploração agropecuária, o fornecimento de rações deverá ser considerado como destinado ao exercício dessa atividade económica, não fazendo sentido aplicar a essa atividade um regime normativo pensado para valer ao devedor no caso de dívidas que costumam ser pagas rapidamente e de cujo pagamento não é habitual exigir recibo; 4. Não pode a exceção da prescrição presuntiva ser aplicada ao caso em apreço; 5. O Douto Julgador não possuía elementos no processo para proferir a sentença nos termos em que fez, sem recurso à audiência de julgamento e audição de testemunhas e depoimentos de parte; 6. Não pode o Recorrente ser economicamente lesado, no âmbito da sua atividade profissional, pela sua benevolência, ajuda e compreensão para com as dificuldades da R., sabendo de antemão que estava a lidar com uma empresária de agropecuária e por isso tendo os seus créditos assegurados; 7. Por sua vez, não pode a R. ser premiada pelo seu incumprimento, enriquecendo ilicitamente à custa do recorrente Conclui pela revogação da Sentença recorrida, dando-se provimento à pretensão do Recorrente condenando a R. nos pedidos contra si deduzidos, nomeadamente aos créditos emergentes da compra de rações e respetivos juros vencidos no valor de €34.605,41 Euros. Não foram apresentadas contra-alegações. Cumpridos os vistos legais nos termos previstos no nº2, in fine, do art. 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso. II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16. –, as questões a decidir são as seguintes: 1. Se os elementos constantes dos autos permitem concluir pela verificação da invocada prescrição – seus efeitos. III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO 1. Se os elementos constantes dos autos permitem concluir pela verificação da invocada prescrição – seus efeitos. Invocada pela ré a prescrição dos créditos do autor, alegando, para tal, ser “agricultora” e que o autor exerce a atividade de comerciante no ramo de comércio por grosso de alimentos para animais, o juiz a quo, sem que tenha procedido à fixação de qual a factualidade relevante, considerou, desde logo, verificada a exceção de prescrição prevista na al. b) do artigo 317º do Código Civil (CC), atribuindo, em consequência, à Ré a faculdade de recusar o cumprimento da prestação, ao abrigo do artigo 304º, nº1, do CC, absolvendo a ré do pedido. Insurge-se o apelante contra tal decisão, alegando que a invocada prescrição não é aplicável ao caso em apreço – caso se tivesse procedido à realização de audiência de julgamento, com audição de testemunhas e produção de prova testemunhal, inequivocamente se demonstraria que a ré não é uma mera “agricultora”, e que exerce a atividade agrícola com escopo lucrativo e comercial, vendendo os seus produtos e mantendo uma empresa em nome individual. Lida a argumentação desenvolvida na decisão recorrida, teremos de dar razão à apelante, na parte em que defende que os elementos constantes dos autos, ao contrário do decidido pelo juiz a quo, não permitem concluir pela verificação dos pressupostos da prescrição de dois anos prevista na al. b), do art. 317º do CC. E esse não é o único erro em que incorre a sentença recorrida, voltando a falhar quanto ao efeito que atribui à verificação da invocada prescrição – ainda que esta fosse aplicável aos créditos em apreço, os respetivos efeitos nunca seriam os que lhe foram atribuídos pelo juiz a quo. Ou seja, ainda que a ré se pudesse socorrer da prescrição de curto prazo prevista no artigo 317º, ainda assim, nunca, nesta fase, importaria a absolvição do réu do pedido, por se tratar de uma prescrição presuntiva. Passamos agora analisar o preenchimento dos pressupostos de aplicação da presunção de cumprimento prevista na alínea b) do artigo 317º do Código Civil. A prescrição de dois anos aí prevista abrange dois tipos de créditos: Quanto à factualidade relevante para a apreciação da invocada exceção, que o juiz a quo não fixou, poderemos dar como assente, por acordo, encontrar-se em causa o “fornecimento de rações, farinha, aveia e outros produtos para alimentação de gado bovino”, por parte do autor (Distribuidor das Rações Valouro e Racentro, conforme identificação constante das faturas juntas aos autos) à ré, não é posta em causa a qualidade de comerciante do autor O autor até interpõe o procedimento de injunção, qualificando a obrigação como emergente de “transação comercial”. Ou seja, a alegação de que é “agricultora” será por si suficiente para integrar a exigência prevista na referida norma – que o devedor não seja comerciante ou sendo-o, não destine o objeto comprado (adubos e rações) ao seu comércio ou ao exercício de uma atividade industrial? A resposta a dar a tal questão, passará pela análise do conceito de “comerciante” e de “empresa comercial”, constantes do Código Comercial, em conjugação com os interesses especificamente tutelados pela figura da prescrição presuntiva. Ora, no caso em apreço e ainda que a ré seja “agricultora”, no sentido de que se dedicar a tal atividade de modo habitual – e esse é sentido comum dado a tal expressão –, o facto de se encontrarem em causa fornecimentos de rações e alimentos para animais num valor global de 24.972, 40 €, relativos a um curto período (faturados entre 29.12.2006 e 30.08.2007), afasta, de imediato, qualquer hipótese de nos encontrarmos perante uma atividade esporádica ou artesanal. Como tal, a alegada circunstância por parte da ré, de que é “agricultora”, não é suficiente para dela se retirar que a prestação realizada não se destina ao exercício comercial ou industrial do devedor. A prova da qualidade de não comerciante ou da afetação dos objetos a uma finalidade não comercial recai sobre o comprador “Comentário ao Código de Processo Civil, Parte Geral”, sob a coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, Lisboa 2014, pág. 765.. Concluindo, e ainda que se dessem por assentes os factos alegados a seu favor pela Ré – que o autor se dedica à atividade de comércio por grosso de alimentos para animais e que a ré é agricultora –, encontrando-se em causa o pagamento de fornecimentos de adubos e rações no valor global de 24.972, 40 €, todos faturados dentro de um período de seis meses, poderemos desde já concluir que os créditos em causa caiem fora do âmbito de aplicação da referida norma: a ré não só não alega quaisquer factos dos quais pudéssemos concluir pelo exercício artesanal de tal atividade, como o valor dos fornecimentos de adubos e rações em causa se mostra incompatível com tal atividade meramente artesanal. Como tal, e uma vez que os factos alegados pela ré não nos permitem concluir que os créditos em causa se encontrem abrangidos pela prescrição de curto prazo prevista na al. b) do art. 317º do Código Civil, a invocada exceção é de improceder desde já, havendo os autos de prosseguir os seus demais termos, a fim de a Ré proceder à prova do pagamento dos créditos peticionados, tal como o por si alegado, e em conformidade com as regras gerais da prova (nº2 do art. 342º do CC). A apelação será de proceder. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente a invocada exceção de prescrição do crédito do autor, prosseguindo os autos os seus demais termos. Custas a suportar pela apelada. Coimbra, 23 de Setembro de 2014 |