Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
66850/12.5YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
EMPRESA AGRÍCOLA
AGRICULTOR
Data do Acordão: 09/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 304, 312, 313, 317 B) CC, 12, 230 C COMERCIAL
Sumário: 1. A presunção prescritiva prevista no art. 317º, não tem por efeito libertar o devedor de proceder ao pagamento do crédito, mas tão só de o dispensar da prova de que procedeu a tal pagamento, transferindo para o credor a prova de que tal pagamento não ocorreu.

2. Numa interpretação actualista e funcionalmente adequada do art. 230º do CComercial, apenas a agricultura tradicional exercida por um sujeito e com meios escassos e rudimentares se encontra excluída do conceito de empresa, e já não a agricultura empresarial – no âmbito de um exercício profissional e com fins lucrativos.

3. A simples alegação de que se trata de um crédito resultante de fornecimento de produtos para alimentação de gado bovino e de que o devedor é um “agricultor”, é insuficiente para este se fazer valer da prescrição de dois anos previsto na al. b) do art. 317º do CC.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

A (…) instaurou contra O (…) o presente procedimento de injunção, a prosseguir como ação declarativa sob a forma de processo comum,

pedindo a condenação da ré no pagamento de 34.758,31 €, respeitante ao preço e respetivos juros pelo fornecimento de produtos para a alimentação de gado bovino.

A requerida deduziu oposição alegando que “o montante não é devido, a requerida não tem qualquer dívida para com a requerente, estando tudo integralmente pago. A quantia reclamada está prescrita.

Notificado para aperfeiçoar o seu requerimento de injunção, o autor veio concretizar quais os produtos fornecidos à ré, requerendo ainda o depoimento de parte desta, no sentido de ver confessado a compra efetiva dos bens e não pagamento dos mesmos.

Notificada para aperfeiçoar o seu requerimento de oposição na parte respeitante à invocada prescrição, a ré alega ser agricultora e que o autor exerce a atividade de comerciante no ramo de comércio por grosso de alimentos para animais.

O juiz a quo proferiu saneador/sentença, julgando procedente a exceção perentória da prescrição presuntiva, absolvendo, em consequência, a ré do pedido.

Inconformado com tal decisão, o autor dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

1. A matéria de facto apurada e constante do processo e da própria decisão, impunha uma decisão diametralmente diversa da fixada na sentença ora recorrida;

2. O presente recurso prende-se essencialmente com saber se a prescrição presuntiva é aplicável aos créditos emergentes de fornecimentos de rações, essenciais ao exercício empresarial pelo devedor de atividade no sector agropecuário (suinicultura), realizada de forma habitual e com fins lucrativos, envolvendo exploração de razoável dimensão económica - por, neste caso, tais fornecimentos se destinarem ao exercício industrial do devedor, extravasando o estrito âmbito da alínea b) do artigo 317 do C.C;

3. Tendo a R. um fim lucrativo na sua exploração agropecuária, o fornecimento de rações deverá ser considerado como destinado ao exercício dessa atividade económica, não fazendo sentido aplicar a essa atividade um regime normativo pensado para valer ao devedor no caso de dívidas que costumam ser pagas rapidamente e de cujo pagamento não é habitual exigir recibo;

4. Não pode a exceção da prescrição presuntiva ser aplicada ao caso em apreço;

5. O Douto Julgador não possuía elementos no processo para proferir a sentença nos termos em que fez, sem recurso à audiência de julgamento e audição de testemunhas e depoimentos de parte;

6. Não pode o Recorrente ser economicamente lesado, no âmbito da sua atividade profissional, pela sua benevolência, ajuda e compreensão para com as dificuldades da R., sabendo de antemão que estava a lidar com uma empresária de agropecuária e por isso tendo os seus créditos assegurados;

7. Por sua vez, não pode a R. ser premiada pelo seu incumprimento, enriquecendo ilicitamente à custa do recorrente

Conclui pela revogação da Sentença recorrida, dando-se provimento à pretensão do Recorrente condenando a R. nos pedidos contra si deduzidos, nomeadamente aos créditos emergentes da compra de rações e respetivos juros vencidos no valor de €34.605,41 Euros.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpridos os vistos legais nos termos previstos no nº2, in fine, do art. 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16. –, as questões a decidir são as seguintes:

1. Se os elementos constantes dos autos permitem concluir pela verificação da invocada prescrição – seus efeitos.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Se os elementos constantes dos autos permitem concluir pela verificação da invocada prescrição – seus efeitos.

Invocada pela ré a prescrição dos créditos do autor, alegando, para tal, ser “agricultora” e que o autor exerce a atividade de comerciante no ramo de comércio por grosso de alimentos para animais, o juiz a quo, sem que tenha procedido à fixação de qual a factualidade relevante, considerou, desde logo, verificada a exceção de prescrição prevista na al. b) do artigo 317º do Código Civil (CC), atribuindo, em consequência, à Ré a faculdade de recusar o cumprimento da prestação, ao abrigo do artigo 304º, nº1, do CC, absolvendo a ré do pedido.

Insurge-se o apelante contra tal decisão, alegando que a invocada prescrição não é aplicável ao caso em apreço – caso se tivesse procedido à realização de audiência de julgamento, com audição de testemunhas e produção de prova testemunhal, inequivocamente se demonstraria que a ré não é uma mera “agricultora”, e que exerce a atividade agrícola com escopo lucrativo e comercial, vendendo os seus produtos e mantendo uma empresa em nome individual.

Lida a argumentação desenvolvida na decisão recorrida, teremos de dar razão à apelante, na parte em que defende que os elementos constantes dos autos, ao contrário do decidido pelo juiz a quo, não permitem concluir pela verificação dos pressupostos da prescrição de dois anos prevista na al. b), do art. 317º do CC.

E esse não é o único erro em que incorre a sentença recorrida, voltando a falhar quanto ao efeito que atribui à verificação da invocada prescrição – ainda que esta fosse aplicável aos créditos em apreço, os respetivos efeitos nunca seriam os que lhe foram atribuídos pelo juiz a quo.

Ou seja, ainda que a ré se pudesse socorrer da prescrição de curto prazo prevista no artigo 317º, ainda assim, nunca, nesta fase, importaria a absolvição do réu do pedido, por se tratar de uma prescrição presuntiva.
A sentença recorrida apreciou a invocada exceção, como se de uma prescrição comum se tratasse – constatado o decurso do prazo prescricional, considerou a obrigação em causa como uma obrigação natural e como tal inexigível –, havendo que clarificar a natureza inerente a cada uma dessas prescrições.
A prescrição comum, essa sim, embora não extinguindo o direito prescrito Cfr., neste sentido, VAZ SERRA, RLJ Ano 109, pág. 248, e PEDRO PAIS VASCONCELOS, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2010, 6ª ed., Almedina, pág. 381; em sentido contrário, CARVALHO FERNANDES, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed., Lisboa 2001, pág. 650., confere ao seu beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito – artigo 304º do CC.
Na prescrição comum, o beneficiário só precisa de invocar e demonstrar a inércia do titular do direito no seu exercício durante o tempo fixado na lei, conferindo-lhe o poder de recusar o cumprimento Cfr., PEDRO PAIS VASCONCELOS, obra citada, pág. 381..
A sua força reside no facto de não poder ser afastada com a prova de que a dívida não está satisfeita – operada a prescrição ordinária, pode o devedor invocá-la e ela é eficaz, mesmo que confesse não ter pago Cfr., VAZ SERRA, RLJ Ano 109, pág. 248, e “Prescrições Presuntivas, Algumas Questões”, RLJ Ano 98, pág. 259, nota 1..
Nas prescrições presuntivas, integrando meras presunções de cumprimento – artigo 312º do CC –, o decurso do prazo apenas faz presumir que o cumprimento se verificou, tendo por finalidade libertar o devedor da prova do pagamento.
“As prescrições presuntivas são presunções de pagamento, fundando-se em que as obrigações a que se referem costumam ser pagas em prazo bastante curto e não é costume exigir quitação do seu pagamento. Decorrido o prazo legal, a lei presume, pois, que a dívida está paga, dispensando, assim, o devedor da prova do pagamento, prova que lhe poderia ser difícil ou, até, impossível, por falta de quitação Cfr., VAZ SERRA, “Prescrições Presuntivas (…)”, RLJ Ano 98, pág. 241 e 242, RLJ Ano 109, pág. 246, e “Prescrição Extintiva e Caducidade”, BMJ nº 106, Maio 1961, pág. 45.”.
A presunção de cumprimento que funda a prescrição presuntiva é uma presunção iuris tantum, podendo ser ilidida mediante prova em contrário, tal como sucede na generalidade das presunções (artigo 350º, nº2 do CC).
Contudo, no que toca à presunção prescritiva, o seu afastamento só pode resultar de confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão – artigo 313º nº1 do Cod. Civil.
Visando as prescrições presuntivas conferir proteção ao devedor que paga uma dívida e dela não exige ou não guarda quitação, não poderia admitir-se que o credor contrariasse a presunção de pagamento com quaisquer meios de prova. Exige-se, por isso, que os meios de prova do não pagamento provenham do devedor Cfr., PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I Vol., 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 282, VAZ SERRA, “Prescrição Extintiva e Caducidade, BMJ nº 106, pág. 44, e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Tratado de Direito Civil Português”, I Parte Geral, Tomo IV, 2005, Almedina, pág. 181..
A confissão pode ser judicial ou extrajudicial. A confissão extrajudicial só pode ser feita por escrito (art. 313º, nº2). A confissão judicial é feita em juízo e pode ser espontânea ou provocada. É espontânea quando produzida por iniciativa do confitente. É provocada quando feita por iniciativa do juiz ou a requerimento do credor em depoimento de parte.
Ou seja, ao contrário das prescrições extintivas, as prescrições presuntivas apenas dispensam o beneficiário do ónus de provar o pagamento, fazendo deslocar o ónus da prova do não pagamento para o credor, pelo que, existindo a presunção de pagamento a favor do devedor, competirá ao credor ilidir essa presunção, demonstrando que não pagou, provando a confissão expressa ou tácita do devedor Cfr., neste sentido, Acórdãos do STJ de 23.02.2012, relatado por Lopes do Rego, de 09.02.2010, relatado por Garcia Calejo, e de 22.01.2009, disponíveis in www.dgsi.pt. .
Como se refere no Acórdão do STJ de 22-01-2009 Acórdão relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, disponível in www.dgsi.pt. , o decurso do prazo de prescrição presuntiva não confere ao devedor a faculdade de se opor à cobrança do crédito, não lhe dando o direito de não pagar como sucede com a prescrição extintiva, apenas o dispensando da prova do respetivo pagamento.
O legislador presume o cumprimento, libertando o devedor do ónus da prova, mas sem excluir, de todo, a prova do não cumprimento, ou seja a ilisão da presunção.
Ora, no caso em apreço, confrontado com a invocação da prescrição em causa, o autor veio requerer o depoimento de parte da Ré, no sentido de ver confessado o não pagamento dos créditos peticionados.
Ou seja, ainda que se encontrassem verificados todos os elementos de que a lei faz depender a sua verificação (e, como analisaremos de seguida, um deles não se encontra suficientemente alegado), tal prescrição importaria, tão só, que, beneficiando a Ré da presunção de que pagou, presunção ilidível mediante prova em contrário, seria ao autor que incumbira a prova de que o pagamento nunca fora efetuado. A invocada exceção não poderia ter sido, desde logo, julgada procedente, com a absolvição da ré do pedido, havendo os autos de prosseguir, em tal hipótese, a fim de facultar ao autor a prova do não pagamento por parte da ré, por via da confissão desta em depoimento de parte.

Passamos agora analisar o preenchimento dos pressupostos de aplicação da presunção de cumprimento prevista na alínea b) do artigo 317º do Código Civil.

A prescrição de dois anos aí prevista abrange dois tipos de créditos:
a) os créditos de comerciantes pelos objetos vendidos a quem não tenha a qualidade de comerciante ou não os destine ao seu comércio, isto é, que extravasem da respetiva atividade profissional;
b) os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria ou atividade económica, pelas prestações (de dare, de facere) que envolvam o fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas realizadas.
A referida norma não será aplicável se a prestação realizada se destinar ao exercício industrial do devedor, ou seja, ao exercício de uma atividade como modo de vida habitual Neste sentido, ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, “Prescrição e Caducidade”, Coimbra Editora 2008, pág. 110..
O conceito de “indústria” deve ser interpretado em sentido amplo, considerando-se como tal o exercício de trabalhos ou a gestão de negócios alheios Cfr., neste sentido, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 285., com o sentido de atividade, labor, e não com o sentido de “atividade industrial” (por oposição a atividade do sector primário ou terciário), mas tão só enquanto atividade económica produtora de riqueza – “exercer profissionalmente uma industria”, significa dedicar-se com habitualidade e como forma de vida a uma determinada atividade Neste sentido, MARIA RAQUEL REI, “As Prescrições Presuntivas”, in Liber Amicorum, Francisco Salgado Zenha, Coimbra Editora 2003, págs. 622 e 623..

Quanto à factualidade relevante para a apreciação da invocada exceção, que o juiz a quo não fixou, poderemos dar como assente, por acordo, encontrar-se em causa o “fornecimento de rações, farinha, aveia e outros produtos para alimentação de gado bovino”, por parte do autor (Distribuidor das Rações Valouro e Racentro, conforme identificação constante das faturas juntas aos autos) à ré, não é posta em causa a qualidade de comerciante do autor O autor até interpõe o procedimento de injunção, qualificando a obrigação como emergente de “transação comercial”.
Já o facto alegado pela ré de que é “agricultora”, ainda que pudesse ser dado como assente por falta de impugnação por parte da autora E dizemos “pudesse”, uma vez que, seguindo os presentes autos a forma de processo comum após a distribuição (nº2 do art. 10º do DL 62/2013, de 10 de Maio), e havendo com o novo Código de Processo Civil unicamente dois articulados normais, a falta de impugnação à matéria de exceção não importa a sua admissão por acordo, como se extrai, a contrario do art. 584º., dele não se poderia retirar, sem mais e por si só, o preenchimento da qualidade exigida ao devedor pela norma em questão.
Com efeito, o que aí releva, não é tanto a atividade ou área económica a que é destinado o fornecimento pelo devedor – agricultura (ou, eventualmente, agropecuária, uma vez que se encontra em causa o fornecimento de rações e outro tipo de alimentação para gado), mas os moldes em que se organiza tal atividade, nomeadamente se é, ou não, exercida como modo de vida habitual ou se se enquadra no exercício de uma atividade “industrial”.

Ou seja, a alegação de que é “agricultora” será por si suficiente para integrar a exigência prevista na referida norma – que o devedor não seja comerciante ou sendo-o, não destine o objeto comprado (adubos e rações) ao seu comércio ou ao exercício de uma atividade industrial?

A resposta a dar a tal questão, passará pela análise do conceito de “comerciante” e de “empresa comercial”, constantes do Código Comercial, em conjugação com os interesses especificamente tutelados pela figura da prescrição presuntiva.
Segundo o artigo 13º do Código Comercial, são comerciantes: 1º as pessoas que tendo capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão; 2º as sociedades comerciais.
E se o artigo 230º do Código Comercial parece excluir as atividades agrícolas do âmbito da atividade comercial e das empresas comerciais Cfr., entre outros, Comentário ao Código de Processo Civil, Parte Geral”, sob a coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, Lisboa 2014, pág. 764, onde se defende que, partindo da delimitação de comerciante estabelecida no art. 13º do CComercial, por confronto com outras normas de tal Código, é de excluir a qualidade de comerciante para os que exercem uma mera atividade agrícola (ou pecuária), para os artesãos e, naturalmente, para os profissionais liberais., como defende o Acórdão do STJ de 23-02-2012 já citado, “é imprescindível proceder a uma interpretação atualista e funcionalmente adequada da norma do código comercial definidora das empresas comerciais – e muito em particular dos §§ 1º e 2ª, enquanto excludentes das atividades de cariz agrícola do âmbito dessas empresas: na verdade, esta opção de excluir a comercialidade das atividades agrícolas, se tinha sentido à data da edição do velho C. Comercial, em 1888, revela-se perante os padrões e formas de exercício económico produtivo atuais, amplamente anacrónica. Tais atividades eram fundamentalmente de subsistência e de autoconsumo. Não envolviam nem empresarialidade nem risco especulativo. Foi-lhes dado um estatuto civil”.
Como igualmente se afirma no Acórdão do TRL de 13.012.2007 Disponível na CJ Ano XXXII, TV, pág. 110., só a agricultura tradicional, exercida basicamente por um sujeito, com meios escassos e rudimentares é excluída pelo nº2 do art. 230º do conceito de empresa, pelo que ao empresário de atividade agropecuária não poderá negar-se-lhe a qualidade de comerciante.
E apenas a agricultura (ou agropecuária) artesanal e já não a agricultura empresarial – no âmbito de um exercício profissional e com fins lucrativos – poderá justificar a aplicação da referida prescrição de curto prazo, cujo regime normativo foi pensado para valer ao devedor no caso de dívidas que costumam ser pagas rapidamente e de cujo pagamento não é habitual exigir recibo.
E a “não destinação” do objeto vendido ao seu comércio”, não poderá ser entendida como algo subjetivo, dependente do arbítrio do comprado: significa que o comerciante age fora da sua atividade profissional, age como um não comerciante, como um consumidor. Significa designadamente, que não beneficia das condições contratuais geralmente negociadas entre comerciantes, que não comprou quantidades significativas da mesma espécie MARIA RAQUEL REI, artigo e local citados, pág. 622..

Ora, no caso em apreço e ainda que a ré seja “agricultora”, no sentido de que se dedicar a tal atividade de modo habitual – e esse é sentido comum dado a tal expressão –, o facto de se encontrarem em causa fornecimentos de rações e alimentos para animais num valor global de 24.972, 40 €, relativos a um curto período (faturados entre 29.12.2006 e 30.08.2007), afasta, de imediato, qualquer hipótese de nos encontrarmos perante uma atividade esporádica ou artesanal.

Como tal, a alegada circunstância por parte da ré, de que é “agricultora”, não é suficiente para dela se retirar que a prestação realizada não se destina ao exercício comercial ou industrial do devedor.

A prova da qualidade de não comerciante ou da afetação dos objetos a uma finalidade não comercial recai sobre o comprador “Comentário ao Código de Processo Civil, Parte Geral”, sob a coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, Lisboa 2014, pág. 765..
Como se refere no citado Acórdão do STJ de 09.02.2010, por se tratar de elementos constitutivos desta prescrição presuntiva, para que o beneficiário dela possa dela aproveitar, é sobre ele que impende a alegação e a prova de que está em causa o crédito de um comerciante (ou um crédito de pessoa que exerça profissionalmente uma industria), que decorreu dois anos sobre a venda (ou sobre o exercício da atividade industrial) e que o objeto alienado (ou a atividade industrial exercida) não foi aplicado no exercício do comércio (ou na industria). Apenas provadas estas circunstâncias, ficará dispensado do ónus da prova do cumprimento da obrigação.

Concluindo, e ainda que se dessem por assentes os factos alegados a seu favor pela Ré – que o autor se dedica à atividade de comércio por grosso de alimentos para animais e que a ré é agricultora –, encontrando-se em causa o pagamento de fornecimentos de adubos e rações no valor global de 24.972, 40 €, todos faturados dentro de um período de seis meses, poderemos desde já concluir que os créditos em causa caiem fora do âmbito de aplicação da referida norma: a ré não só não alega quaisquer factos dos quais pudéssemos concluir pelo exercício artesanal de tal atividade, como o valor dos fornecimentos de adubos e rações em causa se mostra incompatível com tal atividade meramente artesanal.

Como tal, e uma vez que os factos alegados pela ré não nos permitem concluir que os créditos em causa se encontrem abrangidos pela prescrição de curto prazo prevista na al. b) do art. 317º do Código Civil, a invocada exceção é de improceder desde já, havendo os autos de prosseguir os seus demais termos, a fim de a Ré proceder à prova do pagamento dos créditos peticionados, tal como o por si alegado, e em conformidade com as regras gerais da prova (nº2 do art. 342º do CC).

A apelação será de proceder.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente a invocada exceção de prescrição do crédito do autor, prosseguindo os autos os seus demais termos.

Custas a suportar pela apelada.

Coimbra, 23 de Setembro de 2014

Maria João Areias( Relatora )
Fernando Monteiro
Inês Moura