Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2119/18.2T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
OBRAS
PARTES COMUNS
ADMINISTRAÇÃO
ESTATUTO REAL
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1420, 1421, 1422, 1425, 1430 CC
Sumário: 1 – Quando um condómino atribui a outro condómino comportamentos violadores do estatuto real das partes comuns da propriedade horizontal – abertura de porta na fachada traseira e construções no logradouro, sem qualquer autorização da assembleia – não estamos perante uma questão de administração das partes comuns e, por conseguinte, a legitimidade passiva não cabe ao condomínio, mas sim (e apenas) ao condómino a quem são imputadas as violações do estatuto real das partes comuns.

2 – O direito real concedido aos condóminos, na propriedade horizontal, compreende várias restrições – decorrentes da estrutura unitária do prédio, da estreita comunhão em que vivem os condóminos, da necessidade de conciliar e proteger todos os seus interesses – e quando estas restrições não são respeitadas qualquer condómino pode demandar os condóminos que assim procederam e exigir o respeito/reconstituição do que resulta do estatuto real do condomínio.

Decisão Texto Integral:









Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

M (…), residente (…) (...) , intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra A (…) residente (…) (...) , e contra M (…) e marido J (…), residentes (…) (...) , formulando os seguintes pedidos:

“a) Serem os Réus condenados a ver declaradas ilícitas as obras realizadas, nomeadamente as construções no logradouro e a abertura de novas portas;

b) Serem os Réus condenados a demolir, a expensas suas, as obras supra descritas, e a reporem o imóvel no mesmo estado em que antes se encontrava, designadamente o encerramento das portas que dão acesso ao logradouro;

c) E condenados cada um dos Réus no pagamento de uma indemnização de € 10.500,00, cada, referente aos danos pela privação do uso do prédio, por ocupação ilícita dos Réus.”

Alegou, em síntese, que são todos (A. e RR.) condóminos dum mesmo prédio constituído em propriedade horizontal e que os RR., “em contravenção com o título da propriedade horizontal, procederam a aberturas [portas] nas paredes comuns do prédio, na área da cozinha, o que lhes permite o acesso directo ao logradouro por uma porta distinta da porta comum do prédio e sem acederem às partes comuns do edifício”[1]; “construíram duas edificações no logradouro”[2]; “murando e excluindo os demais condóminos do uso daquela área e daquelas edificações”[3]; sendo que “nenhuma das referidas obras foi alvo de aprovação camarária ou discutida em sede de assembleia de condóminos”[4]; com o que “impedem a plena utilização do logradouro pelos demais condóminos, incluindo o A.[5].

Os RR. contestaram.

O R. A (…)alegou, inter alia, que “nunca, desde que é proprietário da fracção “A” [22/09/2011], executou na mesma qualquer tipo de obras, nem nas fracções, nem no logradouro comum[6], razão pela qual, a seu ver, é parte ilegítima.

Os RR. M (…) e marido alegaram, no que aqui interessa, que, “para as relações de condomínio, o A., se desacompanhado dos demais comproprietários carece de legitimidade”[7] e que “mesmo que se entenda poder o A. demandar a solo, então, sempre os autos teriam que ser dirigidos contra todos os demais proprietários, pois que o proprietário que não é demandante nem demandado é parte e peça fundamental para o estabelecimento da maioria a que se refere o art. 1425.º do CC”[8], razões pelas quais “sempre se verificará uma situação de ilegitimidade, seja activa ou passivo, pois que as relações de condomínio, bem como de compropriedade, carecem da intervenção de todos os condóminos/co-proprietários, para que se possa alcançar uma decisão útil e exequível[9].

O A. respondeu a tais invocações de ilegitimidade, pugnando pela total regularidade da instância por si instaurada.

Conclusos os autos, o Exmo. Juiz proferiu decisão em que julgou verificada a excepção dilatória de falta de legitimidade dos RR e em que, em consequência, absolveu os RR. da instância.

Expendeu, para tal, a seguinte argumentação/raciocínio jurídicos:

“(…)

Movemo-nos no domínio da responsabilidade civil extracontratual: ao proprietário de um imóvel é reconhecido o direito a que todos respeitem a integridade do seu prédio, sendo que quem o danificar fica responsável pela reposição dessa integridade e pela indemnização dos danos causados: cfr. arts. 1305º, 483º, 562º e 566º do Código Civil.

No caso, seguindo de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08/03/2018 (processo n.º 993/14.0T8BCL.G1, www.dgsi.pt), estamos perante uma propriedade horizontal que comporta a particularidade da coexistência na mesma pessoa de dois tipos de propriedade: dum lado, um direito de propriedade exclusiva de uma ou mais fracções do edifício e, doutro lado, um direito de compropriedade nas partes comuns desse edifício: arts. 1414º e 1415º do CC.

Ou seja, as partes comuns do edifício são compropriedade do universo de condóminos e esse universo dos condóminos, vulgo o Condomínio, é quem é o titular de qualquer relação jurídica relativa às partes comuns do prédio.

São os condóminos, no seu conjunto e na proporção das respectivas quotas, os titulares dos direitos ou das obrigações, dos créditos ou dos débitos emergentes de responsabilidade civil quanto às partes comuns do prédio.

Deste modo, atenta a forma como o Autor configurara a acção, quem tem legitimidade passiva é o Condomínio do prédio enquanto tal.

Com, efeito, é sobre o universo de condóminos/Condomínio que recai a obrigação de manter as partes comuns do prédio em condições de não perturbarem ou danificarem a propriedade alheia (de cada uma das fracções, entenda-se), sob pena de incorrer nas consequências do incumprimento de tal obrigação (reconstituição in natura e/ou indemnização em dinheiro).

Tendo todos os Réus sido aqui demandados em nome próprio, são pois parte ilegítima, sendo irrelevante para esta questão, a inexistência de Administrador do condomínio, caso em que o respectivo condomínio é representado por todos os seus condóminos.

E quando algum terceiro/ou condómino, se vê prejudicado por qualquer ocorrência causada pelas partes comuns de um prédio, a responsabilidade pelo ressarcimento dos prejuízos cabe ao Condomínio, ou seja, ao universo dos condóminos, na proporção das respectivas quotas.

Num caso e noutro, seja do lado activo ou passivo, o Administrador agirá como representante do Condomínio.

Assim sendo, prefigurando a acção nos termos delineados pelo Autor, a titularidade de tal relação jurídica reside apenas no Condomínio (universo de condóminos) pois nele reside a obrigação de conservação/reparação do prédio, bem como a de indemnizar os prejuízos causados.

Nessa medida, sendo o Condomínio o sujeito jurídico do dever, só ele pode vir a ser prejudicado com a procedência da acção e, portanto, só ele tem interesse directo em contradizer.

E conclui o citado Acórdão o seguinte:

«I – Numa acção em que um condómino pretende a reparação dos defeitos das partes comuns dum prédio em propriedade horizontal, bem como ser ressarcido dos prejuízos sofridos na sua fracção e causados pela existência desses defeitos, parte legítima é o Condomínio desse prédio.

II – Tendo sido demandados como Réus os proprietários das demais fracções autónomas, enquanto tal, são os mesmos partes ilegítimas na acção, sendo irrelevante para esta questão, a inexistência de Administrador do condomínio.

III – Havendo aqui uma situação de ilegitimidade passiva, estava vedado ao tribunal da 1.ª instância ou às partes a regularização da instância através dos mecanismos processuais previstos nos arts. 6º, 261º e 278/2 e 3 do CPC.».

Nessa sequência, uma vez que a presente acção não foi intentada contra o Condomínio (representado pelo Administrador) nem contra todos os condóminos (não a título pessoal mas em representação do Condomínio) ocorre ilegitimidade passiva, tratando-se de excepção dilatória, insusceptível de sanação ou de regularização e que conduz à absolvição da instância, o que se impõe. (…)”

Inconformado com tal decisão, interpõe o A. o presente recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue os RR. parte legítima.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

A. Na presente acção declarativa veio o Recorrente peticionar pela ilicitude de obras realizadas sem a autorização do condomínio, pela demolição das mesmas, a expensas dos Recorridos, e por uma indemnização referente a danos pela privação do uso.

B. Em sede de contestação, os Recorridos (…) invocaram a ilegitimidade activa e/ou passiva das partes.

C. Em 04/12/2018, o Tribunal a quo proferiu Sentença, tendo decidido julgar verificada a excepção dilatória de falta de legitimidade dos Réus e, em consequência, absolver os Réus da instância.

D. Os Réus, em violação clara das regras condominais estabelecidas, concretizaram um conjunto de obras nas suas fracções e no logradouro comum, para exclusivo proveito próprio.

E. Não tem o Recorrente e o outro condómino (ausente desta acção) qualquer título de responsabilidades sobre a construção de tais obras, nem nunca retiraram qualquer proveito das mesmas.

F. Pelo que intentou o Recorrente apenas a acção contra esses condóminos.

G. In casu, os danos não provêm das partes comuns, nem de qualquer decisão do condomínio, mas antes de um actuação individual que atingiu as partes comuns do prédio, que o Recorrente é comproprietário.

H. Intentando a acção contra o condomínio, ou todos os condóminos, onde o Recorrente está inserido, a procedência da acção iria condená-lo ao pagamento das demolições de obras que não construiu…e ao pagamento de uma indemnização a si mesmo…

I. E, o condómino autor é igualmente responsável, na sua proporção, pela reparação dos danos como qualquer outro.

J. Do mesmo modo que, um terceiro que em nada está relacionado com tal construção, seria obrigado a suportar quer a indemnização, quer os custos com a demolição.

K. A causa de pedir da presente acção assenta na necessidade de se concretizar uma obra de demolição na parte comum de um condomínio, por exclusiva responsabilidade de um dos condóminos.

L. Sendo que os restantes condóminos não pretendem contribuir para os custos das obras em causa.

M. De outra forma, estaríamos a beneficiar quem, conscientemente, constrói obras não consentidas pelos restantes condóminos. Os proveitos a favor dos “infractores” e as consequências responsabilidade de todos.

N. A Sentença recorrida enuncia ainda a responsabilidade civil extracontratual, onde assume que ao responsável pelo dano cabe a reposição da integridade da situação e a indemnização pelos prejuízos causados.

O. Nenhuma das obras colheu a consentimento (ou conhecimento) do condomínio.

P. Circunstância pela qual, não pode o Recorrente aceitar que o Tribunal a quo o considere responsável pelo sucedido, e, consequentemente, obrigado a custear, na sua proporção, as obras de demolição.

Q. Manter-se esta decisão, estaríamos a premiar o comportamento dos “infractores” que, conscientemente, violaram regras condominais.

R. O Recorrente entende que o Tribunal de 1.º instância não cuidou de analisar com o rigor que se impunha o caso concreto, cuja exclusiva responsabilidade dos Recorridos é inquestionável, violando o art.º 1402º e 1422º do Código Civil.

Não foi apresentada qualquer resposta

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação

Quando o tema dum litígio são as partes comuns duma propriedade horizontal, impõe-se invariavelmente qualificar/distinguir se o seu objecto se situa no perímetro da administração das partes comuns ou se se está perante um litígio cujo objecto respeita à violação do estatuto real das partes comuns da propriedade horizontal.

Sendo que, na primeira hipótese, a resposta, em termos de legitimidade, seguirá um raciocínio como o da decisão recorrida; porém, na segunda hipótese, a resposta, em termos de legitimidade, tem que seguir o raciocínio do A. e da alegação recursiva.

Concordamos pois com grande parte do que se expendeu na decisão recorrida, porém, não vem ao caso, ou seja, não estamos perante um litígio respeitante à administração das partes comuns, mas sim perante um litígio em que o condómino A. atribui aos condóminos RR. comportamentos violadores do estatuto real da propriedade horizontal e, neste caso, claro está, o A. tem legitimidade sozinho e são apenas tais RR. (os pretensos violadores de tal estatuto real) que devem estar do lado passivo.

Isto dito, está mencionado, em síntese, o essencial e decisivo.

Em todo o caso, mais detalhadamente:

A propósito duma situação/litígio situado no perímetro da administração das partes comuns – como é o caso do exercício dos direitos de reacção à construção dum imóvel/edifício (constituído em propriedade horizontal) com defeitos, o que fora de dúvida se insere no poder de administração da coisa e nos actos de conservação a que se refere o art. 1436.º/f) do C. Civil – expendemos em Ac. desta Relação, proferido em 12/03/2019 (disponível in ITIJ), o seguinte:

“Na propriedade horizontal, coexistem, de modo incindível, dois direitos reais distintos: um direito de propriedade singular e outro complementar ou instrumental, de compropriedade (como dispõe o art. 1240.º/1 do C. Civil, “cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício”).

Sendo assim, a legitimidade (activa) para o exercício (perante o construtor/vendedor) dos direitos decorrentes da construção do edifício/imóvel com defeitos não é sempre das mesmas pessoas/condóminos, ou seja, tal legitimidade depende do local em que se situam os defeitos, sendo conferida a quem tem o poder de administração do concreto local em que se situam os defeitos.

Se os defeitos se situam nas fracções autónomas, como são os seus proprietários, individualmente considerados, que têm o poder de as administrar, são apenas eles que têm legitimidade para exercer junto do construtor/vendedor os direitos em causa.

Se os defeitos se situam nas partes comuns do edifício, como compete exclusivamente à assembleia de condóminos e ao administrador proceder à administração das partes comuns (cfr. 1430.º/1 do C. Civil), o exercício dos referidos direitos – máxime, os direitos de eliminação dos defeitos e realização de obra nova[10] – compete ao administrador do condomínio, devidamente mandatado pela assembleia de condóminos.

Efectivamente, o direito de compropriedade dos condóminos (sobre as partes comuns do edifício) tem especificidades em relação ao regime geral da compropriedade, não lhe sendo aplicável o art. 985.º do C. Civil (ex vi art. 1407.º do C. Civil); ou seja, os condóminos não podem individual e isoladamente (ainda que só “na falta de convenção em contrário”) exercer os direitos inerentes à administração das partes comuns (em que se incluem o direito à eliminação dos defeitos existentes nas partes comuns), na medida em que, quanto à propriedade horizontal, estão estabelecidos específicas formas de organização/funcionamento e de formação da vontade do grupo constituído pelos condóminos [em que o administrador é o órgão executivo e representativo do condomínio, competindo-lhe a gestão dos assuntos correntes relativos às partes comuns do edifício (art. 1436.º do C. Civil) e a representação judicial do grupo de condóminos (art. 1437.º do C. Civil); e em que a assembleia de condóminos é o órgão deliberativo do condomínio, onde se forma a vontade deste, através da tomada de deliberações vinculativas para todos os condóminos].

Sendo justamente por isto, articulando tais poderes e competências, que compete à assembleia de condóminos decidir, por maioria, sobre o exercício dos direitos decorrentes de defeitos existentes nas partes comuns do edifício, competindo depois ao administrador, em execução da respectiva deliberação, accionar esses direitos, judicial ou extrajudicialmente, perante o construtor/vendedor[11]”.

Sucede que o que temos nos autos não é uma hipótese próxima ou semelhante à versada em tal Acórdão.

Aqui, repete-se, o que temos é o A. a dizer/invocar que os RR. não respeitaram os limites ao exercício dos seus/deles direitos de condóminos, com o que violaram o estatuto real (com eficácia erga omnes) da propriedade horizontal.

A propriedade horizontal / condomínio é a figura que acolhe a situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários contitulares; situação a que responde concedendo a cada um dos contitulares direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial sobre fracções determinadas.

Daí que, na propriedade horizontal, se congreguem dois direitos reais distintos: um de propriedade, no que diz respeito às fracções autónomas do edifício; e outro de compropriedade, cujo objecto é constituído pelas partes comuns referidas no art. 1421.º do C. Civil[12].

Deve pois entender-se que o direito (real) do condómino nas situações de propriedade horizontal é um direito real novo[13], constituído por um direito privativo/exclusivo de domínio sobre uma parcela determinada do prédio/edifício urbano – o “espaço geométrico”, “volume” ou “cubo de ar”, referido pelos autores, em que se inclui tudo o que esteja contido em tal espaço geométrico e que não seja considerado comum – direito exclusivo que é um verdadeiro direito de propriedade, direito este a que está associado, com função instrumental (e de modo incindível)[14], um direito de compropriedade sobre as partes do prédio/edifício não abrangidas pelo referido direito privativo/exclusivo de domínio.

E justamente por ser assim – por as fracções autónomas estarem integradas num edifício de estrutura unitária, coexistindo um direito de domínio exclusivo com um direito de compropriedade – estão os condóminos, no exercício do seu referido direito real (e para além das limitações impostas, nos termos gerais, aos proprietários e comproprietários de coisas imóveis-cfr. art. 1422.º/1 do C. Civil), sujeitos a específicos condicionalismos/limitações.

“ (…) A estreita comunhão/proximidade em que vivem os condóminos, como co-utentes de um mesmo edifício, sujeita-os a limitações que a lei não impõe ao proprietário normal e que são reclamadas pela necessidade de conciliar os interesses de todos ou de proteger interesses de outra ordem.

Assim, nas alíneas a) e b) do n.º 2 do citado preceito estabelece-se que é vedado aos condóminos “prejudicar, quer com obras novas, quer por falta de reparação, a segurança, a linha arquitectónica ou o arranjo estético do prédio” e ainda “destinar a sua fracção a usos ofensivos dos bons costumes. Relativamente, por exemplo, aos elementos privativos visíveis do exterior (portas, janelas), os condóminos não têm o poder de livre actuação ou de abstenção que assiste a um proprietário normal: eles estão sujeitos às limitações e às obrigações de facere (obrigações propter rem) que decorram da necessidade de salvaguardar os interesses de segurança ou de natureza meramente estética a que alude a al. a).”[15]

E, na mesma linha de condicionalismos/limitações, diz-se no art. 1422.º/3 do C. Civil que “as obras que modifiquem a linha arquitectónica ou o arranjo estético do edifício podem ser realizadas se para tal se obtiver prévia autorização da assembleia de condóminos aprovada sem oposição”. Acrescentando-se no art. 1425.º/1 do C. Civil que “as obras que constituam inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio; e no art. 1425.º/2 do C. Civil que “nas partes comuns do edifício não são permitida inovações capazes de prejudicar a utilização, por parte de alguns condóminos, tanto das coisas próprias como das comuns.

Sendo que tudo isto – todas estas regras/condicionalismos/limitações – faz parte do estatuto real do condomínio, tem eficácia erga omnes e molda o direito real de cada condómino.

“Sucede, na propriedade horizontal, que cada condómino está vinculado, no exercício do seu direito, a diversas limitações de origem legal ou negocial impostas em benefício dos demais proprietários de fracções do prédio. Mas daqui não deriva que entre eles se estabeleçam relações jurídicas específicas. Aquelas limitações apenas restringem a esfera de poderes do condómino, tal como sucede sempre que a lei limita os poderes de qualquer proprietário em benefício dos proprietários vizinhos ou da colectividade. As situações são exactamente idênticas.

Relações jurídicas entre os condóminos surgirão, sim, sempre que qualquer deles viole as restrições que a lei lhe impõe em benefício dos demais. A estes assistirá então o direito de exigir, conforme os casos, a destruição de obras feitas em contravenção da lei ou do estatuto do condomínio, a realização de obras necessárias à segurança ou o arranjo estético do prédio (cfr. art. 1422.º/2/a) do C. Civil), uma indemnização ou uma e outra coisa conjuntamente.”[16]

Ora, é justamente este o ponto em que se situa o litígio dos autos.

O direito real concedido aos condóminos, na propriedade horizontal, compreende várias restrições – decorrentes da estrutura unitária do prédio, da estreita comunhão em que vivem os condóminos, da necessidade de conciliar e proteger todos os seus interesses – e quando estas restrições não são respeitadas (quando se abrem portas na fachada traseira sem autorização prévia da assembleia, quando se efectuam construções no logradouro sem a aprovação da devida maioria dos condóminos) qualquer condómino pode demandar os condóminos que assim procederam e exigir o respeito/reconstituição do que resulta do estatuto real do condomínio[17].

E não é por os pretensos comportamentos violadores incidirem sobre as partes comuns e por a assembleia de condóminos se poder pronunciar/autorizar tais comportamentos/utilizações que os mesmos deixam de ser violações do estatuto real da propriedade horizontal e passam a ser questões respeitantes à administração das partes comuns.

No âmbito da sua competência, é lícito à assembleia de condóminos aprovar regras de caracter genérico sobre o uso e administração das partes comuns, regras que poderão mesmo ser corporizadas e ordenadas num regulamento próprio, hipótese em que tais regras assumem natureza real e têm eficácia erga omnes; porém, alega-se que nada foi aprovado em assembleia, valendo assim as regras gerais.

Quanto ao uso das coisas comuns, quando sejam susceptíveis de actos de utilização individual, o princípio aplicável, como resulta do disposto nos arts. 1420.º/1 e 1422.º/1, é o do art. 1406.º, ou seja, na falta de acordo sobre o uso das coisas comuns, a qualquer condómino é lícito servir-se delas, contanto que as não empregue para fim diferente daquele a que se destinam e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito; contudo, alega-se que os RR. privam o A. do uso da parte comum que é o logradouro.

Ademais, tendo, é certo, a assembleia dos condóminos e o administrador (que se alega não existir) poderes (relativamente às partes comuns do edifício) de administração, quando se trata de actos de administração extraordinária, que impliquem inovações nas coisas comuns, não basta a maioria simples do capital a que a alude o art. 1432.º/4 do C. Civil, exigindo-se a aprovação pela maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio (1425.º/1)[18]; ora, alega-se que nada foi alguma vez sujeito à aprovação da maioria (qualificada ou não) dos condóminos.

O que temos pois, voltando ao início, é tão só, em face da alegação do A., a imputação aos RR. de haverem violado o estatuto real das partes comuns da propriedade horizontal, tal como o mesmo se apresenta e resulta das regras gerais (nalguns casos, supletivas) do C. Civil.

E assim configurada a lide não há qualquer dúvida, a nosso ver e com o devido respeito por opinião diversa, que os sujeitos de tal relação (controvertida) são, do lado passivo, os RR. e apenas os RR. (cfr. art. 30.º/3 do CPC)[19]; assim como não há dúvida que não estamos perante um litígio respeitante à administração das partes comuns, a cujos órgãos – assembleia de condóminos e administrador – nenhum comportamento violador do estatuto real de tais partes comuns é atribuído.

Em conclusão, o recurso procede: a absolvição da instância, por ilegitimidade dos RR., não pode subsistir.


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III – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui por decisão em que se declara que os RR. gozam de legitimidade e em que se ordena o prosseguimento dos autos.

Custas pelo vencido a final.


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Coimbra, 10/07/2019

Barateiro Martins ( Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Arts. 14.º e 15.º da PI.
[2] Art. 16.º da PI.
[3] Art. 17.º da PI.
[4] Arts. 20.º e 21.º da PI.
[5] Art. 25.º da PI.
[6] Art. 10.º da sua contestação.
[7] Art. 11. da sua contestação.
[8] Art. 14.º da sua contestação.
[9] Art. 15.º da sua contestação.

[10] Costumam distinguir-se tais direitos (à eliminação do defeito e à realização de nova obra) dos direitos de redução do preço e de resolução do contrato, uma vez que aqueles pressupõem o exercício de um poder de administração e estes a posição de comprador no contrato de compra e venda das fracções autónomas – Cfr. João Cura Mariano, in a Responsabilidade Contratual do Empreiteiro, pág. 166.

[11] Sendo esta a regra, como refere Cura Mariano, obra citada, pág. 169, “não se vislumbra também qualquer impedimento a que esses direitos possam ser exercidos em conjunto pela totalidade dos condóminos, dispensando-se assim a existência de deliberação da assembleia nesse sentido e a intervenção do administrador. Na verdade, nada impede que se tomem deliberações que reúnam o acordo da totalidade dos condóminos, sem necessidade de reunião da assembleia, desde que esse acordo seja formalizado por escrito, o que dispensa a elaboração da acta, assim como podem os condóminos prescindir da intervenção do administrador em sua representação, dado que a mesma só foi prevista no art. 1437.º/1 do C. Civil para facilitar a sua actuação jurídica”. Em todo o caso, esta hipótese é de se estar perante um exercício inicial conjunto e não, claro, perante a hipótese dum condómino propor isoladamente uma acção (sobre partes comuns) e provocar a intervenção dos restantes condóminos.

[12] Como já se referiu, diz-se no art. 1420.º/1 do C. Civil que “cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das parte comuns do edifício”.

[13] É mais do que uma justaposição dos dois direitos reais clássicos – a propriedade e a compropriedade – embora seja uma combinação de tais dois direitos reais clássicos.

[14] Efectivamente, o direito exclusivo sobre a fracção autónoma é a parte fundamental/nuclear da propriedade horizontal e do direito real do condómino, revestindo o direito de compropriedade sobre as partes comuns natureza meramente instrumental.

[15] Henrique Mesquita, A propriedade horizontal no C. Civil, RDES, Ano 23, pág. 142 e ss..
[16] Henrique Mesquita, A propriedade horizontal no C. Civil, RDES, Ano 23, pág. 149/150.

[17] Estamos a dizer isto, nota-se, tão só em tese e em abstracto; não significando (em face do estrito objecto do presente recurso, sobre uma mera questão processual) ou representando qualquer juízo substantivo sobre o que, após a produção de todas as provas e o alinhamento de todos os factos pertinentes, se apreciará oportunamente, quanto ao mérito, nos autos.
[18] E há-de tratar-se, por outro lado, de inovações que não prejudiquem a utilização, por parte de qualquer condómino, tanto das coisas próprias como das coisas comuns (art. 1425.º)

[19] Sendo irrelevante o que o R. Albano alegou – “nunca, desde que é proprietário da fracção “A” [22/09/2011], executou na mesma qualquer tipo de obras, nem nas fracções, nem no logradouro comum” – quer por valer, para efeitos de legitimidade, a relação tal como é configurada pelo A., quer em função da eficácia erga omnes do estatuto real que se alega ter sido violado.