Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
215/16.0T8SEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
DIREITO DE TAPAGEM
ABUSO DE DIREITO
ACÇÃO DIRECTA
COLISÃO DE DIREITOS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - SEIA - JUÍZO C. GENÉRICA - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.218, 334, 335, 336, 1360 CC, 13, 20 CRP
Sumário: 1. - Considera-se pacificamente que o exercício de direitos ou, em geral, de posições jurídicas, se apresenta como abusivo quando é flagrante/manifesto e viola o mais elementar princípio de justiça, caindo, então, na previsão do abuso do direito constante do art.º 334.º do CCiv..

2. - Através da figura do abuso do direito, tributária do princípio da boa-fé, visa-se evitar que o sujeito do direito, no respetivo exercício, ultrapasse intoleravelmente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

3. - Haverá abuso do direito se a utilização do poder que lhe corresponde conduzir à prossecução de um interesse manifesta ou intoleravelmente exorbitante do fim próprio desse direito ou do contexto em que deve ser exercido.

4. - Não se demonstrando, quanto à elevação de um muro junto à estrema entre dois prédios confinantes, atos concretos de consentimento, reconhecimento ou aceitação de tal muro pela contraparte, não bastará para tanto, em termos tácitos, o simples decurso do tempo (décadas) de permanência da edificação, no desconhecimento sobre se houve inação ao longo do mesmo, mas sabido que o silêncio não vale, por regra, como declaração negocial (art.º 218.º do CCiv.).

5. - O art.º 335.º do CCiv. reporta-se à colisão de direitos efetivos, eficazes e atendíveis, sejam eles iguais ou da mesma espécie, caso em que deve haver harmonização/compatibilização, de molde a que nenhum resulte inutilizado ou injustamente sacrificado, mas, ao invés, todos possam produzir o seu efeito (ainda que com limitações), ou, diversamente, sejam desiguais ou de espécie diferente, situação em que prevalecerá o que deva considerar-se superior, com sacrifício do outro.

6. - Ocorrendo, no caso, ilegítimo exercício por via de ilegal ação direta – perante uma abertura (janela) em parede de prédio confinante, procedeu-se à elevação de muro de tapagem dessa abertura em condições que levaram à ocorrência de infiltrações e humidades no interior da casa situada no prédio vizinho, quando se poderia ter recorrido atempadamente aos tribunais para solução do litígio de confinância (janela) –, não pode a figura da colisão de direitos servir para acautelar os efeitos daquela ilegal ação direta, isto é, garantir a manutenção do muro.

7. - Também não se verifica, num tal caso, violação do princípio constitucional da igualdade ou da tutela jurisdicional efetiva, posto não poder formular-se um juízo de equiparação de direitos de feição oposta – que pudessem ter-se por igualmente merecedores de tutela jurisdicional e que demandassem uniformidade de tratamento –, sendo que o eventual direito da recorrente se prende com a ilegalidade da abertura/janela, demandando, pela via judicial, uma correção quanto a esta (não desencadeada nos tribunais), em vez de conferir justificação para um muro edificado ilicitamente em infundada ação direta.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



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I – Relatório

A herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de J (…), representada por A (…), viúva daquele, com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa condenatória, com processo comum, contra

a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de F (…), representada por A (…), R (…), O (…) e A (…) também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da contraparte a:

a) Reconhecer que o prédio que identifica [em 2) da petição inicial (p. i.)] faz parte, sendo propriedade, da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito daquele J (…);

b) Reconhecer que a parede existente no seu prédio, melhor identificada em 10) e 11) da p. i., apenas foi edificada para causar danos no prédio da A., não tendo qualquer utilidade;

c) Reconhecer que tal parede provocou e provoca danos no prédio da A., mais concretamente os danos identificados em 20) da p. i., cuja reparação ascende ao valor de € 6.000,00, acrescido de IVA, a que acrescem ainda os danos exteriores, cujo valor de reparação não é ainda possível determinar;

d) Reconhecer que esta situação provoca desconforto, preocupação, angústia, nervosismo e ansiedade na A., causando dano moral que não pode ser computado em valor inferior a € 2.500,00;

e) Reconhecer que a parede, tal como se encontra, oferece perigo para a segurança de pessoas e bens, quer da A., quer de terceiros, e continuará a originar infiltrações e humidades no prédio da A.;

f) Pagar à A. a quantia global de € 8.500,00, acrescida de IVA sobre o valor de € 6.000,00 [sendo € 6.000,00 acrescido de IVA o valor necessário para a reparação dos danos materiais interiores elencados em 20), causados pela parede, e € 2.500,00 a título de danos morais sofridos pela demandante];

g) Pagar o valor necessário à reparação do exterior da parede nascente da casa da A., valor esse a determinar em execução de sentença.

h) Demolir a parede identificada em 10) e 11) da petição.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- o prédio aludido, fazendo parte da mencionada herança, confina do seu lado nascente com um prédio urbano pertencente à herança por óbito de F (…), sendo que por este e esposa foi edificada na estrema uma parede em tijolo e cimento, que dista cerca de 2 a 5 cm da parede da casa da habitação da A., com intenção de importunar os seus vizinhos;

- tal parede provoca infiltração de águas pluviais na parede da casa da A., em consequência do que se verifica a existência de manchas de humidade e infiltrações na parede nascente interior desta casa de habitação, ascendendo o custo de reparação dos danos interiores a € 6.000,00, acrescidos de IVA, a que acresce ainda o arranjo exterior da parede;

- a parede edificada, além de impedir uma solução definitiva para as infiltrações e humidades, tem fraca sustentabilidade, correndo o risco de ruir, o que provoca preocupação, angústia, nervosismo e ansiedade, devendo tais danos morais ser indemnizados no montante de € 2.500,00.

Na contestação, a contraparte excecionou a ilegitimidade de F (…), indicado no formulário, mais invocando:

- terem o falecido S (…) e esposa alteado o muro delimitativo da sua propriedade do lado poente em virtude de J (…) e mulher terem rasgado na parede confinante uma janela com meio metro de largura e noventa centímetros de altura, cujo parapeito se encontra a 1,20 metros de altura, o que permitia o devassamento com vistas do prédio confinante;

- assim, o referido muro foi construído para evitar a devassa do prédio e servir de suporte a um alpendre/telheiro construído há cerca de 20 anos;

- inexiste nexo de causalidade entre as invocadas infiltrações pluviais e o muro contruído, litigando a A. de má-fé, ao alegar matéria de facto em desconformidade com a verdade, que bem conhece, devendo ser condenada em multa e em indemnização não inferior a € 2.500,00.

A requerimento da A., foi admitida a intervenção principal provocada de J (…), co-herdeiro de J (…).

Saneado o processo, julgando-se improcedente a exceção de ilegitimidade passiva, foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença, julgando a ação parcialmente procedente, mediante o seguinte dispositivo:

«(…) condeno as rés A (…), R (…), O (…) e A (…), na qualidade de representantes da herança ilíquida e indivisa por óbito de F (…), a:

a) Reconhecerem que o prédio urbano, composto de casa de habitação de rés do chão, 1º andar e sótão, com logradouro, sito ao “ x....”, ou Rua y...., nº 15, em z...., limite da União de Freguesias de k.... e z...., inscrito atualmente sob o artigo 983 Urbano daquela União de Freguesias e anteriormente inscrito sob o artigo urbano 719 da extinta freguesia de z...., descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial de q.... sob a descrição 1199/20101130 da freguesia de z...., faz parte e é propriedade da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de J (…)

b) A demolirem a parede descrita no ponto 8) da factualidade provada, até ao limite do muro divisório aí existente, com 1.20m de altura.

c) A pagarem à autora a quantia de 3.250,00€, a título de indemnização necessária para custear a reparação dos danos materiais interiores da casa de habitação referida em a).

d) A pagarem à autora a quantia de 1.000,00€, a título de indemnização pelos danos morais sofridos pela mesma.

- Absolvo as rés do demais peticionado.

- Não condeno a autora como litigante de má-fé em multa e na indemnização peticionada pelas rés.».

De tal sentença veio a parte demandada interpor recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões:

(…)

A parte recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e pela condenação das “recorrentes como litigantes de má fé, em multa e indemnização no montante de 5.000,00 € a favor da recorrida”.


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O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo ([1]), tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


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II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([2]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, cabe conhecer das seguintes questões ([3]):

a) Nulidade da sentença, por contradição, ambiguidade e obscuridade [art.º 615.º, n.º 1, al.ª c), do NCPCiv.];

b) Abuso do direito (art.º 334.º do CCiv.);

c) Colisão de direitos (por ilegítimo sacrifício do direito da parte demandada, faltando a devida compatibilização/harmonização), tendo em conta os invocados princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (art.º 335.º do CCiv.);

d) Violação do princípio constitucional da igualdade (art.º 13.º, n.º 1, da CRPort.), bem como das normas dos art.ºs 2.º, 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, e ainda do art.º 20.º, n.º 1, todos da Constituição, e do art.º 2.º do NCPCiv.;

e) Direito indemnizatório (a dever ser considerado inexistente);

f) Litigância de má-fé (quanto a ambas as partes).


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III – Fundamentação

          A) Da nulidade da sentença

Invoca, desde logo, a parte recorrente o(s) vício(s) de contradição, ambiguidade e obscuridade, gerador(es) da nulidade da sentença, nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª c), do NCPCiv..

Ora, o art.º 615.º, n.º 1, do NCPCiv. comina, quanto às suas al.ªs b) e c),  com a nulidade da sentença as situações em que, respetivamente, (i) faltem os fundamentos da decisão ou (ii) estes, existindo, estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Trata-se de normação inovadora apenas quanto ao fundamento de nulidade da sentença traduzido na existência de ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, pois que no anterior art.º 668.º, n.º 1, al.ª c), do CPCiv. revogado apenas se aludia ao vício de oposição entre os fundamentos e a decisão e na al.ª b) desse dispositivo do Cód. revogado apenas se previa, como agora, a não especificação dos fundamentos, de facto e de direito, justificativos da decisão.

Em qualquer caso, serão vícios internos da decisão, no plano dos respetivos fundamentos e decorrente dispositivo, constituindo anomalia a extrair da leitura da sentença – vista em si própria –, ante a forma como se mostra elaborada, e não da sua conjugação com outras posições decisórias exaradas no processo, designadamente anteriores despachos.

Como é consabido, por ser orientação dos Tribunais Superiores, a nulidade da decisão (sentença ou despacho), tal como prevista no dispositivo citado – a problemática a considerar é sempre, com efeito, a dos fundamentos da decisão, seja pela sua falta ou contradição ou ainda por falta de sintonia com o dispositivo –, segundo o qual “a sentença é nula quando os fundamentos estejam em manifesta oposição com a decisão, sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença. Como se sabe, a sentença deve conter os fundamentos, devendo o Juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes (art. 659º, nº2, do CPC). Ora, constituindo a sentença um silogismo lógico-jurídico, de tal forma que a decisão seja a conclusão lógica dos factos apurados, aquela nulidade – como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência – só se verifica quando das premissas de facto e de direito se extrair uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído” ([4]).

Ora, nos moldes em que invocada em sede de conclusões de recurso, a dita contradição respeitará a uma oposição entre fundamentação de facto constante dos factos provados com os n.ºs 2, 5, 7, 8, 19 a 28 e dos factos não provados sob as als. a) e c), e dispositivo, mormente quanto à decisão de demolição de parede.

Em que termos nucleares ocorre essa contradição – em que se consubstancia concretamente – não é explicitado no acervo conclusivo, pelo que cabe perscrutar a antecedente alegação recursiva, na esperança de resultar inteligível o ponto da pretendida oposição.

Vista, pois, a alegação da parte recorrente, constata-se que esta expôs assim:

«(…) a autora conviveu pacificamente com esta realidade, sem se manifestar ou de algum modo exercer algum seu direito que considerasse violado, pelo menos durante 40 anos (no caso da predita parede que tapou a sua janela) e pelo menos 20 anos (no caso do predito telheiro da casa das rés), considerando que instaurou a presente acção apenas no ano de 2016!!

O que equivale por dizer que, foi a autora e marido que procederam de forma absolutamente ilegal!!!

E que a ré e marido procederam de forma legal para assegurar os seus direitos violados por aquela ilegalidade e ainda no exercício do seu direito de propriedade, do que a autora se conformou ao longo de pelo menos 40 anos e de 20 anos!!!!

E que só passado este tempo, a autora veio peticionar a demolição da indicada parede do prédio das rés, numa manifestação clara de um “venire contra factum proprium” e de claro abuso do direito.

Tudo o que resulta da referida fundamentação de facto, nos termos supra indicados!!!

Não obstante, a sentença recorrida decidiu além do mais condenar as rés:

“b) A demolirem a parede descrita no ponto 8) da factualidade provada, até ao limite do muro divisório aí existente, com 1,20m de altura.”.

Em manifesta violação dos arts. 334º, 335º e 336º do Código Civil.

Do que resulta claramente que os fundamentos da sentença recorrida estão em oposição com a decisão».

Logo se nota, pois, que a parte recorrente dissente do sentido decisório adotado, pois considera, ao contrário da sentença recorrida, que devia ter-se julgado de forma oposta, isto é, nunca deveria ter-se pronunciado aquela decisão de demolição.

Tal configura uma oposição da parte recorrente face ao dispositivo da sentença, quanto à determinada demolição, o que, como bem se vê, tem a ver já com o mérito da decisão, com a bondade dos fundamentos e do corolário decisório, de que cabe, por isso, impugnação de direito, aliás, empreendida no recurso.

Mas tal oposição entre o posicionamento da parte recorrente e a sentença, quanto aos fundamentos jurídicos desta (nem sequer houve impugnação da decisão de facto), não significa, obviamente, oposição entre fundamentos da sentença (vistos em si mesmos) ou entre fundamentos e o respetivo dispositivo.

Donde que a crítica da parte recorrente se situe já, essencialmente, no plano substantivo, onde foi encontrada a solução para o caso (âmbito do mérito), e não no plano das contradições ou incoerências formais da decisão, razão pela qual não parece poder defender-se a invocada nulidade da sentença.

Mas vejamos os factos invocados, no seu confronto com o dispositivo, para aferir, mais em concreto, se existe alguma oposição, ambiguidade ou obscuridade.

Ora, ante o que assim foi julgado provado – convocados factos dos pontos 2, 5, 7, 8, 19 a 28 ([5]) – não se vê, no plano formal, onde haja colisão com o dispositivo da sentença, na parte em que foi ordenada a demolição.

E o mesmo se diga do invocado factualismo julgado não provado, que, como tal, não pode relevar para a aplicação do direito (fundamentos jurídicos) e escolha do dispositivo da sentença ([6]).

A decretada demolição resulta da aplicação do direito aos factos (os provados), tratando-se de uma solução jurídica, de mérito, que só no plano do direito, por isso, pode ser sindicada.

Não ocorre, pois, qualquer contradição formal, ambiguidade ou obscuridade ([7]), o que determina a improcedência da arguição de nulidade da sentença.

B) Da Matéria de facto

É a seguinte a factualidade provada – sem controvérsia – a considerar para a decisão:

«1 - Em 29 de Abril de 1989, faleceu J (…), tendo deixado a suceder-lhe aquela que era sua esposa, a autora A (…), hoje sua viúva, e o filho de ambos J (…)

2 - Dos bens da herança aberta por óbito daquele J (…), herança essa ainda hoje indivisa, faz parte um prédio urbano, composto de casa de habitação de rés do chão, 1º andar e sótão, com logradouro, sito ao “ x....”, ou Rua y...., nº 15, em z...., limite da União de Freguesias de k.... e z...., inscrito atualmente sob o artigo 983 Urbano daquela União de Freguesias e anteriormente inscrito sob o artigo urbano 719 da extinta freguesia de z...., a confrontar (…) descrito na respetiva conservatória do registo predial de q.... sob a descrição 1199/20101130 da freguesia de z.... e aí inscrito a favor do autor da herança J (…)

3 - Tal prédio foi adquirido pelo autor da sucessão J (…) e sua esposa A (…), por compra, por volta do ano de 1974, a A (…), então como lote de terreno destinado a construção urbana, lote esse onde posteriormente edificaram a sua casa de habitação que concluíram por volta de 1975/76, passando desde então a habitá-la e a dela retirarem todas as utilidades de que é suscetível, fazendo obras e melhoramentos, pagando as contribuições e impostos, ocupando e agricultando o logradouro não ocupado com a construção.

4 - Tudo desde 1974, com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, continuadamente, na convicção de se encontrarem a exercer um direito próprio e sem lesarem direitos alheios.

5 - Aquele prédio confina do seu lado nascente com o prédio urbano sito na Av.ª y.... n.º 17, em z...., limite da w...., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 969 desta União de Freguesias e omisso na Conservatória do Registo Predial, do qual era proprietário F (…) e que actualmente pertence à herança aberta por óbito deste.

6 - O referido F (…)faleceu em 27 de Junho de 2007, tendo deixado a suceder-lhe a então sua esposa, hoje sua viúva A (…), e as filhas R (…), O (…) e A (…), aqui rés.

7 - A casa de habitação referida em 2) foi pelo falecido J (…) e pela sua esposa, aqui autora, edificada por volta dos anos de 1975/1976.

8 - De imediato após a sua construção, o falecido F (…) e esposa altearam o muro existente na estrema do seu prédio, do lado poente, através da edificação de uma parede em tijolo e cimento, com uma altura de cerca de 5 metros e cujo comprimento se estende ao longo de toda a parede nascente da casa de habitação referida em 2).

9 - Tal parede foi edificada junto à parede do alçado nascente da casa de habitação referida em 2), ficando entre uma e outra um espaço aberto que varia entre 5 cm a 10 cm.

10 - Tal parede origina a que as pluviais se infiltrem no espaço aberto referido em 9) e não escoem.

11 - O que provoca que as águas pluviais se infiltrem na parede nascente da casa da habitação referida em 2), originando humidades que passam para o interior da moradia.

12 - O que se agrava pelo facto de a aludida parede impedir que o sol incida sobre a parede da casa de habitação referida em 2), assim como o seu arejamento.

13 - E que faz com que as humidades ali permaneçam por vasto lapso de tempo.

14 - Actualmente, em resultado e como consequência da existência da parede referida em 8), a casa de habitação referida em 2) apresenta as seguintes anomalias:

- No quatro de dormir do 1.º andar verifica-se a existência, na parede do lado nascente, de manchas de humidade e tinta a descascar.

- Na sala do 1.º andar e na mesma parede nascente, existem igualmente manchas de humidade e espaços em que a tinta descascou.

- No WC do 1.º andar e na mesma parede nascente, existem igualmente manchas de humidade e tinta a descascar.

- No rés do chão, a parede nascente da garagem apresenta tinta a descascar e manchas de humidade.

15 - A reparação dos referidos danos interiores implica a remoção da pintura e do reboco danificado para posterior pintura a toda a divisão intervencionada.

16 - Reparação essa que importará um valor de 3.250,00€.

17 - Toda esta situação causa preocupação, angústia, nervosismo e ansiedade à autora.

18 - A qual vê diminuir o conforto que a sua casa em condições normais lhe proporcionaria.

19 - Entre os anos de 1971 e 1974, o falecido F (…) e a sua actual viúva, a ré A (…)construíram a sua casa de habitação.

20 - O terreno onde se inclui a casa de habitação e logradouro foram delimitados por um muro com cerca de 1.20 metros de altura.

21 - A casa de habitação referida em 2) foi edificada até junto do muro referido em 20), não existindo espaço entre este e o referido prédio.

22 - Aquando da construção dessa casa de habitação, ao nível do primeiro andar, na divisão do quarto de banho, foi rasgada na parede nascente (confinante com o prédio referido em 5) uma abertura com 0.46m de largura e com altura não concretamente apurada, mas não inferior a 0.50m e não superior a 0.74 m.

23 - E com o respectivo parapeito situado a uma altura de 1.46m do pavimento onde se encontra inserido.

24 - Tal abertura possuía um caixilho em madeira com vidro e sistema de abertura e fecho.

25 - A mesma permitia, aquando da sua construção, a entrada de ar luz, desfrutar das vistas sobre o prédio referido em 5) e arremessar para aí objectos e detritos.

26 - A parede referida em 8) foi construída para tapar a abertura referida em 22), tendo-a tapado totalmente.

27 - Há cerca de 20 anos a esta data, a uma altura que varia entre 2,55m e 2,90m contados do pavimento, o falecido F (…) e a aqui ré A (…) embutiram na parede referida em 8) e na parede poente da sua casa, uma estrutura em ferro.

28 - Coberta com chapa acrílica ondulada simples, ficando um telheiro que ainda aí se encontra.».

E resultaram julgados não provados:

«(…) quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa para além dos supra referidos, designadamente que:

a) A parede referida em 8) nunca teve qualquer utilidade ou função que não fosse importunar a autora e o seu marido e causar prejuízos e danos na habitação que estes haviam acabado de construir.

b) A parede referida em 8) tem uma espessura de cerca de 12 cm.

c) A parede referida em 8) apresenta nesta altura o risco de ruir, pondo em risco a segurança quer da autora, quer de quem circule na via pública.

d) O falecido F (…) e esposa, ré A (…), de imediato se insurgiram junto do empreiteiro construtor da casa de habitação referida em 2) e do falecido J (…) e autora A (…), exigindo que a abertura referida em 22) fosse alteada e frestada, ou então que fosse tapada, tendo recebido uma rotunda negação quanto a este item.».


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C) O Direito

1. - Do abuso do direito

Afirma a parte recorrente ter ocorrido violação do disposto no normativo do art.º 334.º do CCiv., dedicado ao abuso do direito, invocando tratar-se de matéria de conhecimento oficioso.

Será assim?

É certo tratar-se de matéria jurídica de conhecimento oficioso, por em causa estar o princípio da boa-fé e sua eventual violação, mas as partes bem sabem que toda a defesa deve ser concentrada na contestação, com alegação, nessa sede, da factualidade pertinente, sob pena de preclusão (salvo, justamente, matérias de conhecimento oficioso, mas sempre em respeito à factualidade carreada e apurada).

A violação invocada traduzir-se-ia em a aqui A./Apelada, decorridos 40 anos de consentimento, reconhecimento e aceitação da situação de facto instalada, abusar gritantemente do direito, designadamente na modalidade de comportamento contraditório (“venire…”), ao exigir a demolição de parede cuja existência/permanência sempre antes aceitara.

Na sentença foi justificada assim a decisão de demolição:

«No caso concreto, a abertura em apreço – com 0.46m de largura e com altura não concretamente apurada, mas não inferior a 0.50m e não superior a 0.74 m, com o respectivo parapeito situado a uma altura de 1.46m do pavimento onde se encontra inserido, possuindo um caixilho em madeira com vidro e sistema de abertura e fecho – logo na altura em que foi construída, preenchia as características necessárias à sua qualificação como janela, caindo na previsão do artigo 1360.º do Código Civil.

Ora, atentando na factualidade provada, verifica-se que a abertura dessa janela no prédio que actualmente pertence à herança por óbito de J (…) contende com o determinado no nº 1 do artigo 1360 do Código Civil, já que não foi respeitado o intervalo mínimo de 1,5m.

A questão que agora se coloca é a de saber se o falecido F (…)e a ré A (…) poderiam proceder à tapagem da referida janela, de motu proprio, sem ser através de uma acção judicial, conforme fizeram, sendo que desde já se adianta ser a resposta, a nosso ver, negativa.

Com efeito, conforme resulta do artigo 336.º, n.º 1 do Código Civil, são requisitos da acção directa, a necessidade de assegurar o próprio direito e a impossibilidade de assegurar tal direito em tempo útil recorrendo aos meios coercitivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito.

Ora, no caso em apreço, o falecido F (…) e a ré A (…) teriam tido muito tempo para obterem judicialmente a tapagem da referida janela, sendo que nada os impedia de formularem tal pedido em acção própria intentada para o efeito.

O que não podiam era, a nosso ver, eles próprios, unilateralmente, taparem tal janela, situação que representa um caso de acção directa ilícita, que ofende o direito de propriedade dos seus vizinhos.

(…) ainda que assim não se entendesse, sempre se consideraria que a conduta do falecido F (…) e da ré A (…), ao procederem à tapagem da janela em questão da forma como o fizeram, sempre seria manifestamente susceptível de violar os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito, nomeadamente em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante, considerando a desproporção entre a vantagem obtida pelos mesmos e o sacrifício imposto aos seus vizinhos, designadamente, à autora, que viu diminuir o conforto da sua casa de habitação com o aparecimento de humidades e demais anomalias descritas no ponto 14.º da factualidade provada, em consequência da ocorrência de infiltrações de águas pluviais decorrentes da existência da referida parede, situação que afecta o seu bem-estar e a sua qualidade de vida. Assim, afigura-se-nos que as utilidades que as rés possam disfrutar da edificação da parede efectuada teriam que se considerar manifestamente inferiores aos prejuízos que causam à autora, situação que, em nosso entender, sempre se reconduziria a um comportamento abusivo, nos termos do disposto no artigo 334.º do Código Civil, traduzido na desproporção grave entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.

Deste modo, deverá proceder o pedido de demolição da parede descrita no ponto 8) da factualidade provada, até ao limite do muro divisório aí existente, com 1.20m de altura.».

Assim sendo, o fundamento judicial para a ordenada demolição foi encontrado em conduta (da parte demandada) considerada violadora do disposto no art.º 336.º do CCiv., logo, ilícita, ao avançar-se para o recurso à força/ação direta (traduzida na unilateral edificação do muro, com o intuito de tapagem da abertura efetuada no imóvel confinante) em desconsideração dos meios coercivos normais (os tribunais), a que era possível recorrer em tempo útil.

Perante tal ilegal/ilícito uso da força/ação direta e vistos os consequentes prejuízos apurados no prédio confinante é que foi julgada procedente a pretensão de demolição ([8]).

A parte recorrente, sem questionar esta avaliação quanto à ação direita – fundamento essencial –, invoca que ocorre abuso do direito de demolição, possivelmente induzida pela circunstância de na sentença se ter convocado um fundamento acessório (o de que, a entender-se diversamente, a atuação de tapagem consubstanciaria abuso do direito). Assim, contrapõe a Apelante um abuso do direito (pela contraparte) ao abuso que lhe é imputado (a si própria, na sentença).

Ora, não cabe aqui, por manifesta desnecessidade, entrar na análise daquele fundamento acessório (abuso do direito de tapagem), mas apenas no agora invocado abuso do direito de demolição.

É sabido que a figura do abuso do direito ([9]), nas suas diversas modalidades, designadamente as tributárias do princípio da boa-fé ([10]), carece de factos provados que a demonstrem.

Assim, cabe perguntar: há factos demonstrativos de “40 anos de consentimento, reconhecimento e aceitação da situação de facto instalada”, em termos de a ação judicial dos autos evidenciar gritante abuso do direito, num comportamento inaceitavelmente contraditório ou outro flagrantemente repugnante para a consciência ético-jurídica dominante?

Ora, os factos provados não mostram – salvo o devido respeito – tal agora invocado consentimento, reconhecimento e aceitação daquele muro, com as dimensões apuradas.

Com efeito, apenas se prova que o muro foi alteado logo após a edificação da casa de habitação referida em 2) [factos 7 e 8], originando, porém, infiltrações de águas pluviais, com humidades e decorrentes danos para a casa de habitação contígua [factos 10 e segs.].

Assim, apenas se conhece o tempo de construção da casa e do muro confinante (meados da década de setenta do séc. XX), bem como os aludidos danos sofridos (por força de infiltrações e humidades), já se desconhecendo, porém, qualquer expresso comportamento da parte aqui demandante, designadamente de aceitação ou de rejeição, a não ser o ato de instauração desta ação.

E se não há um comportamento expresso de que resulte consentimento, reconhecimento e aceitação do elevado muro, também esse consentimento ou reconhecimento não pode extrair-se, por via tácita, dos factos apurados nos autos – os únicos que as partes trouxeram ao processo e foram submetidos ao fogo da prova –, não se descortinando qualquer atitude ou comportamento concludente, de que, com toda a probabilidade, possa extrair-se autorização ou aceitação daquela obra (cfr. art.º 217.º, n.º 1, do CCiv.).

Efetivamente, não basta o simples decurso do tempo, nem sequer se sabendo se houve inação ao longo do mesmo, matéria em que os factos não são esclarecedores, o que impede uma conclusão no sentido de aceitação tácita do muro e suas consequências danosas.

Ora, se resulta indemonstrada uma hipotética aceitação tácita, é líquido, por outro lado, que não se mostra qualquer ato positivo/expresso de consentimento ou sequer reconhecimento/aceitação.

E, se é patente que, caso houvesse tal consentimento, a posterior reação de demolição poderia configurar, logicamente, abuso do direito, desde logo por manifesta postura contraditória, também parece seguro que a não evidenciação desse consentimento (para a edificação do muro), ou sequer de algum modo de reconhecimento/aceitação, que não se presumem, logo faz naufragar, por falta de factos bastantes de suporte, a pretendida atuação demolitória em abuso do direito.

Em suma, apenas se provando o decurso do tempo, daí não poderá retirar-se, sem mais (vistos até os danos ocorridos), uma atitude de consentimento, reconhecimento ou aceitação, sabido ainda que o silêncio não vale, por regra, como declaração negocial (art.º 218.º do CCiv.), com o que soçobra toda a argumentação esgrimida na apelação no sentido da existência de abuso do direito.

2. - Da falta de harmonização perante colisão de direitos efetivos e atendíveis

Invoca a parte apelante, no âmbito do disposto no art.º 335.º do CCiv., que a solução encontrada na sentença em crise incorre em vício de ilegítimo sacrifício do seu direito, faltando a necessária compatibilização/harmonização entre direitos colidentes, tendo em conta os invocados princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.

Ora, o art.º 335.º do CCiv. reporta-se à colisão de direitos efetivos, eficazes e atendíveis, sejam eles iguais ou da mesma espécie, caso em que deve haver harmonização/compatibilização, de molde a que nenhum resulte inutilizado ou injustamente sacrificado, mas, ao invés, para que todos produzam o seu efeito, ou, diversamente, sejam desiguais ou de espécie diferente, situação em que prevalecerá o que deva considerar-se superior, com sacrifício do outro (o inferior e incompatível).

No caso vertente, todavia, ocorrido, como visto já, ilegítimo exercício por via de ilegal ação direta, restará à parte demandada/recorrente formular a sua pretensão pela via judicial adequada ([11]), não podendo acautelar os efeitos daquela ilegal ação direta (manutenção do muro) através da figura da colisão de direitos, sendo que o seu alegado direito ainda não foi judicialmente reconhecido, para o que não deduziu pretensão correspondente (note-se que nesta ação não foi sequer deduzida reconvenção).

Assim sendo, não pode acolher-se a argumentação no sentido da colisão de direitos que reclamassem harmonização, pois o invocado direito da parte apelante não se mostra judicialmente reconhecido, faltando demonstrar que se trata de direito efetivo e atendível, como tal carecido de compatibilização ([12]) ([13]).

E quanto à acusada ofensa aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, ínsitos na norma do art.º 335.º do CCiv., por a demolição imposta não dever ser total, mas apenas parcial, até à altura do telheiro indicado, de forma a salvaguardar tal telheiro, cabe dizer que os factos – mais uma vez, os factos provados – não permitem uma tal distinção (entre partes do muro), não se mostrando sequer que os danos comprovados não existissem se o muro fosse objeto de demolição apenas parcial, mormente tendo em conta o formulado juízo de ilegalidade/ilegitimidade construtiva deste (toda a edificação em causa executada em inadmissível ação direta).

Em suma, tem de improceder, salvo o devido respeito, também nesta parte a pretensão da Apelante.

3. - Da violação de princípios ou normas constitucionais

Vem ainda invocada violação do princípio constitucional da igualdade (art.º 13.º, n.º 1, da CRPort.), bem como das normas dos art.ºs 2.º, 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, bem como do art.º 20.º, n.º 1, todos da Constituição.

Esgrime-se, nesta senda, que a sentença trata as partes de forma desigual, não garantindo a efetivação dos direitos e liberdades fundamentais da parte demandada/recorrente, nem o seu direito à privacidade e à reserva da vida privada e familiar, o seu direito à segurança e à integridade pessoal, nem se assegurando, quanto a ela, a tutela jurisdicional efetiva.

Ora, toda esta argumentação continua e entroncar num pressuposto em que se baseia a lógica essencial do recurso: o de que estamos perante direitos iguais, ou de espécie semelhante, em confronto, os quais, por isso, mereceriam igual proteção; faltando essa proteção, todos os princípios convocados pela Apelante estariam postos em crise na sentença.

Porém, como visto já, não pode formular-se um tal juízo de equiparação de direitos de feição oposta (que pudessem ter-se por igualmente merecedores de tutela jurisdicional), sendo que o eventual direito da Recorrente se prende com a alegada ilegalidade da janela, demandando, pela via judicial, uma correção quanto a esta, e não assegurando, por essa via, a justificação de um muro edificado ilegitimamente em infundada ação direta.

Não ocorre, pois, um conflito entre direitos igualmente merecedores de tutela jurisdicional, o que afasta qualquer violação do princípio constitucional da igualdade ou da tutela jurisdicional efetiva.

Quanto, por sua vez, ao assegurar dos direitos à privacidade e à reserva da vida privada e familiar, à segurança e à integridade pessoal, tudo decorre da abertura da dita janela, contra a qual – repete-se – a parte demandada/recorrente, considerando-se lesada no seu direito de propriedade quanto a prédio confinante, teria de lançar mão dos meios judiciais ao seu dispor (apresentando pedido e causa de pedir, em ação judicial adequada), o que não fez, optando, erroneamente, por uma ação direta inadmissível (e com consequências danosas) e não formulando ação ou reconvenção judicial para efetivação, nos tribunais, do seu direito relativamente à janela considerada ilegal.

O que deixa afastada também a invocada violação, na sentença recorrida, das normas dos art.ºs 1360.º, n.º 1, e 336.º, n.º 1, ambos do CCiv., não podendo em rigor dizer-se que foi permitida a construção e manutenção da janela ilegal, posto não haver qualquer pedido sobre essa matéria e sobre ela, por isso, o Tribunal nada ter decidido (manutenção ou não da janela).

4. - Da inexistência de direito indemnizatório

Defende a Apelante que não podia conferir-se qualquer indemnização à contraparte, visto o alegado ato lesivo ser lícito, uma vez que «foi consentido pela autora e marido e assim se manteve ao longo de pelo menos 40 anos, que o direito indemnizatório só é conferido em caso de “violação ilícita” e no caso dos danos morais só em caso de danos que “mereçam a tutela do direito”».

Ora, nesta parte resta repetir que não se demonstra o invocado consentimento, sem o que não pode concluir-se pela pretendida licitude do ato lesivo.

Acresce, apurada a dita “violação ilícita” – por já mencionada ação direta inadmissível –, que os factos documentam o dano identificado, no plano material e no moral, este último, pela sua dimensão/relevância, a merecer também a tutela do direito (art.º 496.º, n.º 1, do CCiv.), como tem de concluir-se ao sopesar os factos provados n.ºs 10 a 18.

5. - Da litigância de má-fé

5.1. - Esgrime a parte recorrente que a sentença viola o disposto no art.º 542.º, n.ºs 1 e 2, do NCPCiv., pois que, ante a conduta processual da A., esta deve ser condenada como litigante de má-fé, em multa e indemnização (esta última no montante de € 2.500,00) a favor da contraparte.

Fundamenta, aduzindo que a demandante, causadora inicial de um conflito, não pode criar na contraparte a segurança e a certeza da estabilidade de uma determinada situação de facto, que consentiu e aceitou durante tantos anos, e depois vir recorrer aos tribunais para pedir a alteração dessa situação de facto e indemnizações, pois que esse comportamento constitui um caso de gritante má-fé e de uso manifestamente reprovável do processo judicial (numa lógica de “vale tudo!!!”).

Ora – reitera-se mais uma vez –, aquele consentimento/reconhecimento/aceitação, se vem alegado, não ficou comprovado nos autos, tanto bastando para fazer soçobrar a pretensão de condenação da A. como litigante de má-fé, a qual, aliás, não deixou de obter ganho de causa neste âmbito.

E – isto dito – não se mostra que tenha litigado contra a verdade de factos do seu conhecimento pessoal ou que tenha procurado fazer do processo um uso manifestamente reprovável ou sequer que soubesse que a sua pretensão era manifestamente improcedente, improcedência que nem sequer ocorreu.

Em suma, também nesta parte improcede a pretensão da Recorrente.

5.2. - Já a parte recorrida (A.), na sua contra-alegação recursiva, vem agora pugnar pela condenação das “recorrentes como litigantes de má fé, em multa e indemnização no montante de 5.000,00 € (…)”.

Nesta via incidental, defende que a Recorrente bem sabe que o seu único objetivo não é a decisão em recurso, pois não pode desconhecer que a sentença não enferma dos vícios que lhe aponta, visando tão só protelar no tempo o trânsito em julgado da decisão e assim causar ainda maiores prejuízos à A./Recorrida.

Ora, dos factos provados – os únicos a considerar, e não outros – não decorre, de modo algum, que “o único objetivo do recurso” fosse o de “agravar os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais da recorrida” ou de protelar “no tempo o trânsito em julgado da decisão” final [cfr. conclusões G) e H) da Recorrida].

Aliás, as partes têm, nas condições legais, o direito ao recurso, não resultando dos autos que o recurso apresentado tenha sido interposto de forma temerária ou que fosse manifesta a sua total improcedência ou sequer que a parte recorrente bem conhecesse a sua falta de fundamento.

Inexistem, pois, salvo o devido respeito, quaisquer motivos para a pretendida condenação por litigância recursiva de má-fé, pelo que deve o incidente improceder, com a inerente condenação da A./Recorrida nas respetivas custas.

                                                 ***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.:

1. - Considera-se pacificamente que o exercício de direitos ou, em geral, de posições jurídicas, se apresenta como abusivo quando é flagrante/manifesto e viola o mais elementar princípio de justiça, caindo, então, na previsão do abuso do direito constante do art.º 334.º do CCiv..

2. - Através da figura do abuso do direito, tributária do princípio da boa-fé, visa-se evitar que o sujeito do direito, no respetivo exercício, ultrapasse intoleravelmente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

3. - Haverá abuso do direito se a utilização do poder que lhe corresponde conduzir à prossecução de um interesse manifesta ou intoleravelmente exorbitante do fim próprio desse direito ou do contexto em que deve ser exercido.

4. - Não se demonstrando, quanto à elevação de um muro junto à estrema entre dois prédios confinantes, atos concretos de consentimento, reconhecimento ou aceitação de tal muro pela contraparte, não bastará para tanto, em termos tácitos, o simples decurso do tempo (décadas) de permanência da edificação, no desconhecimento sobre se houve inação ao longo do mesmo, mas sabido que o silêncio não vale, por regra, como declaração negocial (art.º 218.º do CCiv.).

5. - O art.º 335.º do CCiv. reporta-se à colisão de direitos efetivos, eficazes e atendíveis, sejam eles iguais ou da mesma espécie, caso em que deve haver harmonização/compatibilização, de molde a que nenhum resulte inutilizado ou injustamente sacrificado, mas, ao invés, todos possam produzir o seu efeito (ainda que com limitações), ou, diversamente, sejam desiguais ou de espécie diferente, situação em que prevalecerá o que deva considerar-se superior, com sacrifício do outro.

6. - Ocorrendo, no caso, ilegítimo exercício por via de ilegal ação direta – perante uma abertura (janela) em parede de prédio confinante, procedeu-se à elevação de muro de tapagem dessa abertura em condições que levaram à ocorrência de infiltrações e humidades no interior da casa situada no prédio vizinho, quando se poderia ter recorrido atempadamente aos tribunais para solução do litígio de confinância (janela) –, não pode a figura da colisão de direitos servir para acautelar os efeitos daquela ilegal ação direta, isto é, garantir a manutenção do muro.

7. - Também não se verifica, num tal caso, violação do princípio constitucional da igualdade ou da tutela jurisdicional efetiva, posto não poder formular-se um juízo de equiparação de direitos de feição oposta – que pudessem ter-se por igualmente merecedores de tutela jurisdicional e que demandassem uniformidade de tratamento –, sendo que o eventual direito da recorrente se prende com a ilegalidade da abertura/janela, demandando, pela via judicial, uma correção quanto a esta (não desencadeada nos tribunais), em vez de conferir justificação para um muro edificado ilicitamente em infundada ação direta.

                                                 ***

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na improcedência da apelação, em manter a decisão recorrida.

Custas da apelação pela parte recorrente, ante o seu total decaimento no recurso.

Custas do incidente de litigância de má-fé deduzido, na fase recursiva, pela parte recorrida, a suportar por esta, ante o seu total decaimento nesse âmbito.

Coimbra, 23/06/2020

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (Relator)

          Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Foi entendido ainda que “Não se vislumbra a existência de quaisquer nulidades que afectem a decisão recorrida”.
([2]) Excetuando, logicamente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([3]) Caso nenhuma delas resulte prejudicada pela decisão de outras.
([4]) Cfr., por todos, o Ac. Rel. Lisboa, de 01/10/2013, Proc. 4638/08.0TCLRS.L1-7 (Rel. Maria do Rosário Morgado), em www.dgsi.pt. No mesmo sentido os Acs. do STJ, de 14/01/2010, Proc. 1885/04.7TBMTS.S1 (Cons. Alberto Sobrinho), da mesma data mas no Proc. 2299/05.7TBMGR.C1.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos) e de 25/03/2009, Proc. 09B0412 (Cons. Maria dos Prazeres Beleza), todos em www.dgsi.pt.
([5]) Dos quais se retira a seguinte materialidade essencial:
- a casa de habitação referida em 2) foi edificada por J (…) (falecido) e esposa (A.), por volta dos anos de 1975/1976;
- de imediato após a sua construção, F (…) (falecido) e esposa (atual viúva, A (…)) altearam o muro existente na estrema do seu prédio, do lado poente, através da edificação de uma parede em tijolo e cimento, com uma altura de cerca de 5 metros e cujo comprimento se estende ao longo de toda a parede nascente da casa de habitação referida em 2);
- tal parede, edificada junto à parede do alçado nascente da casa de habitação referida em 2), ficando entre uma e outra um espaço aberto que varia entre 5 cm a 10 cm, origina que as águas pluviais se infiltrem nesse espaço aberto e não escoem, provocando infiltrações na parede nascente daquela casa da habitação, assim originando humidades que passam para o interior da moradia;
- entre os anos de 1971 e 1974, o falecido F (…) e a atual viúva construíram a sua casa de habitação;
- o terreno onde se inclui a casa de habitação e logradouro foram delimitados por um muro com cerca de 1.20 metros de altura;
- a casa de habitação referida em 2) foi edificada – posteriormente (anos de 1975/1976) – até junto deste muro, não existindo espaço entre este e o referido prédio;
- aquando da construção dessa casa de habitação, ao nível do primeiro andar, na divisão do quarto de banho, foi rasgada na parede nascente (confinante com o outro prédio) uma abertura com 0.46m de largura e com altura não concretamente apurada, mas não inferior a 0.50m e não superior a 0.74 m, com o respetivo parapeito situado a uma altura de 1.46m do pavimento onde se encontra inserido, possuindo um caixilho em madeira com vidro e sistema de abertura e fecho e permitindo, aquando da sua construção, a entrada de ar luz, desfrutar das vistas sobre o outro prédio e arremessar para aí objetos e detritos;
- a parede edificada por F (…) e dita esposa foi construída para tapar aquela abertura, tendo-a tapado totalmente;
- há cerca de 20 anos a esta data, a uma altura que varia entre 2,55m e 2,90m contados do pavimento, o falecido F (…) e dita esposa embutiram na parede referida e na parede poente da sua casa, uma estrutura em ferro, coberta com chapa acrílica ondulada simples, ficando um telheiro que ainda aí se encontra.
([6]) É bem sabido, salvo o devido respeito, que os factos alegados mas não provados não contam, enquanto tais, para a decisão da causa, não se lhes podendo aplicar o direito nem deles extrair a solução do caso.
([7]) Falta demonstrar, assim, alguma falha interna, de raciocínio lógico, no iter decisório da sentença, não se evidenciando que o segmento decisório (dispositivo) não seja conclusão lógica dos elementos de facto e de direito nela explanados/convocados, nem que lhe falte qualquer base fundante.
([8]) A sentença recorrida apoia-se em Ac. TRL de 09-07-2014, Proc. 2171/13.7TVLSB.L1-8 (Rel. António Valente), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «1. Aquele que no decurso de obras no seu próprio prédio, em Dezembro de 2013, procede ao entaipamento das janelas do prédio contíguo, alegando que as mesmas não obedecem aos requisitos previstos no art. 1360º do Código Civil, exerce ilicitamente a acção directa. // 2. Com efeito, provando-se que em 2008 o requerido havia reclamado junto da Câmara Municipal contra a construção de tais janelas, teria tido tempo suficiente para instaurar acção judicial que, se fosse caso disso, reconhecesse o seu direito e condenasse as proprietárias das fracções do prédio contíguo a taparem as janelas».
([9]) Considera-se pacificamente que o exercício de direitos ou, em geral, de posições jurídicas, se apresenta como abusivo quando é flagrante/manifesto e viola o mais elementar princípio de justiça, caindo, então, na previsão do abuso do direito constante do art.º 334.º do CCiv..
([10]) Como sintetizado, por exemplo, no Ac. STJ de 17/05/2016, Proc. 1118/09.0TBCHV,G1.S1 (Cons. Pinto de Almeida), em www.dgsi.pt, «O abuso do direito é um meio pelo qual se visa evitar que, no exercício de um qualquer direito (faculdade ou poder legal), sejam intoleravelmente ultrapassados os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; traduz-se na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido».
([11]) Desde logo, para obtenção do reconhecimento judicial do alegado direito (quanto à janela aberta que motivou a construção do muro com aquelas dimensões).
([12]) Aliás, o direito que caberia à parte demandada/recorrente teria de reportar-se à aludida janela aberta (obra realizada pela contraparte), a dever ser objeto de intervenção corretiva (por via judicial), e não propriamente ao muro unilateralmente levantado, sobre o qual pende um juízo de ilegalidade/ilicitude, incontornável, obviamente, pela via da colisão/harmonização de direitos.
([13]) Os factos provados – de si incontroversos, sendo também líquido que só deles se pode servir o Tribunal para a decisão – também não permitem concluir que estamos perante direitos a poderem ser conciliados com a “simples decisão de isolamento da parede do prédio das rés e a tapagem do espaço aberto”.