Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2707/10.5TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: DEMOLIÇÃO DE OBRAS
Data do Acordão: 12/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - 1º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 39º, DO DECRETO-LEI N.º 166/2008, DE 22 DE AGOSTO
Sumário: Os tribunais comuns não estão vocacionados para se pronunciarem sobre a oportunidade e modo de realização da demolição de obras, em conformidade com o disposto no art.º 39º, do Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de Agosto, quando as ordens administrativas, verificada a prática de uma contra-ordenação, observem o principio da legalidade.
Nestes casos, constatada a existência do acto ilicito e a legalidade e adequação da sanção ou das sanções aplicadas, o tribunal não deve pronunciar-se sobre decisão que seja fundamentalmente atributo da autoridade administrativa, desde que verificada a sua legalidade, pois a execução da determinação legal e o modo de execução estão no âmbito de discricionaridade administrativa (em sentido lato), eventualmente sindicável em sede de reclamação graciosa ou em contencioso administrativo.
Decisão Texto Integral: Em conferência na 5.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO
1- No 1.º Juizo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, no processo de contra-ordenação acima referido, a arguida “W…, Lda”, veio impugnar judicialmente a decisão da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro que a sancionou com uma coima de 1.000,00€ pela prática de uma contra-ordenação p.p. nos termos das disposições conjugadas da al. B) do n.º 1, do art. 20.º e da al. a) do n.º 3, do art. 37.º do Decreto-Lei n.º 166/2008 de 22 de Agosto, nos termos do art. 12.º, n.º 1 e 4 do Decreto-Lei n.º 180/2006 de 6 de Setembro acrescida da obrigação de proceder à demolição do construído no prazo de 90 dias, .
Por decisão judicial de fls 91 sgs foi decidido julgar improcedente o recurso, mantendo-se integralmente a decisão recorrida

2- Inconformada, recorreu a arguida, tendo concluído a sua motivação pela forma seguinte :
O Sr Juiz "a quo" limita-se a esgrimir as fundamentos para a aplicaçaõ da coima à recorrente par violação ao disposto nos artigos 200, n.° 1, alinea b) e 37°, n.° 3, alinea a) do DecLei n.° 166/2008, de 22 de Agosto, mas omite na totalidade, a pronúncia quanta à sanção mais gravosa aqui em causa, que é a demolição.
E nem pode dizer-se que não está em causa a apreciação da ordem de demolição, pois ela surge na própria decisão administrativa
Certo é que, ainda em fase de julgamento da causa, o Tribunal "a quo" diligenciou junto da CC DR do Centro e Câmara municipal de U..., no sentido de obter informaçõeses sobre uma eventual desafectação da REN, da área onde se encontra implantado o pavilhão onde a recorrente exerce a sua actividade. Fê--lo — pensava-se — corn o objectivo não só de apreciar os critérios conducentes à aplicação da coima, mas também no sentido de avaliar da possivel legalização da construção.
No entanto, nada se refere na douta sentença acerca da sanção acessória.
Por razões que fácilmente se compreendem, a medida de tutela da legalidade urbanistica em causa — a demolição - deve ser entendida como urn acto de ultima ratio, da qual apenas se deverá lançar mão quando mais nenhuma outra medida for susceptivel de restabelecer a legalidade urban istica.
Dai que, a demoliçãoo poderá não ser ordenada se for possivel (i) o licenciamento da obra, ou a sua sujeição a comunicação prévia, ou (ii) atraves da realização de trabalhos de correcção ou alteragao, assegurar a conformidade da obra corn as disposições legais e regulamentares aplicáveis.
Tal obrigada a que, a Administração, num momento prévio à determinação daquela ordem, averigue da possibilidade do licenciamento da obra ou do restabelecimento da legalidade urbanistica atraves de meros trabalhos de correcção ou alteração.
Na verdade, a jurisprudência tem sido clara ao afirmar que "a ponderação da possibilidade de legalização de obra ilegal constitui pressuposto da decisão de ordenar a sua demolição, e que tal ponderação deverá ser feita atendendo às caracteristicas da obra concreta, para ver se ela, apesar de ilegalmente realizada, satisfaz os requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade, ou é susceptivel de os vir a satisfazer mediante algumas alterações, pois é isso que decorre dos principios da necessidade, adequação, indispensabilidade ou menor ingerência possivel, corolários do principio da proporcionalidade". Salienta, aliás, a jurisprudencia, que a Administração está mesmo "vinculada a não ordenar a demolição se a obra, com ou sem alterações, puder ser legalizada"— cf. acordão do STA de 22/04/2009.
Ora, conforme resulta dos autos, o Plano Director Municipal (PDM) de U... encontra-se em processo de revisão, e no âmbito deste processo, pretende a Câmara Municipal de U..., tal como consta tambem já dos autos, desafectar da REN a àrea onde se insere o imóvel e a construção da recorrente. Tal significa, portanto, que a obra em causa será, dentro em breve, susceptivel de legalização, faltando, apenas, para que tal ilegalidade seja suprida, após a aprovação do novo Plano Director Municipal, o desencadeamento do respectivo procedimento de licenciamento / legalização por parte da Recorrente.
Estaremos ai, portanto, perante uma mera ilegalidade formal, a qual a recorrente poderáa suprir.
Em causa não está uma remota ou pouco provável situaçaõ de futura viabilidade da legalização da obra em causa. De facto, o PDM de U... já se encontra em revisão, prevendo-se, em breve, a sua aprovação. Por essa razão, corn toda a probabilidade, confirmada pela propria Camara Municipal, a obra da Recorrente deixará de ser materialmente ilegal;
A ser assim, não se entende porque motivo também não deverão aplicar-se, in casu, os referidos fundamentos que obstam a ordem de demolição de obras que são susceptiveis de imediata legalização, sob pena de, num dia a construçaõ da Recorrente estar a ser demolida, e, no dia imediatamente a seguir a mesma já ser susceptivel de legalização.
Conforme é entendimento da doutrina, "o poder de ordenar a demolição não tem qualquer intuito sancionatório (sendo este carácter sancionatório remetido para as normas contra-ordenacionais), mas visa antes a reposição da legalidade urbanistica. Acrescenta-se, ainda, que "[o] exercicio deste poder de ordenar a demolição esvaziado da prossecução daquele fim [a legalidade urbanistica], isto é, nas situações em que não está na verdade em causa a tutela do interesse publico de cumprimento das normas urbanisticas de natureza material revelar-se-ia sempre, a nosso ver, como o exercicio de urn poder da Administração inconstitucional, porque violador do principio da proporcionalidade."
E deverá ser este o entendimento quer nas situações em que a obra em causa é susceptivel de legalização imediata (e apenas não o foi ainda por ausência do respectivo procedimento de licenciamento ou comunicação prévia), como naquelas em que, como no caso dos presentes autos, tal susceptibilidade de legalização é absolutamente provável (probabilidade essa confirmada pela propria Administração) num curto espaço de tempo.
Sob pena, conclui-se, da violação do referido principio da proporcionalidade e grave falha de omissão de pronúincia.
Violou o tribunal a quo, entre outros, os artigos 379°, n° 1, alinea c) do CodProcPenal, e os principios contra-ordenacional, penal e constitucionalmente consagrados, da legalidade, da tipicidade, da adequação e da proporcionalidade.

3- Nesta Relação, o Exmo PGA, acompanhando o MP da 1.ª instância, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso

4- Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência

5- O despacho recorrido tem o seguinte teor, em resumo e na parte que interessa :
« (...) caso haja lugar a construção de edifícios de apoio/pavilhões estes deverão ser devidamente licenciados pela CM de U...; que a operação terá que ser compatível com o PDM de U... e, finalmente, que não poderá haver colisão da intervenção (edificações ou qualquer imobilização do solo) com terrenos pertencentes à Reserva Ecológica Nacional.
Ora, ainda que a recorrente esteja licenciada para operar resíduos, tal não implica automaticamente que se lhe reconheça o direito ou a expectativa de ver licenciadas as construções que indicou no projecto que apresentou, projecto esse que não é mais do que o projecto do “estabelecimento” a instalar. Daí que a entidade licenciadora tenha feito aquelas ressalvas no alvará. Mesmo porque a entidade que emite o alvará não é a mesma entidade com competência para a licenciar as construções que integrarão o estabelecimento e nem é a entidade que verifica se as construções contendem ou não com a REN. E isto, a recorrente não poderia ignorar.
Portanto, a recorrente não pode fazer apelo ao princípio da confiança e, tão pouco, retirar daí uma violação do princípio da legalidade, da igualdade, da tipicidade e da adequação, porque não poderia confiar que a emissão do alvará consubstanciava o reconhecimento implícito da legalidade do projecto do estabelecimento a construir.
Este estabelecimento (coisa diversa do alvará) composto ademais pelo conjunto das coisas corpóreas - pavilhões, máquinas, pessoal - de capital e pela própria organização desses factores, tem que obedecer a outros requisitos, nomeadamente administrativos - v.g a licenciamento camarário, segurança contra incêndios, higiene - laborais - v.g. à regulamentação das leis do trabalho e de segurança no trabalho - e ficais - vg. contabilidade organizada - diga-se a título de exemplo.
Para isso, como foi informada aquando da concessão do alvará deveria munir-se das necessárias licenças administrativas, nomeadamente para as edificações, junto da entidade competente, designadamente a Câmara Municipal de U... (CMV) onde, alega, até foi - cf. art. 11.º das alegações de defesa. a fls. 20. E onde até foi informada de que o terreno onde pretendia exercer a sua actividade estaria abrangido pela REN e que o PDM não previa, a essa data, construções, mas que no entanto seria uma das áreas, seguramente, a desafectar - cf. art. 12.º das alegações de defesa a fls. 21.
É claro que a autoridade administrativa não considerou provada esta factualidade, mas a verdade é que a mera alegação dela deixa evidente o conhecimento que a recorrente tem da diferença entre o que é o alvará, o seu âmbito, e o que é o estabelecimento e os requisitos a que os seus elementos, nomeadamente edificações, têm de obedecer.
Finalmente, e ainda quanto a esta questão, independentemente do que possa ter sido informada a recorrente na CMV, certo é que, pelo menos quando lhe foi concedido o alvará ficou a saber que, afinal, o licenciamento da actividade não implicara automaticamente o licenciamento das construções indicadas no projecto para o exercício dessa actividade - o licenciamento do “estabelecimento”, portanto. Senão, repete-se, nada se teria dito no alvará quanto à necessidade de os edifícios de apoio/pavilhões estarem devidamente licenciados pela CM de U....
Ao deixar perpetuar a situação anti-jurídica mesmo após a emissão do alvará, onde ficou a compreender o sentido e alcance do mesmo, fica evidente a negligência com que actuou ao nada ter feito para licenciar a edificação, ficando a aguardar, antes, pela alteração do PDM, se bem se interpretam as suas declarações.
(...) Ao nível da decisão recorrida, adianta-se, que nenhuma influência têm. O facto de o PDM estar em revisão não confere aos particulares qualquer direito, sequer qualquer expectativa jurídica. Tão pouco exclui a ilicitude do acto ou a culpa. Não é legítimo, e de todo não constitui justificação, a construção de uma edificação em contravenção aos instrumentos de gestão territorial, na expectativa de que esses mesmos instrumentos venham a ser alterados. Haveria alguma relevância se, entretanto, a situação tivesse sanada, ou seja, se tivesse ocorrido a alteração do PDM e a construção licenciada. Ou seja, nesse caso, justificar-se-ia uma sanção diversa. Tal não é o caso. A situação anti-jurídica mantém-se (...) ».
Por sua vez, a decisão administrativa recorrida, , veio a considerar provada a seguinte factualidade, que não é questionada : « 1. No dia 25 de Junho de 2010, uma equipa de fiscalização da Divisão Sub-Regional de U..., verificou que a ora arguida tinha edificado no interior das suas instalações, situadas em …, um pavilhão com parte em alvenaria de blocos de cimento e areia, em terreno localizado em Reserva Ecológica Nacional (áreas estratégicas de protecção e recarga de aquíferos), sem que o mesmo tivesse sido licenciado ; 2. O pavilhão foi construído na vigência do Decreto-Lei n.o 93/90, de 19 de Março, com a nova redacção dada pelo Decreto-Lei n.o 180/2006, de 6 de Setembro ; 3. A arguida é detentora de um Alvará de Licença para a realização de operações de gestão de resíduos n.o 46120091CCDRC, válido até 12 de Agosto 2014, ficando a realização da operação de resíduos sujeita ao cumprimento integral das especificações que lhe são anexas, as quais dele fazem parte integrante ; 4. Entre essas especificações (requisitos) a interessada estava obrigada a obter, não só o normal licenciamento pela Câmara Municipal de U... das edificações que pretendesse construir, bem como, no que toca às referidas edificações, que não houvesse colisão com terrenos pertencentes à Reserva Ecológica Nacional »
Do alvará possuído pela ora recorrente consta também que caso haja lugar a construção de edifícios de apoio/pavilhões estes deverão ser devidamente licenciados pela CM de U...; que a operação terá que ser compatível com o PDM de U... e, finalmente, que não poderá haver colisão da intervenção (edificações ou qualquer imobilização do solo) com terrenos pertencentes à Reserva Ecológica Nacional.

É desde logo surpreendente que a recorrente acuse a decisão recorrida de nulidade por falta de pronúncia quando tal decisão, que se vem de transcrever, se pronuncia extensivamente e com detalhe sobre a questão da ou não demolição das instalações em causa. Assim, não se verifica a nulidade invocada.
A decisão administrativa impugnada e confirmada pelo tribunal de 1.ª instância também condenou a recorrente a demolir as instalações industriais ( fls 47 ) ao abrigo do art. 39.º do DLei n.º 166/2008, de 22-8, que prescreve assim :
« Embargo e demolição : 1 — Compete à Inspecção -Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, às comissões de coordenação e desenvolvimento regional, às administrações das regiões hidrográficas, aos municípios e às demais entidades competentes em razão da matéria ou área de jurisdição embargar e demolir as obras, bem como fazer cessar outros usos e acções, realizadas em violação ao disposto no presente decreto -lei, nomeadamente os interditos nos termos do artigo 20.º e os que careçam de autorização nos termos dos artigos 20.º e 23.º sem que a mesma tenha sido emitida. 2 — As entidades referidas no número anterior devem determinar o cumprimento integral dos condicionamentos e medidas de minimização estabelecidos nos termos do n.º 2 do artigo 21.º quando se verifique o incumprimento ou cumprimento deficiente dos mesmos. 3 — As entidades referidas no n.º 1 podem ainda determinar o embargo e a demolição das obras, bem como fazer cessar outros usos e acções, que violem a autorização emitida pela comissão de coordenação e desenvolvimento regional, nomeadamente os termos e as condições que determinaram a sua emissão ou que foram nela estabelecidos e que, desse modo, ponham em causa as funções que as áreas pretendem assegurar. 4 — A entidade competente nos termos do n.º 1 intima o proprietário a demolir as obras feitas ou a repor o terreno no estado anterior à intervenção, fixando -lhe prazos de início e termo dos trabalhos para o efeito necessários. 5 — Decorridos os prazos referidos no número anterior sem que a intimação se mostre cumprida, procede -se à demolição ou reposição nos termos do n.º 1, por conta do proprietário, sendo as despesas cobradas coercivamente através do processo de execução fiscal, servindo de título executivo a certidão extraída de livros ou documentos de onde constem a importância e os demais requisitos exigidos no artigo 163.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário ».
Assim, a entidade administrativa agiu, ao ordenar a demolição, em causa, em obediência a um imperativo legal que, como bem refere o Exmo PGA no seu parecer de fls 130, a demolição nestes casos é um acto vinculado, determinado pelo principio da legalidade, e não um acto discricionário ( cfr jurisprudência aí citada ).
Seja como for, e também assim se exprime tal parecer, não estão os tribunais comuns vocacionados para se pronunciarem sobre a oportunidade e modo de realização da demolição quando as ordens administrativas , verificada a prática de uma contra-ordenação, observem o principio da legalidade, como é o caso que nos ocupa. Nestes casos, o tribunal recorrido, constatada a existêencia do acto ilicito e a legalidade e adequação da sanção ou das sanções, não deve pronunciar-se sobre decisão que seja fundamentalmente atributo da autoridade administrativa, desde que verificada a sua legalidade, pois a execução da determinação legal e o modo de execução estão no âmbito de discricionaridade administrativa ( em sentido lato ), eventualmente sindicável em sede de reclamação graciosa ou em contencioso administrativo.
Ora, a legalidade daquela ordem de demolição não é nem pode ser questionada.
Por outro lado, também, como diz a decisão judicial recorrida, « o facto de o PDM estar em revisão não confere aos particulares qualquer direito, sequer qualquer expectativa jurídica. Tão pouco exclui a ilicitude do acto ou a culpa ».
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DECISÃO
Pelos fundamentos expostos :
I- Nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida

II- A recorrente pagará 1 Uc de taxa de justiça
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PauloValério (Relator)
Jorge Jacob