Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1085/14.8TJCBR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: INSOLVÊNCIA
DEVEDORES INSOLVENTES COMUNS
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
PLURALIDADE DE EMPREGADORES
Data do Acordão: 04/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – INST. LOCAL – SEC. CÍVEL – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 95º, Nº 1 DO CIRE; 101º E 334º CT.
Sumário: I – A lei (art. 95º, nº 1 do CIRE) permite que, no caso de responsabilidade solidária dos devedores insolventes, o credor possa concorrer pela totalidade do seu crédito a cada uma das massas insolventes, em processos autónomos.
II - Estando duas sociedades coligadas apenas numa relação de simples participação (art. 483º CSC) não tem aplicação o disposto no art. 334º do CT sobre a responsabilidade solidária, cuja ratio é intensificar ou reforçar a garantia patrimonial dos créditos laborais.

III - A caracterização da pluralidade de empregadores, nos termos do art.101º do CT, não obsta a circunstância de os trabalhadores apenas haverem formalizado o contrato com um deles, quer se convoque a teoria do levantamento da personalidade colectiva do empregador formal, quer se justifique com o princípio da primazia da realidade subjacente.

IV - Alegando-se que duas sociedades em relação de simples participação têm a mesma gerência, os autores/trabalhadores prestavam indistintamente o seu trabalho, tanto para uma como para outra sociedade, com subordinação jurídica e económica, sendo os equipamentos e os instrumentos de trabalho pertencentes a ambas, o trabalho é realizado em ambas as instalações industriais, estamos perante uma situação de “estruturas organizativas comuns“.

V - Existe uma “pluralidade de empregadores” (contitularidade sucessiva) se tendo os trabalhadores formalizando inicialmente o contrato de trabalho com uma das sociedades passaram depois da constituição da outra (participada) a trabalhar para ambas as sociedades, no mesmo processo produtivo, com a mesma subordinação económica e jurídica, dentro de uma organização comum.

VI - A falta de documento escrito, imposto no art. 101º, nº 2 CT (com todos os empregadores) não inibe o trabalhador de invocar a pluralidade de empregadores.

VII - Decretada, em processos autónomos, a insolvência de ambos os empregadores, os trabalhadores podem reclamar os seus créditos laborais em cada uma dos processos, por ser solidária a responsabilidade dos devedores insolventes.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            1.1.- Os Autores

A..., M..., ...

            Instauraram ( 27/11/2014) na Comarca de Coimbra acção de verificação ulterior de créditos, com forma de processo especial ( por apenso ao processo de insolvência de G., Ldª,) contra os Réus:

            C..., Lda

            Massa Insolvente de C..., Lda (representada pelo Administrador Judicial)

            Credores conhecidos da Massa Insolvente.

            Alegaram, em resumo:

A C..., Lda resultou da segmentação da actividade da G..., Lda, e a gerência de ambas a s sociedades é exercida pelas mesmas pessoas.

Os Autores, ainda que formalmente constem das folhas de remuneração como inscritos na Segurança Social como trabalhadores da G..., Lda, a verdade é que são trabalhadores de ambas as empresas, exerceram e exercem as suas funções e actividades por orientação e determinação da gerência da ré, de forma indistinta, nas instalações da G..., Ldª, sita na Rua ... e nas instalações da ré C..., Ldª, sitas na rua ..., empresa esta que a G..., Ldª domina e com quem tem relações de grupo.

Os equipamentos de trabalho utilizados pelos autores são fornecidos pela ré C..., Ldª, a quem pertencem.

Os créditos dos Autores foram reclamados e estão reconhecidos no âmbito do processo de insolvência da G..., Lda, visando com esta acção apenas garantir o pagamento caso não venham a receber os seus créditos à ordem daqueles autos.

Pediram que sejam considerados, verificados, reclamados e graduados os créditos que os Autores detêm sobre a insolvente no valor global e € 355.641,29, que discriminam individualmente.

Contestou o credor Banco I..., S.A. defendendo-se, em síntese, que os autores são trabalhadores da G..., Ldª e os seus créditos foram-lhes reconhecidos em sede de insolvência desta sociedade, não podendo agora vir reclamar os mesmos créditos aos presentes autos, pelo que concluiu pela improcedência da acção.

Contestou o Banco B..., S.A., defendendo-se, em síntese, que a G..., Ldª e a C..., Ldª não são sociedades em relação de grupo ou domínio, e os autores trabalhavam sob a direcção, orientação e fiscalização da G..., Ldª, com quem firmaram contratos de trabalho

Contestou a Massa Insolvente da C..., Lda alegando que os autores apenas tinham um vínculo laboral com a G..., Lda, com quem celebraram contrato de trabalho, sendo também esta a empresa que lhes pagava os respectivos vencimentos.

Os Autores responderam.

1.2.- Realizada audiência prévia, foi proferida sentença que decidiu julgar a acção improcedente.

1.3.- Inconformados, os Autores recorreram de apelação, com as seguintes conclusões:

...

            Contra-alegou o Banco B...,SA e a Massa Insolvente no sentido da improcedência do recurso.


II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1.- O objecto do recurso

A questão submetida a recurso, delimitado pelas conclusões, consiste em saber se os Autores, tendo já reclamados os seus créditos laborais no processo de insolvência da G..., Lda, podem também deduzir reclamação dos mesmos créditos neste processo de insolvência da C..., Lda (responsabilidade solidária dos devedores insolventes) e se o tribunal estava legitimado a conhecer do mérito da acção no saneador.

2.2.- O mérito do recurso

A sentença recorrida justificou a improcedência da acção com base nos seguintes tópicos:

“ Findo o prazo fixado na sentença declaratória da insolvência para a reclamação de créditos, mostra-se ainda possível reconhecer outros créditos, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, conforme previsto no artigo 146º, nº 1, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Contudo, o artigo 146º, nº 2, a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas dispõe que a reclamação de outros créditos, tendo em vista a sua verificação ulterior não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129º, excepto tratando-se de créditos de constituição ulterior.

Consideram-se créditos de constituição posterior, para este efeito, aqueles que se vencerem posteriormente ao terminus do prazo de impugnação da relação de créditos estabelecido no artigo 130º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16.06.2011, proferido no âmbito do processo nº 745/09.0TBSLV-S.E1).

Ora, no caso dos autos, verifica-se que os autores reclamaram os créditos que pretendem ver agora verificados no âmbito do processo de insolvência da G..., Ldª, que corre termos neste tribunal sob o processo nº ..., sendo que esses créditos foram reconhecidos pelo Administrador da insolvência nesse processo.

Acresce que, resulta dos autos que o Tribunal da Relação de Coimbra, por decisão proferida a 21 de Abril de 2015, no âmbito do referido processo nº ..., entendeu que no caso da G..., Ldª e C..., Ldª, estamos perante sociedades comerciais perfeitamente autónomas, que agiam no mercado autonomamente e relativamente às quais os credores não coincidem.

Assim sendo, considerando que os créditos cuja verificação os autores pretendem com esta acção correspondem aos créditos que já lhes foram reconhecidos pelo Administrador da Insolvência noutro processo, é evidente que, atento o disposto no artigo 146º do CIRE, não têm os autores a faculdade de recorrer à presente verificação ulterior de créditos para obter o reconhecimento dos seus créditos.

Como tal, improcede a pretensão deduzida, devendo os autores, porque vencidos, ser condenados no pagamento das custas da acção, nos termos do disposto no artigo 446º do Código de Processo Civil.”

Verifica-se que o argumento essencial para a improcedência da acção, desde logo no saneador, consiste no facto de os Autores já terem reclamado e estarem reconhecidos os seus créditos no processo de insolvência da G..., Lda, cuja sociedade é autónoma em relação a C..., Lda, razão pela qual foi indeferida a apensação.

Ora, este argumento só por si não é suficiente porque a lei permite que, no caso de responsabilidade solidária dos devedores, o credor possa concorrer a cada uma das massas insolventes, em processos autónomos.

Dispõe o art.95 nº1 do CIRE – “ O credor pode concorrer pela totalidade do seu crédito a cada uma das diferentes massas insolventes de devedores solidários e garantes, sem embargo de o somatório das quantias que receber de todas elas não poder exceder o montante do crédito”.

Os Apelantes convocam o regime da solidariedade (de ambas as sociedades) para justificarem a sua pretensão.

Neste contexto, alegaram que os Autores celebraram contrato de trabalho com a G..., Lda, mas em 2002, devido ao alargamento da actividade editorial, foi criada a sociedade C..., Lda (O capital social é detido € 50.000,00 pela D..., € 200.000,00 pelo S..., e € 250.000,00 pela G..., Lda), sendo os gerentes das duas sociedades os mesmos. Os Autores passaram a trabalhar indistintamente nas instalações tanto de uma como de outra, sob a direcção e fiscalização da mesma gerência, utilizando indistintamente os instrumentos de trabalho pertencentes a uma ou a outra empresa.

Esta questão remete-nos, antes de mais, e numa primeira abordagem, para o problema geral da insolvência nos grupos de sociedades.

No âmbito do CPEREF (redacção do DL nº 315/98 de 20/10) era permitida a coligação activa ou passiva de sociedades que se encontrassem em relação de grupo, nos termos do Código das Sociedades Comerciais. Daí admitir-se a viabilidade de uma acção falimentar em coligação passiva tendo por objecto um grupo de sociedade por domínio total em que a relação de crédito se reportasse à sociedade mãe e a uma das filhas das demais sociedades componentes do grupo plurissocietária.

              O actual CIRE ( aprovado pelo DL nº 53/2004 de 18/3 ) não contém um regime específico sobre a insolvência no grupo de sociedades, eliminando até a coligação, agora apenas prevista para a insolvência de casados. Estatui-se, porém, no art.86 nº2, a apensação dos processos de insolvência quando estejam em causa sociedades comerciais entre as quais se verifiquem, nos termos do Código das Sociedades Comerciais, relações de domínio ou de grupo.

É controversa a questão de saber se com apensação permanece a “autonomia formal e substancial dos processos”, sem liquidação conjunta, ou se ela tem impacto substantivo, possibilitando uma consolidação patrimonial, com a liquidação conjunta das sociedades do grupo.

              No sentido da autonomia formal, Carvalho Fernandes/João Labareda ( Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol.I, pág.361 ), para quem cada um dos processos apensos segue os seus próprios termos, embora proporcione vantagens como a do não recebimento por nenhum credor de mais do que lhe é devido, dado o concurso simultâneo às diversas massas insolventes responsáveis pela dívida. Diversamente, Ana Perestelo de Oliveira ( “ A insolvência nos grupos de sociedades”, Revista de Direito das Sociedades, Ano I ( 2009 ), nº4, pág.995 e segs. ) sustenta que o art.86 nº2 CIRE deve ser objecto de interpretação extensiva, de modo a permitir, em determinadas condições, uma consolidação substancial, através de liquidação conjunta, assumindo “indirecta incidência material, permitindo afastar a ideia do processo de insolvência como processo exclusivamente dirigido à liquidação do património de cada sociedade individual “, logo “ pode e deve haver apensação dos processos de insolvência de sociedades que se encontrem, com a sociedade declarada insolvente, em relação de domínio ou de grupo, sempre que a lei ou a confusão dos patrimónios o justifique, independentemente da posição ocupada por cada uma das sociedades no grupo “.

Dado que as sociedades de grupo, mesmo em domínio total, mantêm autonomia jurídica, como resulta da própria regulamentação legal e é entendimento doutrinário predominante, a lei não obsta à declaração de insolvência de uma ou de várias delas, face ao conteúdo do art.2º do CIRE.

Na verdade, a lei não atribui personalidade jurídica ao grupo de sociedades, separada e autónoma das sociedades componentes, como sujeito de direito ( “personificação do grupo” ), pois o que o caracteriza, enquanto forma de organização de um conjunto de empresas, é precisamente “a unidade económica do todo e a pluralidade jurídica das partes”, e o grupo de sociedades, seja vertical, horizontal ou diversificado, não é reconduzível a uma empresa (em sentido objectivo ou subjectivo), postergando se a concepção de unidade empresarial (cf. Engrácia Antunes, Os Grupos de Sociedades, 2ª ed., pág.155 e segs., Coutinho de Abreu, Da Empresarialidade, pág.256 e segs.).

Não obstante, a doutrina convoca, por vezes, o instituto da desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva no âmbito do grupo de sociedades, quer com base em normas específicas (por ex., art.501 do CSC), quer por necessidade do sistema (cf. Menezes Cordeiro, O Levantamento da Personalidade Colectiva, 2000, pág.81 e segs.).

E uma das mais importantes projecções laborais do fenómeno do grupo de sociedades é o da responsabilidade solidária dos empregadores em contexto de grupo (cf. Maria do Rosário Ramalho, Grupos Empresariais e Societários, Incidências Laborais, pág.300 e segs.).

Segundo os elementos disponíveis não se está perante qualquer situação de coligação de sociedades na vertente de “relação de domínio” ou “de relação de grupo”( arts. 486, 488, 489, 492, 493  CSC ), conforme , de resto, se fundamentou já no acórdão da Relação de Coimbra de 21/4/2015, a propósito da apensação ( cf. fls. 427).

Na medida em que a sociedade G..., Lda passou a deter metade do capital da C...,Lda, verifica-se que as sociedades estão coligadas numa relação de simples participação (art. 483 CSC).

Por conseguinte, não existindo uma relação de domínio ou de grupo, nem estando as sociedades em situação de “participação recíproca”, não tem aqui aplicação o disposto no art.334 do Código de Trabalho (sobre a responsabilidade solidária de sociedade em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo), cuja ratio é intensificar ou reforçar a garantia patrimonial dos créditos laborais, e  que estatui o seguinte:

“ Por crédito emergente de contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação, vencido há mais de três meses, respondem solidariamente o empregador e sociedade que com este se encontre em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, nos termos previstos nos artigos 481 e seguintes do Código das Sociedades Comerciais”.

Mesmo que se venha a configurar como um “grupo de facto” ( por contraposição ao “modelo contratual”) devido à relação de dependência ( pessoal e económica) entre as duas sociedades ( gerência única, a mesma actividade, unidade económica, controlo do capital ) não parece que se possa aplicar o regime do art.334 CT porque, não havendo um tratamento específico, a disciplina destas relações intersocietárias de facto cai sob a alçada das regras gerais do direito comum das sociedades ( cf. Engrácia Antunes, loc. cit. pág. 172 e segs., 523 e segs.).

Já para Maria do Rosário Ramalho ( Grupos Empresariais e Societários, Incidências Laborais, pág.637) é de aplicar analogicamente a norma do art.334 CT nos casos em que se comprove a existência de uma situação de domínio de facto de uma empresa sobre a outra. Só que a situação alegada não se evidencia como de domínio, mas antes de participação em estrutura organizativa comum, conforme se verá.

Vejamos agora se a reclamação dos créditos laborais pode assentar na responsabilidade solidária, prevista no art.101 nº3 CT ( “ Os empregadores são solidariamente responsáveis pelo cumprimento decorrente do contrato de trabalho, cujo credor seja o trabalhador ou terceiro”).

Esta questão postula saber se foi alegada uma situação de pluralidade de empregadores ( art.101 nº1 CT) mais concretamente se, para além do contrato formalizado com a G..., Lda, também se pode concluir pela vinculação laboral à sociedade C..., Lda (aqui insolvente).

Afastada a qualificação da coligação de sociedades (grupos de direito) e por consequência a repercussão no âmbito da responsabilidade solidária das sociedades coligadas pelos créditos laborais, foi, no entanto, alegado que ambas as sociedades têm “estruturas organizativas comuns”, pressuposto para a pluralidade de empregadores.

Na verdade, alegaram os Autores que a gerência é a mesma e que prestavam indistintamente o seu trabalho, tanto para uma como para outra sociedade, com subordinação jurídica e económica, e que os equipamentos e os instrumentos de trabalho pertencem a ambas, porque todo o processo produtivo é comum desenvolvendo-se em ambas as instalações industriais das referidas empresas, resultando, assim, que ambas as sociedades participam ou comungam da mesma estrutura produtiva, verificando-se, por isso, a situação de “estruturas organizativas comuns “.

Sendo assim, não se está perante uma mera cedência de trabalhadores, mas antes de uma pluralidade de empregadores (contitularidade sucessiva) e muito embora formalmente conste a G..., Lda, o que releva é a efectiva e real actividade e o vínculo de subordinação jurídica (cf, neste sentido, por ex., Ac STJ de 28/1/2015 ( proc. n 170/09), em www dgsi.pt).

Mesmo que não tenha assinado o documento escrito, imposto no art. 101 nº2 CT (com todos os empregadores) o trabalhador não está inibido de invocar a pluralidade de empregadores, desde que se verifiquem os respectivos requisitos, designadamente, a sujeição as ordens e direcção de todos eles ( cf. por ex, Ac STJ de 29/2/2012 ( proc. nº 163/09), em www dgsi.pt ), como parece ser o caso.

A questão de saber se se está perante um contrato de trabalho com pluralidade de empregadores quando um trabalhador é contratado por uma única empresa ( estando apenas  mencionado um empregador no contrato de trabalho), mas prestando a sua actividade para várias sociedades coligadas entre si ou que partilham estruturas organizativas comuns, tem sido objecto de indagação doutrinária, que incide sobre a interpretação do art.101 do CT, podendo concluir-se que a caracterização da pluralidade de empregadores não obsta a circunstância de os trabalhadores apenas haverem formalizado o contrato com um deles, quer se convoque a teoria do levantamento ou desconsideração da personalidade colectiva do empregador formal ( cf. por ex., Maria do Rosário Ramalho, loc. cit., pág. 372), quer se justifique com o princípio da primazia da realidade subjacente , ou seja, o princípio de que a realidade factual é que determina a forma jurídica ( cf., por ex., Catarina Oliveira Carvalho, Algumas questões sobre a empresa e o Direito do Trabalho, A Reforma do Código de Trabalho, 2004, pág. 240; Luís Graça Rodrigues, “A prestação de trabalho a várias empresas em simultâneo e ab início com um único empregador formal- determinação do empregador”, 2014, pág. 34 e segs. ).

Depois de salientar que por vezes acontece a falta de coincidência entre “empregador formal” e “ empregador material”, escreve Luís Monteiro em anotação ao art.101 do CT: “ Ocasiões haverá, todavia, em que o trabalho é de facto prestado por conta de vários sujeitos, todos eles exercendo sobre o trabalhador os poderes típicos de empregador. São situações especiais, as mais das vezes caracterizadas pela circunstância de actividade económica unitária ser prosseguida por estrutura jurídica plural, num contexto de relações de interferência mútua particularmente intensas. Estas relações afirmam-se perante o exterior, através da utilização de imagem unitária e no interior da organização, designadamente, pela existência de administração e quadros de pessoal comuns, pela confusão de patrimónios ( bens, equipamentos e instalações) e pela prestação indistinta de funções para pessoas jurídicas diferentes “ ( Código do Trabalho Anotado, 2013, pág. 283).

Importa sublinhar que no domínio laboral a empresa releva enquanto fenómeno económico, ou seja, enquanto organização humana produtiva num dos sectores da actividade económica independentemente da sua tradução nas categorias jurídicas do comerciante ou da sociedade comercial. O próprio Código do Trabalho adopta a noção de empresa como “unidade económica”, entendida como “ conjunto de meios organizados com o objectivo de exercer uma actividade económica principal ou acessória” (art.285 nº5), acolhendo a concepção do direito comunitário sobre a transmissão do estabelecimento.

Ora, parece ser esta unidade económica e produtiva que existia entre ambas as sociedades, tendo em conta o objecto social, e que foi expressamente referida na proposta do plano de insolvência.

Neste contexto, porque os factos alegados pelos Autores se apresentam controvertidos, não estava o tribunal legitimado a conhecer de mérito no saneador ( art.595 nº1 b) CPC), impondo-se o prosseguimento da acção.

2.3.- Síntese Conclusiva

a) A lei ( art.95 nº1 CIRE) permite que, no caso de responsabilidade solidária dos devedores insolventes, o credor possa concorrer pela totalidade do seu crédito a cada uma das massas insolventes, em processos autónomos.

b) Estando duas sociedades coligadas apenas numa relação de simples participação (art. 483 CSC) não tem aplicação o disposto no art.334 do CT sobre a responsabilidade solidária, cuja ratio é intensificar ou reforçar a garantia patrimonial dos créditos laborais.

c) A caracterização da pluralidade de empregadores, nos termos do art.101 do CT, não obsta a circunstância de os trabalhadores apenas haverem formalizado o contrato com um deles, quer se convoque a teoria do levantamento da personalidade colectiva do empregador formal, quer se justifique com o princípio da primazia da realidade subjacente.

d) Alegando-se que duas sociedades em relação de simples participação têm a mesma gerência, os autores/trabalhadores prestavam indistintamente o seu trabalho, tanto para uma como para outra sociedade, com subordinação jurídica e económica, sendo os equipamentos e os instrumentos de trabalho pertencentes a ambas, o trabalho é realizado em ambas as instalações industriais, estamos perante uma situação de “estruturas organizativas comuns“.

            e) Existe uma “pluralidade de empregadores” (contitularidade sucessiva) se tendo os trabalhadores formalizando inicialmente o contrato de trabalho com uma das sociedades passaram depois da constituição da outra (participada) a trabalhar para ambas as sociedades, no mesmo processo produtivo, com a mesma subordinação económica e jurídica, dentro de uma organização comum.

f) A falta de documento escrito, imposto no art. 101 nº2 CT (com todos os empregadores) não inibe o trabalhador de invocar a pluralidade de empregadores.

            g) Decretada, em processos autónomos, a insolvência de ambos os empregadores, os trabalhadores podem reclamar os seus créditos laborais em cada uma dos processos, por ser solidária a responsabilidade dos devedores insolventes.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, ordenando-se o prosseguimento da acção.

2)

Condenar nas custas a parte vencida a final.

            Relação de Coimbra, 20 de Abril de 2016.


( Jorge Arcanjo )

( Manuel Capelo )

( Falcão de Magalhães )