Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JUDITE PIRES | ||
Descritores: | DIREITO DE PROPRIEDADE USUCAPIÃO POSSE | ||
Data do Acordão: | 03/02/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VAGOS | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA SENTENÇA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.1252, 1253, 1255, 1256, 1287, 1294 DO CC | ||
Sumário: | I - Aquele que fundamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um imóvel, invocando como facto aquisitivo a usucapião, terá de alegar e provar o preenchimento dos elementos caracterizadores deste instituto.
II - Pretendendo juntar à sua a posse de antecessores, terá de concretizar em que termos ocorreu a transmissão da posse, quer esta tenha operado por sucessão, quer por acessão, suportando igualmente o respectivo ónus probatório. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I.RELATÓRIO Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por óbito de (…) propôs acção declarativa com processo comum, na forma sumária, contra S (…)e esposa, Maria C (…)pedindo: - que seja declarado nulo e de nenhum efeito o pedido de correcção das confrontações norte, nascente e poente, apresentado pelo R marido na Repartição de Finanças de ...., em 2004, respeitantes ao prédio matriciado sob o artigo rústico xxx da freguesia de P....; - que igualmente seja declarada nula a escritura outorgada pelos RR no Cartório Notarial de ..., aos 04/08/2005, no que respeita às ditas confrontações norte, nascente e poente; - que os RR sejam condenados a reconhecer que a herança A. é dona e legítima proprietária do prédio identificado no artigo 2° da petição inicial; - que os RR sejam condenados a destruírem o muro que implantaram na estrema nascente do dito prédio, junto à Rua Q.... e absterem-se de quaisquer actos que perturbem ou impeçam o exercício do direito de propriedade da herança sobre o mesmo prédio. Para tanto, alega, em síntese, que os antecessores da autora (… e esposa) e os réus foram comproprietários na proporção de 1/3 parte indivisa do prédio inscrito na matriz sob o artigo yyy, tendo requerido o loteamento do prédio, o que foi deferido, dando origem a dois lotes com as áreas de 970m2 e de 3.465m2. Mais invoca que em 22.06.78 procederam à divisão do prédio, tendo cabido o lote 1, com 970m2 aos réus e o outro aos antecessores da autora, que já dispunha de artigo matricial próprio – o artigo xxxº. Afirma ainda que o lote que coube aos antecessores da autora é extenso, encontrando-se dividido pela Rua Q...., que lhe cortou o limite poente em 437 m2, tendo a herança da autora relacionado esses 437 m2 como prédio omisso, sendo-lhe atribuído o artigo matricial wwww. Alega que tal terreno, quer como prédio autónomo, quer integrando o artigo kkkk, é usado e fruído pela herança da autora e seus antecessores há mais de 20, 25 e 30 anos, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, ininterrupta e continuadamente, na convicção de que lhes pertence. Finalmente, refere que os RR pediram alteração das confrontações do prédio matriciado sob o artigo xxx por forma a fazerem coincidir as confrontações com o do artigo matricial wwww, tendo outorgado escritura de justificação notarial do referido prédio, que registaram a seu favor, sem que as declarações aí prestadas correspondam à verdade. Pessoal e regularmente citados, contestaram os Réus, alegando que o prédio em causa lhes foi doado verbalmente, há mais de 20 anos, por (…), tia da ré mulher. Mais sustentam que do processo de loteamento resulta que o artigo matricial yyy confrontava a Poente com caminho, actual Rua Q..... Referem, por último, que depois da doadora deixar de cultivar o terreno, foi a mãe da ré mulher, que, por conta da filha, o fez, já que os réus se encontravam emigrados em França. Era aquela quem vigiava a casa, cuidava do quintal e do terreno, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, na convicção de que o terreno era da filha, durante mais de 20 anos e até hoje. Foi elaborado despacho saneador, com dispensa de selecção da matéria de facto. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, vindo a ser proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, a) absolveu os réus dos pedidos de reconhecimento da herança autora como legítima dona e proprietária do prédio com o artigo matricial nºzzzz e a destruírem o muro implementado na estrema nascente do prédio e absterem-se de praticar actos que perturbem ou impeçam o exercício do direito de propriedade da autora; b) declarou que as réus não são os únicos donos e possuidores do prédio com o artigo matricial xxx, sendo falsas as declarações que em contrário produziu na escritura notarial lavrada em 04.08.2005, determinando que seja dada seja sem efeito a rectificação das confrontações do artigo matricial nºxxx a que alude o facto provado S), tendo as custas sido fixadas na proporção de 30% para a Autora e de 70% para os Réus. Por não se conformar com tal decisão, na parte em que ficou vencida, dela interpôs a Autora recurso de apelação para este Tribunal da Relação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões: - Provou-se que pela herança Autora foram participados os 437 m2 que ficam a poente da Rua Q.... como prédio omisso, tendo-lhe sido atribuído o artigo matricial wwww da freguesia de P....; - Provou-se ainda que a família da A. há mais de 20, 25 e 30 anos que vem usando e fruindo o dito prédio, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, de forma ininterrupta e contínua, na convicção que usam e fruem de coisa exclusivamente sua, amanhando-o e cultivando-o, colhendo-lhe todas as vantagens. - Tal factualidade deveria ter levado à procedência do pedido constante da alínea C) da petição inicial; - Não o tendo feito, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 1296º do Código Civil, pelo que deve, nessa parte, ser revogada. Não foram apresentadas contra - alegações. Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO 1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2]. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente se, face à matéria dada como comprovada, e que não foi impugnada, devia ser julgado procedente o pedido formulado sob a alínea C) da petição inicial, ou seja, a condenação dos Réus no reconhecimento que a herança Autora é dona e legítima proprietária do prédio identificado no artigo 2º da referida peça processual.
III. FUNDAMENTO DE FACTO Pela primeira instância foram julgados provados os seguintes factos, que não foram objecto de impugnação por via do presente recurso:
IV. FUNDAMENTO DE DIREITO Segundo o artigo 1287.º, do Código Civil, “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”. Ou seja, a usucapião comporta uma forma originária de constituição de direitos reais, através do reconhecimento jurídico duma situação de facto, exigindo, para o seu preenchimento, dois requisitos ou pressupostos, cuja verificação cumulativa é necessária para que o instituto possa produzir efeitos. O primeiro desses requisitos pressupõe uma situação de posse relativamente a um direito real de gozo, designadamente direito de propriedade. O segundo requisito reporta-se ao decurso dessa situação de posse por um certo lapso temporal, variável de acordo com a verificação concreta das circunstâncias previstas nos artigos 1294.º e seguintes do Código Civil. A posse caracteriza-se pelo “ poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”[3]. Adquire-se, designadamente, “pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito”[4] e “pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta”[5]. Para o preenchimento da usucapião como facto aquisitivo, a posse tem de ser pública e pacífica[6], apenas influindo as demais características no prazo necessário para a sua constituição. A posse, enquanto facto aquisitivo, pressupõe a reunião de dois elementos: a) um elemento material – o corpus –, traduzido nos actos materiais praticados sobre a coisa, no exercício de poderes sobre a mesma; b) um elemento psicológico – o animus -, consubstanciado na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos materiais praticados. A circunstância da lei fazer depender a existência da posse destes dois elementos, confronta o possuidor com a necessidade de comprovar o preenchimento dos mesmos. Só a posse assim demonstrada releva para efeitos aquisitivos através do instituto da usucapião. Note-se, porém, que o exercício dos actos materiais que se traduzem no corpus faz presumir a existência do animus[7]. Trata-se, todavia, de uma presunção legal tantum juris, susceptível, por isso, de ser ilidida pela prova do contrário[8]. É, de resto, o entendimento que se extrai do Assento do STJ de 14/05/96[9], e que continua em vigor, agora com a natureza de acórdão uniformizador de jurisprudência. Como se defende no mencionado Acórdão do STJ, de 24.10.2006, “…como nos casos de aquisição unilateral do direito não há causa, ou antes, não há um negócio jurídico que defina a vontade, não há uma causa concreta, o Código estabeleceu uma presunção de causa, dizendo que "em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto" (art. 1252.º, n.º 2, do C.Civil). Esta presunção da existência do animus só pode ser ilidida pela demonstração de que os actos praticados são por sua natureza insusceptíveis de conduzir à posse – são actos facultativos ou são actos de mera tolerância. (Cfr. MANUEL RODRIGUES, A Posse – Estudo de Direito Civil Português, 4.ª edição, revista, anotada e prefaciada por FERNANDO LUSO SOARES, Coimbra, 1996, pp. 192 e 195)”. E acrescenta o mesmo Acórdão: “Desta forma, presumido legalmente o animus da posse das servidões, incumbiria já aos autores (…), por força do disposto no art. 342.º, n.º 2, do C.Civil, alegar e provar que o poder de facto exercido pelos réus derivava de simples tolerância, situação em que se poderia dizer que a respectiva posse era precária, por exercida em nome deles (art. 1253.º, al. b), do C.Civil)”. Assim, nenhuma censura merece a sentença na parte em que foi impugnada, que, como tal, deve ser mantida. * Conclusão: Aquele que fundamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um imóvel, invocando como facto aquisitivo a usucapião, terá de alegar e provar o preenchimento dos elementos caracterizadores deste instituto. Pretendendo juntar à sua a posse de antecessores, terá de concretizar em que termos ocorreu a transmissão da posse, quer esta tenha operado por sucessão, quer por acessão, suportando igualmente o respectivo ónus probatório. * Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, negando provimento ao recurso, confirmar a decisão recorrida na parte em que foi impugnada.
Custas (nesta Relação): pela recorrente.
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