Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
189/09.3GCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: REQUISITOS DO REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
ELEMENTOS DO TIPO SUBJECTIVO DE ILÍCITO
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
Data do Acordão: 05/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LERIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 283º,287º,307º, 308º, 309º DO CPP
Sumário: 1.A decisão instrutória só pode recair sobre os factos que foram objecto da instrução, ficando o objecto do processo delimitado pelo conteúdo daquele requerimento.
2. Assim o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público, para além do mais, deve conter os factos integradores do tipo subjectivo de ilícito imputado ao agente.
3 Não sendo narrados no requerimento aludido no número anterior os factos integradores do tipo subjectivo de ilícito imputado ao agente e tendo havido instrução, deve ser proferido despacho de não pronúncia
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO




LL identificado nos autos, apresentou denúncia criminal contra MO e F identificados nos autos, imputando-lhes a prática de actos susceptíveis de integrarem os crimes de ameaça e coacção.
Procedeu-se a inquérito, tendo a final o Ministério Público proferido decisão de arquivamento, por não se indiciar a prática de qualquer crime.
A denunciante, constituída assistente, veio então requerer a abertura da instrução.
Finda esta, proferiu o Mmº Juiz  despacho de não pronúncia por entender não se verificarem indícios da prática de qualquer crime.
 Dessa decisão recorreu a assistente, concluindo a sua motivação nos seguintes termos:

A - A Douta decisão instrutória não considerou, como devia os factos apurados e provados em sede de Debate Instrutório/Audiência de Inquirição de testemunhas, proferindo uma decisão de não pronúncia ilegal e injusta.

B - A Douta Decisão Instrutória, a fls. 141, no seu § 2°, no que ao depoimento da assistente diz respeito considera:

« A assistente foi ouvida em sede de inquérito e em sede de debate instrutório v. fls. 30 e 2 e apenso das transcrições de fls. 37 e resulta de tais meios de prova em relação à arguida MO que esta a terá ameaçado de morte se não lhe entregasse a neta; instada a esclarecer quais as expressões concretas que a arguida terá proferido a mesma referiu «ameaças de morte”. Não referiu qualquer expressão corporal intimidatória mas apenas palavras. Não referiu que a arguida tivesse dito uma data concreta, ou circunstância concreta de espaço e de modo".

C- Todavia, aquando do depoimento da assistente a mesma referiu com precisão quais as expressões proferidas pela arguida MO, expressões essas ameaçadoras, dignas de tutela legal, o mesmo sucedendo quanto "expressões corporais intimidatórias", consubstanciando a atitude empreendida pela arguida MO a prática de crimes de Ameaça e de Coacção.

D - Tais ameaças de morte perpetradas pela arguida MO contra a assistente, foram igualmente confirmadas, em sede e Debate Instrutório, pelo Marido desta, a testemunha P, do qual se pode extrair que as expressões levadas a cabo pela arguida MO contra a pessoa da assistente e demais pessoas presentes no local, configuram a prática de um crime de Ameaça.

E - Da Douta Decisão Instrutória, resulta um erro notório na apreciação da prova,  porquanto, resulta da fundamentação a convicção de que arguido F é pai da menor B, não se vislumbrando, em momento algum do depoimento da assistente, que tal afirmação alguma vez tenha sido proferida pela mesma, uma vez que o pai da menor B é a testemunha MF conforme resulta do depoimento de P.

F - A Douta Decisão Instrutória ao pronunciar-se ainda quanto ao arguido F "Resulta que a expressão em causa, via telefone de caso a menor não fosse entregue à sua avó que o arguido na qualidade de pai a iria buscar, não revela qualquer idoneidade de criação de temor e receio", não tendo sido apenas estas as expressões proferidas pelo arguido F a quando do seu telefonema para a assistente, conforme resulta do depoimento da testemunha P, tendo sido proferidas expressões que consubstanciam a prática pelo arguido dos crimes de Ameaça e Coacção.

G - O Tribunal "A Quo", ao decidir não pronunciar os arguidos errou, proferindo uma decisão injusta e ilegal, violadora do preceituado na alínea c), do nº 2, do artigo 410º do Código de Processo Penal.
O Ministério Público respondeu, concluindo que o recurso deve ser julgado improcedente.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do improvimento do recurso.
Foi cumprido o artº 417º nº 2 CPP.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da motivação, a questão colocada à cognição deste Tribunal, consiste em saber se da prova produzida nos presentes autos resulta indiciada a prática pelos arguidos dos crimes de ameaça e de coacção, como pretende a assistente.

Pois bem, estabelece o artº 308º nº 1 CPP:

“ Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia “.

Critério semelhante está igualmente consagrado no artº 283º nº 2 CPP ao estabelecer que:

 “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Como refere Germano Marques da Silva[1] “ Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido”.
E acrescenta ainda o referido autor “ A referência que o artº 301º nº 3, faz à natureza indiciária da prova para efeitos de pronúncia inculca a ideia de menor exigência, de mero juízo de probabilidade. Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação. A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (artº 283º nº 2); não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.”

Em suma será necessário fazer um pré-juízo sobre a criminalidade e existência dos factos, a partir do material probatório que consta dos autos.

A recorrente, como vimos, entende que há elementos factuais suficientes para pronunciar os arguidos pela prática dos aludidos crimes.

Mas não tem claramente razão !

E isto é assim mesmo sem termos necessidade de entrar na apreciação da questão directamente levantada pela recorrente.

Basta atentarmos no conteúdo do requerimento de abertura de instrução que esta apresentou, para facilmente chegarmos a essa conclusão.

Na verdade esse conteúdo traçou-lhe irremediavelmente o destino – o naufrágio total!

Vejamos então, porquê.
Como é por demais sabido, a abertura da instrução pode ser requerida apenas pelo arguido ou pelo assistente (artº 287º nº 1 CPP).
Este último pode requerê-la “, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação”, visando-se assim a comprovação judicial da decisão assumida pelo M P de não deduzir acusação por aqueles factos (artº 286º nº 1 CPP).
Significa isto que o objectivo do assistente neste caso é o de levar a julgamento factos, pelos quais o M P considerou não dever acusar, como é o caso em análise.

Daí que o requerimento do assistente, porque não tem atrás de si uma acusação que delimite o âmbito da pronúncia, tenha de ser estruturado, como se fosse uma acusação.

Exige-se que tal requerimento contenha (artº 287º nº 2 CPP):

- em súmula, as razões de facto e de direito de discordância em relação à acusação ou não acusação.

- sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo.

- os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.

 - dos factos que, através de uns e de outros, espera provar.

Exige-se ainda ao assistente que no seu requerimento indique, sob pena de nulidade:

- a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.      

- a indicação das disposições legais aplicáveis.

Do exposto resulta que, como refere Germano Marques da Silva[2], o requerimento do assistente para abertura da instrução, tenha de conter, substancialmente uma verdadeira acusação.

E compreende-se que assim seja, como já referimos anteriormente, já que tal requerimento, no caso de arquivamento dos autos de inquérito por parte do MP, como foi o caso vertente, equivale à acusação, uma vez que a decisão instrutória só pode recair sobre os factos que foram objecto da instrução, ficando o objecto do processo delimitado pelo conteúdo daquele requerimento.

É que, conforme se alcança dos artºs 303º e 309º CPP, a narração dos factos, no requerimento para abertura da instrução assume particular relevo, na medida em que é por tais factos que a pronúncia se tem necessariamente de pautar, já que o artº 309º nº 1 CPP estabelece que “a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução” ( o sublinhado é nosso).

Impõe-se por isso no requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, a delimitação do “thema decidendum”, já que o juiz está limitado pelos factos aí alegados pelo assistente (artº 308º nº 1 CPP), sob pena de proferir uma decisão nula se não tiverem sido alegados os factos que vierem a recair no despacho de pronúncia.

Por outro lado o artº 287º nº 3 CPP estabelece taxativamente os casos em que o requerimento pode ser rejeitado.

A saber:

- quando for extemporâneo.

- por incompetência do juiz.

- por inadmissibilidade legal da instrução.

Ora se no que concerne à rejeição por extemporaneidade e incompetência do juiz não se suscitam quaisquer dúvidas, já o mesmo não sucede relativamente à rejeição por inadmissibilidade legal.

A este propósito escreve Maia Gonçalves[3] “ A rejeição por inadmissibilidade legal de instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura da instrução, v. g. ilegitimidade do requerente (caso do MP) ou inadmissibilidade legal de instrução ( v.g. casos dos crimes particulares e de alguns processos especiais).”

Também Germano Marques da Silva[4], a este propósito refere “O requerimento do assistente tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta ou a falta ou inimputabilidade do arguido, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta de pressupostos de objecto, de arguido. Faltando no processo o seu objecto ou o arguido o processo é inexistente. Se, porém, em lugar de inexistência ocorrer apenas a nulidade da acusação, nos termos do artº 283º, já não será caso de inadmissibilidade legal da instrução, tanto que a nulidade da acusação não é de conhecimento oficiosos, tem de ser arguida”.

Significa isto que, quando o requerimento do assistente para a abertura da instrução não contenha os requisitos de uma acusação, com indicação do agente, a narração dos factos que integrem o crime, bem como as normas jurídicas aplicáveis, não pode haver legalmente a pronúncia do arguido[5].

Ora o que acontece no caso vertente é que o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente não obedece a tais requisitos.

Com efeito, constata-se da sua leitura que a assistente não refere absolutamente nada relativamente ao elemento subjectivo (cfr. requerimento de fls. 73 e ss).

Conforme decorre dos artºs 287º nº 2 e 283º nº 3 b) CPP, o requerimento para a abertura da instrução deve conter “ a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

Omitindo-se completamente a descrição da facticidade integradora do elemento subjectivo quer relativamente ao crime de ameaça, quer no que concerne ao crime de coacção, que, como é sabido, são crimes que exigem o dolo, jamais poderiam os arguidos ser pronunciados, ainda que se indiciasse toda a restante factualidade, designadamente a referida pela assistente no recurso que interpôs.

É que no requerimento há “ narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena”.

Assim os factos integradores do elemento subjectivo tinham que constar de tal requerimento apresentado pela assistente, já que é este que limita a instrução (artº 309º nº 1 CPP), pelo que a instrução era inadmissível, e por isso jamais poderia dar corpo ao despacho de pronúncia.

E igualmente não havia, na altura própria, lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, conforme Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005 de 12 de Maio de 2005.[6]

Contudo o certo é que o requerimento em causa ultrapassou, mal, a fase do despacho liminar destinada à sua apreciação, e isto porque oportunamente foi declarada aberta a instrução.

Chegados aqui, torna-se evidente que é completamente indiferente saber se existe nos autos prova indiciária de que os arguidos proferiram as expressões em causa.

É que mesmo que se concluísse que as proferiram, nunca estes poderiam ser pronunciados pelos crimes de ameaça e coacção ou qualquer outro, porquanto a assistente, não fez constar do seu requerimento para instrução os factos integradores do elemento subjectivo desses crimes.    

           

DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar improcedente o recurso e consequentemente confirmam, por razões diferentes, o despacho de não pronúncia.

Notifique.

Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP)

Coimbra, 12 de Maio de 2010.


[1] Curso de Processo Penal, III, pág. 179.
[2] Curso de Processo Penal, III, pág. 139.
[3] Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., pág. 629.
[4] Obra citada, pág. 134.
[5] Cfr. neste sentido AcRP 01.05.23, CJ 3/01, 238, AcRL 01.10.11, CJ 4/01, 141, AcRL 02.04.11, CJ 2/02, 147, AcRL 02.12.05, CJ 5/02, 142, AcRL 03.01.14, CJ 1/03, 124, AcRL 03.03.13, CJ 2/03, 124, AcRL 03.07.03, CJ 4/03, 127,  AcRL04.06.01, CJ 3-04, 139, AcRL 04.03.04, CJ 2-04, 124,   AcRC 04.06.30, Rec. nº 2125/04, AcRC 05.04.06, Rec. nº 420/05-4.
[6] DR, I Série-A, de 4 de Novembro de 2005, pág. 6340.