Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3/09.0TBOBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
RELAÇÕES SEXUAIS
PERDA
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL DE ANADIA.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 496º, Nº 1 DO C. CIVIL.
Sumário: I – Deve entender-se como correcta a tese da admissão da tutela dos danos não patrimoniais resultantes da privação do débito sexual, seja pela interpretação extensiva do disposto no nº 2 do art. 496º, seja pelo recurso à norma do nº 1 do mesmo preceito, encarando o direito à sexualidade como um direito de personalidade.

II - O facto de a mulher do autor, por causa da impotência que o ficou a afectar, ter ficado privada de mater com ele relações sexuais, constitui um trauma cuja intensidade e continuidade justificam uma interpretação extensiva do normativo civil onde se contempla o ressarcimento dos danos não patrimoniais (art.496º/1 do C. Civil).

Decisão Texto Integral:             ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            I- RELATÓRIO

            I.1- F… e M…, intentaram em 03.01.09 acção ordinária tendente a obter a condenação de V…, L… e «Fundo de Garantia Automóvel», a título de indemnização por danos, patrimoniais e não patrimoniais que descrevem, sofridos em consequência de lesões de que foi vítima o 1º A. por acidente de viação ocorrido em 12.02.2002 na E.N. nº 333 IP3, cuja culpa imputa, em exclusivo, ao 2º R., condutor do veículo de matrícula FT… propriedade do 1ºR, que não tinha transferido para qualquer seguradora a responsabilidade emergente de acidente de viação com a circulação daquela viatura, o pagamento de:

a) 164.333,19 € ao A. F…; 

b) 25.000,00 € à A. M… a título de indemnização pelos danos não patrimoniais;

c) Na quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, em função dos tratamentos, consultas, medicamentos, deslocações, refeições que o A. tenha ainda de efectuar;

            d) juros de mora desde a citação.

            Os RR. contestaram impugnando a versão do acidente articulada pelos AA. bem como os montantes indemnizatórios reclamados.

            Houve resposta.

            Saneada e condensada a lide, realizou-se o julgamento, e por último proferiu-se sentença datada de 25.06.2012, com o seguinte dispositivo:

julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência condeno solidariamente os Réus V…, L… e Fundo de Garantia Automóvel a pagar ao Autor F… a quantia global de €115.220,39 acrescida de juros à taxa legal anual de 4% (ou da que sucessivamente se encontrar em vigor) contados sobre a quantia de €75.220,39 desde a citação dos Réus até integral pagamento, e sobre a quantia de €40.000,00 desde a presente data até pagamento; e à Autora M… a quantia de €25.000,00, acrescida de juros à taxa legal anual de 4% (ou da que sucessivamente se encontrar em vigor) contados desde a presente data até integral pagamento. Ao Fundo de Garantia Automóvel há que deduzir a franquia no montante de €299,78”.

I.3- Desta sentença apelou o réu «Fundo de Garantia Automóvel».

Nas conclusões das suas alegações, disse:

...

I.3- Não foram apresentadas contra-alegações.

Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            II – FUNDAMENTOS

            II.1 - de facto

Está em causa no presente recurso, não o apuramento das culpa na produção do acidente ajuizado, que a instância recorrida decidiu caber em exclusivo aos dois primeiros RR., sem reacção das partes, pelo que tal questão está definitivamente resolvida, nem, consequentemente, a existência do dever de indemnizar o A. pelos danos sofridos.

O que está em aberto é apenas a questão relativa à indemnização arbitrada à autora a título de danos não patrimoniais.

            Com efeito, delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações da recorrente, atentas as mesmas vê-se que a questão essencial a decidir passa pela análise do dano reflexo ou indirecto que se considerou na sentença ter sofrido a A., por ter ficado total e permanentemente privada da sua vida sexual mercê das lesões que atingiram o A., seu cônjuge, a nível sexual.

            Reduzidos ao seu núcleo essencial, os factos relevantes a considerar para decidir a questão posta, são os seguintes:

            1. O autor nasceu no dia 29 de Novembro de 1942 e casou com a autora;

14. Em consequência do acidente, o A. sofreu, entre outras, as lesões em seguida descritas:

- T.C.E.;

- choque hipovolemico;

- fractura complexa da bacia;

- 4 fractura do sacro a direita;

- apófise transversa de L3;

- lesões de contusão da bexiga;

- uretra com hematuria franca;

- fracturas múltiplas e complicadas dos ossos da bacia (Ilíaca e Sacro);

- rotura da uretra com retenção urinária aguda;

- paralisia do Ciático direito;

- paresia do Plexo sagrado a direita com perturbações dos esfincteres.

            22. Ainda nessa data iniciou mobilização passiva do membro inferior direito, iniciando, em 14 de Marco de 2002, a mobilização passiva, mas agora aos dois membros inferiores.

23. No dia 26 desse mesmo mês de Março foram-lhe extraídos os fixadores externos da bacia.

24. Realizou o primeiro levante no dia 14 de Abril de 2002, iniciando deambulação com apoio de duas canadianas e de duas técnicas fisioterapeutas, sendo-lhe nessa altura retirada a algália.

25. Em Dezembro de 2002 o A. continuava a movimentar-se, como ainda hoje continua, com o auxílio das duas canadianas, e com aparelho suspensor do pé direito, em virtude de ter pé pendente, causado pela limitação da mobilidade do membro inferior direito, tanto a nível da bacia, como a nível do joelho e tornozelo.

26. Mantinha incontinência de esfíncteres, bem como dificuldades de micção, e erecção, sofrendo assim, em consequência das lesões que sofreu no acidente e desde essa data e até hoje, de impotência sexual, apresentando falta de rigidez, e daí resultando como consequência a incapacidade de penetração.

27. Todos estes factos exigiram o acompanhamento e a terapêutica anti-depressiva, bem como terapêutica indutora de sono.

 32. Toda a clausura hospitalar e domiciliária a que o A. foi sujeito perturbaram-no emocional e psiquicamente, vendo-se totalmente, e ainda hoje parcialmente, dependente, principalmente da sua esposa, para todas e quaisquer actividades, como sejam, a sua higiene pessoal e o simples facto de vestir-se.

33. Sofreu, e ainda sofre, o desgosto por se sentir fortemente incapacitado, com limitações físicas que o acompanharão para o resto da vida.

34. À data do acidente, o A. levava com a sua esposa uma vida sexual activa, satisfatória para ambos, pelo que o afecta grave e profundamente a disfunção sexual de que passou a padecer após o acidente.

            41. A vida sexual activa que os AA. tinham antes do acidente unia-os profundamente e proporcionava-lhes uma existência feliz.

42. Mercê das lesões que atingiram o A. a nível sexual, a A. viu-se também total e permanentemente privada da sua vida sexual.

43. Para além disso, a A. teve que acompanhar o seu marido em todas as consultas e tratamentos aos quais este teve que se submeter, tendo com isso perdido tempo de trabalho, e tendo tido gastos com as suas deslocações.

44. Enquanto o Autor esteve hospitalizado, a A. acompanhou-o sempre, deixando para trás todos os seus afazeres.

II.2 - de direito

Seguindo jurisprudência recente dos tribunais superiores, a após se transcrever um trecho do Ac. R.L. de 25.5.04 sobre esta matéria, escreveu-se o seguinte na sentença: “Reportando-nos ao caso dos autos, os danos sofridos pela Autora, dados por provados, apresentam gravidade que reclama a tutela do direito, sobretudo no que diz respeito à privação da vida sexual da Autora, em face da incapacidade do seu marido, encontrando-se a mesma vinculada, por virtude do casamento, entre outros, nos termos do disposto no art.º 1672.º do Código Civil, ao dever de coabitação e de fidelidade, assistindo-lhe o direito ao trato sexual com o seu cônjuge, que por força do acidente de que foi vítima está definitivamente incapacitado de cumprir, entendendo-se adequada a quantia peticionada de €25.000,00 por forma a compensar tais danos.”.

            Contra este entendimento argumenta a recorrente que o dano sofrido pela A. não tem suporte legal para merecer a tutela do direito, porque, pelos arts. 495º e 496º do C.C., os terceiros apenas têm direito a indemnização por danos por si sofrido reflexamente no caso de morte.

            É verdade que alguma doutrina e jurisprudência, dita clássica, vinha argumentando que o universo das pessoas não lesadas directamente com direito à indemnização por danos morais são apenas as previstas na norma do nº2 do art. 496º/C.C. e apenas no caso de morte da vítima, não podendo aplicar-se esta norma, extensivamente ou por analogia, a outras situações para além da morte da vítima.[1]

            Contra esta posição escreveu Vaz Serra (RLJ, ano 104, pág.14), citado na sentença recorrida: “A lei refere-se expressamente só ao caso de morte por ser aquele em que, em regra, maiores danos existem, não excluindo, portanto, que os parentes da vítima imediata tenham também direito de reparação dos seus danos em outros casos. A razão de ser é a mesma.”.[2]

            Apreciando sumariamente a lesão corporal “impotência”, escreveu o Cons. Sousa Dinis: “(…) defendi a possibilidade de a mulher do lesado ter direito a uma indemnização por danos não patrimoniais pela impotência do marido. O fundamento legal não pode ser o art.496º/2,C.C. que pressupõe a morte da vítima. Como me pareceu uma situação de flagrante injustiça, pensei poder-se atingir aquele objectivo percorrendo a via dos direitos de personalidade, encarando a sexualidade como um deles. O débito conjugal tem tanta força que a sua recusa pode ser motivo de divórcio. Ao débito corresponde um direito do cônjuge a ter com o outro um relacionamento sexual normal. Logo, a sexualidade, pelo menos dentro do casamento, pode ser encarada como um direito de personalidade.”.[3]

Por nossa parte aderimos à tese da admissão da tutela dos danos não patrimoniais resultantes da privação do débito sexual, seja pela interpretação extensiva do disposto no nº 2 do art. 496º, seja pelo recurso à norma do nº1 do mesmo preceito, encarando o direito à sexualidade como um direito de personalidade. Conforme se observou no citado Ac. STJ de 8.9.09, a norma do nº2 não deve servir para condicionar ou limitar o alcance do princípio estabelecido no nº1 de que apenas são ressarcíveis os danos morais que pela sua gravidade mereçam tutela do direito, independentemente do facto lesivo ter causado a morte da vítima. E como também se entendeu no citado Ac. STJ de 8.3.05, o facto de a mulher do autor, por causa da impotência que o ficou a afectar, ter ficado privada de mater com ele relações sexuais, constitui um trauma cuja intensidade e continuidade justificam uma interpretação extensiva do normativo civil onde se contempla o ressarcimento dos danos não patrimoniais (art.496º/1).

Para além disso, a violação injustificada do débito conjugal reveste a natureza de um verdadeiro direito de personalidade de cada um dos cônjuges, pelo que a sua privação resultante de acto de terceiro é geradora de responsabilidade civil a cargo do respectivo lesante (arts.70º e 496º/2).

Na situação ajuizada, resulta dos factos apurados que o A., em consequência do acidente que o vitimou e para o qual em nada contribuiu, ficou com lesões que, para além do mais, determinaram-lhe desde a data do acidente e até hoje, impotência sexual, vindo-se a A. também, total e permanentemente, privada da sua vida sexual.

O direito de coabitação, onde se inclui o débito conjugal, ficou, portanto, seriamente comprometido, como também ficou profundamente abalada a qualidade de vida da A. e afectado o seu casamento com o A., pois que, como provado, a vida sexual activa que tinham antes do acidente unia-os profundamente e proporcionava-lhes uma existência feliz, sendo que à data do acidente, levavam uma vida sexual activa, satisfatória para ambos,

Tudo isto ponderado e a interpretação dos normativos aplicáveis, leva-nos a concluir ter sido bem decidido pela sentença recorrida reconhecer à A. o direito à indemnização pelos danos não patrimoniais reclamados, que são graves, justificando, por isso, a sua tutela jurídica no quadro do nº1 do art.496º.

Por conseguinte, não merece acolhimento a argumentação expendida pela recorrente, sendo de manter a indemnização pelos danos morais à autora, e bem assim o valor arbitrado para o seu ressarcimento que a recorrente não questiona.

Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso.

III - DECISÃO

Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, e em confirmar a sentença apelada.

Custas pela apelante.

Regina Rosa (Relatora)

 Artur Dias

 Jaime Carlos Ferreira


[1]   cfr., entre outros, Antunes Varela (RLJ, ano 103, pág.250), Acs. STJ de 21.3.2000 (CJstj I/00-138) e de 26.2.04 (revista nº4298/03-2ª S) este com um voto de vencido.
[2]   Na mesma linha, A. Abrantes Geraldes «Ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiro em caso de lesão corporal», in «Estudos de homenagem ao Prof. Dr. Inocêncio Galvão Teles», Vol.IV, pág.263; Cons. Sousa Dinis, «Dano corporal em acidentes de viação», CJstj I/01-5 a 12, Ac.R.C. de 25.5.04 (proc. nº3480/03) disponível em www.dgsi.pt, e Acs. STJ de 8.3.05 (revista nº4486/04-6ª S.), e de 8.9.2009 (CJstj III/09-43) este que de perto seguimos.
[3]  Ob. cit., pág.11