Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1139/22.7T8CTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
PRAZO DE PRESCRIÇÃO APLICÁVEL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
MOMENTO EM QUE DEVE SER CONHECIDA A EXCEPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 595.º, 1, B), DO CPC
ARTIGO 498.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 118.º, 1, C); 144.º, B) E 148.º, 1, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I – Em ação sustentada em situação de responsabilidade civil extracontratual, o prazo de prescrição é, em regra, de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do respetivo direito (artigo 498º, nº 1, do Código Civil).

II – Contudo, tendo presente o disposto no nº 3 do mesmo art. 498º, nas situações em que o facto ilícito constitua crime para o qual a lei estabeleça prazo de prescrição mais longo, será este o aplicável.

III – A apreciação da exceção de prescrição será feita em face da alegação da petição inicial, mas sempre que ocorra impugnação dos factos atinentes à dinâmica do acidente, designadamente das condições de circulação de cada um dos condutores [para além das consequências do acidente e gravidade das lesões], deve a questão ser remetida para a decisão final [cf. art. 595º, nº1, al. b) do n.C.P.Civil].

Decisão Texto Integral:
Apelações em processo comum e especial (2013)

                                                                       *

            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

AA intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra “C..., S.A.”, pretendendo que a seguradora Ré seja condenada no pagamento da indemnização que considera ser-lhe devida a título de ressarcimento dos danos de natureza patrimonial e não patrimonial que lhe foram causados em consequência do acidente de viação ocorrido no dia 30 de novembro de 2017, alegando o Autor que o referido acidente de viação foi provocado pelo condutor do veículo de matrícula ..-..-DL, já que, por conduzir “com imperícia, desatenção, inconsideração e desrespeito do C.E.”, realizou uma manobra de ultrapassagem sem se certificar de que poderia concluí-la em condições de segurança, acabando por colidir com o veículo conduzido por ele Autor [de matrícula ..-..-ND], que circulava em sentido contrário, donde, na medida em que, em consequência dessa colisão, o próprio sofreu lesões na sua integridade física, e tendo em conta que a responsabilidade civil pelos danos emergentes da circulação do veículo de matrícula ..-..-DL tinha sido transferida para a seguradora Ré, sustenta o Autor que a mesma se encontra obrigada a ressarcir quer os danos não patrimoniais, quer os danos patrimoniais que lhe foram causados em consequência do mencionado acidente.

Citada a Ré, apresentou a mesma a sua contestação onde começa por invocar a exceção perentória de prescrição do direito de indemnização invocado pelo Autor, alegando para tanto que tendo o acidente de viação a que se reportam os presentes autos ocorrido no dia 30 de novembro de 2017, decorreram mais de três anos desde essa data até à data em que foi citada para os termos da presente ação declarativa [tanto mais que esta deu entrada em Juízo somente no dia 24 de junho de 2022], pelo que, por ter sido ultrapassado o prazo de três anos de prescrição que se encontra previsto no artigo 498º, n.º 1, do Código Civil, conclui a dita seguradora Ré que deve ser proferida decisão de absolvição do pedido de indemnização formulado pelo Autor.

Para além disso, a Ré, no seu articulado de contestação impugnou a versão do acidente apresentada pelo Autor, sustentando, em contraponto, que quando o condutor do veículo seguro estava a circular regularmente na sua faixa de rodagem, o veículo ND apareceu de modo completamente desgovernado, a ocupar a hemifaixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito daquele, cortando por completo o sentido de marcha do veículo seguro na Ré, o qual, ao avistar o ND, a circular fora da sua mão de trânsito, ainda travou, deixando marcas de travagem na faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido, mas mesmo assim não lhe foi possível evitar a colisão, embate que ocorreu totalmente sobre a metade direita da faixa de rodagem reservada à circulação do veículo matrícula ..-..-DL (seguro na contestante), donde a colisão ficou a dever-se a culpa, única e exclusiva, da conduta do Autor, condutor do veículo de matrícula ..-..-ND, o qual, pelo exposto, agiu com falta de destreza, com imperícia, inconsciência, inconsideração e negligencia, cabendo-lhe, assim, nessa medida a total responsabilidade na produção do sinistro em apreço nos autos.

                                                           *

De referir que já em sede de petição inicial o Autor tinha alegado, nos artigos 58º, 188º e 189º desse articulado, que, tendo sofrido ofensa à integridade física grave em consequência do acidente de viação por si descrito, é aplicável o prazo alargado de cinco anos de prescrição, por força do disposto no artigo 498º, n.º 3, do Código Civil.

De igual forma, notificado do teor do despacho de agendamento da audiência prévia, o Autor juntou aos autos o requerimento a que corresponde a referência n.º 3070953, reiterando que, por se encontrar em causa a prática de um crime de ofensa à integridade física, é aplicável ao caso em apreço o prazo de cinco anos de prescrição a que alude o artigo 118º do Código Penal, consequentemente, concluiu o Autor que a presente ação declarativa deu entrada em Juízo ainda antes do termo final do referido prazo de prescrição.

                                                           *

Em sede da audiência prévia que foi convocada e se realizou, perspetivando-se o conhecimento imediato da exceção perentória de prescrição invocada pela seguradora Ré, foi concedida às partes a possibilidade de discutirem, de facto e de direito, a matéria relativa à mencionada exceção perentória (cfr. artigo 591º, nº 1, alínea b), do n.C.P.Civil).

                                                           *

            Na sequência, e em linha com o que já havia sido adiantado, passou a Exma. Juíza de 1ª instância a apreciar e decidir a dita exceção de prescrição, no contexto do que considerou que «(…) verificando-se que o facto ilícito imputado pelo Autor ao condutor do veículo de matrícula ..-..-DL, consistente na ofensa da integridade física do Autor, por negligência, em consequência da condução desatenta do referido veículo automóvel, é suscetível de consubstanciar a prática de um crime para o qual a lei penal estabeleceu um prazo de prescrição mais longo do que o previsto no artigo 498º, n.º 1, do Código Civil, impõe-se concluir que, nos termos previstos no n.º 3 do mesmo artigo 498º do Código Civil, é aplicável ao caso em apreço o prazo de cinco anos de prescrição indicado na lei penal», face ao que, na medida em que o termo final do prazo de cinco anos de prescrição do direito de indemnização invocado seria atingido somente no dia 30 de novembro de 2022 e que tendo a ação sido interposta no dia 24 de junho de 2022, a seguradora Ré foi citada para os respetivos termos no dia 29 de junho de 2022, se impunha concluir que não tinha sido ultrapassado o prazo de cinco anos de prescrição aplicável ao direito de indemnização invocado pelo Autor, não podendo proceder a exceção perentória de prescrição, termos em que se finalizou pela seguinte forma:

            «Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos indicados, julgo improcedente a exceção perentória de prescrição invocada pela Ré C..., SA no articulado de contestação por si apresentado.

Notifique.»

                                                           *

            Inconformada com um tal despacho, apresentou a Ré Seguradora recurso de apelação contra o mesmo, cujas alegações finalizou com as seguintes conclusões:

            «1. O tribunal recorrido, em vez de, desde já, ter julgado a exceção da prescrição improcedente, deveria ter relegado o conhecimento da mesma para final;

2. Estando integralmente questionada a matéria de facto atinente à forma como o acidente ocorreu, não pode, neste momento processual, afirmar-se que tenha ocorrido uma facto ilícito criminal e que o Autor possa beneficiar do prazo de 5 anos previsto no nº 3, do artº 498º, do CC..

3. O tribunal, ao decidir como decidiu, violou o disposto no nº3, do artº 498º do CC..

Termos e que deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, revogando-se a decisão recorrida, por outra que relegue para final o conhecimento da prescrição.»

                                                                      *

Por sua vez, apresentou o A. as suas contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

«A) Não deve a Douta Decisão Proferida sobre a a exceção da prescrição em sede de Despacho Saneador ser revogada, na medida em que o artigo 498.º, n.º 3, do CC prevê que o facto ilícito constitua crime, para efeitos dum prazo prescricional mais longo, não se reporta à efectiva responsabilidade criminal do agente, mas, objectivamente, à qualificação jurídico- criminal dos factos nessa peça, sendo que o alongamento do prazo de prescrição previsto no n.º 3 do art. 498.º do CC aplica-se aos responsáveis meramente civis, bastando que haja, em princípio, a possibilidade de instauração do procedimento criminal, ainda que, por qualquer circunstância, ele não seja ou não possa ser efectivamente instaurado, independentemente de concreta culpa ou não do lesante na produção do acidente.

B) Em face de tudo quanto foi exposto, cabe concluir pela falta manifesta, completa e absoluta falta de fundamento do presente recurso que, assim, deve ser julgado improcedente.

Neste termos e nos demais de direito, que V. Veneranda Exa. doutamente suprirá, deverá a presente apelação ser julgada improcedente, e assim ser mantido na sua totalidade o despacho saneador recorrido e em consequência, ser confirmada a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, com todos os efeitos legais.».

                                                                       *

            Cumprida a formalidade dos vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte: (des)acerto da decisão de, em sede de despacho saneador, se julgar desde logo a exceção de prescrição improcedente.

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é, fundamentalmente, a que consta do relatório que antecede.

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 4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Importa no presente recurso aferir e decidir do des)acerto da decisão de, em sede de despacho saneador, se julgar desde logo a exceção de prescrição improcedente.

E vamos fazê-lo começando por afirmar que se está perante ação sustentada em situação de responsabilidade civil extracontratual, em que o prazo de prescrição é, em regra, de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do respetivo direito (artigo 498º, nº 1, do Código Civil).

Todavia, tendo presente o disposto no nº 3 do mesmo art. 498º, nas situações em que o facto ilícito constitua crime para o qual a lei estabeleça prazo de prescrição mais longo, será este o aplicável.

A este propósito já foi doutamente sublinhado que «A possibilidade de o lesado exigir a reparação civil que lhe é devida, fora do prazo normal da prescrição, nos termos prescritos no nº 3 do artigo 498º do Código Civil, não está subordinada à condição de simultaneamente correr procedimento criminal contra o lesante, baseado nos mesmos factos. Para que a acção cível seja ainda admitida em tais condições, basta nos termos da disposição legal em foco que o facto ilícito gerador da responsabilidade constitua crime e que a prescrição do respectivo procedimento penal esteja sujeita a um prazo mais longo do que o estabelecido para a acção cível.

Não é, pois, necessário que haja ou tenha havido acção crime na qual os factos determinantes da responsabilidade civil tenham de vir à barra do Tribunal, ainda que observados sob prisma diferente. Basta que haja, em princípio, a possibilidade de instauração do procedimento criminal, ainda que, por qualquer circunstância (v.g., por falta de acusação particular ou de queixa ou por amnistia entretanto decretada) ele não seja ou não possa ser efectivamente».[2]

Mas a possibilidade de ser aplicável o prazo mais longo de prescrição, por via de o facto em que assenta a responsabilidade civil constituir crime, bastar-se-á com a mera alegação de que assim o é, ou, muito mais do que isso, pressupõe a efetiva comprovação de tal?

No segmento do despacho saneador sob recurso entendeu-se que bastava a mera alegação de que a situação era suscetível de consubstanciar um crime.

Que dizer?

Rememore-se, na sua linearidade, os dados de facto da situação ajuizada:

- o acidente de viação ocorreu no dia 30 de novembro de 2017;

-  a ação foi interposta no dia 24 de junho de 2022;

- a seguradora Ré foi citada para os respetivos termos no dia 29 de junho de 2022.

Face a estes dados de facto, e sendo consabido que a prescrição se interrompe com a citação, é fácil de concluir que não havia sido ultrapassado o prazo de cinco anos de prescrição à data em que foi operada a citação da Ré, mas, ao invés, estava claramente ultrapassado o prazo de três anos de prescrição, a ser esse o aplicável.

Vejamos então.

De acordo com o articulado pelo Autor na petição relativamente ao acidente (facto de onde advém o pretendido direito a indemnização), às lesões pelo mesmo sofridas e às consequências delas resultantes, bem como à negligência do condutor do veículo ..-..-DL (seguro na contestante), aponta-se no sentido de se tratar de, pelo menos, um crime de ofensas corporais simples cometido pelo condutor deste último veículo, a que corresponde, tendo em conta a data dos factos, a pena de prisão até um ano ou multa até cento e vinte dias, cujo prazo de prescrição do procedimento criminal é de cinco anos [cf. arts. 118º, nº 1, al. c), 144º, al. b) e 148º, nº 1, do C.Penal].

Isto é, os factos descritos na petição consubstanciam, em abstrato, pelo menos, a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência [art. 148º, nº1 do C. Penal], e sendo de cinco anos o prazo de prescrição [cf. art. 118º, nº1 c) do C. Penal], haveria a possibilidade de aplicar a regra do já citado art. 498º, nº3 do C.Civil.

Temos presente que, em princípio, essa apreciação seria feita em face da alegação da petição inicial.

Mas sempre que ocorra impugnação dos factos atinentes à dinâmica do acidente, designadamente das condições de circulação de cada um dos condutores [para além das consequências do acidente e gravidade das lesões], deve a questão ser remetida para a decisão final, incumbido ao Autor o ónus de demonstrar o devido enquadramento jurídico da situação, isto é, de que o ilícito constitui efetivamente crime.

É precisamente esta a situação dos autos.

Na verdade, a Ré Seguradora contestou frontalmente a culpa e responsabilidade do condutor do veículo ..-..-DL (por si seguro), isto tendo em atenção os termos em que se encontram articuladas as circunstâncias do acidente, pelo que importa concluir que se mostrava efetivamente prematuro concluir no sentido da imediata aplicação do regime do art. 498º nº3 do C. Civil (prazo prescricional de cinco anos), sem necessidade de mais provas.

Ao invés, a questão deveria ter sido relegada para a decisão final [cf. art. 595º, nº1, al. b) do n.C.P.Civil].

Com efeito, impunha-se ao tribunal a quo o dever de atender aos factos articulados segundo os possíveis enquadramentos jurídicos para o conhecimento da exceção de prescrição suscitada pela Ré na contestação, face ao que carecia de submeter à apreciação de prova os factos controvertidos, relegando, por isso, o respectivo conhecimento para decisão final.

Este o entendimento que já foi igualmente sublinhado por douto aresto, particularmente no seguinte segmento:

«O artº 498º nº 3 do C. Civil, ao referir que "Se o facto ilícito constituir crime..." não está a apontar para a responsabilidade criminal, mas sim, de forma objectiva, para a qualificação criminal que deriva directamente do facto ilícito. Portanto, o facto articulado pelo demandante na petição inicial, demandante este a quem compete definir a relação jurídica controvertida. É face aos factos, tal como o autor os desenha que se poderá apreciar a excepção em causa. Salvo se forem contestados, hipótese em que a sua apreciação será remetida para a decisão final[3] [sublinhado nosso]

Donde, não o tendo feito, o tribunal a quo precipitou o conhecimento da exceção sem adquirir certeza e segurança sobre todos os elementos necessários para o efeito.

Procedem assim as conclusões recursivas e o recurso, impondo-se revogar a decisão recorrida e substitui-la por outra que relegue o conhecimento respetivo para final [por terem que prosseguir os autos com a produção de prova sobre os factos controvertidos que relevam para a apreciação e decisão sobre a dita exceção de prescrição].

(…)

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final julgar procedente o recurso, em consequência do que se revoga o segmento do despacho saneador recorrido que julgou sem mais improcedente a exceção de prescrição, substituindo-o por outro que relega o conhecimento dessa exceção para final.  

Custas pelo vencido a final.

        Coimbra, 28 de Março de 2023

                                            Luís Filipe Cravo

                                           Fernando Monteiro

                                              Carlos Moreira




[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
[2] Assim por ANTUNES VARELA, in RLJ, Ano 123, a págs. 46.
[3] Trata-se do acórdão do STJ de 14.12.2006, proferido no proc. nº 06B2380, acessível em www.dgsi.pt/jstj.