Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
370/22.0T8FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL DE DANOS PRÓPRIOS
CONFISSÃO DA SEGURADORA
ASSUNÇÃO DE RESPONSABILIDADE INDEMNIZATÓRIA
RECUSA POSTERIOR
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 11/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DO FUNDÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 46.º DO REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO, 342.º, N.º 1, 352.º E 334.º DO CÓDIGO CIVIL E 466.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Não pode valer como confissão uma carta subscrita pela ré seguradora onde é assumida a responsabilidade pelo pagamento de determinada importância indemnizatória quando numa fase posterior vem a ser apurado que existem indícios de fraude com vista a obter a liquidação do montante ou prestação que o respectivo contrato de seguro prevê.
II – A decisão proferida em 1ª instância sobre a matéria de facto deve ser mantida se os elementos probatórios carreados para os autos não impuserem, de forma inequívoca, uma solução diversa.
III – Não constitui abuso do direito a postura, assumida pela ré, que se traduz na mera impugnação dos factos, alegados pela autora, que integram a causa de pedir na acção destinada a efectivar a responsabilidade que decorre de um contrato de seguro que cobre danos próprios.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 370/22.0T8FND.C1

Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco

Juízo Local Cível ...

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.

M..., LDA, pessoa colectiva n.º ...90,  com sede ..., freguesia e concelho ...,

instaurou no Juízo Local Cível ... acção comum contra Z... PLC – SUCURSAL EM PORTUGAL,  com o NIF ...36, com sede na Rua ..., ... ...,

pedindo, com base na factualidade melhor descrita na petição inicial, que a ré seja condenada a:

a) Reconhecer o contrato de seguro outorgado pela autora e ré e titulado pela apólice nº ...36 como válido;

b) Reconhecer que o capital seguro da apólice contratada é no valor de 30.000,00 €;

c) Pagar ao autor a quantia de 30.000,00 €, a título de valor indemnizatório coberto pela apólice contratada em vigor à data do sinistro;

d) Pagar ao autor, a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, desde a data da interpelação 05/07/2019 até à presente data, o valor de 3.452,05 e (três mil quatrocentos e cinquenta e dois euros e cinco cêntimos) e ainda os vincendos, até efectivo e integral pagamento;

e) Pagar ao autor o valor de € 207,38 (duzentos e sete euros e trinta e oito euros, resultante do custo que teve que suportar pelo aluguer de viatura, acrescido de juros a contar do pagamento (27/07/2019) já vencidos nesta data no valor de 23,36 € (vinte e três euros e trinta e seis cêntimos), e os vincendos até integral pagamento, contados da presente até integral pagamento.


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A ré contestou, arguindo a excepção de ineptidão do articulado inicial e impugnando parcialmente, de forma motivada, o acervo factual alegado pela autora.

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Em resposta, a autora propugnou no sentido da improcedência da invocada excepção.

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Na sequência de despacho proferido a 17/10/2022, a autora foi convidada a aperfeiçoar a petição inicial, convite que deu origem à peça processual apresentada a 30/10/2022.

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Notificada do novo articulado, a autora contestou os factos que constituíram objecto do aperfeiçoamento.

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Em 10/2/2023, realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova.

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Subsequentemente, realizou-se audiência final, com observância do formalismo legalmente prescrito.

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Em 3/2/2023, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, sendo a ré absolvida do pedido.

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Não se conformando com a decisão proferida, a autora interpôs o presente recurso, no qual formula as seguintes conclusões:

(…).


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A ré contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:

(…).


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Questões objecto do recurso:

- Alteração da matéria de facto considerada provada e não provada pelo Tribunal recorrido;

- Enquadramento jurídico da causa, face à factualidade que vier a ser julgada relevante.


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II – FUNDAMENTOS.

2.1. Factos provados.

A 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:

1. No dia 04 de julho de 2019, encontrava-se inscrito em nome da autora o veículo ligeiro de passageiros da marca ... ..., com a matrícula ..-UO-... 

2. A autora e a ré celebraram entre si um acordo escrito, titulado pela apólice n.º ...36, mediante o qual estava transferida para a ré a responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do veículo com a matrícula ..-UO-...

3. O acordo referido no ponto precedente teve início em 10 de julho de 2018, com a duração de um ano.

4. No dia 02.08.2018, a autora e a ré aditaram ao acordo mencionado no ponto 2. a cobertura de danos próprios na apólice n.º ...36, com a indicação de capital seguro de 30.000,00€, mediante o qual estava transferida para a ré a responsabilidade civil facultativa de danos próprios.

5. No âmbito dos referidos acordos, mencionados nos factos provados n.ºs 2 e 4, a autora procedia ao pagamento do prémio anualmente.

6. O veículo com a matrícula ..-UO-.., marca ... ..., importado da Alemanha, apresenta como data de fabrico 27.07.2017.

7. A autora, no dia 04 de julho de 2019, informou a ré que os veículos com as matrículas ..-UO-.. e matrícula ..-XJ-.., marca ..., foram intervenientes num acidente de viação.

8. Em face dos avultados danos no veículo com a matrícula ..-UO-.., o referido veículo foi considerado como perda total e o salvado do ..-UO-.. foi avaliado em 9.110,00€, pela ré.

9. Por carta datada de 26.7.2019, a ré informou a autora que o valor da indemnização era de 21.000,00€, ao qual seria deduzido o valor do salvado avaliado em 9.110,00€, que ficaria com a autora.

10. Por carta datada de 14.8.2019, a ré informou a autora que a referida viatura se encontrava sobressegura, uma vez que o seu valor real de mercado era de 21.000,00€ e não 30.000,00€ e que: “De acordo com a Jurisprudência actual em caso de sobresseguro (originário ou indemnizatório, ser considerado ferido de invalidade na parte excedente, ou seja, na parte em que o valor exceda o do objecto segurado - Artº 128º e 132º nº 1, do DL nº 72/2008)” “Isto porque o dever de indemnizar visa colocar o lesado na posição que teria se não fosse o dano, significando isto que o quantum indemnizatório deve corresponder ao prejuízo efectivamente sofrido princípio geral contido no artº 562º CC, não podendo nunca constituir um meio de proporcionar um injustificado enriquecimento do lesado.”A limitação da obrigação de indemnizar ao montante real do objecto seguro decorre por isso, directa e exclusivamente, do disposto no artº 128º do DL nº 72/2008.”


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2.2. Factos não provados.

Pelo Tribunal a quo foram considerados não provados os seguintes factos:

a. No dia 04.07.2019, pelas 23:00 horas, na Estrada Nacional ...8, junto à Ribeira ..., no ..., mais precisamente no local com as coordenadas 40’’11’’17.3’’N7’’29’25.9’’W, no sentido ..., os veículos com as matrículas ..-UO-.. e ..-XJ-.., marca ..., foram intervenientes num acidente de viação.

b. No referido dia, AA, sócio-gerente da autora, conduzia o veículo com a matrícula ..-UO-...

c. AA, no dia e horas e local mencionados na alínea a., seguia na viatura ..-UO-.., na via, no sentido de marcha ..., quando, num troço de recta e à sua frente, e no mesmo sentido de marcha, se deparou com a aparente circulação doutro veículo.

d. À medida que AA se aproxima do mencionado veículo a circular à sua frente, apercebe-se que o mesmo afinal está parado na via, não tendo podido, apesar dos esforços feitos, evitar a colisão com a parte da frente da viatura por si conduzida na parte traseira do veículo com a matrícula ..-XJ-.., marca ..., tendo abalroado e projectado o referido veículo para fora da via de trânsito, tendo-se este imobilizado, junto a uma vedação que delimita propriedade particular.

e. O condutor da viatura ..-XJ-.. imobilizou a mesma, na hemi-faixa de rodagem, atento o sentido de marcha em que circulava, facto que admitiu ter feito, por se ter convencido que tinha atropelado um animal.

f. AA e a autora são alheios às razões que motivaram tal imobilização, que foi determinante para a colisão.

g. O condutor do veículo ..-XJ-.. dispunha de berma suficiente, à direita do sentido que levava, para poder em segurança, realizar a imobilização, o que não aconteceu, tendo imobilizado a viatura ..-XJ-.. na faixa de rodagem que serve apenas para circular, o que originou o embate entre os veículos com a matrícula ..-UO-.. e ..-XJ-...

h. A autora necessita da viatura com a matrícula ..-UO-.. para o desenvolvimento da sua actividade profissional.

i. Na sequência do embate entre os veículos com a matrícula ..-UO-.. e ..-XJ-.., a autora solicitou à ré um veículo de substituição, na medida em que teve de recorrer ao aluguer de um veículo, o que a ré declinou.

j. Após, a autora recorreu ao aluguer de uma viatura automóvel, durante o período de dois dias, o que se traduziu num gasto de 207,38 € (duzentos e sete euros e trinta e oito cêntimos), que liquidou.

k. Quando foi realizada a alteração do capital seguro, o referido veículo já tinha mais de um ano de fabrico e tinha um valor não superior a 25.600,00€.

l. No dia 4.7.2019, o veículo com a matrícula ..-UO-.. tinha quase dois anos de uso e um valor de mercado de 21.000,00€.


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2.3. Impugnação da matéria de facto.

A primeira questão que a apelante coloca ao nível da matéria de facto prende-se com a alegada confissão da ré relativamente a responsabilidade que decorre do acidente de viação a que os autos se reportam, o que significa, em seu entender, que a apelada está obrigada a ressarcir/indemnizar a impetrante no que diz respeito aos prejuízos/danos que resultaram do evento em causa.

Com efeito, a autora sustenta que a referida confissão resulta de carta, datada de 26/7/2019, que lhe foi enviada por parte da ré seguradora, tudo sem prejuízo de a apelada, na missiva em causa, não ter confessado as circunstâncias concretas que envolvem o evento gerador de responsabilidade civil [1].

Compulsados os autos, verifica-se que o suporte documental a que a apelante faz referência    apresenta o seguinte teor:

Não podem restar dúvidas, atento o que resulta da missiva em apreço, que a ré, embora não se tenha referido de forma expressa ao circunstancialismo que envolveu o sinistro, aceitou indemnizar a autora pelos valores que vêm descritos na sobredita carta.

Existiu, assim, uma assunção de responsabilidade que não surge associada, como por vezes sucede, a factores que se prendem com o culpa dos intervenientes no acidente, ou seja, a ré, sem aludir aos motivos que estiveram na origem do sinistro, apresentou uma proposta indemnizatória no valor de 21.000,00 €, a que seria deduzido o valor do salvado, no montante de 9.110,00 €.

A posição que a apelada assumiu extrajudicialmente mudou, de forma radical, com a propositura da acção, o que decorre, de acordo com a tese que a mesma verteu nos autos, do apuramento de circunstâncias ou indícios que levaram a mesma a concluir que existiria uma fraude com vista a obter indevidamente o capital seguro, ou seja, estaríamos perante um sinistro provocado dolosamente pela autora, o que excluiria a responsabilidade da seguradora, nos termos previstos no art. 46º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) [2].

Em nosso entender, assistia à ré o direito de contrariar a postura que assumiu na fase extrajudicial, pois não consideramos minimamente admissível que perante uma situação de fraude a mesma ficasse impedida de expor a factualidade que tinha, entretanto, apurado sobre essa questão tão relevante.

 Aliás, acrescente-se, é à autora que cabe o ónus de demonstrar a factualidade que envolve o acidente, conforme resulta do disposto no art. 342º, nº1, do Código Civil [3].

A ré, deve também acrescentar-se, não confessou os factos que se prendem com a ocorrência do evento em causa, quer no âmbito do processo de regularização do sinistro, quer no âmbito do processo judicial que lhe sucedeu.

Deste modo, é absolutamente irrelevante, para o caso concreto, o conjunto de missivas – mormente a de 26/7/2019 - que a recorrente enquadra no âmbito do art. 352º do Código Civil (confissão).

Esclarecido este ponto, cabe analisar as restantes questões relevantemente colocadas nos autos, pela ordem que resulta das respectivas conclusões.


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A segunda questão que cumpre a esta instância apreciar diz respeito à tese, defendida pela apelada, no sentido de que se encontraria demonstrada a factualidade vertida nas alíneas a), b), c), d) e), f), g) e h) i) e j) supra mencionadas.

Os elementos de prova que, alegadamente, permitiram contrariar a decisão proferida pelo Tribunal a quo são os seguintes:  

- Declarações prestadas pelo representante da autora;

- Depoimentos das testemunhas BB, CC e DD;

-  Documentos 3, 4, 6 e 7 juntos com a petição inicial.


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Declarações prestadas pelo representante da autora.

No que concerne ao gerente da apelante, as declarações prestadas pelo mesmo não podem ser valoradas positivamente, porque traduzem a versão da própria parte e não são acompanhadas por outro meio probatório idóneo que as confirme.

Relativamente a este aspecto, sufragamos inteiramente a tese defendida no Acórdão da Relação de Lisboa de 28/5/2019 (relatado por Ana Rodrigues da Silva), disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2019:97280.18.4YIPRT.L1.7.15/, Aresto que integra o seguinte sumário: “Sendo as declarações de parte o único suporte probatório nesse sentido, não se pode dar como provados os factos constitutivos do direito alegado pelo A. unicamente com base nas suas declarações de parte.”.

Com efeito, a autora é interessada directa no desfecho da causa e não carreou para os autos qualquer elemento demonstrativo da matéria em causa.

A admitir-se uma posição contrária, tal significaria postergar o princípio geral desde há muito consagrado no art. 342º, nº1, do Código Civil [4], com a seguinte consequência: a parte alegaria determinados factos, nos respetivos articulados, e, na fase de instrução, iria prestar declarações sobre essa mesma factualidade, confirmando-a, sem necessidade de produzir outras provas.

Aliás, note-se que o meio de prova em questão é valorado livremente pelo Tribunal (art. 466º, nº3, do C.P.C. [5]), sendo que, no caso vertente, a 1ª instância não atribuiu qualquer relevância ao que o gerente da autora declarou sobre a matéria em apreço.

De qualquer forma, tais declarações, se atendermos ao seu conteúdo, sempre teriam de ser consideradas inócuas, uma vez que o representante da recorrente, conforme salientou o Tribunal a quo, relatou de forma bastante vaga e genérica o alegado sinistro, não se recordando se travou antes do suposto embate, a que velocidade circulava e se o veículo onde, também supostamente, teria embatido, se encontrava ou não parado na faixa de rodagem.

Foi, deste modo, correcta a avaliação feita pelo Tribunal a quo no sentido de que não é credível o que gerente da autora relatou a propósito da matéria em questão.


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Depoimentos das testemunhas BB, CC e DD.

Os depoentes BB e DD não presenciaram o sinistro em discussão, sendo, por isso, os depoimentos em análise absolutamente irrelevantes para demonstração dos factos descritos pela autora/recorrente.

No que concerne ao depoimento da testemunha CC, a mesma revelou desconhecer o circunstancialismo que envolve o dito acidente, pois apenas referiu, de forma descontextualizada, um suposto embate na sua viatura, sem que se tenha apercebido da circulação do outro veículo.

Subscreve-se inteiramente, quanto a este ponto, analise feita pela 1ª instância, nos seguintes moldes: “(…) (a) testemunha CC referiu que parou o veiculo quando bateu em qualquer coisa, ligou os “4 piscas”, saiu do carro e foi ver o que tinha acontecido quando “bateram no meu carro”, como vimos.

Ora, parece-se-nos, no mínimo, pouco usual, alguém parar o veículo na faixa de rodagem, sair do mesmo, por volta das 23h, numa EN, para ver se tinha batido nalguma coisa (necessariamente de pouco porte, considerando que a testemunha não aludiu a eventuais danos na frente do seu carro), sem parar o veículo próximo ou mesmo na berma da estrada, não ouvir o barulho do motor do veiculo ... ao aproximar-se do seu veiculo (necessariamente CC estaria próximo do seu veiculo para constatar que tinha batido num pássaro e ver as penas no chão), nem ver as luzes, eventualmente médios que distam, por regra a 30 metros, considerando a hora e a pouca iluminação da EN, de acordo com AA, legal representante da autora.”.


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Documentos nºs 3, 4, 6 e 7 juntos com a petição inicial.

Os suportes documentais em apreço, como resulta do respectivo teor, não são demonstrativos das circunstâncias do sinistro que a autora havia alegado nos autos.

Não pode deixar de se notar que a posição assumida pela apelante relativamente à carta que constitui o documento nº4 é contraditória, pois para efeitos de confissão – problemática que abordámos em primeiro lugar – a mesma sustenta que a missiva apenas releva em termos de assunção de responsabilidade, sendo inócua no que diz respeito às causas do sinistro.

Numa fase subsequente, já defende que estamos perante um documento que prova ou demonstra o circunstancialismo que envolve o acidente, o que não é compreensível, atento o que foi alegado em momento anterior.

De qualquer modo, a carta em apreço, como referimos, não aborda a questão das causas ou dinâmica do acidente, pelo que é irrelevante para os efeitos pretendidos pela autora.

Relativamente ao documento nº3, o mesmo constitui uma declaração amigável de acidente automóvel, subscrito pelo gerente da autora e pela testemunha CC.

Em termos probatórios, o que teria de relevar, como parece evidente, seriam as declarações prestadas em sede de audiência final, designadamente por testemunhas que tivessem presenciado o alegado acidente, tudo sem prejuízo de outros elementos, designadamente periciais, que a 1ª instância tivesse considerado relevantes para a decisão da causa.

O documento em apreço limita-se a incorporar uma versão do sinistro com base em declarações prestadas por um interessado directo no desfecho da casa – neste caso, o gerente da autora -, corroboradas pela dita testemunha.

Ora, já nos pronunciámos acerca da irrelevância do que que foi declarado pelo representante da recorrente em sede de audiência final, sendo evidente, desta forma, que o documento, contendo declarações extrajudiciais sobre o sinistro, não pode ser valorado positivamente.

Quanto às declarações da identificada testemunha (CC) que constam no documento, são igualmente válidas as considerações que expendemos a propósito do respectivo depoimento, concluindo-se, desta forma, no sentido de estarmos perante um suporte documental que não releva minimamente para demonstração dos factos a que já se fez alusão.

Por último, no que diz respeito aos documentos nºs 6 e 7, os mesmos correspondem, unicamente, a troca de correspondência entre a autora e a ré na fase (extrajudicial) de regularização do sinistro, sendo o seu conteúdo irrelevante para as finalidades alegadas pela recorrente.

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2.4. Enquadramento jurídico.

O êxito da pretensão formulada pela apelante pressupunha, como é sabido, a alteração do acervo factual fixado pelo Tribunal a quo, concretamente no que diz respeito às circunstâncias do acidente que vinha descrito em sede de articulados.

A respectiva factualidade não ficou demonstrada, sendo que, como já referimos, o ónus da prova de tal matéria incumbia à autora, ora recorrente (art. 342º, nº1, do Código Civil).

Para além dos considerandos ou reparos de ordem factual já analisados, sustenta a apelante que a ré seguradora age em abuso de direito, entendimento que não tem qualquer sustentáculo, uma vez que não estão reunidos os pressupostos do art. 334º do Código Civil [6].

Por todas as razões indicadas, e não padecendo a decisão recorrida de qualquer nulidade, designadamente a prevista no art. 615º, nº1, alínea b), do C.P.C. [7]., improcede o recurso em apreço, devendo proferir-se decisão em conformidade, com os efeitos daí resultantes.


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III – DECISÃO.

Pelo exposto, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 21 de Novembro de 2023


(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo      

 (relator)

António Domingos Pires Robalo

(1ª adjunto)

António Fernando Marques da Silva

(2º adjunto)


SUMÁRIO.

(…)





[1] Não se trata de uma questão nova, contrariamente ao que sustenta a apelada, uma vez que a autora, em sede de réplica (art. 5º) aflorou a questão, referindo que a ré seguradora tinha assumido a responsabilidade pelo sinistro, nos termos que resultam dos documentos nº s2, 4 e 5 juntos com a petição inicial.
O documento nº4 corresponde, precisamente, à carta a que a autora atribui o valor confessório alegado em sede de recurso.
[2] Sob epígrafe “Actos dolosos”, o art. 46º do RJCS apresenta a seguinte redacção: “1 - Salvo disposição legal ou regulamentar em sentido diverso, assim como convenção em contrário não ofensiva da ordem pública quando a natureza da cobertura o permita, o segurador não é obrigado a efectuar a prestação convencionada em caso de sinistro causado dolosamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado.
2 - O beneficiário que tenha causado dolosamente o dano não tem direito à prestação.”.
[3] Art. 342º, nº1, do Código Civil: “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.”.
Sobre esta matéria e no sentido que defendemos, cf. o Acórdão da Relação do Porto de 28/10/2021 (relatado pelo Excelentíssimo Desembargador Carlos Gil), disponível em http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f6d02eb1e98f4f0c802587a400596975.
No respectivo sumário escreveu-se, certeiramente, o seguinte: “I - Em matéria de sinistralidade automóvel, mais relevante do que o que é declarado e como é declarado pelos diversos intervenientes é a corroboração do que é declarado pelas condições físicas do local onde se verifica o sinistro e pelas consequências materiais concretas no ou nos veículos envolvidos.
II - O sinistro é um facto constitutivo do direito do tomador do seguro ou terceiro beneficiário do seguro contra o segurador, recaindo o ónus de alegação e prova do sinistro sobre aquele que pretende acionar o segurador.”.

[4] O art. 342º, nº1, do Código Civil dispõe o seguinte: “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.”.
[5] Art. 466º, nº3, do C.P.C.: “O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.”. 
[6] Art. 334º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente  os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”.
[7] A redacção integral do art. 615º, nº1, do C.P.C., é a seguinte: “ É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”.