Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
121-A/1911.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
ADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1412º, Nº 1, CC; 299º, Nº1 E 1052º CPC
Sumário: I – Nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão e, na falta de acordo, é por via da acção de divisão de coisa comum que se exerce em juízo o direito de exigir a divisão da coisa (artºs 1412º, nº 1, do CC; 1052º do CPC).

II – Porém, este direito do comproprietário não é um direito indisponível, já que por convenção (parte final do nº 1 do artº 1412º) e com os limites impostos pelo nº 2 do artº 1412º CC, o comproprietário pode obrigar-se a não exigir a divisão da coisa e a permanecer na indivisão.

III – Assim sendo, é claro que prevalece neste tipo de acção um interesse privado, que está na disposição do comproprietário, pelo que o disposto no artº 299º, nº 1, do CPC, nenhum estorvo causa à desistência do pedido na acção de divisão de coisa comum.

IV – Porém, essa desistência só produzirá efeitos durante cinco anos, nada impedindo que passados os mesmos renove o comproprietário o seu direito a não permanecer na indivisão.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO


           A... e marido B... , residentes em..., intentaram a presente acção de divisão de coisa comum contra C..., residente ..., D... , residente em ..., E... e mulher F..., residentes em ..., pretendendo pôr termo à indivisão de dois prédios, um rústico e outro urbano, que identificam na petição inicial.                

Regularmente citados, só os réus E...e mulher deduziram oposição impugnando a indivisibilidade do primeiro dos prédios e admitindo a divisibilidade do segundo, arrastando-se de seguida os autos com incidentes diversos até que estes réus foram convidados a apresentarem nova contestação suprindo insuficiência na alegação da matéria de facto, o que satisfizeram com resposta dos autores.

Foi então proferido despacho, transitado em julgado, que decidiu a improcedência do pedido formulado relativamente ao prédio rústico por já não ocorrer uma situação de indivisibilidade, e ordenou a realização de perícia colegial destinada a averiguar a efectiva divisibilidade ou indivisibilidade do prédio urbano.

Os peritos, por unanimidade, concluíram pela indivisibilidade do prédio, na conferência de interessados que se seguiu acordaram as partes em pedir a suspensão dos autos por estarem em vias de chegar a acordo, após o que os autores surgiram a desistir do pedido.

À validade desta desistência opuseram-se os réus contestantes, com resposta dos desistentes, acabando por ser proferida decisão homologatória que julgou válida a desistência

É inconformados com esta decisão que apelaram aqueles réus E... e mulher F..., concluindo da seguinte forma as alegações que apresentaram:

[…]

Os autores contra-alegaram defendendo a manutenção do decidido.

            Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

ªªª

As conclusões dos recorrentes – balizas delimitadoras do objecto do recurso (arts. 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil) – consubstanciam uma única questão: saber se na acção de divisão de coisa comum é, ou não, admissível a desistência do pedido.

ªªª

                                                              


I I – FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

Para apreciação do recurso importam os factos descritos no relatório que antecede


ªªª


DE DIREITO

Se na acção de divisão de coisa comum é, ou não, admissível a desistência do pedido trata-se de questão de todo não pacífica na jurisprudência. Mas vejamos o que se nos oferece dizer.

 Nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, e, na falta de acordo, é por via da acção de divisão de coisa comum que exerce em juízo o seu direito de exigir a divisão da coisa (cfr. arts 1412º nº 1 do Código Civil e 1052º do Código de Processo Civil).

Porém, este direito do comproprietário não é um direito indisponível, já que por convenção (parte final do nº1 do art. 1412º do Código Civil), e com os limites impostos pelo nº 2 do mesmo normativo, o comproprietário pode obrigar-se a não exigir a divisão da coisa e a permanecer na indivisão.

E se apenas entre alguns comproprietários for estipulado o pacto de indivisão, nada impede que os demais que não tenham subscrito tal convenção, possam, em qualquer momento, fazer cessar a comunhão em relação a todos, por se tratar a mesma de uma res inter alios.

Assim sendo, é claro que prevalece neste tipo de acção um interesse privado, que está na disposição do comproprietário. Como precisam Pires de Lima e Antunes Varela, “o interesse público da cessação da compropriedade não vai, porém, até ao ponto de se conferir o direito de lhe pôr termo ao próprio Estado ou de se proibirem as cláusulas de indivisão[1].

Daí que o disposto no art. 299º, nº 1, do Código de Processo Civil nenhum estorvo cause à desistência do pedido na acção de divisão de coisa comum.

Portanto, como solução de princípio nada obsta à validade da decisão recorrida.

Todavia, esgrimem os apelantes com o decidido em sentido contrário no acórdão da Relação do Porto de 19/1/77, publicado na CJ de 1977-tomo 1-pág. 72.

Na verdade, assim se decidiu nesse aresto, só que a nosso ver, e com o devido respeito, focalizou-se a mesma decisão numa perspectiva errada, a de que com a homologação da desistência ficaria extinto o direito dos autores/comproprietários à divisão do prédio, sem convenção e sem limitação de tempo.

É certo que a desistência do pedido, extingue o direito que se pretendia fazer valer, ou seja, por ela o autor renuncia à própria pretensão apresentada em juízo (art. 295º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Contudo, o que acontece nessa circunstância é que, tal como acontece com base nos princípios gerais sobre a invalidade parcial dos negócios jurídicos por via de “redução” para o caso de os interessados estabelecerem um prazo de indivisão superior ao limite legal de cinco anos (arts. 292º e 1412º, nº 2, do Código Civil)[2], igualmente a desistência só produzirá efeitos durante cinco anos nada impedindo que passados os mesmos renovem os autores o seu direito a não permanecer na indivisão[3].

Mas não só. Para além disso, nada impede que a todo o tempo os outros comproprietários exercitem tal direito, pois que a desistência apenas vincula os seus autores, ou, incluindo os desistentes, procedam à divisão por um dos quaisquer meios extrajudiciais previstos na lei (cfr. art. 1413º do Código Civil).

Isto é, do caso julgado adveniente da homologação da desistência do pedido, não resulta para os desistentes, nem para os apelantes, a obrigação de permanecerem na indivisão sem limitação de tempo.

Afigura-se-nos, pois, que nada impossibilitava a desistência do pedido[4].

ª

Alegam também os apelantes que tendo a acção de divisão de coisa comum de ser proposta pelo comproprietário contra todos os demais comproprietários do imóvel, dado tratar-se de litisconsórcio necessário pois só mediante a intervenção de todos os interessados se alcança o efeito útil e normal da acção, de harmonia com o nº 2 do art. 298º do Código de Processo Civil a desistência do pedido formulada pelos autores só seria relevante para efeitos de custas, pelo que demonstrada nos autos a vontade dos recorrentes de exercer o seu direito de pôr termo à indivisão deveriam os mesmos prosseguir os seus regulares termos.

Sem dúvida que no caso de litisconsórcio necessário, porque há uma única acção com pluralidade de sujeitos, a desistência que um dos litigantes faça do pedido não produz quaisquer efeitos, quer sobre a relação material controvertida, quer sobre a sua subsistência, apenas relevando para efeitos de desresponsabilização do desistente pelas custas dos actos processuais subsequentes (cfr. arts. 29º e 298º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Mas esta solução legal defendida pelos apelantes teria sentido se a desistência tivesse ocorrido no seu lado, lado passivo da acção, onde se verifica uma situação litisconsorcial necessária unitária, que com a presença dos autores/desistentes assegura a totalidade dos consortes na acção necessária a que a sentença final de mérito produza o seu “efeito útil normal”.

Porém, os autores/desistentes são únicos no lado activo, não são por isso “algum dos litisconsortes[5] de que considera a lei, não se encontram em situação de litisconsórcio necessário activo, razão pela qual a situação dos autos não é enquadrável no previsto nº 2 do art. 298º do Código de Processo Civil, que reconhecendo a qualquer litigante o direito de se retirar do pleito, desistindo, confessando ou transigindo, todavia pretende evitar que tal atitude prejudique os seus compartes, aqueles que na acção estão do mesmo lado da barricada.

ª

            Invocam ainda os apelantes uma outra razão para não ser permitida a desistência requerida: por força do princípio da economia processual. Sustentam que o tribunal recorrido ao validar a desistência fez tábua rasa do enorme trabalho desenvolvido por ele próprio tribunal e pelas partes.

            Ora, o que se visa com o princípio da economia processual é que cada processo resolva o máximo possível de litígios, comportando apenas os actos e formalidades indispensáveis ou úteis[6].

            Mas, obviamente, que este princípio está sempre naturalmente condicionado e circunscrito pelo princípio do dispositivo, que lhe é mais vasto e estrutural atravessando todo o nosso Código de Processo Civil, consagrado no seu art. 3º, de acordo com o qual são as partes que dispõem do processo nas suas diversas manifestações, particularmente de que é sob o seu impulso que o processo se inicia e da mesma forma, salvo raras excepções, lhe podem pôr termo.

A consequente depreciação do trabalho reunido nos autos é sempre uma natural consequência da desistência de pedido, mas é um justo sacrifício reclamado pelo respeito da vontade de renúncia do autor ao direito que constituiu a razão da sua pretensão, o fundamento da acção, e como reconhecimento do poder que lhe assiste de poder arrumar o litígio segundo a sua vontade ou os seus interesses[7].

É que a desistência do pedido é também ela um acto de composição da lide, que exerce a mesma função que a sentença de mérito e como esta põe termo à causa, compondo-a (art. 287º, al. d), do Código de Processo Civil). Só que a composição com a desistência é obra da própria parte segundo a sua vontade, ao passo que com a sentença é obra do juiz em conformidade com o direito objectivo.

Não pode, pois, o tribunal obrigar as partes a permanecerem em demanda unicamente em glorificação de todo o trabalho até aí desenvolvido, ao ponto de, como é entendimento jurisprudencial pacífico, mesmo depois da sentença de mérito ser proferida, enquanto não transitar em julgado, ainda ser livre a desistência do pedido[8].

ª

Por último, argumentam os apelantes que a presente acção não era passível de desistência na altura em que foi requerida, em virtude de já terem transitado em julgado as decisões de mérito respeitantes à fase declarativa.

Também aqui não lhes assiste razão.

O art. 293º, nº 1, do Código de Processo Civil, dispõe que “o autor pode, em qualquer altura, desistir de todo o pedido ou de parte dele”.

De acordo com Alberto dos Reis[9], tal significa que pode ocorrer “em qualquer altura do processo, enquanto este estiver pendente ou a instância não se achar extinta.

 Pouco importa, pois, que já tenha sido proferida sentença sobre o mérito da causa, uma vez que tal sentença ainda não haja transitado em julgado”.

À mesma conclusão chega Rodrigues de Bastos[10] para quem a expressão “em qualquer altura” significa em qualquer estado da causa, enquanto não houver sentença com trânsito que ponha termo à instância.

De facto, representando a desistência do pedido uma renúncia à pretensão formulada, com ele o autor retirando o pedido que enunciou (pôr termo à indivisão de um dos prédios[11]), nada impede que os autores usem de tal faculdade enquanto não houver sentença que transitada em julgado ponha termo à instância, o que no caso dos autos só ocorreria após a adjudicação ou venda do prédio urbano a que conduziria a realização da conferência de interessados que estava para ter lugar.

É assim desprovida de sentido, e artificial para este efeito, a cisão apontada entre fase declarativa e executiva da acção.

Pelo exposto, defendemos que estando em causa direitos disponíveis, e não se encontrando os desistentes numa situação litisconsorcial necessário activo, nada impossibilitava a desistência do pedido, pelo que a sentença homologatória dessa desistência não violou os preceitos legais indicados pelos apelantes.

Decorre, pois, que não colhem as conclusões dos recorrentes, tendentes ao provimento do recurso.


III-DECISÃO

Nestes termos, e pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso de apelação interposto e confirmar inteiramente a decisão recorrida.

Custas do recurso pelos apelantes.


GREGÓRIO SILVA JESUS (RELATOR)
MARTINS DE SOUSA
REGINA ROSA


[1] In Código Civil Anotado, 2ª ed.,vol. III, pág. 386 e veja-se ainda pág. 388.
[2] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., págs. 386 e 387; Henrique Mesquita, Lições de Direitos Reais, 1967, pág. 268/269.
[3] Nesta mesma linha de pensamento argumenta-se no Ac da RP de 25/09/07, Proc. 0723616, no ITIJ que: “se ao comproprietário – autor – não era possível, por uma única convenção, obrigar-se a não exigir a divisão da coisa comum por um prazo superior a cinco anos, cfr. nº 2 do artº 1412º do C.Civil, também a autoridade do caso julgado da sentença homologatória da desistência do pedido que formulou em juízo - não poderá ter alcance temporal superior a cinco anos, ou seja, a extinção/renúncia do seu direito de exigir a divisão da coisa não poderá ter para o desistente outro alcance que não a extinção/renúncia a esse direito por um prazo de cinco anos. “.
[4] Neste mesmo sentido conhecem-se os Acs. da RP de 23/2/72, no BMJ 214º-182, da RL de 30/04/96, na CJ de 1996, tomo 2, pág. 13, e o já citado da RP de 25/09/07.
[5] Algum dos “compartes” como referem Alberto dos Reis no Comentário, vol. 3º, pág. 511 e Jacinto Bastos nas Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 85, 2ª ed., citados pelos apelantes.
[6] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 386.
[7] A não ser que se trate de relações jurídicas indisponíveis, que como já vimos não é o caso.
[8] Também a pretensão dos apelantes pressuporia a necessidade da introdução de um outro conceito: do que se deveria entender por volume e valor de trabalho desenvolvido que pudesse justificar e impor às partes, ou a alguma delas, o prosseguimento dos autos contra a sua vontade. Estar-se-ia perante algo de presentemente subjectivo e imensurável, que introduziria na área adjectiva um campo de natural arbitrariedade.
[9] Loc. cit., págs. 478/479.
[10] Loc. cit., pág. 78.
[11] O pedido inicial reportava-se a dois prédios mas, como acima se mencionou, despacho transitado em julgado decidiu a improcedência do pedido formulado relativamente ao prédio rústico por já não ocorrer uma situação de indivisibilidade.